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Tratamento da inflação na legislação do imposto de renda

COMENTÁRIOS

Tratamento da inflação na legislação do imposto de renda

Alfredo A. de Oliveira Roxo

Chefe do Departamento de Estudos Econômicos da Companhia Brasileira de Projetos Industriais (Cobrapi)

O desenvolvimento alcançado no Brasil pelo instituto da correção monetária, que visa atenuar distorções na economia, ocasionadas pelo processo inflacionário, tem atraído atenção internacional e é objeto, freqüentemente, de indagações e consultas por parte de outros países, interessados na eventual adoção de soluções semelhantes. Dentro do campo de atuação daquele instituto destaca-se, por sua relevância, o da tributação de resultados da empresa, através do imposto de renda.

A legislação brasileira sobre o assunto é farta, complexa e mutável. Decorridos vários anos de sua existência, surpreende verificar-se que, ainda agora, ela não se fundamenta em uma identificação nítida das deformações que a inflação introduz nos demonstrativos contábeis. Talvez se possa atribuir as freqüentes alterações a que tem estado sujeita à falta de uma conceituação teórica adequada. Sem uma orientação definida de propósitos, as modificações se fazem aparentemente ao sabor de preferências pessoais ou de conveniências momentâneas.

Para uma análise do problema há que se definir, preliminarmente, com clareza, o objetivo que deveria visar a citada legislação. No presente estudo, partimos da premissa que seria permitir à empresa deduzir do lucro, para fins fiscais, as perdas reais em que incorre, por efeito exclusivo da inflação, ou levar o Estado a tributar os ganhos reais que ocorram, também em conseqüência exclusiva do mencionado fator.

A propósito, assinala-se que a mensuração de alterações de valor, em termos reais, exige que, explícita ou implicitamente, se proceda a um confronto entre variações em um determinado período: de um lado, a variação efetivamente ocorrida, e de outro, a que teria lugar se o valor nominal do item acompanhasse estritamente a evolução da inflação. A diferença entre essas duas variações constitui, por definição, o montante da alteração do valor real do item. Assim, o aumento do valor real de determinado item ocorrerá quando a sua expressão, em termos nominais, crescer em ritmo superior à taxa de inflação. A redução do valor real acontecerá no caso inverso. Quando o valor de mercado de um item - ou o que lhe for imputado, como representativo desse último valor - evoluir em correspondência estrita com o indicador do processo inflacionário, considera-se que não houve alteração do seu valor real.

A legislação vigente - e também a que a precedeu - não observa os princípios citados na caracterização do que constitui ganho ou perda patrimonial. Lida com a elevação, em termos absolutos, dos valores nominais, quando deveria cuidar de diferenças - originárias de variações relativas, referidas à evolução de um índice geral de preços que traduza o processo inflacionário. Se o acréscimo do valor nominal diz respeito a um item do ativo, considera a legislação que a totalidade do acréscimo constitui um ganho patrimonial; se se trata de um item do passivo exigível, a elevação representa uma perda.

Algumas das contrapartidas dessas variações são computadas no resultado e outras não, indo diretamente para contas de reserva (ou do ativo pendente). A classificação em um outro grupo tem variado ao longo do tempo, não sendo claro o motivo das mudanças de critério. O anteprojeto de lei das sociedades anônimas, ora em discussão, adota ponto de vista que nos parece adequado, determinando que todas as contrapartidas dos ajustes de correção monetária sejam registradas em conta cujo saldo será computado no resultado do exercício (§ 2.º do art. 101). Entretanto, o citado anteprojeto não altera a legislação do imposto de renda, nem se preocupa em traçar normas para a determinação de alterações do valor real do patrimônio.

