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Análise de sistemas de recursos hídricos

ARTIGOS

Análise de sistemas de recursos hídricos

Roberto Max Hermann

Professor-Doutordo Departamento de Engenharia Hidráulica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo

Os últimos anos têm presenciado mudanças radicais nos métodos de planejamento de sistemas que envolvem largo uso de recursos naturais ou de capital. Essa mudança foi causada pela disponibilidade de computadores digitais de porte e velocidade de processamento sempre crescentes. Tal fato provocou o aparecimento de uma metodologia, denominada análise de sistemas, que permite o exame sistemático de um grande número de diferentes alternativas para atingir um objetivo, procurando aquela que é considerada ótima de acôrdo com um critério adotado. Análise de sistemas é tipicamente um esfôrço interdisciplinar. O critério atrás mencionado é produto de considerações baseadas na teoria econômica e podendo levar em consideração também fatôres de ordem social e política. O instrumental matemático para localização do ponto ótimo é baseado em técnicas de pesquisa operacional.

A análise de projetos de desenvolvimento de recursos hídricos beneficiou-se grandemente dessa mudança. A explosão demográfica que se observa em escala mundial e a tendência crescente à urbanização trouxeram delicados problemas relativos ao uso da água. Por outro lado,o elevado vulto dos investimentos nesse setor, bem como o fato de as decisões estarem centralizadas em entidades governamentais, requer e justifica o uso de técnicas sofisticadas de análise, o que traz um aumento considerável na eficiência econômica de tais sistemas.

A análise de sistemas permite a quantificação do planejamento. Requer uma clara definição do critério a ser adotado, uma descriçãó em têrmos físicos e econômicos dos diferentes meios de atingir os objetivos procurados e finalmente a construção de um modêlo matemático que permita a localização do ponto ótimo.

O ojetivo dêste artigo é expor de manelra sucinta os pontos essenciais dessa metodotogia, bem como contribuir .para fixação de uma terminologia brasileira nessa área.

2. SISTEMAS DE RECURSOS HÍDRICOS

Do ponto de vista estritamente físico, sistemas são conjuntos de elementos unidos por uma relação de interdependência. Tal relação pode ser usada para testar um dado elemento e verificar se pertence ou não ao sistema.

Se o ponto de vista adotado na análise de um determinado sistema vai além dos aspectos físicos, isto é, se fatôres, econômicos e sociais são envolvidos na análise é necessário estabelecer um critério para construir-se uma função-utilidade associada às diferentes configurações de componentes e produtos derivados do sistema. Os sistemas que são objeto do presente artigo pertencem a essa última categoria.

Define-se um sistema de recursos hídricos como uma coleção de obras de engenharia hidráulica e eventualmente de componentes naturais, como trechos de leitos de rio, que funcionem integradamente. Tais sistemas podem ser caracterizados por:

a) uma regra que permita determinar se um dado elemento pertence ou não ao sistema;

b) as interações do sistema com o seu ambiente; o sistema recebe insumos do ambiente, transforma-os e os devolve como produtos;

c) as inter-relações entre os componentes, os insumos e os produtos;

d) uma função-utilidade que permita efetuar unìvocamente a classificação dos produtos em têrmos sociais e econômicos.

Alguns dos componentes podem ser considerados como sistemas e submetidos a análises de mesmo gênero. Um exemplo típico é fornecido pelas estações de tratamento de água que podem ser consideradas como parte de um sistema regional de abastecimento mas, também, por dispor de diferentes componentes que integradamente desempenham a função de purificação da água, podem ser analisadas com técnica semelhante ao sistema regional.

O elemento primordial que um sistema de recursos, hídricos troca com seu ambiente é a àgua caracterizada por uma distribuição especial e temporal bem como por suas propriedades físicas e químicas. O sistema age sôbre a água recebida e devolve-a ao ambiente com características diferentes. Para efetuar essa transformação é necessário que o sistema disponha de de meios de contrôle. Um aspecto importante relacionado com êsse problema é o caráter estástico dos influxos ao sistema. Chuva e vazão natural sòmente são adequadamente descritas por variáveis aleatórias, o que complica a questão de contrôle sôbre essas grandezas.

