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Marketing e o bem-estar da sociedade: uma perspectiva para os países subdesenvolvidos

ARTIGOS

Marketing e o bem-estar da sociedade: uma perspectiva para os países subdesenvolvidos

Paulo C. Goldschmidt

Professor-adjunto do Departamento de Mercadologia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

1 . Introdução

Bem-estar não é um termo de fácil conceituação, embora sua procura seja tão antiga quanto a existência humana. Ninguém pode afirmar que esta procura nos primórdios da existência do homem não fosse já um certo tipo de preocupação com o bem-estar. Da mesma forma, é realmente difícil negar a hipótese de que todas as atividades desempenhadas por qualquer indivíduo em uma sociedade não estão relacionadas, de certa forma, ao conceito de bem-estar (pelo menos no sentido individual). Evidentemente, não vamos tratar aqui dos conceitos de bem-estar individual porque certamente existem tantos quanto o número de indivíduos que vivem neste planeta. O que propomos fazer é trabalhar com certos conceitos gerais de bem-estar que são comuns a pelo menos uma significativa proporção; entretanto, mesmo nesse caso, não existe uma plena concordância na definição desse termo. Por exemplo, Gunnar Myrdal afirma que bem-estar está relacionado às "amplas metas de desenvolvimento econômico; pleno emprego, igualdade de oportunidades para os jovens, segurança social e padrões mínimos de proteção não somente em relação à renda mas também à nutrição, saúde e educação para as pessoas de todas as classes sociais".1 1 Myrdal, Gunnar. Beyond the welfare estate. New Haven, Yale University Press, 1960. p. 62. Peterson, por outro lado, afirma que "existe um acordo geral de que o bem-estar material é, em última análise, uma questão de disponibilidade de bens e serviços".2 2 Peterson, Wallace C. Income, employment, and economic growth. New York, W.W Norton and Company, 1967. p. 402. Nossa opinião é de que os conceitos mencionados são mais complementares do que contraditórios; nossa hipótese é de que a conceitualização de Peterson serve como meio para o alcance dos objetivos propostos por Myrdal. Se essa suposição é verdadeira, podemos trabalhar com uma delas sem a preocupação de ferirmos as características básicas da outra. Escolhemos a de Peterson não porque acreditamos que ela seja "melhor" do que a de Myrdal (isto justificaria uma ampla discussão de julgamento de valores, o que não é o objetivo do presente trabalho), mas porque sentimos que ela pode ser mais facilmente percebida em termos operacionais como será demonstrado posteriormente.

Uma vez que tenhamos decidido em que termos vamos desenvolver esta pesquisa, tentaremos apresentá-la de uma forma mais operacional. Grande parte será concentrada na equação de Thoreau que afirma:3 3 Taylor, John F.A. Economics and ethics: an essay on value. Michigan State University. p. 13.

Se nossa preocupação é aumentar o bem-estar, podemos notar que, pelo menos em termos matemáticos, existem cinco alternativas possíveis para alcançarmos esse objetivo, isto é:

a) aumentar C, mantendo D constante;

b) aumentar C e reduzir D;

c) aumentar C mais do que proporcionalmente a D;

d) manter C constante e reduzir D;

e) reduzir D mais do que proporcionalmente a C.

Embora essas alternativas possam ser consideradas como possíveis modos de alcançarmos o objetivo de aumentar o bem-estar de uma sociedade, uma análise mais detalhada torna-se necessária em ambas as variáveis (poder de consecução e amplitude de desejos) de forma a determinarmos alternativas viáveis para uma sociedade em particular. Antes de começarmos a analisar é importante salientar que como nosso trabalho está relacionado ao bem-estar nos países subdesenvolvidos, todo o raciocínio e proposições futuras serão baseadas nessa suposição, a menos que seja explicitamente declarado no decorrer do texto.

2. Variáveis que afetam o bem-estar

Co,o foi demonstrado na equação de Thoreau, o poder de consecução e amplitude de desejos são duas variáveis básicas que afetam o grau de bemestar de uma nação particular. Porém para se entender melhor as implicações de cada uma delas na obtenção de uma condição de bem-estar cada vez maior, é preciso analisar separadamente cada variável d fim de descobrir: a) os possíveis elementos que compõem sua estrutura subjacente, b) a possível relação que liga cada elemento a suas variáveis básicas, e c) a relação entre as variáveis e a condição de bem-estar que estamos tentando alcançar.

