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Lentes de (não) contato

Para mudar é preciso conhecer, e a ciência tem por base a curiosidade. A partir do que entendemos, construímos, modificamos e fazemos propostas, e então a tecnologia toma por base o saber, e denomina nossas ações. Nas tentativas altruístas de melhorar o mundo, criamos. Aviões lunares, carros autônomos, drones submarinos, roupas com fios térmicos guiados por sensores corpóreos, atuadores que nos fazem experimentar sensações dos outros. Tudo começa na inquietação lúdica que o desconhecido promove, sustentada pelo meio, que cada vez oferece e exige mais e mais rápido. Neste contexto, cabe o conceito de funcionalização, que é o ato de modificar algo, tornando-o possuidor de propriedades distantes das originais. E assim, funcionalizamos não apenas materiais inicialmente inertes como também corpos, órgãos e células.

Nós, médicos, aprendemos e exercitamos a fisiopatologia, como base do entendimento e tratamento baseado em evidências, e temos nos desvios do esperado nossa centralidade de formação, apesar de que filosófica e teoricamente, prevenir doenças é mais natural do que remediá-las. E se a medicina se ocupasse não apenas em curar e manter a vida saudável, mas em efetivamente melhorar suas funcionalidades? Nesta idéia, tratar de funções fisiológicas, aprimorando-as, poderia trazer melhor qualidade e performance. Afinal, a maioria das pessoas não têm doenças o tempo todo, mas sim saúde a maior parte do tempo.

O homem utiliza próteses e substâncias para recuperar seu rendimento desde os seus primórdios. As primeiras lentes corretivas que permitiam enxergar nitidamente, por exemplo, são datadas da Antiguidade Clássica (11 Cashell GT. A short history of spectacles. Proc R Soc Med. 1971;64(10):1063-4.) porém apenas no final do século 18, surgiram as primeiras lentes de contato.(22 Efron N, Pearson RM. Centenary celebration of Fick's eine contactbrille. Arch Ophthalmol. 1988;106(10):1370-7.) Grande inovação da época, as ditas conchas corneanas eram feitas de vidro moído e hoje, em plena era dos smartphones, ganham novos significados. Na sociedade de consumo onde vivemos, as ferramentas disponíveis são vendidas como panaceia, e pouco se pensa no “que” queremos ou necessitamos, mas sim no que fazer com algo que temos. E assim surgem produtos e estratégias “desumanizadas”, pouco ou nada baseadas no usuário e focadas primordialmente no efeito mercantil. Nossa pergunta como oftalmologistas poderia ser: o que realmente é útil na rotina high tech atual?

Diversas funções já foram implementadas com sucesso em lentes de contato, como bio- sensores que medem pressão intraocular ou o nível glicêmico da lágrima,(33 Phan CM, Subbaraman L, Jones LW. The use of contact lenses as biosensors. Optom Vis Sci. 2016;93(4):419-25.) e desenvolvimentos recentes sugerem que nas próximas décadas haverá uma ampliação considerável deste leque de aplicações.(44 Kobashi H, Ciolino JB. Innovative Development of Contact Lenses. Cornea. 2018;37 Suppl 1:S94-8.) Nosso colega Dimitri Azar, agora na Verily, empresa do grupo Google, trabalha em sensores movidos por energia localmente armazenada, que poderiam efetuar modificações ópticas e restaurar funções, como a redução da acomodação na presbiopia. A DARPA, agência de pesquisa em defesa americana, está há mais de uma década investigando lentes de contato inteligentes para oferecer aos seus soldados vantagens em campo a partir de um sistema de realidade aumentada.