As variáveis associadas a um sistema podem ser agrupadas em duas categorias - internas e externas. Variáveis internas são aquelas sujeitas a um contrôle, pelo menos parcial, por parte do planejador. Descargas a serem efetuadas de um reservatório constituem exemplos dessa classe de variáveis. Contràriamente, variáveis externas fogem a qualquer contrôle; chuva e vazão natural são exemplos de variáveis externas. Variáveis internas, também chamadas de decisão, podem ser agrupadas em duas categorias: aquelas relacionadas à agregação da capacidade ao sistema e as que descrevem as regras de operação.

A análise de um sistema de recursos hídricos é um processo que se desenvolve em dois estágios:

a) delimitação de uma região factível - As variáveis de decisão são sujeitas a equações de condições que representam leis físicas como, por exemplo, a equação de continuidade, bem como a equações que representam juízos econômicos, legais ou institucionais sôbre o desempenho do sistema. Exemplos dêsses juízos são abundantes. Se o planejamento é executado com disponibilidade limitada de um particular tipo de recurso, como capital, é essencial que o custo total dos sistemas não ultrapasse essa disponibilidade. Ou, se o critério do planejamento fôr o fortalecimento econômico de, uma subárea geográfica do sistema, os benefícios pertinentes a essa subárea podem ser estabelecidos acima de um certo mínimo. Limitações de tamanho de reservatórios, devido a problemas institucionais ou legais, critérios legais de qualidade de águas, que devem ser obedecidos, constituem, juntamente com os precedentes, juízos de valor que devem ser formalizados com o uso de equações de condição. Define-se a região factível como sendo uma região do espaço das variáveis de decisão onde tôdas as equações de condições são satisfeitas;

b) pesquisa do vetor de decisão ótimo - A segunda etapa consiste em localizar a solução ótima, isto é, o conjunto de valôres a ser atribuído às variáveis de decisões, que pertença à região factível e que maximize a função utilizada.

Formalmente, chamando de X1, X2, ... , Xn as variáveis de decisão, E1 E2, ..., En as variáveis externas, u (X1, X2, ... , Xn, E1 E2, ... , En)

a função utilidade e G1 (X1, X2, ... , Xn,E1, E2, ... En) < 0 as equações de condição, a análise de um sistema resume-se em localizar o vetor de decisão ótimo tal que:

para i = 1, M e N » M.

A aparente simplicidade dessas equações esconde dois problemas formidáveis: a descrição do sistema real em têrmos matemáticos e a solução do problema de otimização resultante. Êsses dois problemas serão analisados posteriormente de maneira sucinta.

A aparente simplicidade dessas equações esconde dois problemas formidáveis: a descrição do sistema real em têrmos matemáticos e a solução do problema de otimização resultante. Êsses dois problemas serão analisados posteriormente de maneira sucinta.

A próxima seção é dedicada à construção de funções que descrevam a utilidade associada com diferentes combinações das variáveis de decisão, bem como os critérios usualmente empregados no planejamento do uso de recursos hídricos.

3. ASPECTOS ECONÔMICOS: CRITÉRIOS, BENEFÍCIOS, CUSTOS E TAXA DE DESCONTO

As atividades relacionadas ao desenvolvimento de recursos hídricos são eminentemente de alçada governamental. Várias são as razões:

a) Presença de economias e deseconomias externas - Economias e deseconomias externas são têrmos descritivos de interdependências nos diferentes processos produtivos presentes num sistema econômico. Diz-se que existe uma economia externa quando uma atividade econômica é beneficiada (no sentido de redução dos custos de produção sem alteração de qualidade ou quantidade produzida) por outra. Similarmente, se por ação de uma atividade outras têm seus custos de produção aumentados, para um dado nível de produção, diz-se que essa atividade sofreu uma deseconomia externa.