2.1 PODER DE CONSECUÇÃO

Antes de tentar descrever alguns elementos que compõem essa variável deve-se enfatizar que esta não é, de forma alguma, uma lista exaustiva. Ao contrário, vamos apresentar alguns elementos que em nossa opinião são considerados importantes para caracterizar a variável em estudo. Também deve-se notar que esses elementos não são mutuamente exclusivos; ao contrário, devemos esperar algum grau de interdependência entre eles quando estudarmos sua possível relação com a variável que está sendo considerada. A figura 1 mostra os elementos que estamos levando em conta na caracterização da variável poder de consecução. São eles:


a) nível e distribuição da renda na economia;

b) o estado atual da tecnologia;

c) a estrutura de preços;

d) o sistema de distribuição existente;

e) a disponibilidade de crédito aos consumidores.

2.1.1 Nível e distribuição da renda

A relação entre nível de renda e poder de consecução talvez seja uma das mais óbvias de todas as que vamos discutir. Num sentido geral, podemos dizer que quanto mais alto o nível de renda numa dada economia, mais elevado o poder de consecução de seus membros. Se aceitarmos a suposição de que um dos modos de externar o poder de consecução é pelo consumo de bens e serviços, nossa proposição estará de acordo com a chamada função de consumo dos economistas, isto é, C = f(Y). A equação afirma que quanto mais alta a renda mais alto o poder de consecução e, portanto, mais alto o consumo de bens e serviços. Se a relação entre nível de renda e poder de consecução é bastante óbvia, o mesmo não se pode dizer da relação distribuição de renda-poder de consecução. Em outras palavras, não existe um acordo geral quanto a que uma distribuição mais equalitária da renda levará a um aumento do consumo de bens e serviços na economia. O elemento-chave na discussão é que não sabemos com certeza as diferenças na propensão marginal ao consumo para diferentes grupos de renda. Acreditamos, entretanto, que a propensão marginal ao consumo é baixa para os grupos de renda mais alta e alta para os grupos de renda mais baixa, pelo menos num país subdesenvolvido, devido à enorme disparidade na concentração de renda entre os grupos de renda mais altos e mais baixos. No caso brasileiro, por exemplo, o 1 % dg população de renda mais alta e os 50 % de renda mais baixa têm acesso a parcelas idênticas da renda nacional.4 4 Furtado, Celso. Um projeto para o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Saga S.A., 1968. p. 38. Como esses últimos 50% da população vivem praticamente em condições de miséria, parece razoável supor que quase todo aumento da renda resultante de uma redistribuição da renda será gasto no consumo de bens necessários à sua subsistência. Se esse raciocínio é correto, podemos formular a seguinte proposição: quanto mais equalitária a distribuição da renda mais alto o poder de consecução dos membros de uma sociedade e, portanto, mais alto o nível de consumo da economia.

2.1.2 Estado da tecnologia

Quase todo livro introdutório de marketing mostra-nos uma comparação entre os bens e serviços disponíveis hoje com os disponíveis à população há algumas décadas. Em nossa opinião, esse é um dos exemplos mais expressivos da contribuição da tecnologia ao poder de consecução dos membros de nossa sociedade. É bastante óbvio, por exemplo, que não poderíamos ir para a Europa num vôo de nove horas se o avião a jato não tivesse sido criado; e se pararmos um pouco para pensar, certamente vamos chegar à conclusão de que, sem o avanço tecnológico, não poderíamos fazer ou ter a grande maioria das coisas que tomamos como dados nos dias de hoje. Assim, parece bem claro que existe uma relação direta e positiva entre o estado da tecnologia e o poder de consecução em uma nação independentemente de seu estágio de desenvolvimento econômico. Assim, pode-se estabelecer a seguinte proposição: quanto mais alto o grau de desenvolvimento tecnológico de uma nação, mais alto o poder de consecução de seus membros.

2.1.3 Estrutura de preços

Nosso ponto inicial neste tópico relaciona-se com a lei da procura, que afirma existir uma relação negativa entre o preço e o tamanho da demanda para qualquer produto. Se relacionarmos esse conceito com o nosso poder de consecução, podemos levantar a hipótese de que os consumidores estarão em melhor situação financeira em função da redução no preço de qualquer item disponível no mercado. Assim, em termos gerais, podemos propor que quanto mais baixo o preço de qualquer produto, mais alto o poder de consecução do consumidor e vice-versa. Evidentemente, isso não significa que os consumidores vão comprar mais de um produto particular devido a um declínio de seu preço, porque isso depende de seu coeficiente de elasticidade. Um declínio no preço do sal não levará necessariamente a um aumento de sua demanda, mas a poupança resultante (devido à redução do preço) pode ser dirigida para um aumento na quantidade demandada de qualquer outro produto. Do ponto de vista econômico, a diferença entre os preços prévio e atual pode ser usada de duas maneiras, ou seja, no consumo de bens e serviços ou como poupança. O que estamos procurando dizer é que, devido à disparidade na distribuição de renda, já mencionada, praticamente toda diferença entre o preço anterior e o atual será revertida em consumo quando se considera um país subdesenvolvido. É por isso que acreditamos que o preço é uma das variáveis mais importantes num país subdesenvolvido, tanto no nível macro como microeconômico; além disso, essa é a razão porque acreditamos que, aí, as decisões de preço são um dos mais fundamentais instrumentos do sistema mercadológico de qualquer firma. Enquanto que numa nação desenvolvida as firmas podem depender principalmente de outros elementos controláveis de suas atividades mercadológicas, na subdesenvolvida elas têm muito menos flexibilidade no uso desses elementos.