Os lançamentos determinados pela legislação fiscal vigente produzem efeitos que se chocam, às vezes ostensivamente, com o que nos parece deveriam ser os propósitos visados. Considere-se, por exemplo, que o saldo devedor de um débito em moeda estrangeira cresceu, em determinado período, por força de um aumento da taxa cambial - por hipótese, inferior à elevação do índice geral de preços. Em termos reais, o débito foi reduzido, o que implica aumento do patrimônio líquido da empresa. Entretanto, o imposto de renda não incide sobre esse ganho. Ainda mais, faculta-se ou determina-se à empresa deduzir do lucro, para fins de tributação, a totalidade do aumento do valor nominal do débito (§ 2.º do art. 14 do Decreto-lei n.º 1.338/74).

Eventualmente, as contrapartidas das variações do valor nominal de itens do ativo e do passivo exigível podem se compensar adequadamente, de forma a traduzir com fidelidade o fato econômico. No exemplo antes apresentado, suponha-se que o financiamento em moeda estrangeira tenha sido utilizado para a formação do ativo fixo e que este seja corrigido monetariamente, em correspondência estrita com a inflação havida. Sendo o aumento do valor nominal do imobilizado, por hipótese, superior ao acréscimo do valor nominal do débito, restaria, do confronto entre ambos os acréscimos, um saldo que representaria corretamente o aumento do patrimônio líquido da empresa.

Entretanto, o Decreto-lei n.º 1.338/74 não segue, no caso, um princípio de simetria, na classificação da contrapartida dos referidos aumentos nominais. Determina no § 2.º do art. 14 que a contrapartida referente ao aumento do débito seja computada na conta de lucros e perdas, como despesa, enquanto que a concernente ao aumento do imobilizado vá diretamente para uma rubrica de reserva, no não exigível (alínea a do item 1 da Portaria n.º 544/74).

Em conseqüência, mesmo no caso considerado, a empresa se beneficia de uma redução do imposto de renda, ao mesmo tempo que a inflação lhe proporciona um aumento do valor real do patrimônio líquido.

A tentativa de tratar o problema através da consideração de variações simultâneas do valor nominal de itens do ativo e do passivo, entre os quais haveria determinado tipo de vinculação introduz complicação desnecessária, além de não constituir, em nossa opinião, procedimento conceitualmente correto. A propósito, observamos, por exemplo, que a redução do valor real do débito de um financiamento, provocada pela inflação, independe do uso dado ao produto desse financiamento. Essa redução se verifica quer os recursos tenham sido aplicados no ativo fixo, em capital de giro ou no pagamento de uma despesa. Entretanto, até, há pouco, a nossa legislação prescrevia tratamentos diferentes para os débitos de financiamento com correção monetária em função da aplicação dada aos recursos obtidos - formação do ativo fixo ou outros usos.

O procedimento que recomendamos é considerar individualmente, para cada item ou grupos de itens do ativo e do passivo exigível, a variação de valor em termos reais, provocada por efeitos exclusivos da inflação. Segundo princípio enunciado no começo deste comentário, haveria que se confrontar, para esse efeito, de um lado, a variação do valor nominal do item, efetivamente ocorrida; e de outro, a variação que teria lugar se o valor nominal do item acompanhasse estritamente a evolução da inflação.

A diferença entre essas duas variações, em um determinado período, representaria o acréscimo (diferença positiva) ou decréscimo (diferença negativa) do valor real do item, expresso em moeda do fim do período. A grandeza indicada pode ser expressa em moeda de qualquer outro instante, mediante adequado deflacionamento (ou eventualmente, inflacionamento).

Em notação simbólica, o que foi dito pode ser expresso como segue:

V = variação do valor real do item, expressa em moeda do fim do período. V 0 = valor do item no início do período. θe = taxa de evolução do valor nominal do item, no período. θg = taxa de evolução do índice geral de preços, no período.

A conta de lucros e perdas é constituída, predominantemente, de valores de receitas e despesas que ocorrem, em geral, ao longo de todo o período. Se admitirmos que tais receitas e despesas se concentram no meio do período e escolhermos esse instante para referência de todos os valores, o termo V passa a ter a expressão que segue:

O multiplicador utilizado para deflacionamento para o meio do período, de valor referido ao fim do período, considera variação linear da inflação.

