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Ecologia: a redescoberta da pólvora

ARTIGOS

Ecologia - a redescoberta da pólvora* * O presente trabalho inclui um exame exaustivo da legislação portuguesa de proteção ao meio-ambiente no século XVI, bem como nos regimentos coloniais do Brasil. Nesta pesquisa fui guiado constantemente por meu avô, o historiador Marcos Carneiro de Mendonça a quem devo a possibilidade deste ensaio. Carlos Eugênio Thibau leu uma versão preliminar e ofereceu sugestões valiosas. Contudo, assumo sozinho a responsabilidade pelas opiniões, omissões e enganos que possa conter o texto.

Claudio de Moura Castro

Doutor em Economia e Economista do Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral

Com alguns anos de atraso, a consciência da gravidade dos problemas de equilíbrio ecológico chega ao Brasil, importada dos Estados Unidos. De episódio exótico, o assunto vai, paulatinamente, conquistando posições mais importantes, manchetes mais destacadas e mais freqüentes nos jornais. Timidamente vai emergindo algum tipo de legislação de proteção do meio-ambiente (e, eventualmente, da qualidade da vida). Pela via transversa dos americanos, somos colhidos de surpresa para os fatos desagradáveis de que os recursos naturais são finitos e que seu fim pode estar mais próximo do que gostaríamos. Descobrimos os mecanismos que controlam a "harmonia das coisas e dos seres"1 1 Título de um poema de Anna Amélia Q.C. Mendonça. e engenhosamente tentamos criar uma legislação que impeça o cataclisma ecológico denunciado por muitos. Mas, explosivas como possam ser as conseqüências dos maus tratos que impingimos à natureza, na verdade estamos redescobrindo a pólvora. Se o termo ecologia é relativamente novo, e se mais recente ainda é a nossa descoberta do problema, longe estaríamos da verdade em supor que a história nos vai dar qualquer crédito sobre a novidade, seja na forma de uma melhor compreensão de um mecanismo, seja na tomada de posição através de legislação apropriada. É quase milenar na Europa a percepção de que os recursos naturais podem ser exauridos por uma política canhestra de exploração é, a clara percepção dos mecanismos implícitos na relação de harmonia entre as coisas e os seres. Documenta esta afirmativa a existência de legislação farta e particularmente detalhada sobre o assunto.

Neste ensaio procuraremos mostrar como os portugueses, nossos antepassados e colonizadores, já compreendiam perfeitamente o problema da conservação dos recursos naturais e legislavam com grande rigor a respeito. Mostraremos também como o Brasil recebeu deles legislação precisa e detalhada sobre alguns aspectos da exploração dos seus recursos naturais. Jamais se tentou implementar esta legislação. Estamos atávicamente vinculados a uma crença na impunidade ecológica. Sempre vimos a fronteira econômica como móvel. Bastaria andar um pouquinho mais para a frente, e lá estava a terra virgem, a floresta virgem e os recursos naturais intocados. E o fim da fronteira? Não vemos. Marcados por este atavismo, nunca pudemos acompanhar o que se passava na Europa. Somente quando outro grande pecador contra a natureza redescobre o problema e lhe dá um nome elegante - ecologia - é que nós, caudatários da cultura, americana, redescobrimos também o mesmo problema.

Falta-nos apenas descobrir que redigir e aprovar legislação é um mero passo inicial. É o desafio de fazê-la cumprir que temos de enfrentar. Temos também que aprender a comparar os sacrifícios presentes e futuros - e suas conseqüências sobre a qualidade da vida - resultantes de uma política de omissão, com as conseqüências e sacrifícios de diversas possibilidades ou alternativas de intervenção: nem sempre a solução ecologicamente mais sadia é mais cara ou envolve maiores sacrifícios, mas só poderemos sabê-lo se desenvolvermos o hábito de perguntar sempre.

1. O DUELO DO BRASILEIRO COM A NATUREZA

Não é nosso objetivo, nesse ensaio, discorrer sobre os maus tratos a que temos submetido a natureza em nosso País. Não conhecemos qualquer estudo sistemático e razoavelmente completo para o Brasil, a que nos pudéssemos reportar. É até sugestivo do grau de importância que atribuímos a esta área, o fato de que as informações disponíveis são casuais e assistemáticas. Os institutos de planejamento a nível federal e estadual tão pródigos em diagnósticos, ainda não se dedicaram à descrição metódica do duelo do brasileiro com a sua natureza. Limitar-nos-emos a algumas observações casuais.

Imensa surpresa aguarda aqueles que resolverem empreender uma viagem pela Belém-Brasília, para ter contato com a floresta amazônica. Em todo o percurso de quase 1 500km a única floresta amazônica à vista será a do Parque Rodrigues Alves, ocupando três ou quatro quarteirões, na cidade de Belém. Ao sair da cidade, veremos algumas matas, ralas, de segundo crescimento, talvez. Daí para frente, até Brasília, não se vê nenhuma árvore com vida.2 2 Em linguagem técnica, não se vê florestas em clímax. É bem verdade que, a partir da metade do caminho, entramos na região dos campos gerais, onde a vegetação é rala. Mas onde havia floresta amazônica, há um cemitério, já quase um deserto. A floresta foi destruída, e sobrou apenas seu cadáver. Os troncos chamuscados de algumas árvores de 20, 30 ou 40m de altura se podem ver ao longo de todo o percurso. À linha do horizonte, nunca mais perto, de vez em quando vislumbramos a massa compacta da floresta amazônica.

Quem atravessa na direção sul-norte o estado do Espírito Santo somente verá uma floresta, a reserva florestal da Cia. Vale do Rio Doce. O resto é o mesmo deserto da Belém-Brasília. Quem viaja pela Zona da Mata, no estado de Minas Gerais, verá como se tornou inapropriado o nome; possivelmente, a única mata é a modesta reserva florestal da Universidade Rural de Viçosa. Um viajante que passa apressadamente pelo Paraná, poderá ver não mais do que dois ou três pinheiros de péssima saúde, em frente ao Palácio Iguaçu que abriga o governo do estado.

A cartografia do café é representada por uma larga faixa de terras cansadas, começando na cidade do Rio de Janeiro e já atingindo pedaços do Paraná. O duelo do brasileiro com a natureza tem-se caracterizado pela ocupação irracional do solo, especialmente ao longo das rodovias. Os ciclos econômicos do café, cana, milho e pecuária baseiam-se em processos extensivos, sem atentar para as classes de uso do solo. A floresta no Brasil, como em todos os lugares de florestas tropicais, tem sido considerada como um estorvo à civilização e ao próprio desenvolvimento agrícola.

Mas por outro lado, é gratificante e instrutivo lembrar que a região da floresta da Tijuca já foi ocupada por plantação de café e já foi também terra cansada. Aqueles que têm o hábito de passear pelas maravilhosas trilhas das matas que circundam o Rio de Janeiro, já não se surpreendem mais quando encontram, perdido no meio da floresta, um pé de café. A floresta da Tijuca é um grande exemplo da possibilidade de regeneração florestal, tanto natural como plantada.

As praias oceânicas (Copacabana e Ipanema), com as quais contaríamos para atrair turistas ao Rio de Janeiro, têm um nível de poluição superior às da Califórnia, onde os banhistas compartilham as praias com sondas de perfuração de petróleo. A vida marítima já está em vias de extinção na baía de Guanabara. Rio e São Paulo competem com cidades imensamente mais industrializadas nos índices de poluição atmosférica.

O Museu de Ouro, em Sabará, expõe uma âncora encontrada ali mesmo, às margens do rio das Velhas. Âncora grande, de navios semelhantes aos que hoje ainda operam no rio São Francisco. Em Sabará, hoje, o rio das Velhas dá vau. A própria navegação no Rio São Francisco está cada vez mais difícil devido à perda de volume d'água.

Por casualidade, já acompanhamos turistas brasileiros a cidades dos EUA. Alguns trouxeram de volta, como impressão mais viva e mais marcante, não os convencionais atrativos do American way of life, mas o número de árvores que havia nas cidades. E nós, moradores de país tropical e sol inclemente, por que não temos árvores em nossas, cidades? Com que facilidade sucumbem as poucas que restam. E aqueles que se aventuram na inglória tarefa de plantá-las, vêem-se obrigados a guarnecer as mudas com equipamentos que se esperaria ver na defesa de instalações militares.

Seria interessante comparar pelo mundo afora a relação entre área urbana construída e área de parques e jardins. Provavelmente o Brasil, um dos maiores países do mundo em extensão territorial, teria relações dentre as mais desfavoráveis. Suspeitamos que Belo Horizonte esteja entre as piores do mundo.3 3 O Parque Municipal, além de já ter sido reduzido à metade, está sendo progressivamente invadido por escolas, teatros e parques de estacionamento. Mesmo nas imensas cidades dos EUA e Europa, aqueles que moram em casa e têm sono leve poderão facilmente ser despertados pelo canto dos pássaros. Para nós, praticamente só restam os pardais, infeliz importação da Europa.

E a caça esportiva? Caça de pena, ou caça de pêlo, para que valha a pena o esporte, é preciso ir para além dos limites das instalações permanentes do homem. É preciso andar mais do que seria necessário para atravessar a Alemanha, país onde se pode ainda caçar a maior parte dos animais que ali havia quando do descobrimento do Brasil. Quem mora no Rio de Janeiro e modestamente quiser sair com sua varinha de pesca para tentar a sorte em algum rio nas proximidades, quantos quilômetros terá que viajar?

Nosso patrimônio histórico e artístico não tem merecido melhor sorte, apesar de certo esforço do Governo. Possivelmente, os grandes exemplos de arte rupestre no Brasil estão na Gruta de Cerca Grande, nas proximidades de Belo Horizonte. Além do valor intrínseco, como exemplar de arte pré-colombiana, estes desenhos estão situados em uma das grutas mais interessantes da região, à semelhança de um queijo suíço, com labirintos acima do nível do solo, aflorando em aberturas circulares e múltiplos níveis. A tudo isto era adicionada uma esplêndida formação de estalactites e estalagmites nos corredores ao nível do solo. Os estalactites e estalagmites foram removidos e vendidos como calcita (matéria-prima industrial) a preços vis. Os desenhos rupestres em suas delicadas cores a pastel estão hoje orlados por centenas de assinaturas, datadas de poucos anos, e produzidas com tintas que, pelo seu brilho, saturação de cor negra e zarcão, bem representam as grandes realizações da química industrial. Próximo ao desenho mais importante - que serve de capa de livro de Harold Walter, Arqueologia da Região de Lagoa Santa - encontra-se a assinatura de alguém que hoje é presidente de um dos grandes complexos industriais do Brasil.

Em suma, em tão pouco tempo submetemos nosso Pais a tamanhos maus tratos que algumas áreas do Novo Mundo já estão se tornando mais estragadas, mais congestionadas e parecendo mais velhas que o Velho Mundo, a Europa milenarmente ocupada por densos agrupamentos populacionais.