Jean-Louis de Bougrenet de la Tocnaye lidera a equipe de pesquisa em óptica na IMT Atlan- tique e desenvolveu em 2019 a primeira lente de contato com micro bateria flexível, que pode transformá-la em um eyetracker fisicamente acoplado aos olhos. (55 Nasreldin M, Delattre R, Ramuz M, Lahuec C, Djenizian T, de Bougrenet de la Tocnaye JL. Flexible Micro-Battery for Powering Smart Contact Lens. Sensors (Basel). 2019;19(9):2062.) A Mojo Vision, companhia de produtos eletrônicos californiana, divulgou no início deste ano seu protótipo inteligente com display de 14.000 ppi (o iPhone 11 tem 326 ppi), sensor de imagem e movimento, rádio e conexão com smartphone... tratam-se em ambos os casos de lentes de contato esclerais (LCE), modalidade menos convencional das lentes de contato que vem se destacando.

As LCE ganharam um interesse renovado na última década. Originalmente eram usadas em olhos gravemente comprometidos por altas ametropias ou ectasias corneanas (66 van der Worp E, Bornman D, Ferreira DL, Faria-Ribeiro M, Garcia-Porta N, González-Meijome JM. Modern scleral contact lenses: A review. Cont Lens Anterior Eye. 2014;37(4):240-50.,77 Nau CB, Harthan J, Shorter E, Barr J, Nau A, Chimato NT, Hodge DO, Schornack MM. Demographic Characteristics and Prescribing Patterns of Scleral Lens Fitters: The SCOPE Study. Eye Contact Lens. 2018;44 Suppl 1:S265-S272.) e sua faixa de atuação está se expandindo para olhos cada vez menos comprometidos (ou até mesmo saudáveis). A princípio completamente descabida por não trocar lágrima e permanecer imóvel, tal lente demonstrou também ser uma excelente opção em casos de alterações da superfície ocular (88 Romero-Rangel T, Stavrou P, Cotter J, Rosenthal P, Baltatzis S, Foster CS. Gas-permeable scleral contact lens therapy in ocular surface disease. Am J Ophthalmol. 2000;130(1):25-32.) e, quando utilizada conforme orientação médica com higiene e manipulação adequadas, revela índices baixos de efeitos adversos e complicações médicas. (99 Tan DT, Pullum KW, Buckley RJ. Medical applications of scleral contact lenses: 1. A retrospective analysis of 343 cases. Cornea. 1995;14(2):121-9.,1010 Harthan J, Nau CB, Barr J, Nau A, Shorter E, Chimato NT, et al. Scleral lens prescription and management practices: the SCOPE Study. Eye Contact Lens. 2018;44 Suppl 1:S228-32.)

O segredo do aumento da sua popularidade está sobretudo no seu diâmetro e sistema de ancoragem escleral que permitem o não contato com a córnea e a possibilidade de umidificação ocular contínua. A capacidade desta lente nos abre diversas possibilidades de integração e o fato de ser uma opção confortável e discreta pode gerar aplicações interessantes. Existem 3 possibilidades de lentes esclerais no mercado brasileiro que diferem substancialmente em materiais e padrões de ajustes personalizados, os quais permitem ao usuário a experiência de utilizar uma lente única, projetada exclusivamente para o seu olho. Então... por que não expandir seu uso?

Imaginem uma estratégia que permitisse piscar, ao invés de 20 vezes por minuto, apenas 3... com isso poderíamos prestar mais atenção, aumentar nosso rendimento na leitura e foco? Se ao lado disso, a mesma estratégia protegesse nossa córnea de traumas ou filtrasse a luz de modo personalizado? Que tal pilotar sem óculos ou embaçamento e ainda aumentar o contraste ao entardecer? Pensem nisso...

Nós pensamos, e entrevistamos 30 pessoas saudáveis que trabalham ativamente com telas e tecnologias. Em média, estes indivíduos ficam mais de 8 horas por dia em frente ao computador, celular e consoles de games e 25% já utiliza algum artifício ou artefato para aprimorar sua performance, como bebida energética ou óculos com filtros coloridos. Mais de 65% responderam que sentem algum desconforto visual ao longo das horas, como cansaço e sensação de olho seco, e que estes sintomas atrapalham suas performances ao longo do dia. A maioria dos entrevistados estariam interessados em algum mecanismo para aliviar os sintomas e acreditam que o uso de uma lente de contato especial seria um artifício interessante neste contexto.

