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Liberdade e necessidade: uma introdução ao estudo da sociedade

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Liberdade e necessidade - uma introdução ao estudo da sociedade

José Carlos Garcia Durand

Liberdade e Necessidade - Uma Introdução ao Estudo da Sociedade

Por Joan Robinson. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1971. 125 p.

Não é comum algumas poucas linhas de prefácio dizerem tanto sobre a obra como esta. "Parece-me que uma interpretação econômica da história constitui elemento indispensável ao estudo da sociedade, mas é apenas um dos elementos. Em camadas subjacentes a ela acham-se a geografia, a biologia e a psicologia; nas superiores, a investigação das relações sociais e políticas e a história da cultura, do direito e da religião. Este livro oferece um esboço apressado da camada central, na esperança de proporcionar uma estrutura geral dentro da qual estudos especializados possam ser elaborados."

Eis, pois, o objetivo da Sra. Robinson: contestar a exclusividade do determinismo econômico na história, lembrando que o perfil e as mudanças da ordem econômica originam-se de múltiplos condicionantes: o geográfico, o biológico, o psicológico e o sobiocultural. O meio de que se vale, para sustentar a tese, é recorrer a um imenso panorama evolucionista, que começa apelando à genética para mostrar que "as semelhanças entre as espécies resultam mais da pressão das circunstâncias que da hereditariedade" (p. 13); envereda na descrição da economia natural, recorrendo à antropologia que lhe dá o panorama da diversidade cultural e lhe permite concluir que "as semelhanças que são encontradas entre várias sociedades podem às vezes ter sua origem remontada à herança de uma tradição comum, mas a maioria parece surgir, como a semelhança entre os perfis de um golfinho e de um peixe, das exigências das situações em que elas se desenvolveram" (p. 36) Admite que a fixação do homem à terra, substituindo a caça pela agricultura, é o processo que nos permite entender as origens da propriedade privada, da família, da patrilinearidade, do respeito à virgindade feminina e mesmo do juro. Completa seu quadro evolutivo analisando a origem do feudalismo (p. 46), da classe média (p. 47), das raças (p. 51), da moeda (p. 50), a que se segue a origem da burguesia (p. 55) e do nacionalismo (p. 59).

Desembocamos assim na "expansão capitalista", algo, para a autora, eminentemente novo, a romper a monotonia da repetição histórica: "De certo ponto de vista, toda a história humana, do neolítico ao século XVIII pode ser tratada como um só período, e da Revolução Industrial até o presente, como outro. Muitos dos mesmos modelos se repetem. O Império Britânico teve algo em comum com o Romano; a destruição da Grécia... repetiu-se neste século nas guerras européias que levaram à dominância dos Estados Unidos" (p. 61). O elemento original do capitalismo seria a conjugação de três características: "a hipertrofia do Estado-Nação (que algumas tentativas de internacionalismo pouco fizeram para conter), a aplicação da ciência à produção e a penetração dos valores monetários em todos os aspectos da vida" (p. 61).

Com base nesse tripé, a autora desenha a dinâmica da "era moderna", alinhavando em laços históricos a fase comercial à industrial competitiva e esta ao neocapitalismo, a respeito do qual endossa formulações de Myrdal, Galbraith, Marshall e Schumpeter - não para acrescentar algo de novo, que não é sua intenção, nem para exaltar a tecnoestrutura ou lamentar o desaparecimento do empresário clássico, mas, sim, para sugerir que "o capitalismo moderno acha-se bem adaptado para produzir sucessos técnicos fabulosos, mas não para fornecer a base da nobre vida acessível a todos com que Marshall sonhou" (p. 88).

A crítica à má distribuição de renda, ao consumo supérfluo e ao militarismo como alternativa econômica de manutenção do nível de emprego, não é, porém, enfatizada. Antes, Robinson afirma que "O Estado do Bem-Estar suavizou muito a rudeza do capitalismo puro e desempenhou grande papel em poupá-lo, até o presente, do apocalipse que Marx previu há cem anos" (p. 92).