Exemplos de externai idades são freqüentes na área de recursos hídricos. Uma fábrica lançando despejos industriais num rio está provocando uma deseconomia externa a todos os usuários de jusante. A construção de um trecho de endicamento para proteção de uma área provoca agravamento das condições de inundação a jusante. Tais situações são de conflito potencial entre diferentes usuários dos bens e serviços prestados pelo sistema. Torna-se necessária a presença de uma autoridade central que regulamente as condições de uso, procurando soluções satisfatórias a tôda a comunidade. Essa é tipicamente tarefa pertencente à esfera governamental.

b) Demanda coletiva - Alguns dos serviços prestados por sistemas de recursos hídricos são de demanda coletiva. Reservatórios para contrôle de enchentes constituem exemplos típicos. Uma vez construído, o reservatório protege tôda a área inundada, não existindo possibilidade de proteger-se somente aquêles interessados em pagar por tal proteção. Em outras palavras, o mecanismo de mercado não oferece possibilidade de alocar o serviço "proteção de enchentes". Se alguns dos serviços prestados são de demanda coletiva, é necessária ação coletiva para consegui-los. Novamente, tal ação deve emanar de uma autoridade central, ou de seus agentes, com podêres de levantar recursos e administrar sua aplicação.

c) Desenvolvimento de infraestrutura - Os produtos derivados de construção e operação do sistema de recursos hídricos são de natureza estratégica para o desenvolvimento econômico. É responsabilidade governamental o propiciamento de condições para êsse desenvolvimento.

d) Magnitude dos investimentos requeridos - O vulto das operações de entidades destinadas a promover o uso de recursos hídricos deve ser grande. Dois fatôres sugerem tal magnitude. As obras de engenharia hidráulica exibem marcadas economias de escalai com o crescer do vulto da obra, o custo unitário da instalação decresce. É aconselhável então que tais obras sejam projetadas com níveis apropriados de produção, para que o custo unitário seja balxo, isso envolve, usualmente, largos dispêndios de capital. Um outro fator de importância é o risco associado com empreendimentos que dependem largamente de eventos hidrológicos. Uma entidade operando em escala pequena, por exemplo, dispondo somente de um reservatório e uma usina hidrelétrica, é muito mais vulnerável a prejuízos decorrentes de um período anormalmente sêco do que uma outra entidade proprietária de muitas instalações situadas em áreas de regimes hidrológicos diferentes.

O setor privado em países desenvolvidos pode levantar capital para operações dessa magnitude. Em países de escassos recursos de capital é duvidoso que isso seja possível, cabendo então ao setor público ou aos seus agentes a tarefa de promover o desenvolvimento de recursos hídricos.

Um único perigo cerca a intervenção estatal nessa e em outras áreas. Ela é independente do processo natural de seleção impôsto pela competição comercial. Uma entidade do setor privado funcionando ineficientemente está constantemente arriscada a ser colocada à margem da atividade econômica. Tal não acontece com agentes governamentais que operam em condições de monopólio. É neste ponto que considerações de eficiência governamental requerem o uso de técnicas sofisticadas para elaboração de planos e projetos.

Se é papel do Govêrno arcar com os ônus de desenvolvimentos de recursos hídricos, cabe a êle impor os critérios para sua exploração. A responsabilidade primordial do Govêrno é maximizar o bem-estar social. Ninguém irá, em sã consciência, negar êsse fato. A unanimidade de opiniões irá cessar quando da definição de "bem-estar". Adotando-se um ponto de vista estritamente econômico, podese tomar como medida de contribuição a êsse bem-estar o valor agregado ao Produto Nacional Bruto pelos produtos originados do sistema.

Êsse ponto de vista sofre de uma deficiência básica. Os produtos derivados de sistemas de recursos hídricos são, em geral, considerados essenciais. Para colocar a discussão que se segue em têrmos concretos, tome-se por exemplo a energia elétrica. Essa comodidade está de tal maneira estabelecida nos padrões modernos de confôrto que seu valor real está acima de seu preço de mercado. Isto quer dizer que o consumidor estaria disposto a pagar pelo menos o preço correspondente ao fornecimento dessa energia pela fonte alternativa imediatamente mais cara, por exemplo, um conjunto Dieselelétrico. Essa discrepância entre o preço de mercado do produto e do seu valor social (medido por essa "disposição para pagar") é resultante da adoção de contribuição ao PNB como critério de planejamento. Do ponto de vista conceitual, a medida de benefícios baseada nessa "disposição para pagar" é muito mais satisfatória. A dificuldade está em avaliar explicitamente a diferença entre os dois valôres.