Naturalmente, não estamos dizendo que os outros elementos controláveis do sistema de marketing não são importantes; o que afirmamos é que acreditamos que, em tais países, o preço tem um peso relativamente maior nas decisões mercadológicas, se comparado com os outros elementos do sistema, devido ao baixo poder aquisitivo da maioria da população.

2.1.4 Sistema de distribuição

Certamente falta alguma coisa na definição de um mercado, como pessoas com dinheiro e vontade de comprar; esses elementos não valem nada se os bens e serviços não estão disponíveis a esse suposto mercado. Assim, em nossa opinião, o elemento distribuição deveria ser incorporado à definição. Talvez não tenha sido feito porque nos países desenvolvidos o sistema de distribuição é tomado como dado; as firmas podem alterar os canais atuais, pode-se acrescentar ou suprimir intermediários, podese fazer integração vertical, e assim por diante, para se solucionar os problemas de distribuição que surgem num determinado momento. Entretanto, ninguém pode negar que o sistema de distribuição lá está, e a única coisa que as firmas têm que fazer é escolher que canal pode ser usado com mais eficiência para alcançar os objetivos e diretrizes da firma (algumas vezes são indispensáveis ligeiras modificações a fim de se adaptar os recursos existentes às necessidades e preferências dos consumidores e aos objetivos e diretrizes das firmas).

O quadro é bastante diferente nos países subdesenvolvidos; eles não têm como dada a estrutura básica que garante o movimento de bens do produtor para o consumidor final. Parte desse problema surge como uma função da relativamente alta

dispersão da população (uma característica básica das economias agrícolas) combinada com um deficiente sistema de transporte devido à inexistência ou má qualidade das estradas, vias férreas etc. Portanto, o conceito mercadológico de distribuição deveria ser modificado para incluir essas "novas" variáveis no sistema total. A questão não é que canais usar (porque freqüentemente eles não estão disponíveis) e sim definir as prioridades no desenvolvimento e melhoria de um sistema de distribuição que seja capaz de transformar aqueles consumidores potenciais em reais compradores. Baseado neste ponto de vista podemos dizer que existe uma relação direta e positiva entre a disponibilidade de canais de distribuição e o poder de consecução em qualquer economia; entretanto, essa relação é muito mais crítica nos países subdesenvolvidos por causa da inexistência ou precariedade dos canais disponíveis.

2.1.5 Disponibilidade de crédito

Decidimos separar o fator crédito das características gerais de renda devido ao seu efeito sobre as atividades mercadológicas modernas. A relação entre a disponibilidade de crédito e o poder de consecução parece bastante clara: quanto maior a disponibilidade de crédito aos consumidores, maior seu poder de consecução. A existência dos planos de "compre agora, pague depois" e as compras à prestação são exemplos simples de como a disponibilidade de crédito influencia o poder de consecução na economia. Certamente essa relação é verdadeira independentemente do estágio de desenvolvimento econômico do país. Vamos tomar o exemplo brasileiro para mostrá-la. Há alguns anos certos fabricantes (principalmente os de aparelhos eletrodomésticos) enfrentavam um baixo volume de vendas devido ao alto preço de seus produtos e ao limitado poder aquisitivo da população. Embora as lojas varejistas oferecessem crédito ao consumidor (principalmente por meio de planos de vendas à prestação) isso não era suficiente para aumentar suas vendas nos níveis desejados pelos produtores. O principal problema era que as lojas varejistas só podiam estender o crédito por um curto período de tempo (geralmente de um ano) em vista da falta de recursos financeiros; em conseqüência, cada pagamento feito pelos consumidores correspondia a uma grande parcela de sua renda mensal. Para solucionar o problema foi criado o plano de crédito direto ao consumidor, dado por companhias de financiamento que poderiam estendê-lo por um período de dois ou mais anos, permitindo, assim, a ampliação do mercado potencial. Em nossa opinião, nos países subdesenvolvidos, mais importante do que a existência do crédito é a disponibilidade de um grande período de tempo nas compras a crédito; acreditamos que ao decidir comprar ou não um determinado produto, o consumidor está mais preocupado com a quantia que ele vai pagar cada mês (uma função do período de crédito) do que com o total que ele vai pagar pelo produto. Assim, nestes países, o poder de consecução é mais influenciado pela extensão do período de tempo do crédito do que pela mera existência do próprio crédito.