2. A REDESCOBERTA DA ECOLOGIA

Difícil é saber se fomos mais, ou menos, predatórios que os americanos. Contudo, no princípio do século, John Muir e outras pessoas fundam na Califórnia o Sierra Club. Doía a estas pessoas ver a destruição da fantástica beleza das montanhas e das florestas com a marcha para o Oeste. Em parte, como resultado do seu grande esforço de organização e mobilização, começam a ser criados os parques nacionais, sob a responsabilidade do Departamento de Agricultura. O espírito protecionista aos poucos se espalha pelo país, marcando o principio de um movimento popular de organização espontânea, visando proteger a natureza.

Na década de 60 entra em cena um novo participante: a comunidade científica dos pesquisadores na área zoológica. Pelo uso de computadores, torna-se possível descrever as equações de troca de energia entre seres e coisas da natureza. Teoricamente respaldados por estas equações de troca energética, passa-se a estudar as equações de equilíbrio entre as espécies. Definem-se os nichos ecológicos de cada espécie e condicionantes de sua expansão, ditados pelos níveis qualitativos de outras espécies com quem elas convivem, ou retiram a energia necessária para sua existência.4 4 Hamilton, V.G.T.H. Process and pattem in evolution. London, Macmillan, 1967; Kormondy, E.J. Concepts of ecology. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1969. Mas, igualmente, estudam-se os desequilíbrios, especialmente os desequilíbrios irreversíveis. Uma pastagem abusivamente utilizada por rebanhos de bovinos, deixa de alimentar estes rebanhos, que pela fome e pela alta mortalidade serão parcialmente dizimados; com "o tempo, sem a presença do rebanho excessivo, o pasto será refeito e continuará o ciclo vital de equilíbrio, por aproximações sucessivas. Mas se o rebanho for de ovinos, que consomem não somente o talo do capim, como a sua raiz, o excesso de uso das pastagens liquidará a raiz, o embrião que permite a recuperação dos pastos, transformando-os em deserto, e uma vez transformados em deserto, um nível estável de equilíbrio ecológico é atingido. Daí em diante, não há forças naturais que levem à sua recuperação. O sudoeste dos EUA viu isto acontecer, bem como o Oriente Próximo.5 5 Storer, J.H. The web of life. New York, Signet, 1953.

Com a melhor compreensão destes fenômenos, com a força que têm as conclusões baseadas nos métodos sistemáticos e desapaixonados das investigações científicas, o tema ganhou momento nos EUA. Os economistas tradicionalmente descreveram o fluxo circular da economia: a fábrica produz mercadorias que são vendidas e consumidas, em troca de mão-de-obra e matérias-primas que são transformadas em mercadorias, fechando o ciclo. Ao fim da década de 60, alguns economistas propõem que o fluxo não é circular: entra no processo a matéria-prima, que é transformada em produto que por sua vez é consumido e se perde. Entra no processo a energia requerida para a feitura do produto, que igualmente se perde no ato do consumo. É a segunda lei da termodinâmica, a lei que nos afirma que a entropia (isto é, a desorganização da energia) aumenta constante e implacavelmente. As riquezas não circulam, elas se consomem, se exaurem.6 6 Georgescu - Roegen, E.G.N. Analytical economics. Cambridge, Harvard U. Press, 1967. p. 64-82. A idéia explosiva da proximidade do fim de certos recursos já havia sido capturada pelos pesquisadores profissionais. Mas para o homem comum é o susto do fim do petróleo que torna mais tangível essa unidirecionalidade do processo econômico.

O Clube de Roma reuniu-se por volta de 1970 para discutir projeções ecológicas para o futuro, realizadas com imenso engenho e audácia por operadores de computador de grande envergadura. Os resultados são tão pessimistas que não basta verificar que quase todas as suas equações têm falhas metodológicas. Uma ou outra que resista à análise crítica já é suficiente para nos assustar.

Somos hoje caudatários da cultura americana, lá estudamos, lá vemos a elite intelectual européia estudando e ensinando. Se dos EUA importemos tantos maus hábitos, talvez seja natural que ocasionalmente importemos uma preocupação legítima, ainda que envolta em previsões sombrias.

Já descobrimos a poluição, já descobrimos a devastação dos recursos naturais, renováveis e não-renováveis. Suspeitamos que estamos consumindo produtos industriais para atenuar a deterioração da qualidade da vida, provocada por essa própria industrialização. Finalmente, descobrimos que violar a harmonia das coisas e dos seres pode ter conseqüências catastróficas; descobrimos a ecologia.

Falta-nos aplicar os princípios, especialmente quando se trata dos recursos renováveis, isto é, que se renovam, regeneram. Por exemplo, os recursos florestais são renováveis e poderão ser manejados, com manutenção da paisagem, das espécies, da flora, com todos os benefícios para o homem e para o meio-ambiente.

E orgulhosamente ensaiamos nossas primeiras aventuras da área da legislação que coíbe o uso abusivo da natureza. Inventamos leis, criamos leis, aprovamos leis de defesa do meio-ambiente. A julgar pelos pronunciamentos oficiais, fazêmo-lo com grande espírito pioneiro.

3. A EUROPA E A ECOLOGIA

As equações de trocas energéticas transformaram a ecologia em uma ciência quantitativa e precisa. Contudo, uma idéia muito antiga é a noção de que os recursos naturais não-renováveis podem-se exaurir, e que os recursos naturais renováveis tais como florestas, animais, plantas e peixes têm mecanismos de renovação que podem atingir pontos críticos. A fábula da galinha dos ovos de ouro diz-nos tudo que é necessário sobre o princípio ecológico mais fundamental de todos: morta a galinha, não há mais ovos de ouro. É preciso entender a natureza para saber quanto se pode tirar dela, sem danificar sua capacidade de rejuvenescimento.

Falta ao autor o conhecimento histórico para acompanhar o amadurecimento desta consciência ecológica na Europa. Porém, pequenos fragmentos sugerem a compreensão do problema, já na Idade Média. Nas florestas do rei da Inglaterra, a lenha que se podia tirar eram aqueles galhos que poderiam ser arrancados com o bastão de extremidade curva que se usava na época.

Localizaremos nossa investigação histórica naquele país a quem devemos a nossa colonização, Portugal. Durante a regência de Felipe I, a partir de 1580, Portugal submeteu-se a um conjunto de leis, conhecidas como Ordenações Filipinas. As mais variadas áreas estão cobertas por este conjunto, às vezes pitoresco, de legislação. A preocupação com a conservação dos recursos naturais renováveis emerge clara e nítida nesta legislação.7 7 Ordenações e leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandato D'El Rei Dom Felipe. O Primeiro. 12. ed, segundo a 9ª. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858.

Examinaremos em detalhe as leis referentes ao que chamamos hoje de ecologia e, a título de ilustração, indagaremos sobre a pertinência ou propriedade destas leis, se vigorassem nos dias de hoje. Para facilitar a exposição, dividiremos a matéria de acordo com o objeto tratado, e não segundo a ordem em que ocorre no texto legal. (Na transcrição do texto da lei intercalamos entre parênteses o significado corrente e brasileiro de palavras que hoje caíram em desuso ou não são conhecidas entre nós.)

A) Legislação da caça. A legislação seiscentista de proteção à caça é especialmente complexa e revela uma clara compreensão dos limites daquilo que se pode pedir à natureza.

"Defendemos (proibimos) geralmente em nosso Reino, pessoa alguma não mate, nem cace perdizes, lebres, coelhos com boi (armadilha em que o caçador se disfarça em boi), nem com fios de arame, nem com outros alguns; nem tome, nem quebre ovos das perdizes, sobe pena de pagar na Cadea dous mil reis de cada vez que nisso for achado, ou lhe for provado dentro de dous mezes, e mais perder as armadilhas. Nas quais penas isso mesmo incorrerão as pessoas, em cujo poder ou casas forem achadas as armadilhas, ora sejam suas, ora alheas." (p. 289.)

Vários pontos emergem claramente da intenção do legislador. O objetivo imediato parece ser coibir o uso de artefatos de caça em que se presume o caráter predatório. Há intenção nítida de limitar o fluxo de abate da caça. Ao mesmo tempo, há proibição de consumir ou quebrar ovos, protegendo os mecanismos de reprodução. Para contornar as dificuldades de caracterizar o "flagrante delito", a mera posse dos instrumentos implica na violação, sem que se possa alegar que o equipamento pertence a outrem.

"E nas comarcas da ESTREMADURA e (...), nos mezes de Março, Abril e Maio, e nas comarcas da BEIRA (...), nos mezes de Abril, Maio e Junho, pessoa alguma não cace perdizes, nem criação delas com perdigões, nem com aves de qualquer qualidade, redes, fios, ichós (alçapões), laços nem per outro qualquer modo, nem lhe tome, nem quebre os ovos, nem as cace a corricão (com cães) no mes de Julho até meado de Agosto, nem no tempo da neve onde a houver quando a terra stiver cuberta delia, em quanto não for derretida, nem com boi em qualquer tempo do anno." (p. 289.)

"E nos lugares da Estremadura (...), em Março, Abril e Maio, se não cacem coelhos, nem lebres com cães, redes, fios, laços, forão (doninha), besta, espingardas nem per outro qualquer modo, nem no tempo da neve nos lugares, onde a houver e cobrir a terra, em quanto não for derretida. E quem o contrário fizer, sendo fidalgo, ou cavalleiro, pola primeira vez seja degradado hum anno para a Africa, e pague vinte cruzados. E pola segunda haja as ditas penas em dobro; em sendo de menor qualidade, seja preso trinta dias na cadea, e pague dous mil reis. E pola terceira seja degradado um anno fora de Villa e termo, e do lugar, onde for morador, e pague em dobro a dita pena de dinheiro, e percam as aves, cães, redes, fios, e armadilhas com que caçarem." (p. 289.)

"E defendemos que em Lisboa (...), pessoa alguma não mate, nem cace perdizes com candeos (archotes para deslumbrar a caça), redes de cevadouros, perdigão ou perdizes de chamado, sob pena de pagar por cada vez que for achado caçando com cada uma das ditas cousas (...). E caçando com boi nos ditos lugares e seus termos, ou sendo-lhe provado dentro de dous mezes, ou sendolhe achado em seu poder, ou casa, pagará dez cruzados, e será degradado dous annos para a Africa." (p. 290.)

"E pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, não cace nem mate perdizes com Açor (falcão), gavião, nem com armadilha, nem a corrição, na coutada (reserva de caça) nova da cidade de Lisboa (...). Nem cace, nem mate na dita coutada lebres com galgos, redes, besta, espingarda, nem com outra alguma armadilha." (p. 290.)

Na lei anteriormente citada, estabeleciam-se algumas práticas que ficavam definitivamente vedadas. Na legislação citada, vemos a emergência de duas intenções. Em primeiro lugar, o controle da sazonalidade da caça, visando restringi-la durante o período de reprodução. Em segundo lugar, notamos a preocupação de definir critérios distintos para cada região geográfica do país. A leitura do texto sugere que regiões mais densamente povoadas ou mais próximas dos centros urbanos, terão restrições adicionais às atividades do caçador. Onde há mais caçadores, nota-se a preocupação de dificultar o processo de caça, de maneira a manter a mesma taxa de abate.