Um outro critério, que pode ser adotado em planejamentos governamentais, é o de redistribuição de renda nacional em benefício de uma determinada área geográfica. Tal redistribuição pode ser efetuada através de investimentos no setor de recursos hídricos, bem como através de subsídios. O problema de avaliação social de custos e benefícios é o mesmo discutido anteriormente.

Para transladar os critérios acima discutidos em têrmos numéricos, o que é equivalente a definir uma função-utilidade, é necessária uma definição formal de custos e benefícios. Custos constituem uma avaliação social das oportunidades perdidas em outros setores da economia devido aos recursos usados no sistema. Simetricamente, benefícios constituem uma apreciação da utilidade social, medida em têrmos dessa "disposição para pagar", dos bens e serviços prestados pelo sistema. Essas definições requerem uma qualificação. Custos e benefícios são funções do tempo e geralmente ocorrem em épocas diferentes. Para compará-los de maneira consistente é necessário adotar uma origem no eixo dos tempos e reduzir todos os valôres a essa origem. Isto requer a escolha de uma taxa de desconto social que represente o desejo da comunidade em atrasar o consumo de bens e serviços numa dada época para desfrutar de um consumo maior em data posterior.

Com os elementos acima definidos, os dois critérios de investimentos governamentais são respectivamente equivalentes a:

a) maximização do valor presente de diferença entre benefícios e custos associados ao sistema;

b) maximização do valor presente da diferença entre os benefícios advindos para a região a ser beneficiada e os custos. Como alternativa a êsse segundo critério, o nível dos benefícios regionais poderia ser fixado através de uma equação de condição e o critério seria a maximização feita em têrmos nacionais.

A metodologia proposta é uma extensão da análise clássica de custo e benefícios. Essa extensão é feita em duas direções:

a) em lugar de analisar uma dada configuração e testar uma relação benefíciol custo, a análise de sistema fornece métodos para avaliar um grande número de configurações, buscando aquela que maximiza a função utilidade;

b) fatôres não econômicos podem ser introduzidos na análise através de equações de condição.

4. TÉCNICAS MATEMATlCAS PARA ANALISE DE SISTEMAS DE RECURSOS HÍDRICOS

As seções anteriores mostraram como formular a análise de um sistema de recursos hídricos em têrmos de um modêlo matemático, usando uma funçãoutilidade e um conjunto de equações de condições. Esta seção discute brevemente os métodos disponíveis para solução do problema matemático resultante.

A discussão que se segue é destinada a apresentar uma revisão crítica da aplicabilidade de técnicas matemáticas e não a uma discussão minuciosa dessas técnicas. Discussões mais completas dos instrumentos matemáticos, bem como pormenores operacionais de sua aplicação a sistemas de recursos hídricos, podem ser encontrados nas referências apresentadas no fim dêste artigo.

4.1. Modelos determinísticos

Para benefício da clareza da exposição, a discussão apresentada neste item assume perfeito conhecimento de tôdas as variáveis associadas ao sistema. Em outras palavras, o universo no qual o sistema está imerso é determinístico. Essa hipótese, se bem que não realista, simplifica conslderàvelmente o instrumental matemático requerido. O item seguinte mostra um exemplo de modêlo estocástico.

Duas são as estratégias geralmente utilizadas para pesquisa do vetor de decisão ótimo: modelos analíticos e simulação.

Modelos analíticos são produtos de uma teoria matemática. A elaboração dessa teoria requer um formato rígido para a função-utilidade e equações de condição e, em troca, fornece garantia de localização do vetor de decisão ótimo. O mais usado dos modelos analíticos é o da programação linear cujo formato é:

onde C, X são n-vetores, B, é um m-vetor e A é uma matriz de dimensões MXN; usualmente N é muito maior que M.