2.2. AMPLITUDE DE DESEJOS

A segunda variável que afeta o bem-estar é, de acordo com a equação de Thoreau, a amplitude de desejos que o povo tem. Aqui também, como foi mencionado para a variável poder de consecução, devemos enfatizar que os elementos que vamos usar para descrever essa variável particular não compreendem uma lista exaustiva de todos os que podem ser usados na sua conceituação; além disso, eles não são necessariamente e mutuamente exclusivos, no sentido de que analisando cada um em separado possamos confiar na condição ceteribus paribus para os outros. Os elementos que selecionamos para descrever a variável amplitude de desejos são os seguintes (veja figura 2):


a) o sistema de informações;

b) os grupos de referência;

c) o grau de diferenciação do produto;

d) inovação;

e) fatores culturais.

2.2.1 Sistema de informações

Vamos tentar explicar a relação entre nível de desejos e disponibilidade de um sistema de informações por um exemplo hipotético, mas viável. Suponhamos que no início da década de 1960 tenhamos escolhido uma pequena cidade para realizar uma estranha experiência: medir a expansão dos desejos que sua população iria demonstrar em um período de 10 anos quando isolada de qualquer contato com o "mundo exterior". A maneira pela qual poderíamos realizar isso seria não permitindo a ninguém dessa determinada cidade deixar seus limites e a ninguém de fora entrar e proibindo o uso de televisão, rádio ou leitura de jornais ou revistas de outras localidades. Se a experiência pudesse ser efetivamente realizada, a que conclusões iríamos provavelmente chegar? É quase certo que a amplitude de desejos do povo dessa pequena cidade iria ser muito mais baixa do que a amplitude de desejos do povo de uma cidade similar onde tais restrições não tivessem sido impostas. Poderíamos esperar um desejo relativamente pequeno por hot-pants, minissaias, cabelo comprido, calças boca-de-sino etc. na primeira, justamente porque o uso desses produtos não foi difundido dentre sua população; o povo dificilmente poderia desejar um produto de que nunca ouvira falar. Sua amplitude de desejos não refletiria o mundo dinâmico e mutável de hoje, mas sim o seu mundo fechado, isto é, seus próprios valores, atitudes, crenças etc. O que queremos mostrar aqui é que não podemos definitivamente desejar alguma coisa de que nunca ouvimos falar ou alguma coisa que é nebulosa em nossa mente: para que um desejo subsista, precisa ter medidas concretas. Em nossa opinião essa característica do desejo é universal. Assim, a relação entre o sistema de informações e a amplitude dos desejos é aplicável tanto aos países desenvolvidos como aos subdesenvolvidos. Talvez a única diferença básica para estes últimos esteja na maneira como a informação é transmitida: uma ênfase mais do que proporcional é dada à comunicação pessoal (formal e informal) em comparação com os países desenvolvidos que dão mais atenção ao processo de comunicação em massa.

2.2.2 Grupos de referência

Pelo exemplo descrito no item anterior, podemos admitir que a amplitude de desejos do povo é altamente condicionada socialmente. Isso significa que desejamos muitos produtos não apenas devido a suas características intrínsecas, mas também devido ao seu grau de conspicuosidade. E, de acordo com Bourne, "a conspicuosidade de um produto talvez seja o atributo mais geral que explica sua suscetibilidade à influência de grupos de referência".5 5 Bourne, Francis S. Different kinds of decisions and reference groups influence. Marketings and the behavioral sciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968. p. 270. Acreditamos, por exemplo, que o desejo (e talvez a conseqüente compra) de um novo carro esteja muito mais relacionado com a procura de aceitação por, ou pertinência a, algum grupo determinado do que com o conhecimento de uma real e substancial necessidade derivada de alguns elementos apresentados por esse carro. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a qualquer outro tipo de produto e/ou marca que são classificados na categoria mais de Bourne.6 6 Bourne apresenta a seguinte classificação para a determinação de suscetibilidade de influência do grupo de referência: a) produto mais, marca mais: tanto o produto quanto a marca são altamente suscetíveis de serem influenciados pelo grupo de referência; b) produto mais, marca menos: somente o produto é sucestível de tal influência; c) produto menos, marca mais: somente á marca é influencia da pelo grupo de referência; d) produto menos, marca menos: nem o produto nem a marca são passíveis de influência do grupo de referência. Assim, nossa proposição que relaciona a influência dos grupos de referência e a amplitude de desejos assume a seguinte forma: quanto maior a influência relativa dos grupos de referência para certos produtos ou marcas de bens de consumo, maior a amplitude de desejos que o povo demonstrará por esses bens. Em nossa opinião essa proposição pode ser aplicada a países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