Com relação às sanções legais, pode-se notar que não são nada brandas, característica que é compartilhada com todas as Ordenações Filipinas. Ademais, aqui como em outras partes deste código, ilustra-se o princípio de que a lei é a mesma para todos, mas as sanções pelo seu não cumprimento diferem fundamentalmente de acordo com a classe social.

"Havendo tanta criação de coelhos em alguns lugares, que façam dano, às novidades (colheitas), pois officiaes das Cameras nol-o poderão screver, enviando com suas cartas informação do corregedor da comarca, para nisto provermos, como for nosso serviço." (p. 289.)

Nesta lei aparece a possibilidade de controle ad hoc de alguns animais, cujos mecanismos de reprodução podem ocasionalmente ser insuficientemente coibidos ou controlados pelos princípios restritivos das leis anteriores. A legislação de caça dos EUA hoje, à semelhança da lei citada, é menos restritiva para algumas espécies de reprodução muito rápida, coelhos em geral.

"E mandamos por se não destruir a criação das aves, e por não se perder o primor e a arte de tirar a ponto com espingarda, que nenhuma pessoa uze na espingarda, arcabuz, nem em outro qualquer tipo de fogo, de munição de pelouros (balas pequenas), nem tire com ela, nem a traga comsigo, nem a forma dela. E que o contrário fizer, e tirar com munição, ou pelouro, que notoriamente não for da medida do cano da sua espingarda, ou arcabuz, ou tiro de fogo(...) pola primeira vez será preso, e stará vinte dias na Cadea, e perderá a espingarda, ou arcabuz com todas as pertenças dela, e pagará dous mil reis, a metade para quem o acusar, e outra metade para os captivos." (p. 279.)

Esta é uma lei curiosa, com objetivos de origem distintas. De um lado, o legislador acredita que o tiro de chumbo fino não desenvolve as artes marciais, sendo um tiro que não exige a mesma pontaria. Mas, por outro lado, notamos a intenção clara de impor um controle adicional à taxa de abate. Obrigando ao caçador a utilização de um projétil do calibre de sua arma, fica em muito dificultada a caça.

O Brasil dispõe hoje de uma legislação de proteção à caça cuja aplicação vem sendo intensificada nos anos recentes. Deter-nos-emos só mais adiante na grande diferença que existe entre possuir legislação e fazê-la cumprir; examinaremos aqui apenas algumas diferenças interessantes.

Na legislação filipina, o método de controle é o próprio instrumento de caça. Ao proibir artefatos ou modalidades de maior produtividade, reduz-se o número de peças abatidas. Deste período para cá, as armas de fogo tornaram-se cada vez mais eficientes, com maior potência de tiro, cano raiado e visores telescópicos, utilizando chumbo de calibres tais que maximizam a probabilidade de abater a caça. Proliferam as armas de repetição. Somos também muito mais lenientes nos métodos de caça; não temos restrições ao uso de cães, armadilhas, mundéus e outras modalidades então proibidas. Liberados os métodos, aprimorada a técnica, o perigo de extinção das espécies é cada vez maior. Na Europa e EUA, além de religiosamente respeitados os períodos de procriação, a solução encontrada para a caça amadorista foi a de limitar o número de peças abatidas por caçador. Em alguns casos, a redução dramática na população de alguns predadores, possibilita ao homem preservar para si, para seu esporte bárbaro ou nobre, como se queira classificar - um número de animais, que estava destinado as garras das onças, jacarés, coiotes, pumas e aves de rapina. O caso dos veados e lebres nos EUA ilustra bastante bem este ponto.

No Brasil é de se notar que, em geral, não há quotas - se houvesse seria difícil fazê-las cumprir - e as penalidades são de difícil aplicação. O século XVI nos sugere a apreensão das armas, por que não a utilizamos? Toda arma de caça portada fora da temporada poderia ser apreendida.

B) O controle da pesca. Tão detalhada quanto a legislação da caça é aquela da pesca em água doce. Nota-se o extremo cuidado do legislador em especificar as modalidades proibidas.

"Defendemos, que pessoa alguma não pesque em rios, nem lagoas de agoa doce, com rede, covãos (...) nassas (armadilhas para peixes), tesões (rede oblanga retesada com vime) nem de algum outro modo, nos mezes de Março, Abril e Maio, somente poder-se-há, pescar à canna com anzol (...). Nem se poderá outrossim pescar nos ditos rios e lagoas, ainda que seja fora dos ditos tres mezes, com redes de malha mais streita da que for limitada pela Camera, nem com rede varredoura, lençóis, trasmalhos (tipo de rede), nem Gabritos (rede de malha fma) dobrado, posto que sejam feitos pela vitola (bitola),' das cameras, nem pessoa alguma os tenha em sua casa, nem fora dela. E mandamos que os Officiaes do Concelho ordenem em Camera, a largura da malha, de que devem ser as ditas redes, para que, quando pescarem fora dos ditos tres mezes da criação, não possam tomar peixe miúdo; do que se fará assento nos livros da Camera, e pela Vitola, que assim ordenarem, que nas Cameras stará, se farão as ditas redes." (p. 290.)

"E porque a principal pescaria das sáveis (peixes de mar que se reproduzem em agoa doce) e lampreas he em Março, Abril e Maio, havemos por bem que os sáveis, sabogas e tainha se possam pescar nos ditos tres mezes com redes de vitola e malha de largura de 7 dedos ao través ao menos. A qual vitola stará nas Cameras dos lugares mais chegados aos rios, onde se houver de pescar. E as lampreas se poderão pescar nos ditos tres mezes com redes, e pela maneira, que for ordenado pelos Officiaes das Cameras (...). Não se poderão pescar (...) nem com redes de mais streitas malhas, que a sobredita." (p. 291.)

"No Rio Tejo (...) pescador algum não pesque azevias (linguado), com tanchas e fatexas (arpões)." (p. 292.) "E de todas as penas de dinheiro, conteudas nesta Lei, será a metade para quem acusar, e a outra para captivos, e as redes cães e armadilhas, para o acusador. E não havendo quem acuse, somente a justiça, serão para as obras do Concelho." (p. 292.)

Como na caça, o instrumento da lei é a técnica utilizada; pela mesma forma, nota-se a grande preocupação de sazonalidade, seja em termos de proibição total, seja em termos de restrição dos métodos ou técnicas permitidas.

Na pesca, torna-se mais importante coibir as modalidades que afetam diretamente os mecanismos de reprodução do cardume. É muito detalhada a especificação da malha mínima permitida e dos tipos de redes que podem ser utilizados, visando claramente proteger os exemplares imaturos. A vitola da malha das redes volta a cada momento à pena do legislador e as exigências de que se exiba um exemplo da dimensão mínima da malha são repetidas diversas vezes. Claríssima é a consciência do caráter predatório das modalidades que varrem os fundos dos rios, afetando a sobrevivência das espécies.

A fauna da restinga de Marambaia está sendo destruída rapidamente pela introdução recente da chamada rede balão, já proibida em Portugal há quatro séculos. Em nossos dias, não há qualquer controle eficaz da pesca, seja em termos de método, seja em termos de temporada. E como se tudo isso não bastasse, inventamos outra técnica predatória, a banana de dinamite.

Grande parte de nossos rios e lagos não seriam cemitérios biológicos se tivéssemos em vigor e aplicada a legislação filipina para o controle da pesca; somente seria necessário adicionar a proibição da pesca a dinamite.

Já notamos os rigores das sanções. É curioso verificar aqui que metade dás multas e apreensões são utilizadas para premiar o acusador. Se desapareceu este instituto de direito, em um imenso e incontrolável País como o nosso, as suas funções de forma alguma se tornaram obsoletas.

C) O controle de reservas florestais. O abate de árvores e suas possíveis utilizações são bastante controlados pelas Ordenações Filipinas.

"O que cortar arvores de fructo, em qualquer parte que stiver, pagará a estimação delia ao seu dono em tres dobro. E se o dano que assim fizer nas arvores for valia de quatro mil reis, será açoutado e degradado 4 annos para Africa. E se for valia de 30 cruzados, e dahi para cima, será degradado para sempre para o Brasil." (p. 268.)

Esta é a primeira lei de política florestal e especificamente protege as árvores frutíferas. Note-se que não se trata do ressarcimento por danos e perdas que temos hoje. Em caso de pequenos danos, o valor delas estimado pelos donos terá ressarcido em três vezes o seu montante; em caso de delitos mais importantes, a sanção torna-se mais severa.

"E mandamos, que pessoa alguma não corte, nem mande cortar sovereiro (árvore da cortiça), carvalho, encinho (ancinho?), machiéiro (sovereiro em crescimento), por o pé, nem mande fazer dele carvão nem cinza; nem escasque, nem mande escascar nem cernar algumas das ditas arvores, desde onde entra o Rio Elga (...) e fazendo contrario va degradado quatro anos para Africa, pague cem cruzados, e perca o carvão e cinza, a metade para quem o acusar e a outra para os captivos. E se for peão, além disso seja açoutado. Porém os que tiverem sovereiros próprios os poderão cortar, não sendo para carvão ou cinza; e cortando-os, para isso, incorrerão nas ditas penas." (p. 268-9.)

Se a legislação anterior partia de uma preocupação com ressarcimento a danos privados, a descrita acima parte de um cuidado com o social, com o estoque das árvores nobres de Portugal, independente de a quem pertençam. São severas as penalidades para aqueles que cortam árvores produtivas, especialmente quando a tentação é a produção de uma mercadoria pouco nobre como o carvão e cinza. Para que os próprios donos resistam à tentação, possivelmente em apertos financeiros, a árvore da cortiça, quando cortada, não pode ser de forma alguma utilizada com o fim de produzir carvão e cinza, com a única ressalva de que nas regiões mais distantes estas proibições não se aplicam.

Mais uma vez, a preservação do patrimônio social, sobrepondo-se à propriedade individual, emerge na legislação seiscentista. Se é inteiramente justificada a nossa legislação recente com relação a madeiras como o jacarandá, por outro lado, é insuficiente, tardia e não inovadora.

D) O controle das queimadas. A legislação com relação ao fogo é bastante rigorosa. Mas, igualmente, demonstra a astúcia do legislador.

"Defendemos, que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, ponha fogo em parte alguma; e pondo-se fogo em algum lugar, de que se possa seguir dano, (...) acudam e façam a eles acudir com muita diligência, para prestes se haverem se apagar, fazendo para isso os constrangimentos, que lhes necessário parecerem."

"E se se achar culpado no pôr do fogo, de que se seguir danos, algum escravo, seja açoutado publicamente, e ficará na vontade do seu senhor, pagar o dano, que o fogo fez, ou dar o escravo para se vender, e do preço se pagar o dito dano. E se o culpado for homem livre, sendo peão, seja preso, e da cadea pague o dano, e mais seja açoutado com baraço (corda trançada) e pregão pela Villa e degredado per dous annos para Africa (...)" (p. 286.)