Comparando-se os sistemas de equações (1) e (2) percebe-se que para uso de modelos de programação linear é necessário que a funçãoutilidade bem como as equações de condições descritivas do sistema em estudo sejam lineares. Essa hipótese corresponde, em alguns casos, a uma flagrante violação da estrutura do sistema real. Exemplos de não-linearidade podem ocorrer na função objetivo ou nas equações de condição. Alguns casos freqüentes são:

a) Como já mencionado, curvas de custo x capacidade para obras de engenharia hidráulica geralmente exibem economias de escala. A equação descritiva da relação custo e capacidade pode ser escrita sob a forma exponencial:

onde C é o custo associado à capacidade X, α e βsão parâmetros. A substituição da equação (3) por uma reta constitui uma aproximação grosseira para baixos valôres de β.

Programação convexa (ou separável), uma extensão da programação linear, permite utilizar como função-objetivo uma aproximação poligonal à equação do tipo exponencial. Apresenta, entretanto, duas inconveniências: o número de equações de condição fica grandemente aumentado e a garantia da localização do ótimo global é condicionada à convexidade da função-objetivo para problemas de minimização e à concavidade da mesma, se o problema fôr de maximização.

b) Algumas relações tecnológicas entre variáveis de decisão são não-lineares; usinas hidrelétricas a queda variável constituem exemplos dessa não-linearidade. Nesse caso, a potência gerada é o produto de variáveis de decisão como vazão, queda e rendimento, o que destrói a estrutura linear da equação de condição que descreve essa transformação tecnológica. Contràriamente ao item anterior, não existe possibilidade de estender a teoria original de solução de programas lineares para abranger não-linearidades nas equações de condição. Uma solução aproximada pode ser obtida atribuindo valôres médios a tôdas as variáveis de decisão menos uma, o que ocasiona a linearização da equação de condição.

Uma outra restrição importante é a dificuldade de incorporação de efeitos estocásticos em problemas de programação linear. Apesar dessas restrições, modelos de programação linear gozam de uma grande popularidade devido à disponibilidade de um algoritmo rápido e eficiente para sua solução: o método simplex. Computadores de terceira geração podem manejar até 4.000 equações de condição e um número pràticamente ilimitado de variáveis de decisão. Um outro fator a indicar o uso dessa classe de modelos é sua capacidade para executar eficientemente análises de sensitividade. Tais análises são destinadas a avaliar o impacto sôbre a solução ótima exercido por alterações nas variáveis externas.

Programação dinâmica constitui outra classe de modelos analíticos. O formato requerido das equações constituintes do modêlo é mais flexível do que a programação linear; a grande restrição ao uso de programação dinâmica é de ordem operacional. Com o crescer do número das variáveis de decisão, o processo de otimização passa a requerer computadores de capacidade de memória muito superior aos maiores existentes hoje em dia. O uso de memória secundária leva o tempo de execução a valôres inadimissíveis.

Simulação constitui uma técnica inteiramente diferente. Consiste simplesmente em relacionar as equações de condição e função-utilidade e por tentativas localizar o vetor de decisão ótimo. Como simulação não é amparada por uma teoria matemática, a localização do ponto ótimo é extremamente difícil. Existem métodos para tal busca que na prática não se mostram dos mais eficientes. Em contrapartida, o formato das equações é completamente livre, o que permite uma grande flexibilidade na descrição de sistemas reais. Uma outra vantagm do método da simulação é a facilidade de incorporação de efeitos estocásticos a serem discutidos na próxima seção.

Neste ponto deve ter ficado claro que não existe método ideal para análise de sistemas de recursos hídricos. A combinação de modelos de programação linear com modelos de simulação é usualmente empregada com sucesso. Nas etapas preliminares do planejamento, quando geralmente as informações sôbre dados básicos não são completas ou definitivas, modelos de programação linear revelam-se os mais adequados. Se só um ponto da curva custo x capacidade é conhecido, é aceitável admitir-se para essa função uma forma matemática simples como a linear. A exploração do modêlo linear, particularmente das técnicas de análise de sensitividade, permite a localização dos parâmetros mais importantes sôbre os quais devem ser desenvolvidos esforços para apurar as informações disponíveis. Quando o nível de informação fôr considerado final, recomenda-se o uso de modelos de simulação. Os resultados do modêlo de programação linear indicam uma zona de superfície de resposta do modêlo de simulação onde é provável localizar-se o ponto ótimo. Vê-se então que os modelos de programação linear servem a um duplo propósito: orientam o processo de coleta de dados e indicam, pelo menos em primeira aproximação, a localização provável do vetor de decisão ótimo.