2.2.3 Grau de diferenciação do produto

Como já mencionamos anteriormente, o desejo de um certo produto pode surgir também de suas características intrínsecas, embora acreditemos que seu grau de conspicuosidade seja um dos principais fatores na conceituação dessa relação. Entretanto, existem alguns produtos que por sua própria natureza não podem ser considerados conspícuos no sentido empregado neste trabalho. Esses itens constituem o "produto menos" e "marca menos" da classificação de Bourne e, portanto, são pouco suscetíveis à influência dos grupos de referência.7 7 Veja letra d na nota 6. Apesar disso podemos desejar esses produtos da mesma maneira que os de qualquer outra categoria. A única diferença está na maneira como o fazemos. Certamente não é porque eles nos servem como um meio para conseguir um status de aceitação por e pertinência a um grupo particular (pois afinal esses produtos dificilmente são considerados na relação indivíduo-grupo de referência). Certamente desejamos esses produtos devido a seus atributos intrínsecos e suas vantagens sobre os produtos competitivos. Como a maneira de aplicar uma estratégia de diferenciação de produto é pela procura de uma vantagem diferencial sobre os produtos competitivos, essa vantagem diferencial pode ser obtida convencendo-se os consumidores de que as diferenças em nosso produto (seus atributos, qualidades etc.) fazem-no mais adequado do que qualquer outro similar oferecido no mercado. Se esse raciocínio é claro, podemos estabelecer a seguinte proposição: quanto maior o grau de diferenciação de um produto particular, maior o desejo dos consumidores por esse produto dado que ele seja não conspícuo. Também acreditamos que essa proposição se mantém verdadeira independentemente do estágio de desenvolvimento econômico do país.

2.2.4 Inovação

Parece existir uma estreita relação entre amplitude de desejos e inovação. Inicialmente é razoável supor que uma grande parte das inovações que conhecemos no presente são baseadas numa percepção real das necessidades e desejos do mercado. Isso nada mais é que uma simples extensão do conceito mercadológico à avaliação de oportunidades de mercado. De acordo com Lazer, "a avaliação de oportunidades de mercado enfatiza que as empresas começam com o estudo do mercado, que o futuro da empresa, e não seu presente ou passado, é a dimensão mais significativa e que toda companhia tem que se empenhar em mudar e inovar".8 8 Lazer, William. Marketing management: a systems perspective. John Willey and Sons, Inc., 1971. p. 47. Entretanto, acreditamos que o processo de inovação não apenas é influenciado pelas necessidades e desejos do mercado mas também tem uma forte influência sobre as futuras necessidades e desejos do mercado. Nossa suposição é de que grande parte do que desejamos hoje não seria desejado se esse produto ou serviço particular não nos fosse trazido pelo processo de inovação. Isso é mais do que uma confirmação do que dissemos antes sobre nossa opinião de que a existência de desejos é condicionada a um certo grau de concreção de suas medidas. Acreditamos também que uma das maneiras de produzir essas medidas concretas é a exposição de uma inovação. Por exemplo, antes de ser inventada a televisão o desejo das pessoas com relação à comunicação estava centralizado principalmente no rádio; depois daquela invenção (e acreditamos que devido a ela), o desejo por aparelhos de TV ultrapassou de longe o desejo por aparelhos de rádio. A veracidade dessa afirmativa pode ser confirmada (se há um acordo quanto a que o desejo é um elemento fundamental na compra desse tipo de produto) pela quantidade de aparelhos de televisão contra a quantidade de rádios vendidos depois da invenção da televisão. Também acreditamos na universalidade desse conceito; em todo o mundo, independentemente de qualquer condição particular do país que está sendo considerado (tais como aspectos econômicos, sociais e culturais), as pessoas estão propensas a desejar um certo produto se ele é uma inovação valiosa.