Estas leis não apresentam muitas diferenças com relação a uma ação contemporânea de perdas e danos. Entretanto, vêm a seguir alguma coisas interessantes.

"E porque alguns, por caçarem nas queimadas, ou fazerem carvão, ou pastarem com seus gados, põem escondidamente fogo nos matos, para se poderem aproveitar das queimadas e porque não se sabem que o fez, não são castigados; mandamos, que pessoa alguma, não cace em queimada, do fia que foi posto o fogo, de que seguio algum dano, a trinta dias, nem entre nela a pastar com seu gado até a Pachoa florida, e carvoeiro algum não faça nela carvão, até dous annos." (p. 286.)

A motivação para queimar, aguçada pelas dificuldades de se identificar o incendiário, é neutralizada por completo por esta lei que impede a caça, a pastagem e a produção de carvão em glebas queimadas. A rigor, o não aproveitamento do carvão em uma mata queimada corresponde a um prejuízo social e privado. Mas, o ato incendiário é coibido exatamente pela disposição do Estado em proibir o aproveitamento do que sobra de uma mata queimada.

Passando ao mundo da fantasia, o que é necessário para supor a reaplicação de uma Lei Filipina, muitas queimadas seriam evitadas se os donos das terras ou qualquer outra pessoa fossem temporariamente impedidos de reutilizá-las, tanto como pasto, como para aproveitar o carvão.

E) Controle de poluição das águas. A poluição das águas, na medida em que possa afetar a fauna ictiológica, fica rigorosamente proibida.

"E pessoa alguma, não lance nos rios e lagoas, em qualquer tempo do anno, trovisco (planta venenosa usada para matar peixe), barbasco (planta alcalóide), cal, cocca, nem outro algum material com que se o peixe mata e quem o fizer, sendo fidalgo ou scudeiro ou dahi para cima pola primeira vez seja degradado por hum anno para Africa e pague tres mil reis (...). E sendo de menor qualidade, seja publicamente açoutado com baraço e pregão (...) o que assim havemos por bem se não mate a criação do peixe, nem se corrompam às águas dos rios e lagoas, em que o gado bebe." (p. 291.)

Aí está uma legislação rigorosa contra à poluição dos rios e lagoas, que automaticamente proíbe jogar à água substâncias que matem o peixe ou a tornem insalubre.

Por muitas décadas a Mina de Morro Velho despejou arsênico em um afluente do rio das Velhas. O resultado sobre a fauna não poderia ser mais irreversível. Igualmente detritos industriais de diferentes graus de toxidade são livremente despejados em centenas de rios do Brasil. É cada vez maior o número de rios e lagoas onde não há e não pode haver vida.

É difícil resistir ao progresso e à revolução industrial; os rios ingleses já experimentaram a morte biológica. Mas, novamente hoje, o Tâmisa é um rio piscoso, onde inclusive o exigente salmão pode ser encontrado.

F) Lições da história. A legislação seiscentista revelanos que os portugueses compreendiam claramente os mecanismos que regulam o equilíbrio da natureza. Mais do que isto, legislaram rigorosamente tentando resguardar este equilíbrio. Os nossos pecados e insultos contra o meio-ambiente não têm portanto como desculpa a ignorância e o desconhecimento do fato.8 8 Mas, ao mesmo tempo, é curioso lembrar que a pena máxima para o desrespeito às leis de proteção aos recursos naturais era freqüentemente o degredo para o Brasil. Não podemos pois esperar muito bons hábitos dos nossos primeiros colonizadores.

A ecologia meramente dá sistematicidade e precisão a muito do que já se sabia antes. Se o que estamos buscando é uma boa desculpa para os nossos descuidos no trato com o meio-ambiente, não é muito convincente alegar tal desconhecimento das leis da natureza.

Não estamos subestimando a contribuição desta nova ciência. A cada momento somos surpreendidos com a complexidade do equilíbrio biológico: a ação do DDT reduz a espessura da casca do ovo até mesmo de aves da região antártica; a poluição pode aumentar a temperatura da terra, produzindo degelos catastróficos; em algumas regiões, o leite de vaca comercialmente distribuído atingiu níveis de radioatividade inaceitáveis; os aviões supersônicos podem reduzir a camada de ozônio, prejudicando a agricultura; as usinas termonucleares podem destruir a fauna submarina, como resultado da elevação da temperatura da água.

Deixemos, porém a verificação destas hipóteses por conta dos países cientificamente mais avançados. Nossos problemas são muito mais elementares. Erramos com conseqüências muito mais previsíveis. Se o efeito da concentração crescente do DDT era insuspeitado até poucos anos, as conseqüências do uso desregrado que fazemos dos nossos recursos naturais já é conhecido há séculos.

4. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA PARA O BRASIL

Acreditamos haver deixado claramente demonstrada na seção anterior, a preocupação européia com a conservação do meio-ambiente. Na legislação referente à administração colonial - e interessa-nos em particular a do Brasil - esta mesma percepção se reflete em repetidas ocasiões na forma de decretos e leis, ou na forma de instruções a governadores e outras pessoas envolvidas na administração colonial. Mas, se é clara a compreensão do problema e a intenção do legislador de coibir o uso predatório dos recursos, a eficácia destas leis sempre deixou muito a desejar. De fato, repetidamente se passam instruções a governadores gerais, visando evitar erros grosseiros cometidos anteriormente.

Ao contrário das Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas que sintetizam a legislação para Portugal, a administração colonial é casuística e assistemática. Descrições, intenções, instruções, legislação e sanções penais ocorrem todas mescladas em documentos de procedências distintas e emitidas de forma esparsa e até mesmo truncada. A presente seção teria sido impossível não fora o trabalho paciente do historiador Marcos Carneiro de Mendonça, apresentado em sua obra, Raízes da formação administrativa do Brasil.9 9 Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Conselho Federal de Cultura, 1972. Neste trabalho, foram reunidos todos os documentos que compõem as instruções de políticas e legislação de Portugal c,om relação ao Brasil, durante todo o período colonial. À semelhança do que fizemos na seção anterior, organizaremos a matéria por assunto, deixando de lado sua ordem cronológica ou a natureza do documento de onde se origina.10 10 Foram incluídas também algumas citações dos volumes 6 (1865) e 7 (1866) da Revista do Instituto Histórico (daqui por diante abreviada RIH) referentes ao princípio do século XIX que não foi coberto em Formação administrativa do Brasil.

A) A política da caça. As provisões legais com respeito a caça são muito genéricas, estabelecendo apenas os princípios gerais.

"A caça, a pesca e a passarinhagem serão permitidas a todos os súditos e moradores, providenciando os conselheiros de modo que as diversas espécies de caça não sejam destruídas e exterminadas por uma peregrinação desregrada e excessiva, e não só se conservem as que já existem, como também sejam para lá transportadas e introduzidas aquelas que ainda não se encontram nestas regiões e nelas se podem aclimar."11 11 Regimento do Governo das Praças Conquistadas e que foram Conquistadas nas tndias Ocidentais. Formação administrativa do Brasil. cit. p. 508.

A legislação aí está: que se estabeleça localmente nível máximo que não põe em risco o equilíbrio ecológico das espécies. Seria repisar sobre o óbvio dizer que as transgressões deste pequeno parágrafo de lei não poderiam ter sido mais freqüentes e mais desastrosas.

B) As prioridades no uso dos recursos florestais. Tal como nas Ordenações Filipinas, o legislador estabelece uma nítida hierarquia no uso que se deve dar aos recursos florestais. Como se verá abaixo, esta hierarquia é ditada por diferentes critérios.

"Primeiramente hei por bem e mando, que nenhuma pessoa possa cortar, nem mandar cortar o dito Pau-Brasil, por si, ou seus escravos ou feitores seus, sem expressa licença, ou escrito do Provedor-Mor (...) e o que o contrário fizer, incorrerá em pena de morte e confíscação de toda a sua fazenda.12 12 Regimento do Pau-Brasil. op. cit. p. 363.

Este é o caso clássico do poder de monopólio da Coroa. O rei de Portugal reserva para si o direito da exploração do pau-brasil, e pune ferozmente aquele que transgredir sua instrução.

"Informar-vos-ei de todas as madeiras (...) se serviram algumas delas para as naus da índia, ou para que parte de navios podem servir e de que sorte podem servir para liames e taboado dos forros; e particularmente vereis se há madeira para madre e lemes e calceses, cabrestantes (...), e achando algumas matas de madeiras convenientes pra naus, as declarareis logo por minhas e mandareis que se não cortem e desbaratem."

"Uma das qualidades de madeira de mais estimação e abundância, que há nesta Capitania, é Tapinhoã que tem sido objeto de diversas Ordens proibindo o uso aos particulares (...) determinava que se não pudesse extrair esta qualidade de madeira para fora deste porto, que não fosse para as fábricas das naus de Sua Majestade, e que os vassalos portugueses pudessem dela forrar os seus navios somente dentro do Porto. (Os Sesmeiros) serão obrigados a conservar os Tapinhoãs e Peroba que se acharem, deixando de os cortar para outro algum caso, que não seja de construção das naus da Coroa, cuidando da plantação destas árvores (...) se recomende a execução do alvará (...) como também as ordens que há a respeito do Tabuado de Tapinhoã evitando-se o extravio e castigando-se os que o cometerem, com as penas estabelecidas, e que nas Cartas de Sesmarias se continue a por a clausula de que os Sesmeiros serão obrigados a conservar os paus Reais para embarcações, particularmente o Tapinhoã e Peroba."13 13 Regimento de Andre Vidal de Negreiros, 1655, ibidem, p. 703, 704; Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 787, 789. 792. Na carta régia sobre os cortes das madeiras de construção (RIH, v. 6, p. 461, 463) vemos igualmente restrições ao uso do cedro, consideração útil à construção naval. Ficam também ali estabelecidas as prisões e multas para os que "transgredirem (...) cortando ou queimando paus de construção nos lugares defesos". Pela mesma forma, fica limitado o direito dos proprietários para aumentar as terras lavradas, "não se consentindo jamais poderem se alargar para as matas existentes, fazendo nas mesmas derrubadas e queimadas".

Repetidamente, em momentos diferentes, a administração portuguesa preocupa-se com um dos aspectos mais estratégicos para sua sobrevivência: a construção e manutenção dos navios. Às madeiras de construção naval não se poderá dar qualquer outro uso, em hipótese alguma. Vê-se claramente a noção de hierarquia de uso, apoiada agora em razões estratégicas sobrepondo-se ao interesse particular de sesmeiros, donos e posseiros.

Voltando ao mundo da fantasia, estas determinações de El Rey de Portugal teriam poupado e poupariam até hoje centenas de milhares de jacarandás, mognos e outras essências que foram utilizadas para produzir carvão ou mesmo reduzidas a cinzas, para abrir pastagens ou transformar-se no alcalinizante mais caro que a agricultura já conheceu. Eliminar a acidez da terra com cinza de jacarandá não parece boa economia, embora a lei permita ainda hoje.