4.2 Um exemplo de modêlo estoeástieo - determinação de relação entre armazenamento e vazão regularizada

Como já mencionamos anteriormente, a introdução de efeitos estocásticos no processo de planejamento tem a virtude de torná-lo mais próximo da realidade e o defeito de complicar consideràvelmente a estrutura matemática dos modelos. Esta seção apresenta um exemplo de modêlo estocástico como uma aplicação da teoria estatística da decisão.

É comum fazer-se uma distinção entre risco e incerteza. Risco pressupõe existência de informações empíricas sôbre a distribuição de probabilidades das variáveis aleatórias. Exemplo típico é fornecido pelo risco hidrológico; as informações estatísticas disponíveis nos traços históricos podem ser manipuladas a fim de fornecer algumas indicações sôbre o comportamento aleatório das grandezas envolvidas. Contràriamente, uma decisão é feita sob condições de incerteza se informações históricas não puderem ser utilizadas para ajudar a escolha a ser feita. Inovações tecnológicas constituem exemplos dessa categoria; é impossível prever se nos próximos 10 ou 20 anos uma radical mudança irá operar-se nas técnicas de escavação de túneis profundos em rocha viva; tal mudança poderá ocasionar marcada redução nos custos em obras dessa natureza. Essa distinção fica diminuída se fôr adotado um ponto de vista bayesiano sôbre distribuições de probabilidades subjetivas.

Esta seção trata exclusivamente de um problema de risco. O exemplo escolhido é o da determinação da relação entre o volume do reservatório a ser construído e a vazão regularizada capaz de ser mantida. Grandes progressos têm sido realizados na arte de construção de barragens; infelizmente progressos da mesma ordem não têm sido conseguidos no processo de tomada de decisão mais importante: a determinação do volume a ser reservado e, conseqüentemente, do porte da estrutura.

O primeiro artigo que surgiu tratando do problema foi escrito por Wengel Rippl, um engenheiro inglês, em Proeeedings of the Institution of Civil Engineers, em 1883. Rippl propôs um processo gráfico para aplicar a equação de continuidade intertemporalmente utilizando o traço histórico. O diagrama resultante, conhecido como diagrama de massas, ainda é largamente usado; o método, entretanto, sofre de alguns defeitos graves:

a) a análise se baseia somente no traço histórico e a probabilidade da mesma seqüência voltar a ocorrer é zero; conseqüentemente, o volume determinado seria adequado para a série passada mas seguramente não o é para as condições futuras;

b) não existe avaliação explícita do risco envolvido na escolha de um determinado volume. Talvez êsse seja o defeito essencial do método; em lugar de resolver o problema estatístico transforma- o num outro, determinístico, disfarçando assim o risco envolvido numa escolha particular do volume de armazenamento;

c) com o crescer do período coberto pelo traço histórico, o volume indicado pelo diagrama só pode crescer; barragens são obras de longa vida econômica, provàvelmente muito mais longa do que o período disponível de observações, o que provoca suspeita quanto ao valor do volume resultante do diagrama.

Êsses defeitos são resultantes do uso exclusivo do traço histórico, que esconde os aspectos probabilísticos do problema. Mais ainda, a escolha do volume, e conseqüentemente do custo da obra, não é relacionada com os benefícios advindos da disponibilidade de vazão regularizada correspondente.

Allen Hazen foi o primeiro a reconhecer a natureza estocástica do problema e dar-lhe um tratamento estatfstico. Num extenso artigo, publicado em 1914 na Transactions of the American Society of Civil Engineers, Hazen apresentou um conjunto de tabelas relacionando a vazão a ser regularizada, como fração da vazão média, o coeficiente de variação do rio e o volume a ser armazenado para uma dada probabilidade de violação.