2.2.5 Fatores culturais

O elemento final que vamos considerar como tendo influência sobre a amplitude dos desejos relaciona-se com as condições culturais existentes na sociedade. Estamos supondo que os fatores culturais que envolvem qualquer indivíduo na sociedade servem como um importante elemento condicionador de suas atitudes, valores, crenças e comportamento em qualquer tempo. Se pudermos supor também que os desejos de qualquer indivíduo na sociedade são uma função, dentre outras coisas, de sua estrutura interna (como atitudes, valores e crenças, previametne mencionados) podemos estabelecer uma relação direta entre a amplitude de seus desejos e seu ambiente cultural. Deve-se enfatizar que não estamos afirmando que os fatores culturais são os únicos elementos que influenciam a estrutura interna de um indivíduo; eles são apenas um dos determinantes de seu comportamento num certo momento. Também acreditamos na universalidade dessa relação proposta. Ela pode explicar (ou pelo menos dar importantes esclarecimentos sobre) as diferenças de comportamento entre pessoas de diferentes áreas culturais. Por exemplo, ela explica por que algumas pessoas na Ir.dia não comem carne de vaca ou por que determinados judeus não comem carne de porco. Ela também esclarece, de certa forma, as razões da alta aceitação de pílulas anticoncepcionais nos países desenvolvidos em contraposição com as restrições ao seu uso nos países subdesenvolvidos; ela ajuda a explicar por que uns já adotaram as leis de aborto, enquanto que outros ainda relutam em aceitá-las.

Grande parte de nossa estrutura interna (incluindo a amplitude de nossos desejos) está, portanto, direta ou indiretamente, relacionada com fatores culturais que nos rodeiam o tempo todo. Evidentemente, nosso comportamento é, portanto, moldado de modo a refletir essas restrições particulares que atuam todo o tempo em nossas atividades humanas.

3. Marketing e o bem-estar

Uma análise cuidadosa de cada variável que afeta o bem-estar (e também de cada elemento componente da estrutura de cada variável) certamente pode dar-nos certas noções para uma melhor compreensão do conceito de bem-estar para um país subdesenvolvido. O que queremos dizer é que, embora a procura do bem-estar certamente seja universal, seu significado e a relação fim-meios são bastante diferentes tanto quando comparamos nações desenvolvidas com subdesenvolvidas como entre duas (ou mais) subdesenvolvidas. Em outras palavras, não existe uma fórmula mágica para se alcançar uma condição de bem-estar, e o modelo usado num país particular pode não ter êxito em outro, sem as necessárias modificações que levem em consideração os aspectos particulares da nação que está sendo considerada. Portanto, todas as considerações e proposições formuladas até agora devem ser vistas em termos relativos e não absolutos. Acreditamos que elas sejam verdadeiras, mas o grau de veracidade de cada consideração ou proposição certamente irá variar de acordo com os diferentes ambientes com que estivermos tratando.

Mencionamos no começo do presente trabalho que existem, pelo menos em termos matemáticos, cinco maneiras distintas de aumentar o bem-estar, mas talvez nem todas elas pudessem ser consideradas viáveis para um país subdesenvolvido. Agora vamos expor essa idéia com mais profundidade.

Em nossa opinião, em termos gerais, é bastante difícil diminuir ou mesmo manter constante a amplitude dos desejos expressos pela população dos países subdesenvolvidos. Algumas razões podem ser dadas para essa opinião:

a) O grau crescente de otimismo que é incorporado em cada indivíduo numa nação subdesenvolvida como resultado do desenvolvimento econômico e crescimento por que o país está passando. O caso brasileiro serve como um exemplo dessa relação: depois de quatro anos de intenso crescimento, o grau de otimismo da população como um todo alcançou proporções astronômicas, afetando substancialmente o nível de renda, a capacidade de consumo, os avanços tecnológicos etc.

b) A melhoria do sistema de informações no país, tornando mais fácil o acesso às atuais nações desenvolvidas ou às regiões mais desenvolvidas do país. Esse constante contato com estas áreas gera a oportunidade de comparar diferentes graus de consecução e fornece um padrão para o desempenho esperado no futuro nas áreas menos desenvolvidas.

c) O alto grau de competição em setores específicos da economia (tais como as indústrias de automóvel e de aparelhos elétricos no Brasil) leva a uma aceleração na taxa de inovação e no grau de diferenciação de produto. Essas estratégias que procuram obter uma vantagem diferencial podem ter alguns efeitos colaterais sobre outras indústrias que, algumas vezes, usam-nas mesmo sem uma real necessidade. Em nosso modelo, os dois elementos (inovação e diferenciação de produto) são de fundamental importância na descrição da amplitude dos desejos expressos pela população de uma determinada nação.

d) O ambiente cultural em mudança devido, principalmente, a uma grande ênfase dada ao desenvolvimento e melhoria de um sistema de educação em massa, e também devido ao contato, previamente mencionado, com as áreas mais desenvolvidas onde tais mudanças culturais já ocorreram.

e) O ambiente social em mudanças onde as restrições culturais se tornam cada vez mais decisivas no estabelecimento do modus vivendi de cada indivíduo na sociedade (por exemplo, a grande importância dos grupos de referência no estabelecimento de padrões de consumo de certos tipos de produto, a grande preocupação com a estratificação social, e assim por diante).