A noção do tempo já não é mais a mesma. O alcance tecnológico se eleva em progressão geométrica e é difícil mantermos este mesmo ritmo, uma vez que as evoluções orgânicas e fisiológicas do nosso corpo não conseguem acompanhar a corrida com tal sagacidade. Chegou o momento em que remediar não basta. Prevenir é preciso, mas reinventar, incrementar, funcionalizar... encontrar o equilíbrio entre o orgânico e os novos (e incansáveis) padrões de tecnologia, é possível e, ousamos dizer, permitido! Com densidade e a fantásti- ca metodologia científica, podemos abusar da curiosidade e sair da zona de conforto para, quem sabe, chegar naquele lugar mágico das infinitas possibilidades. Sabemos que o foco das academias médicas ainda está centrado basicamente nas doenças (ou nas suas medicações) e faltam interesse e subsídio para alavancar esta mudança, porém temos bons ingredientes... pessoas capacitadas, mestres incentivadores, belos exemplos internacionais e ainda empresários em busca de inovação disruptiva. Mãos á obra!

  • ERRATA

    O No Editorial “Lentes de (não) contato”, de autoria de Cristina Cagliari e Paulo Schor publicado na edição de número 2 – volume 79 da Revista Brasileira de Oftalmologia, março-abril de 2020, páginas 89-90, com o DOI 10.5935/0034-7280.20200018. Foi publicado incorretamente o nome de um dos autores, onde se lê: Cristina Cagliar. Leia-se: Cristina Cagliari.

Referências

  • 1
    Cashell GT. A short history of spectacles. Proc R Soc Med. 1971;64(10):1063-4.
  • 2
    Efron N, Pearson RM. Centenary celebration of Fick's eine contactbrille. Arch Ophthalmol. 1988;106(10):1370-7.
  • 3
    Phan CM, Subbaraman L, Jones LW. The use of contact lenses as biosensors. Optom Vis Sci. 2016;93(4):419-25.
  • 4
    Kobashi H, Ciolino JB. Innovative Development of Contact Lenses. Cornea. 2018;37 Suppl 1:S94-8.
  • 5
    Nasreldin M, Delattre R, Ramuz M, Lahuec C, Djenizian T, de Bougrenet de la Tocnaye JL. Flexible Micro-Battery for Powering Smart Contact Lens. Sensors (Basel). 2019;19(9):2062.
  • 6
    van der Worp E, Bornman D, Ferreira DL, Faria-Ribeiro M, Garcia-Porta N, González-Meijome JM. Modern scleral contact lenses: A review. Cont Lens Anterior Eye. 2014;37(4):240-50.
  • 7
    Nau CB, Harthan J, Shorter E, Barr J, Nau A, Chimato NT, Hodge DO, Schornack MM. Demographic Characteristics and Prescribing Patterns of Scleral Lens Fitters: The SCOPE Study. Eye Contact Lens. 2018;44 Suppl 1:S265-S272.
  • 8
    Romero-Rangel T, Stavrou P, Cotter J, Rosenthal P, Baltatzis S, Foster CS. Gas-permeable scleral contact lens therapy in ocular surface disease. Am J Ophthalmol. 2000;130(1):25-32.
  • 9
    Tan DT, Pullum KW, Buckley RJ. Medical applications of scleral contact lenses: 1. A retrospective analysis of 343 cases. Cornea. 1995;14(2):121-9.
  • 10
    Harthan J, Nau CB, Barr J, Nau A, Shorter E, Chimato NT, et al. Scleral lens prescription and management practices: the SCOPE Study. Eye Contact Lens. 2018;44 Suppl 1:S228-32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2020
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