"Terá particular cuidado de prover sobre as lenhas e madeiras, que não se cortem, nem queimem, para fazer roças, ou para outras cousas em partes que se possam excusar, porquanto sou informado que em algumas Capitanias do dito Estado, há já muita falta da dita lenha e madeiras, e pelo tempo em diante haverá muito maior, o que será causa de se não poderem fazer mais engenhos, e os que hora há deixarão de moer."14 14 Regimento da Relação do Estado do Brasil. Formação administrativa... cit. p. 663.

"Por ser informado que as matas que servem ao benefício dos engenhos de açúcar vão em muita diminuição, e sem embargo de algumas serem de pessoas particulares, convir ao bem publico conservarem-se tudo o que puder ser, (...) e que se conservassem quanto pudesse ser assim as ditas matas para o beneficio dos ditos açucares, como das madeiras para navios e outras fábricas, (...). Fui informado de que naqueles Estados são perdidos alguns engenhos, e outros são ocasionados a isso, por falta de lenha para o seu meneio (...) e algumas pessoas que não tem engenhos, tendo terras de lenha perto dos que as tem, as mandarem roçar e semear nelas mantimentos."15 15 Regimento Gaspar de Souza. 1612. ibidem p. 425.

Para a produção de açúcar, esteio econômico da Colônia, era claramente necessário garantir o fornecimento de lenha aos engenhos. Dada a grande quantidade de lenha requerida, e das óbvias dificuldades de transporte, fazia muito sentido proteger e conservar as reservas florestais próximas dos engenhos. Esta questão traz-nos à mente os problemas de abastecimento da siderurgia a carvão vegetal, mas deixemos para adiante as nossas observações.

"Logo que entrei em Alemanha, e vi com que cuidados se tratam ali os bosques (...) pedir-lhe instantemente quisesse fazer com que se não concedesse a ninguém um só palmo de terra, fosse para minerar, e arruinar mais as minas, apenas descobertas; fosse para cultivar, ou o que vem ao mesmo, para destruir-lhes os bosques."

"Administração das matas e os rendimentos, que delas vêm, aos soberanos alemães, seja na arquitetura das minas, seja nas fundições dos metais, constitue um ramo muito atendível das suas finanças, e anda sempre unida à administração das minas, sem as quais estas matas colocadas nas montanhas, e no interior dos seus Estados lhes não seriam da menor utilidade. Será necessário pois unir nos países mineiros à administração das minas às dos bosques: mandar para elas homens peritos, que ajuntem aos conhecimentos metalúrgicos, os botânicos, que vigiem sobre a conservação dos bosques, por ora livres, e que eles venham para o futuro a ser de mais utilidade à Coroa do que tem sido."

"Com a abundância de carvão, que podemos ter, a não se continuar na destruição dos bosques (...) não lhes venha a vender Nossa Magestade o Ferro por muito mais da metade do que o vendem os fabricantes europeus."16 16 Esta citação difere de todas as demais apresentadas neste trabalho por não ser um Regimento da Administração Colonial mas, sim, uma carta de Manuel Ferreira da Camara (Intendente Camara) em 1798 ao Rei de Portugal. Carneiro de Mendonça, Marcos. O Intendente Cumaru. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958. p. 58,60.

Mais uma vez, vemos a política de utilização dos recursos florestais condicionada a interesses sociais, ao invés de ser ditada pelos desígnios erráticos de seus proprietários. A exploração das minas e das fundições seria coordenada por uma autoridade única com jurisdição sobre a exploração forestal.

Até hoje, a política de siderurgia a carvão vegetal não foi consolidada com a política florestal nas áreas de potencial siderúrgico. Nem sequer sabemos se há um mínimo de compatibilidade entre as duas. Não conhecemos tentativas de zoneamento determinado pelas necessidades da siderurgia.

Nesta seção pudemos ver que diversas madeiras merecem usos diferentes e que há uma clara hierarquia na sua utilização. Estamos por aprender esta lição.

C) Politica de manejo florestal. No corte de nossas matas, o machado pode ser afiado, mas o lenhador é cego: se é madeira, que venha para o chão, e nada escapa. Há muitas maneiras de se explorar uma floresta e algumas são definitivamente piores do que outras. A legislação colonial mostra-nos que este fato tão elementar já era então bem conhecido.

Examinaremos, inicialmente, a caracterização do manejo florestal como uma ciência que deve ser cuidadosamente estudada.

"Sendo sumamente necessário o conhecimento da physica das árvores para que não aconteça fazer-se o corte em tempo incompetente, ou em ocasião em que os paos estejam em princípio de ruir; o intendente tomará a este respeito todas as cautelas necessárias, valendo-se dos precisos exames, e d'aquelles conhecimentos que as pessoas antigas e práticas do paiz e desta matéria pela sua experiência puderam sugerir (...) determino que façais annualmente plantar a quantidade possível daquelas árvores mais próprias para delas depois de estarem no seu devido crescimento fazerem os cortes (...) quando esteja no sazão conveniente para se cortar."

"Uma informação sobre os lugares mais fartos de arvores de construção náutica, e sobre os lugares mais próprios para a plantação d'essas árvores, demanda um conhecimento miúdo e bem verificado tanto aos indivíduos da espécie vegetal que fazem a opulência da botânica aplicada e industrial (...)."17 17 Carta régia e plano sobre os cortes das madeiras de construção (1809). RIH, v. 6. p. 464; Correspondência, J. Thomas Henriques, Presidente da Província do Pará (1844). RIH, v. 7. p. 346.

Além de deixar clara a noção de que a exploração florestal é uma ciência, as citações acima deixam entrever as preocupações técnicas referentes ao período do ano em que se deve fazer o corte, bem como das perdas resultantes de cortes tardios, quando a árvore já apresenta sinais de decadência. Não parece que nos dias de hoje se observem com freqüência preocupações equivalentes.

"E toda pessoa que tomar mais quantidade de pau de que lhe for dado licença, além de o perder para minha fazenda (...) e passando de cem quintais morrerá por ele, e perderá toda a sua fazenda."

"Para que se não corte mais quantidades de paus de que eu tiver dado por contrato, nem se carregue a cada Capitania, mais do que boamente se pode tirar dela; hei por bem e mando que em cada um anno se faça repartição da quantidade de pau que se há de cortar. (...) Se terá respeito do estado das matas de cada uma das Capitanias, para lhe não carregarem mais nem menos paus que convém, para o benefício das ditas matas."18 18 Regimento do Pau-Brasil, formação administrativa... cit. p. 364.

"Os meos mais úteis, não só para a conservação de todas estas matas mais ainda para a regeneração d'ellas (...) são o de evitarem os roçados nas grossas matas (...) não se abrindo nelas situações novas (...) não se precisa outra providência (...) por ser a secupiramerim e acary, madeiras de maior augmento. Continuando estas providências as matas irão cada vez em maior augmento, e nunca poderá haver falta n'ellas, por serem os roçados e os fogos que nelles se ateam os que causavam maior ruina."19 19 Relação das Matas das Alagoas. RIH, p. 516.

"Os antigos cortes de pau Brasil (...) foram destruídos pela falta de método com que se fizeram estes cortes, chegando a indiscreta ambição d'aquelles moradores a arrancar as raízes de muitas árvores, para se aproveitarem do preço (...)."20 20 Ibidem, p. 508.

Está assim aplicada às matas a mesma idéia que rege o controle da caça e pesca; cada espécie tem sua capacidade de regeneração; não faz sentido tentar subtrair mais do que pode ser justificado por esta capacidade de regeneração; repare-se que um regimento fala do que se pode "boamente tirar dela". Por outro lado, manda que não se corte "nem mais nem menos pau para o que convém para o benefício das ditas matas". É curioso notar a justa preocupação de não se tirar da mata menos do que ela pode produzir. Os recursos naturais não são patrimônio histórico, nem monumentos nacionais, mas sim um organismo vivo que deve ser inteligente e generosamente manejado para que possa atender ao homem.

"Por ter informação, que uma das cousas que maior dano tem causado nas ditas matas, em que se perde, e destroe mais paus, é por contratadores não aceitarem todo o que se corta, sendo bom, e de receber, e querem que o todo que se lhes dá seja roliço e maciço, do que se segue ficar pelos matos muitos dos ramos e ilhargas (troncos) perdidas, sendo todo ele bom e conveniente para o uso das tintas: mando a que daqui em diante se aproveite todo o que for de receber, e que não se deixe pelos matos nenhum pau cortado, assim dos ditos ramos como das ilhargas, e que os contratadores o recebem todos."21 21 Regimento do Pau-Brasil, Formação administrativa... cit. p. 364.

Neste trecho da legislação emergem dois pontos muito importantes que parecem sugerir um dos aspectos mais cruciais da técnica de manejo florestal. Se de uma mata são selecionados para o corte somente os paus "roliços e maciços", em pouco tempo, esta mata se tornará um refugo, contendo apenas madeiras de má formação. E se a regeneração da floresta se der com as sementes daquelas madeiras que restaram, haverá então uma inevitável tendência para a degeneração da composição da mata. Haverá, cada vez mais, madeiras de má qualidade, paus tortos e inservíveis. As espécies indesejáveis ou menos interessantes para o aproveitamento industrial predominarão cada vez mais nessas matas. A obrigatoriedade de desbastar a mata, cortando madeiras boas e más por igual, é uma das peças básicas da conservação dos recursos naturais.

Em segundo lugar, para aqueles que já passaram por matas destruídas no estado do Espírito Santo, este artigo da lei não poderá deixar de parecer particularmente atual. É inacreditável a quantidade de madeira cortada e jamais retirada ou utilizada que jaz ao pé de sua raiz, a apodrecer pelos anos afora. Igualmente, a obrigatoriedade de utilização do subproduto não poderia ser preceito mais sadio de aproveitamento de recursos florestais.

"A causa de se extinguirem as matas do dito pau, como hoje estão, e não tornarem as arvores a brotar, e pelo mau modo de como se faz um corte, não lhe deixando ramos e varas, que vão crescendo, e por se lhe por fogo nas raízes, para fazerem roças: (...) e que se nos ditos cortes se tenham muito tento à conservação das arvores, para que tornem a brotar, deixando-lhes varas e troncos com que os possam fazer, e os que o contrario o fizerem serão castigados com as penas que parecer ao julgador." (1605)22 22 Ibidem, p. 364. 365.

Novamente aqui, percebe-se com clareza meridiana a compreensão que já se tinha das técnicas de manejo florestal. Não é assim que procedemos hoje, não é assim que a lei regula o desmate de nossas reservas florestais.

"Para maior segurança da conservação dos sobreditos páos de lei e porque o bem publico exige o coarctar-se a liberdade de qualquer assolar e sepultar para sempre a ferro e fogo tão preciosos thesouros, quaes são as grandes mattas que a Natureza levou séculos para formar, nenhum dos sobreditos possuidores de terras poderá, debaixo de qualquer causa e pretexto que for, derrubar e incendiar aquellas mattas e arvoredos que se chamam e forem repultadas mattas virgens, ainda que nellas se achem poucas madeiras de lei, com a comminação da pena pecuniária (de 50$000 pagas da cadea) em dobro applicando-se a metade delia para a Fazenda Real pelo prejuízo que recebe o incêndio dos páos de lei, cuja quantidade não pode constar para o incendiário ser também multado no seu justo valor; e a mesma pena pecuniária será quadruplicada e applicada do mesmo modo se alguma pessoa incendiar voluntariamente qualquer porção das mattas reservadas para os reaes cortes."23 23 Providências interinas para a conservação das mattas e páos reais da Costa desta Capitania (Capitão General Mello Castro). Documentos interessantes. São Paulo, Archivo do Estado de São Paulo, 1915. v. 44, p. 172-3.