Por essas razões, não acreditamos que seja possível manter constante ou mesmo diminuir a amplitude dos desejos expressos pela população de um país subdesenvolvido. Portanto, se nossa tarefa é aumentar o bem-estar de uma nação particular, a única alternativa viável que vemos é um aumento mais do que proporcional no poder de consecução do que na amplitude dos desejos.

O que o marketing está fazendo atualmente e o que deveria fazer no futuro para ajudar os países subdesenvolvidos a atingir uma crescente condição de bem-estar? Se fizermos uma análise das atividades econômicas nas nações subdesenvolvidas, provavelmente vamos descobrir que, infelizmente, se dá maior ênfase à variável poder de consecução do que à variável amplitude de desejos. Mas precisamos ser justos em reconhecer que o poder de manipulação da variável amplitude de desejos está praticamente fora de controle numa estrutura mercadológica, isto é, as atividades mercadológicas exercem pequeno controle sobre aquela variável. Esse ponto pode ser exemplificado pela pequena influência exercida pelas atividades mercadológicas sobre os fatores culturais, sociais, sistema de informações, fatores psicológicos e assim por diante.

Assim, se o marketing deseja desempenhar um papel relevante na consecução de um estado de bem-estar para as nações subdesenvolvidas, acreditamos que suas atividades deveriam ser dirigidas no sentido de um melhor desempenho com respeito à variável poder de consecução. Mais uma vez (e talvez infelizmente), o marketing não tem completo controle sobre todos os elementos que compreendem essa variável, mas os homens de marketing podem fazer alguma coisa quanto aos elementos sobre os quais têm algum poder discricionário. A seguir, damos algumas sugestões que acreditamos que os homens de marketing possam adotar para melhorar a condição de bem-estar num país subdesenvolvido:

a) O desenvolvimento de um sistema de distribuição mais eficiente: como foi apontado antes, o problema do sistema de distribuição nos países subdesenvolvidos é um dos mais cruciais em termos de realização de seus objetivos mercadológicos. Evidentemente, grande parte desse problema está fora do controle da atividade mercadológica (como por exemplo, a inexistência ou má qualidade das estradas, vias férreas etc), mas dentro dos aspectos controláveis, várias decisões podem ser tomadas a fim de alcançar um equilíbrio entre os pontos fracos e fortes de cada firma e as existentes necessidades e desejos do consumidor (como por exemplo, distribuição intensiva x exclusiva, a seleção de intermédiários, algumas decisões sobre distribuição física e assim por diante). A melhoria dessas decisões de tipo controláveis são parte da contribuição do marketing para a obtenção de um maior poder de consecução nos países subdesenvolvidos.

b) Maior ênfase nos progressos tecnológicos baseados no consumidor: se o desenvolvimento tecnológico é um fato real no mundo de hoje (mesmo num país subdesenvolvido) em nossa opinião os homens de marketing podem dar uma substancial contribuição ao bem-estar da sociedade, trabalhando em conjunto com as fontes de tal desenvolvimento. Em outras palavras, grande parte do desenvolvimento tecnológico poderia ser dirigido no sentido de adaptar os recursos tecnológicos de um país (tanto em termos humanos como de equipamento) com as necessidades reais - presentes e futuras - da sociedade. Portanto, os desenvolvimentos tecnológicos deveriam ser instituídos na época certa, evitando altos riscos de fracasso, e apresentar à população os bens e serviços que ela procura.

c) Maior ênfase nas decisões sobre preço: nas nações subdesenvolvidas, o preço ainda é o pilar da atividade mercadológica devido, principalmente, ao restrito poder aquisitivo da população. Essa variável serve como uma restrição ao uso de outras variáveis mercadológicas controláveis e, portanto, afeta sensivelmente o composto mercadológico da firma. Uma consideração cuidadosa dessa variável pode dar a uma firma particular uma importante vantagem competitiva a curto prazo (porque a neutralização do competidor normalmente será muito rápida), mas certamente o nível de preços alcançará um limite mínimo onde o poder de consecução será máximo para um tipo particular de produto. Em nossa opinião, para um produto de demanda elástica, a estratégia de diferenciação de produto só deveria ser considerada quando uma expansão do mercado pelas reduções de preço não pode mais ser feita. E como acreditamos que a consciência do preço nos países subdesenvolvidos é muito mais difundida dentre os consumidores do que nas nações desenvolvidas, essa estratégia pode ser usada com excelentes resultados tanto para a firma como para a sociedade em geral.