Os mecanismos de auto-sustentação do capitalismo, em sua etapa contemporânea, colocam o cerne da competição não entre classes, mas entre Estados-Nação, cada qual procurando sobreviver e fortalecer-se mediante saldos favoráveis no comércio internacional. Trata-se de uma mutação (sic) ocorrida no sistema capitalista, o que permite denominar a fase contemporânea de O Novo Mercantilismo.

Com ironia, diz que o êxito do sistema em preservar no pósguerra um período de lucratividade continuado estava a indicar que "as relações de produção achavam-se melhor adaptadas às forças da tecnologia científica do que algum dia antes haviam estado" (p. 87), negando a descontinuidade explosiva prevista por Marx. Aliás, em seu debate com o marxismo, é levada a reduzir a escatologia do socialismo científico a nada. "Revelou-se que o socialismo não constituía uma etapa além do capitalismo, mas sim um meio alternativo de efetuar a industrialização (p. 77)."

Ora, se o determinismo econômico não é exclusivo, e se o capitalismo atual apresenta várias possibilidades de sobrevivência e fortalecimento ao nível nacional, há-de se considerar não um, mas vários modelos capitalistas: "cada uma das nações capitalistas fez evolver um modelo diferente de relações entre o governo, as indústrias e serviços nacionalizados e a iniciativa privada e um modelo diferente de distribuição dos benefícios entre as classes e setores da economia, de acordo com a força e as pretensões dos interesses envolvidos" (p. 92).

Assim como fatores específicos (de ordem geográfica, históricosocial, cultural etc.) combinaramse para produzir, sob a égide do nacionalismo, modelos nacionais de desenvolvimento, o mesmo teria ocorrido no sistema socialista. Atestando a presença indispensável do Estado desenvolvimentista, e o surgimento de sinais de sociedade de consumo no mundo soviético, Robinson, mesmo sem reconhecê-lo, endossa a tese da convergência de sistemas, apesar das inúmeras diferenças. No exame da diversidade das alternativas nacionais destaca-se a análise do caso sueco.

O modelo chinês, considerado "um outro caminho", recebe da autora muito mais simpatia do que o soviético. Ela vê, nas características culturais da China, o padrão que permitiu a "alternativa rápida de industrialização", num mundo de camponeses pobres. Na China, "durante três mil anos, o lento movimento da população, em que as classes nunca se basearam em 'raça' as tinha mergulhado a todas na civilização chinesa e esta baseava-se no conceito da conduta correta. ('Podemos ser muito pobres, mas sabemos distinguir o certo do errado'). É muito mais fácil alterar o conteúdo da conduta correta de pessoas educadas em tal visão da vida do que introduzir o próprio conceito em povos embebidos de cinismo e competição apropriativa" (p. 105).

O Terceiro Mundo é visto com pouco ânimo. Não obstante reconheça que as exportações de manufaturados são a esperança atual das nações subdesenvolvidas de participar do novo mercantilismo, denuncia o desempenho das grandes empresas internacionais no aviltamento dos preços de primários, na política de reinversão e na pressão ilegítima sobre os governos. Mas o problema principal é a população; revivendo o presságio malthusiano da multiplicação das bocas, escreve: "Em quase todas as partes a renda nacional estatística está-se elevando de ano para ano. O beneficio, contudo, é muito rapidamente anulado pelo crescimento da população (p. 111). E mesmo que a taxa de natalidade em todo o mundo possa ser acentuadamente diminuída num futuro próximo, a composição etária da população que já conseguiu nascer impedirá o número total de adultos de deixar de crescer e reproduzir-se por longo tempo" (p. 112).

O desafio e a proposta da Dra. Robinson aí está. O motivo de lucro, cujo funcionamento beneficente é proclamado a público pelas doutrinas econômicas, está em falência. Uma nova moralidade econômica impõe-se, e, em sua afirmação, está a principal contribuição da ciência social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1972
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