A legislação do século XVII reflete de forma indiscutível a percepção de que o fogo prejudica a fertilidade e a capacidade de regeneração da mata. Não é muito lisonjeira para nós a comparação entre as leis que temos hoje e as que tivemos há quase três séculos.

"Porque muito mais importaria menos engenhos comi lenhas bastantes, que haver mais com falta de lenha, e consumir-se de maneira que venha a faltar a todos, e perder-se tudo."24 24 Regimento Gaspar de Souza, ibidem, p. 425; Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 789. A primeira citação é uma repetição com pequenas modificações de um regimento anterior, (veja p. 26. 27.)

Nestes artigos neta-se uma preocupação pela prioridade do interesse social sobre o individual. Dá-se ênfase à preferência por uma política a longo prazo. A localização dos engenhos e a distância deles entre si deverá prever não a operação imediata e afoita, apoiada nas matas existentes, mas sim à sua existência continuada, garantida pelo bom manejo do desbastamento das matas e pela capacidade de regeneração das florestas. Insiste-se para que não seja utilizada para roça as terras próximas dos engenhos e também para que os engenhos adotem técnicas de desbaste, ao invés de devastarem progressivamente círculos concêntricos de raio cada vez maior.

Talvez estas idéias pudessem servir de pano de fundo para uma discussão da política de operação de altos fornos a carvão vegetal. Qual a distância mínima ótima entre a mata fornecedora de madeira e os fornos? Qual a possibilidade de as matas circunvizinhas serem regeneradas na mesma taxa em que se consome o carvão?

D) O uso da terra. Mais uma vez podemos notar a preocupação com as conseqüências de longo prazo, no seguinte trecho das Ordenações Filipinas:

"E achando que não são terras para dar pão nem outros frutos, ou que não durarão em os dar, que dando-se de sesmaria fariam um grande impedimento ao comum proveito de todos (...) não os dêem de sesmaria."

"E quanto as roças que se por temporadas podem fazer nos matos, ou maninhos dos lugares, que não são para durarem lavoura, por fraqueza da terra, onde estão mais, que um anno, dous, ou tres, (...) e se acharem que queimando-as, rompendo ou cortando os ditos matos, ou arvores, será dano geral, ou a alguns em particular (...) não dêem as ditas terras para roças."25 25 Ordenações Filipinas, ibidem, p. 74, 75.

Se as terras não são de boa qualidade ou se sua fertilidade é aparente ou meramente transitória, que não se transforme uma mata em roça, pois, melhor é ficar com uma boa mata do que com uma roça abandonada após poucos anos. Os peritos da FAO repetiram estas advertências, tão bem formuladas nas Ordenações Filipinas, no que toca à distribuição de sesmarias, aplicando-as ao caso da Transamazônica. Mas não prevaleceram nem os antiquados conselhos dos legisladores filipinos e nem as opiniões técnicas dos peritos da FAO. Ao longo da Transamazônica, as florestas foram substituídas por explorações agrícolas de produtividade inacreditavelmente alta nos primeiros anos. Pode-se antever, contudo, que dentro de curtíssimo período de tempo, se esgotará a fertilidade de solo e essa região se transformará, quando muito, numa pastagem.

Atraídos pela ilusão da fertilidade, os colonos da Transamazônica metamorfoseiam em deserto, esplêndidas florestas que por muitos e muitos anos poderiam produzir boas essências.

E) A propriedade da terra e seu uso. A legislação das sesmarias mostra-nos uma clara preocupação com o bom uso da terra, com o esforço dedicado ao seu cultivo e suas possibilidades do sesmeiro em utilizar toda a terra que possui.

"E porquanto algumas pessoas deixam perder seus olivais e colher mato, por não os quererem adubar, nem roçar, e para lhos não pedirem de sesmarias, escavam, ou cultivam algumas oliveiras e não querem roçar os matos; e outros que têm terras para dar pão, as deixam encher de grandes matos, e soverais, e por lhos não pedirem, lavram um pedaço de terra, e deixam toda a outra; e alguns deixam perder as vinhas, e tornar em pousios, e adubam umas poucas de cepas em um cabo, e outras em outro, e alegam que as aproveitam; mandamos que os donos de tais bens, sejam requeridos, e lhe seja assinado termo, a que adubem os ditos olivais e vinhas, e as terras lavrem, e semeiem as folhas, segundo o costume da terra. E se assim não o fizerem, passado o dito termo, as dêem de sesmarias."

"E se acharem que as terras são tais, que, sendo rotas e aproveitadas, ou lavradas, e semeadas, darão pão, vinho, azeite, ou outros frutos, e que durarão em os dar a tempos, ou a folhas, ou em cada um anno e que não farão grande impedimento ao proveito geral dos moradores os pastos dos gados, criações, e logramentos da lenha, e madeira para suas casas e lavouras, dêem os ditos maninhos de sesmarias; porque proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão, e dos outros frutos."

"(...) obrigando aos que tiverem terras de sesmarias, que as cultive e povoe, conforme as obrigações com que lhes foram dadas, e aos que as não cumprirem se tirarão e se darão a quem as cultive e povoe, na repartição das ditas sesmarias fareis guardar o regimento para que se não dê a uma pessoa tanta quantidade de terra que não podendo povoá-la nem cultivá-la, redunde em dano do bem publico e aumento do Estado."26 26 Ordenações Filipinas, ibidem, p. 73, 74; Regimento Gaspar de Souza, ibidem, p. 425.

Aí está, numa linguagem direta, aquilo que se poderia considerar como dois princípios sadios de reforma agrária. O interesse social ("abastanças") prevalece sobre o capricho individual ou desleixo na exploração da terra. E, mais ainda, se previne o legislador contra tentativas de simulação por parte do proprietário ou sesmeiro a quem faltasse interesse pelo cultivo sério da terra.

Igualmente pertinente é o segundo ponto relativo à quantidade de terra que o proprietário pode ou consegue utilizar produtivamente. Não se fala em latifúndio ou minifúndio, não se fala em tamanho de propriedade! mas sim da extensão que consegue efetivamente cultivar quem está de posse da terra. A propriedade não deve ser grande nem pequena, mas simplesmente não pode exceder a capacidade de utilização demonstrada pelos sesmeiros.

F) A consciência da exploração predatória. De nada serviram os documentos da administração colonial, muitos deles revelando legítima preocupação e compreensão dos problemas de conservação ecológica. Já nestes mesmos documentos podemos entrever a sua inocuidade como norma para efetivamente regular o uso dos recursos naturais.

"Sendo informado das muitas desordens que há no. sertão do Pau-Brasil, e na conservação dele (...)"

"Fui informado que das desordens que se cometiam no corte dele, se seguiam muitos inconvenientes, e em breve tempo se extinguiria de todo se se não atalhasse (...)"

"Por ser informado, que as matas que serviam ao benefício dos engenhos de açúcar, vão em muita diminuição, sem embargo de algumas serem de pessoas particulares (...) tomassem desta matéria a informação necessária sobre o remédio, que nisto se deve dar e que se conservassem quanto pudesse ser, assim para o benefício dos açucares, como das madeiras para navios e outras fabricas."

"Nesta Capitania (da Bahia) já não há aquela abundância de madeira que havia em outros tempo; porque as infinitas derrubadas, que no espaço de tantos annos se tem feito, por causa das plantações, e para as embarcações da Coroa, e dos particulares, são causas de estarem destruídas as matas, de sorte que já se não encontra pau de construção em todo o Recôncavo em menos distância de quatro léguas dos rios navegáveis, por onde se possam conduzir para esta cidade (...). Mas não é possível executar-se aqui a sua disposição inteiramente; porque já não se acham madeiras de construção em matas próximas aos rios."27 27 Legislação do Pau-Brasil. ibidem, p. 363 Regimento Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 791. Na Relação das matas de Alagoas (1809). RIH, v. 7, p. 508 , 513, podemos ver advertências do mesmo teor.

Se nos estendêssemos ao Império, veríamos tantas prescrições quantas lamentações pelas "peregrinações desregradas e excessivas". Em meados do século passado, o Dr. Affonso Rendu Aibeyrolles e o Pe. Caetano da Fonseca comentam sobre o erro de não se deixar reservas de matas no topo dos morros e nas vertentes. Como conseqüência das queimadas e do prolongamento da cultura do café a estas partes, estava precipitando-se o efeito da erosão e perda de fertilidade do solo. Foi observado que nas regiões da província das Minas Gerais onde se havia eliminado estas reservas, a produtividade das colheitas de milho vinha decrescendo e o regime pluvial, modificando-se em comparação com outras regiões e com períodos anteriores, a duração da estação seca estava se ampliando.

Não nos deteremos no século XIX pois nosso objetivo não é tratar exaustivamente o assunto, mas sim ilustrar como é antiga e nítida a sua compreensão. Para isto, o período colonial oferece-nos evidência mais eloqüente.

"Esta terra Senhor (...) muito chan e muito formosa (...) de tal maneira graciosa que, querendo aproveitar dar-se-á tudo."28 28 Carta a El Rey Dom Manoel. Rio de Janeiro, Sabiá, 1968. p. 93, 94. Pero Vaz de Caminha, que tão bem descreve nossa terra, não podia prever que havia algo que plantando não dava: tentou-se desde o princípio semear aqui o respeito pelos mecanismos inexoráveis da natureza, da harmonia das coisas e dos seres, mas esta semente não frutificou. Esta idéia, esta semente imaterial não encontrou o seu nicho ecológico, na terra de Vera Cruz.

5. O MITO ATÁVICO DA IMPUNIDADE ECOLÓGICA

A imensa extensão territorial do Brasil, a despeito das admoestações do Regimento Colonial, encorajou o uso predatório dos recursos. Herdamos dos nossos colonizadores um total desrespeito pela natureza e fabricamos o mito de que desenvolvimento é algo que se dá em duas fases: destruição e reconstrução. É ilustrativo deste mito, desta infeliz herança, que o símbolo do desenvolvimento passou a ser um trator destruindo alguma coisa. De duas décadas para cá, não há programa de governo, não há plataforma desenvolvimentista que não inclua uma fotografia de um trator destruindo uma floresta. Por que para nós desenvolvimento significa luta contra a natureza, e não trabalho com a natureza?

Propomos como hipótese de trabalho, que um dos maiores problemas a serem enfrentados no futuro próximo será o de destruir o mito atávico da impunidade ecológica.

Nosso País é extenso e está por ser desbravado. A fronteira econômica é móvel. Os brasileiros estão desafiados a fazê-la avançar. Foi isso que nos ensinaram; aprendemos nas escolas, aprendemos nos jornais e aprendemos nos documentos oficiais.