O método sofre restrições importantes:

a) como as tabelas foram construídas com dados de região da Nova Inglaterra, os resultados só são aplicáveis para rios de regime similar;

b) os efeitos sazonais sôbre as vazões regularizadas não foram incluídos.

Outro autor que contribuiu significativamente para o equacionamento do problema de reservatório foi Charles Sudler (Transactions of the American Society of Civil Engineers, v. 91, 1927). A hipótese inicialmente assumida, concernente à repetição do traço histórico, pressupõe que vazões de mesma magnitude irão repetir-se na mesma ordem de ocorrência. Sudler discutiu o efeito de relaxação da segunda condição, isto é, conservou as magnitudes das vazões presentes no traço histórico mas variou a ordem em que elas ocorrem e avaliou o efeito dessa alteração sôbre o volume a ser armazenado. Para implementar essa idéia êle usou um baralho interpretando cada carta como uma vazão cuja magnitude fôsse igual ao valor impresso na carta e atribuindo valôres 11, 12, 13 ao valete, dama e rei. Feito isso, o diagrama de massas foi usado para avaliar o armazenamento necessário para manter uma vazão regularizada igual a média, isto é, 7. Os resultados que se passam a reproduzir foram obtidos pelo Harvard Resources Group, usando técnica ligeiramente diferente da usada por Sudler. As cartas foram embaralhadas, criando-se 20 seqüências ao acaso e com auxílio do diagrama de massas, os volumes necessários para manter a vazão regularizada igual à média do período foram determinados. Os resultados obtidos foram os seguintes: o volume médio é de 31,1 unidades, o desvio-padrão da distribuição é de 7,5 unidades e os valôres máximos e mínimos são respectivamente 45,0 e 22,0.

Presumindo que uma das 20 seqüências criadas fôsse a presente no traço histórico mas que as outras 19, por terem características idênticas, podem vir a ocorrer, o método mostra claramente a inconveniência do uso exclusivo das vazões históricas na definição do volume de armazenamento. E, ainda mais, exibe com tôda clareza o caráter estocástico da decisão a ser tomada: dentro da gama de valôres indicados, um deve ser escolhido e dessa maneira definir a capacidade da estrutura; quanto maior a aversão ao risco do responsável pela escolha do volume, maior será o volume escolhido. Êsse método produz seqüências com os mesmos valôres da história e, portanto, não capta a variabilidade inerente em seqüências hidrológicas.

Hidrologia sintética (ou operacional) constitui uma extensão do método no sentido de incorporar também a variabilidade de magnitude das vazões. O objetivo é a geração de seqüências hidrológicas com características estatísticas iguais, a menos de erros 'de amostragem, da seqüência histórica. Essas novas seqüências podem ser usadas para testar o comportamento do sistema de maneira muito mais ampla do que a permitida pelo traço histórico.

A geração de seqüências sintéticas requer a adoção de uma equação de recursão; a mais simples delas pode ser escrita como

qt-1' qt, = vasões geradas nos períodos t - 1, t; µ, σ,
=
média, desvio padrão e coeficiente de correlação serial de período unitário computados através de amostra histórica; V = variável estocástica de média zero e desvio-padrão unitário, gerada independentemente das variáveis associadas à vazão.

Pode-se provar que a equação (4) preserva os momentos da série histórica, a menos de erros de amostragem que são inerentes, sendo essa a justificativa para sua adoção. Essa equação é apenas uma dentre uma variedade enorme de equações de recursão apontadas na literatura.

Formas mais complexas são utilizadas para preservação de outras características além das mencionadas. Particularmente, a equação (4) pode ser conveniente para geração de vazões anuais sàmente; a introdução de efeitos sazonais, que são de grande importância para análise de sistema, requer uma forma mais complicada de equação de recursão.

Hidrologia sintética foi desenvolvida no início da década passada; M. R. Brittan (1960), H. A. Thomas Jr. e M. B. Fiering (1962), e L. Beard (1963) são os pesquisadores cujos nomes estão associados a essa técnica.