4. Conclusões

Para concluir julgamos aconselhável justificar porque escolhemos a disponibilidade de bens e serviços como uma medida do grau de bem-estar alcançado pelos países subdesenvolvidos. Acreditamos que essa tarefa agora está facilitada, à luz da discussão apresentada no item 2 deste trabalho.

Consideramos a disponibilidade de bens e serviços como um reflexo das necessidades e aspirações básicas da população dos países que atualmente estão nesse estágio de desenvolvimento econômico. Achamos que não tem sentido falar de problemas de poluição, conservação da água, expansão de áreas verdes etc, como principal preocupação de uma nação onde a população está quase literalmente "com fome" de coisas tais como alimento, teto e outros bens indispensáveis à sua vida diária.9 9 Esse é o ponto de vista defendido por Riesman em seu artigo Abundance for what? Marketing and the behavioral ciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968. Não discutimos o ponto de vista de Riesman: pode ser válido para um país desenvolvido onde a maioria das necessidades básicas da população já foi satisfeita, mas não acreditamos de maneira alguma em sua razão de ser para um subdesenvolvido.

Portanto, pensamos que o papel do marketing nos países subdesenvolvidos (e pelo menos durante esse estágio de desenvolvimento econômico) deveria ser dirigido para uma expansão do poder de consecução, principalmente através dos meios descritos no item 3. Mais uma vez deve-se enfatizar que esse modelo é muito particular e, mesmo em certos países subdesenvolvidos, ele deveria ser devidamente ajustado a fim de refletir as condições ambientais do país analisado.

Com respeito aos países mais desenvolvidos, as alternativas viáveis podem ser completamente invertidas e não é de todo impossível pensar-se em aumentar o bem-estar pela redução na amplitude dos desejos. Mas, felizmente ou não, esse não era o objetivo deste trabalho...

  • 1 Myrdal, Gunnar. Beyond the welfare estate. New Haven, Yale University Press, 1960. p. 62.
  • 2 Peterson, Wallace C. Income, employment, and economic growth. New York, W.W Norton and Company, 1967. p. 402.
  • 3 Taylor, John F.A. Economics and ethics: an essay on value. Michigan State University. p. 13.
  • 4 Furtado, Celso. Um projeto para o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Saga S.A., 1968. p. 38.
  • 5 Bourne, Francis S. Different kinds of decisions and reference groups influence. Marketings and the behavioral sciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968. p. 270.
  • 8 Lazer, William. Marketing management: a systems perspective. John Willey and Sons, Inc., 1971. p. 47.
  • 9 Esse é o ponto de vista defendido por Riesman em seu artigo Abundance for what? Marketing and the behavioral ciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968.
  • 1
    Myrdal, Gunnar.
    Beyond the welfare estate. New Haven, Yale University Press, 1960. p. 62.
  • 2
    Peterson, Wallace C.
    Income, employment, and economic growth. New York, W.W Norton and Company, 1967. p. 402.
  • 3
    Taylor, John F.A.
    Economics and ethics: an essay on value. Michigan State University. p. 13.
  • 4
    Furtado, Celso.
    Um projeto para o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Saga S.A., 1968. p. 38.
  • 5
    Bourne, Francis S. Different kinds of decisions and reference groups influence.
    Marketings and the behavioral sciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968. p. 270.
  • 6
    Bourne apresenta a seguinte classificação para a determinação de suscetibilidade de influência do grupo de referência:
    a) produto
    mais, marca mais: tanto o produto quanto a marca são altamente suscetíveis de serem influenciados pelo grupo de referência;
    b) produto mais, marca menos: somente o produto é sucestível de tal influência;
    c) produto menos, marca
    mais: somente á marca é influencia da pelo grupo de referência;
    d) produto menos, marca menos: nem o produto nem a marca são passíveis de influência do grupo de referência.
  • 7
    Veja letra
    d na nota 6.
  • 8
    Lazer, William.
    Marketing management: a
    systems perspective. John Willey and Sons, Inc., 1971. p. 47.
  • 9
    Esse é o ponto de vista defendido por Riesman em seu artigo Abundance for what?
    Marketing and the behavioral ciences. Boston, Allyn and Bacon Inc., 1968.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1972
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