Somos descendentes de gente cuja própria experiência de vida ensinou que, estragando a natureza um pouquinho onde estamos, mais adiante há uma reserva intocada e a ninguém preocupa se o deserto econômico, que vai ficando para trás, seja cada vez maior. Somos herdeiros de um país infinito. Acreditamos nisso.

A natureza era hostil e escondia os inimigos. Para proteger-se dos índios e salteadores, punha-se fogo ao mato, à beira das estradas, para que a floresta não pudesse mais escondê-los, para que fosse desassombrada. Incalculável é o patrimônio florestal que ardeu por meses a fio às margens dos caminhos de penetração para a Província das Minas Gerais. O fogo era defesa, era proteção contra emboscadas. Persiste até hoje o hábito de por fogo no capim ralo que substituiu estas matas - duvidoso método de reduzir a acidez do solo. E não só duvidoso como incontrolável, pois quem há de atender para que o fogo se restrinja ao pasto de nossos incendiários congênitos? Quem viaja de avião à noite em Minas Gerais, durante a seca, dificilmente teria paciência necessária para contar o número de incêndios florestais sobrevoados.

Pelo menos no estado de Minas Gerais onde já vivemos, a palavra mato adquire conotações sugestivas no nosso desrespeito para com a natureza. Mato em Minas é pejorativo, quando se diz só tem mato, esta é a condenação fatal do local descrito. Na Escola Superior de Agricultura de Viçosa, era comum, nos idos da década de 40 , dizer-se a um aluno que ele vem do mato e obter como resposta: "Não, minha fazenda está toda formada." Isto significa que não tinha mais nenhum mato.

Pior do que desprotegidas por lei, nossas reservas florestais, ao fim do século, foram, em boa parte, destruídas por força da lei. Demonstrando uma ingenuidade que os legisladores filipinos explicitamente denunciaram, foi criado um imposto sobre terras improdutivas; e por terras improdutivas se entendiam florestas. Previsivelmente (pelo menos para um legislador filipino), para contornar a legislação, muitas matas foram incendiadas e a agropecuária, simulada. Em muitos casos, pequenas roças ou gado quase simbólicos refletiam a inadequação da terra para tais fins. Em outros, os proprietários simplesmente não tinham o empenho, o capital ou o interesse para uma exploração agrícola ou pecuária séria. A agricultura desleixada ou simulada era um mero subterfúgio para pagar menos impostos.

Esta é portanto a nossa herança. Descendemos de um caboclo que viu na natureza um inimigo hostil a ser pilhado e perseguido, empurrando, Brasil adentro, uma fronteira onde ninguém via nem tentava ver o fim. Atávicamente acreditamos na impunidade do crime contra a natureza.

O renascer das preocupações com o meio-ambiente não vem do povo mas sim de uma elite de governantes e governados. Com os sentidos aguçados pelos diálogos internacionais sobre o meio-ambiente, já não conseguimos mais ser cegos e surdos para os deslizes que se vêm cometendo no trato com a natureza.

Mas, condicionados pela herança atávica, falta-nos a visão histórica, falta-nos a perspectiva. Atacamos o problema como marinheiros de primeira viagem.

Começa assim a surgir um conjunto de legislação bem intencionada, sincera, mas quer-nos parecer que estamos cometendo dois enganos. Permitimo-nos o deslize de ignorar a história duas vezes.

Ignoramos, juntamente com a compreensão dos processos biológicos, toda a experiência legislativa dos nossos antepassados. Foi exatamente isto que tentamos demonstrar nas seções anteriores deste artigo.

E ignoramos a segunda lição da história: legislar não basta. Tentamos demonstrar que a legislação que tivemos era mais do que suficiente para resolver praticamente todos os problemas de conservação do meioambiente que encontramos hoje. Contudo de nada valeu. Mais difícil do que o desafio de conceber boas leis - estas já as tivemos - é fazer cumpri-las por um povo para quem a lei natural aponta em direções opostas.

6. OS CUSTOS E NÃO-CUSTOS DO CONTROLE ECOLÓGICO

"Ecologia é coisa para país rico, para nós há outras metas mais prioritárias."

"Controlar poluição é caro, nós somos um país pobre."

"A pior poluição é da pobreza."

"O Brasil tem vantagens comparativas em indústrias intensivas em poluição."

Em 1970 tivemos uma experiência interessante. Havendo regressado dos EUA, onde as discussões sobre ecologia já mobilizavam as donas de casa de classe média, fomos surpreendidos por uma reação de perplexidade e ceticismo por parte de alunos de um curso sobre desenvolvimento econômico ministrado a economistas em nível de pós-graduação, em que se inclui um capítulo sobre política de conservação do meio-ambiente, especialmente aqueles que, ao longo do curso, demonstravam maior preocupação com os problemas sociais. A sua argumentação alicerçava-se em dois pontos: primeiro, o controle do meio-ambiente é caro, competindo, portanto, com metas que mais diretamente afetariam o bem-estar da população; e, em segundo lugar, o tema é de importância subalterna, um divertissement para diletantes e aristocratas.

O transcurso do tempo revelou que estes argumentos correspondiam a uma amostra representativa da oposição usual contra as preocupações com o meio-ambiente. Acreditamos que ambos os argumentos têm uma falha essencial. Não trataríamos de mostrar que a sua negação é verdadeira - a conservação do meio-ambiente não é nem cara nem sem relevância; isto seria mais difícil, e é desnecessário fazê-lo.

Esta é uma questão estritamente empírica, isto é, trata-se de uma afirmação a respeito do que é a realidade, uma descrição de alguma coisa que acontece. Por conseguinte, não é uma questão que se resolva afirmando ou pontificando. As questões de fato se resolvem consultando os fatos, consultando a realidade, examinando-a metódica e sistematicamente. E como isto não foi feito, não podemos afirmar que tais programas são irrelevantes e que suas soluções são caras.

Mais ainda, não há qualquer indicação ou sugestão de que possa haver uma resposta que seja comum às duas situações. Há controles caros e baratos, há problemas importantes e irrelevantes do controle do meio-ambiente. Para cada caso haverá uma resposta diferente.

Para a imensa variedade de casos, a variedade de respostas não poderia ser menor. Há situações elementaríssimas de controle de poluição, onde, pela comodidade, caprichos ou benefícios pecuniários de poucos, muitos são prejudicados. Há o caso ridiculamente simples da poluição sonora dos veículos automotores que se utilizam de escapamento modificado e, portanto, mais caros. Proibir fabricação e uso destes malditos acessórios, significa custos menores para o proprietário do veículo.

Por não utilizar processos industriais ou filtros adequados, algumas indústrias podem produzir à comunidade ou a algum grupo particular, danos ou prejuízos que em muito excedem o custo de tal equipamento preventivo. Note-se bem, estamos muito freqüentemente lidando com números; os filtros têm custo conhecido e com alguma imaginação é possível quantificar os danos e mal-estar causados. Quem já se preocupou em calcular o prejuízo causado pela fumaça da Mannesmann, em Belo Horizonte, ou, do arsênico jogado ao rio pela Mina do Morro Velho?

Em outros casos, trata-se de impedir que, por ignorância ou miopia, as pessoas destruam a sua própria fonte de sustento. A continuar o uso da rede balão em braços de mar e rios, os maiores prejudicados com a eliminação da fauna submarina serão estes mesmos pescadores; nem serão seus filhos, tão rápido é o poder de destruição da rede balão. Neste caso, trata-se de trocar pequenos aumentos na produtividade hoje, pela infertilidade das águas em poucos anos.

A questão das técnicas de manejo florestal não é uma discussão de princípios, mas sim de cálculo econômico. Há quem afirme que os pinheirais do Sul do Brasil, Se explorados com técnicas apropriadas de manejo (insistimos, já conhecidas à época do descobrimento), poderiam ter fornecido a mesma metragem cúbica que deles foi extraída, sem que um pinus sequer, fosse plantado pela mão do homem; e poderíamos ter, como reserva florestal, o mesmo acervo que tínhamos ao dia do descobrimento. Mas, qual o custo do manejo, comparado com o corte puro e simples? Quem sabe? Quem já pesquisou?

Suponha-se um programa muito simples. Temos três matas, uma é devastada e abandonada para que cresça novamente. A outra é devastada também pelo mesmo método habitual e reflorestada pela mão do homem. Uma terceira mata é periodicamente desbastada, seguindo, vamos supor, para ser bizantinos, os preceitos indicados pela legislação do pau-brasil. Qual destes três métodos é economicamente mais produtivo? Como não temos respostas para estas perguntas, não podemos afirmar que o controle ecológico é caro ou barato. Só muito recentemente um professor americano da Universidade de Viçosa iniciou alguns experimentos neste sentido. Mas, a legislação brasileira tem ignorado a existência de técnica de manejo florestal. A primeira portaria do IBDF a admitir técnicas de manejo para florestas naturais data de 1973.29 29 Portaria normativa DC n.º 1 do IBDF.

Qual o preço social do carvão vegetal? Se o clima muda, os rios secam e a terra se lateriza, o preço pago ao carvoeiro (que meramente remunera o seu esforço físico e mais uma estimativa de mercado da mata), subestima em muito o custo social deste carvão. Parece uma hipótese plausível afirmar que o custo social do carvão vegetal vai depender de como é cortada a mata. Cada estilo de corte ou manejo permite à floresta um ritmo de regeneração. Ao invés de cortar e tocar fogo, podemos deixar intactas as raízes com alguns palmos acima do chão, podemos deixar alguns galhos, podemos deixar algumas árvores, cortar 70%, cortar 50%, cortar 20%, etc. Cada uma destas alternativas gera um custo social do carvão, porque o ritmo de regeneração da mata será distinto (variando também com a tipologia florestal) e como cada uma delas tem o seu custo, resta saber qual é a alternativa mais adequada. Mas isto não é assunto para especulação e sim para pesquisa metódica.30 30 Carlos E. Thibau e David Azambuja calcularam uma capacidade máxima de 5 milhões de toneladas de gusa produzidas a carvão vegetal em Minas Gerais em 1980. Sem embargo, não há evidência clara de que estes cálculos sejam levados em consideração nas autorizações para operar altos fornos. ( Diretrizes para o problema do carvão vegetal na siderurgia, Ministério da Agricultura, IBDF, 1973.)

Haverá casos em que o controle é caro ou a restauração do equilíbrio anterior é proibitiva. Mas há que demonstrá-lo. A eliminação de 100% dos poluentes industriais é, muitas vezes, técnica e economicamente impossível. Não deverá ser isto razão, em geral, para renegar a industrialização. Os motores de combustão interna, especialmente a gasolina, emitem, além do monóxido de carbono, outros resíduos nocivos à saúde. Isto não será razão para não se usar automóvel. Raramente, porém, estamos diante de uma situação de tudo ou nada. E tampouco cabem posições a priori. Se a fábrica polui, temos de perguntar se é possível deixar de poluir, quais os custos dos processos não poluidores, quais os prejuízos resultantes?