Seqüências sintéticas podem ser usadas em conjunção com modelos de simulação para análise de sistemas de recursos hídricos. Entretanto, é preciso notar que as seqüências geradas são tão representativas quanto os valôres da série histórica. O método não gera informações novas e não é substituto para uma série de dados históricos.

5. RESUMO

Análise de sistemas é uma metodologia que permite trazer o planejamento de recursos hídricos do estágio qualitativo para o quantitativo.

Suas principais características são:

a) adoção de um critério que representa o interêsse social no uso dos recursos hídricos;

b) translação dêsse critério em forma quantitativa, definindo uma função-utilidade;

c) definição das equações de condição a que está sujeito o sistema, delimitando uma região factível;

d) construção e exploração de modelos matemáticos que permitem definir as capacidades a serem agregadas, bem como as regras de operação que conduzam à escolha de valôres para as variáveis de decisão de maneira tal que as equações de condição sejam satisfeitas e que a função-utilidade seja maximizada.

Essa metodologia serve como guia no processo de planejamento; o início de seu uso data de poucos anos mas alguns projetos importantes, em várias partes do mundo, já empregaram as técnicas de análise de sistemas com sucesso.

Um aspecto importante a ser notado é a facilidade na incorporação de fatôres intangíveis. Suponha-se, por exemplo, que as razões de ordem institucional ou legal impeçam a construção de uma barragem com altura superior a determinado nível. Uma equação de condição seria incluída nos modelos matemáticos para impor essa limitação e a otimização seria feita com essa restrição. Os modelos poderiam também ser explorados sem essa condição e a diferença nos benefícios entre os dois casos seria o custo social de limitação institucional.

Para terminar, é preciso mencionar que ao longo dêste artigo as aplicações mencionadas referiram-se à área de recursos hídricos; entretanto, os conceitos básicos são absolutamente gerais e aplicações em outras áreas como sistemas urbanos, de transporte, militares, de espaço etc., são de uso corrente.

Evidentemente, a metodologia proposta não é perfeita; alguns problemas delicados ainda aguardam solução. Seu valor, porém, deve ser estimado por comparação com as práticas usuais de planejamento.

6. REFERÊNCIAS BIBLlOGRAFICAS

Esta seção apresenta uma lista resumida de livros pertinentes ao assunto abordado, os quais contribuíram para a redação do presente artigo. Esta lista não pretende esgotar as referências bibliográficas da área.

Maass et al. Design of water resources systems. Harvard University Press, 1962.

Marglin. Approaches to dynamic investiment planning. North Holland, 1963

Hufschmidt & Fiering. Simulation techniques for design of water resources systems. Harvard University Press, 1966.

Marglin. Public investment criteria. MIT Press, 1967

Fiering. Streamflow synthesis. Harvard University Press, 1967

Os livros citados constituem as contribuições dadas pelo Harvard Water Resources Group da Harvard University. Êsse grupo, constituído em 1955, desenvolveu trabalho pioneiro nessa área.

Eckstein. Multiple purpose river basin development. Harvard University Press, 1958.

MacKean. Efficiency in government through system analysis. John Wiley and Sons, 1958.

Hall & Dracup. Water resource systems engineering. McGraw-Hill, 1970.

Artigos de interêsse são publicados usualmente nas seguintes revistas:

Water Resources Research

Proceedings - American Society of Civil Engineers

Management Science

Operations Research.

  • Maass et al. Design of water resources systems Harvard University Press, 1962.
  • Marglin. Approaches to dynamic investiment planning North Holland, 1963
  • Hufschmidt & Fiering. Simulation techniques for design of water resources systems Harvard University Press, 1966.
  • Marglin. Public investment criteria. MIT Press, 1967
  • Fiering. Streamflow synthesis Harvard University Press, 1967
  • Eckstein. Multiple purpose river basin development Harvard University Press, 1958.
  • MacKean. Efficiency in government through system analysis John Wiley and Sons, 1958.
  • Hall & Dracup. Water resource systems engineering McGraw-Hill, 1970.
  • Water Resources Research
  • Proceedings - American Society of Civil Engineers
  • Management Science
  • Operations Research.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1971
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