A variação do valor real de direitos e obrigações gerados ao longo de um determinado período é calculada de forma semelhante à indicada. Apenas, no caso, o intervalo para cômputo da variação é o que vai desde a geração do direito ou obrigação até o fim do período.

As disposições da legislação vigente para o cômputo dos efeitos da inflação sobre o capital de giro, como definido no Decreto-lei n.º 1.338/74, incidem também no erro fundamental de considerar variações de valores nominais, em lugar de variações em termos reais. Mas, mesmo no propósito enunciado, incorrem em três impropriedades:

1. Uma diz respeito ao fato de que não distinguem, para o fim indicado, elementos que são afetados diferencialmente pela inflação. Os blocos de valores aos quais se aplica um mesmo fator de correção possuem, em geral, componentes heterogêneos entre si, no particular. Considere-se, por exemplo, um desses blocos, o passivo exigível. Freqüentemente ele contém valores cuja expressão real não se altera com a inflação (saldo devedor de financiamentos em moeda nacional, com cláusula de correção monetária indexada); valores que se degradam, em termos reais, proporcionalmente à desvalorização da moeda (numerário em caixa e depósitos à vista, saldo devedor de empréstimos em moeda nacional, sem cláusula de correção monetária e contas a pagar); e, ainda, valores cuja expressão real é função da taxa cambial (saldo devedor de financiamentos em moeda estrangeira).

2. Acresce ainda - e esta é a segunda impropriedade - que o Decreto-lei n.º 1.338/74 determina, em outras disposições, a correção monetária de alguns desses valores, superpostamente à do capital de giro.

3. A terceira impropriedade está na tentativa de lidar simultaneamente com blocos de valores, do ativo e do passivo, admitindo-se, implicitamente, determinadas compensações dos efeitos da inflação sobre eles. Mostraremos, a seguir, que as condições a serem atendidas para que se atinja o objetivo visado pela legislação, de mensurar as alterações de valores nominais ocasionados pela inflação - objetivo inadequado, conforme consignado anteriormente - somente ocorrem excepcionalmente.

A figura 1 ilustra a forma de cálculo do capital de giro próprio (positivo), conforme o Decreto-lei n.º 1.338/74.


De acordo com o § 2.º do art. 15, do citado decreto, o montante para manutenção do capital de giro próprio é igual ao bloco A, do ativo, multiplicado pela taxa de inflação no período (medida pela variação de valor das ORTN). Implicitamente, a legislação está admitindo que o bloco A seria constituído, integralmente, de valores cuja expressão nominal não se altera com a inflação. Daí o montante da manutenção coincidir com o total da desvalorização a que estaria sujeito aquele bloco, na hipótese indicada.

Simultaneamente, a legislação está admitindo que se compensam exatamente os efeitos da inflação sobre os blocos B e C.

A situação em que ocorre capital de giro próprio (negativa) é mostrada pela figura 2.


A manutenção do capital de giro próprio (negativa) é calculada multiplicando-se o bloco B pela variação das ORTN no período. A legislação admite, implicitamente, que:

a) o bloco B é constituído por valores cuja expressão nominal não se altera com a inflação ou, o que vem a dar no mesmo, que se degradam, em termos reais, proporcionalmente à desvalorização da moeda;

b) as variações nominais dos valores dos blocos A e C se compensam exatamente.

Concluindo, observamos que os comentários aqui feitos ao tratamento da inflação na legislação fiscal não desconhecem que esta procura menos o rigor técnico, do que o atendimento por ela conceituado como conveniente à economia nacional. É possível que a atual legislação conceda, deliberadamente, benefícios às empresas com pesados encargos de financiamento em moeda estrangeira, ou com correção monetária indexada. Entretanto, somos de opinião que é preferível quantificar, com a possível precisão, o subsídio que se concede. Parece também desejável que os incentivos, se estes forem necessários, sejam dados explicitamente. Para esse efeito, há que se reformular a atual legislação fiscal, conforme procuramos demonstrar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1976
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