Contudo, nem todos os prejuízos da poluição ou desequilíbrio ecológico podem ser medidos com números ou avaliados em moeda. Não obstante, nem por isso passam a ser irrelevantes ou menos importantes. Quanto vale o ar puro? Quanto vale a vista? Quanto vale o silêncio? Quanto vale o prazer de um banho de mar em água limpa? Quanto vale trocar o cheiro de óleo diesel queimado por uma brisa vinda de um jasmineiro em flor?

Cabe perguntar, e não tomar uma resposta qualquer como axioma. O desenvolvimento pode implicar certos sacrifícios do meio-ambiente. Mas não podemos afirmar, a priori, que isto tem que ser assim e que só há uma maneira de fazer as coisas. É simplista e tolo supor que há apenas uma relação de dicotomia entre desenvolvimento e equilíbrio do meio-ambiente: ou um ou outro. Cada fábrica tem suas alternativas técnicas, com seus respectivos custos, diversas possibilidades de localização e, cada um destes fatores tem que ser confrontado com as conseqüências da sua adoção. Diante deste quadro que, em geral, não é simples, cabe decidir por uma alternativa que represente um compromisso aceitável entre os diversos fatores em jogo.

Comparando este elenco de possibilidades com seus custos e conseqüências, há um caso especial que merece ser lembrado. É o das opções irreversíveis. Se optamos hoje por um ar um pouquinho mais sujo, esta em geral não será a solução mais inteligente, mas podemos mudar de idéia mais adiante e adotar uma política antipoluição vigorosa; assim se passou em Londres. Mas, se por desleixo ou negligência, permitimos o desaparecimento de uma espécie animal, a baleia, digamos, não podemos mudar de idéia mais adiante. Onde criamos um deserto, torna-se difícil convertê-lo em alguma outra coisa. Se destruímos a vida aquática, a sua regeneração é demorada, quando não, impossível. Quando decidimos que nossos filhos, netos e bisnetos jamais poderão ver ou comer a carne do peixe-boi, estamos tomando uma decisão para os que nos sucederão, e portanto, uma decisão mais séria. É paradoxal ver chamados de saudosistas, pessoas que relutam em tomar decisões que privarão as gerações futuras de um recurso natural, de uma obra de arte ou de um contorno feliz da paisagem. Ao contrário dos saudosistas, estas pessoas estão voltadas para o futuro e não para o passado. Não devemos confundir caprichos sentimentais com decisões sobre o mundo que teremos em alguns anos e que terão as gerações que nos sucederão.

Em suma, em todas as nossas interferências com os processos biológicos, temos que, seriamente, indagar a respeito dos mecanismos de equilíbrio e das possíveis conseqüências nas diferentes linhas de ações que poderemos tomar.

As posturas municipais de qualquer cidade requerem o exame prévio das plantas de qualquer obra de engenharia civil, para certificar-se de que há ventilação adequada, que condições de higiene são preenchidas e que a posição da obra dentro do terreno não contraria certas regras. Para proteger nossa própria vida e a de outros, o Código Nacional de Trânsito exige que o candidato à carteira de habilitação exiba certos reflexos, certos níveis de destreza manual e conhecimento das normas que regem o fluxo do trânsito. Para conceder um empréstimo, os bancos buscam sempre evidências concretas da capacidade de solvência do futuro credor. Bancos de desenvolvimento e agências de fomento ao crescimento exigem demonstrações da viabilidade econômica do projeto em pauta. O imposto de renda exige um elaborado sistema de comprovações para que fique estabelecida a veracidade das informações prestadas. Para ser posta no mercado, uma droga farmacêutica tem de passar por testes exaustivos para que se estabeleçam certos limiares de segurança no seu uso. Qualquer indústria de grande porte tem, no seu quadro de funcionários, algumas dezenas de pessoas cuja função é partir da hipótese de que o produto da empresa é de má qualidade, inseguro, e que as matérias-primas são deficientes, estão aquém das normas estabelecidas e que todas as peças contêm fraturas internas e que os fornecedores estão tentando passar gato por lebre; é o departamento de controle de qualidade.

Nossa proposta neste trabalho é a de que, em suas relações com o meio-ambiente, a mesma dúvida sistemática tenha de ser rotineiramente lançada. Quais as conseqüências da nossa interferência nos processos biológicos? Não podemos pressupor a impunidade, temos de demonstrá-la.

  • 4 Hamilton, V.G.T.H. Process and pattem in evolution. London, Macmillan, 1967;
  • Kormondy, E.J. Concepts of ecology. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1969.
  • 5 Storer, J.H. The web of life. New York, Signet, 1953.
  • 6 Georgescu - Roegen, E.G.N. Analytical economics. Cambridge, Harvard U. Press, 1967. p. 64-82.
  • 7 Ordenações e leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandato D'El Rei Dom Felipe. O Primeiro. 12. ed, segundo a 9Ş. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858.
  • 9 Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Conselho Federal de Cultura, 1972.
  • 16 Esta citação difere de todas as demais apresentadas neste trabalho por não ser um Regimento da Administração Colonial mas, sim, uma carta de Manuel Ferreira da Camara (Intendente Camara) em 1798 ao Rei de Portugal. Carneiro de Mendonça, Marcos. O Intendente Cumaru. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958. p. 58,60.
  • 23 Providências interinas para a conservação das mattas e páos reais da Costa desta Capitania (Capitão General Mello Castro). Documentos interessantes. São Paulo, Archivo do Estado de São Paulo, 1915. v. 44, p. 172-3.
  • 28 Carta a El Rey Dom Manoel. Rio de Janeiro, Sabiá, 1968. p. 93, 94.
  • *
    O presente trabalho inclui um exame exaustivo da legislação portuguesa de proteção ao meio-ambiente no século XVI, bem como nos regimentos coloniais do Brasil. Nesta pesquisa fui guiado constantemente por meu avô, o historiador Marcos Carneiro de Mendonça a quem devo a possibilidade deste ensaio. Carlos Eugênio Thibau leu uma versão preliminar e ofereceu sugestões valiosas. Contudo, assumo sozinho a responsabilidade pelas opiniões, omissões e enganos que possa conter o texto.
  • 1
    Título de um poema de Anna Amélia Q.C. Mendonça.
  • 2
    Em linguagem técnica, não se vê
    florestas em clímax.
  • 3
    O Parque Municipal, além de já ter sido reduzido à metade, está sendo progressivamente invadido por escolas, teatros e parques de estacionamento.
  • 4
    Hamilton, V.G.T.H.
    Process and pattem in evolution. London, Macmillan, 1967; Kormondy, E.J.
    Concepts of ecology. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1969.
  • 5
    Storer, J.H.
    The web of life. New York, Signet, 1953.
  • 6
    Georgescu - Roegen, E.G.N.
    Analytical economics. Cambridge, Harvard U. Press, 1967. p. 64-82.
  • 7
    Ordenações e leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandato D'El Rei Dom Felipe. O Primeiro. 12. ed, segundo a 9ª. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858.
  • 8
    Mas, ao mesmo tempo, é curioso lembrar que a pena máxima para o desrespeito às leis de proteção aos recursos naturais era freqüentemente o degredo para o Brasil. Não podemos pois esperar muito bons hábitos dos nossos primeiros colonizadores.
  • 9
    Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Conselho Federal de Cultura, 1972.
  • 10
    Foram incluídas também algumas citações dos volumes 6 (1865) e 7 (1866) da
    Revista do Instituto Histórico (daqui por diante abreviada
    RIH) referentes ao princípio do século XIX que não foi coberto em
    Formação administrativa do Brasil.
  • 11
    Regimento do Governo das Praças Conquistadas e que foram Conquistadas nas tndias Ocidentais.
    Formação administrativa do Brasil. cit. p. 508.
  • 12
    Regimento do Pau-Brasil. op. cit. p. 363.
  • 13
    Regimento de Andre Vidal de Negreiros, 1655, ibidem, p. 703, 704; Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 787, 789. 792. Na carta régia sobre os cortes das madeiras de construção
    (RIH, v. 6, p. 461, 463) vemos igualmente restrições ao uso do cedro, consideração útil à construção naval. Ficam também ali estabelecidas as prisões e multas para os que "transgredirem (...) cortando ou queimando paus de construção nos lugares defesos". Pela mesma forma, fica limitado o direito dos proprietários para aumentar as terras lavradas, "não se consentindo jamais poderem se alargar para as matas existentes, fazendo nas mesmas derrubadas e queimadas".
  • 14
    Regimento da Relação do Estado do Brasil.
    Formação administrativa... cit. p. 663.
  • 15
    Regimento Gaspar de Souza. 1612. ibidem p. 425.
  • 16
    Esta citação difere de todas as demais apresentadas neste trabalho por não ser um Regimento da Administração Colonial mas, sim, uma carta de Manuel Ferreira da Camara (Intendente Camara) em 1798 ao Rei de Portugal. Carneiro de Mendonça, Marcos.
    O Intendente Cumaru. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1958. p. 58,60.
  • 17
    Carta régia e plano sobre os cortes das madeiras de construção (1809).
    RIH, v. 6. p. 464; Correspondência, J. Thomas Henriques, Presidente da Província do Pará (1844).
    RIH, v. 7. p. 346.
  • 18
    Regimento do Pau-Brasil,
    formação administrativa... cit. p. 364.
  • 19
    Relação das Matas das Alagoas.
    RIH, p. 516.
  • 20
    Ibidem, p. 508.
  • 21
    Regimento do Pau-Brasil,
    Formação administrativa... cit. p. 364.
  • 22
    Ibidem, p. 364. 365.
  • 23
    Providências interinas para a conservação das mattas e páos reais da Costa desta Capitania (Capitão General Mello Castro).
    Documentos interessantes. São Paulo, Archivo do Estado de São Paulo, 1915. v. 44, p. 172-3.
  • 24
    Regimento Gaspar de Souza, ibidem, p. 425; Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 789. A primeira citação é uma repetição com pequenas modificações de um regimento anterior, (veja p. 26. 27.)
  • 25
    Ordenações Filipinas, ibidem, p. 74, 75.
  • 26
    Ordenações Filipinas, ibidem, p. 73, 74; Regimento Gaspar de Souza, ibidem, p. 425.
  • 27
    Legislação do Pau-Brasil. ibidem, p. 363 Regimento Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 791. Na Relação das matas de Alagoas (1809).
    RIH, v. 7, p. 508 , 513, podemos ver advertências do mesmo teor.
  • 28
    Carta a El Rey Dom Manoel. Rio de Janeiro, Sabiá, 1968. p. 93, 94.
  • 29
    Portaria normativa DC n.º 1 do IBDF.
  • 30
    Carlos E. Thibau e David Azambuja calcularam uma capacidade máxima de 5 milhões de toneladas de gusa produzidas a carvão vegetal em Minas Gerais em 1980. Sem embargo, não há evidência clara de que estes cálculos sejam levados em consideração nas autorizações para operar altos fornos. (
    Diretrizes para o problema do carvão vegetal na siderurgia, Ministério da Agricultura, IBDF, 1973.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Out 1975
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