Acessibilidade / Reportar erro

Organização e saber psiquiátrico

ARTIGOS

Organização e saber psiquiátrico

Ana Rosa Bulcão Vieira

Aluna de mestrado em administração, na área de teoria e comportamento organizacionais, da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

A importância da análise da história do nascimento do saber psiquiátrico - da constituição e legitimação social e legal desse saber, da apropriação desse objeto, da institucionalização da prática terapêutica da psiquiatria, e da evolução desse saber como um saber específico - reside no fato de que ela serve para mostrar qual a origem do que hoje conhecemos como psiquiatria, e como a instituição da doença mental apresenta, ainda hoje, características que apresentava no século passado, quando a doença mental passou a constituir o objeto da psiquiatria.

O que importa analisarmos é que características assumiu a psiquiatria no mundo contemporâneo, qual c tipo de intervenção que ela apresenta no tratamento de seu objeto, qual sua ideologia, seus impasses, sua função na sociedade contemporânea, do ponto de vista daqueles que questionam seu saber, sua competência, sua legitimidade e poder.

A análise da psiquiatria institucional contemporânea é feita do ponto de vista crítico e da perspectiva de autores que estudaram o assunto com profundidade procurando refletir sobre os saberes que se constituem e se legitimam na sociedade e sobre as conseqüências dessa legitimação e dessa prática social na vida do homem contemporâneo.

O objetivo do trabalho é compreender a figura moderna da psiquiatria, seu papel na sociedade, sua ambição como instrumento técnico-científico, isto é, compreender o caráter e funcionamento da psiquiatria institucional como ela se apresenta atualmente.

A ida ao passado, para a análise das origens da psiquiatria, é esclarecida pelo presente e se constitui como exigência de aprofundar a crítica e fornecer elementos para a transformação das condições atuais de seu modo de intervenção.

A questão fundamental de todo esse ensaio é a que permeia, implícita ou explicitamente, todas as análises que se proprõem a refletir sobre o saber médico, em termos gerais, e sobre o saber psiquiátrico, em termos específicos, que é a questão dos papéis que desempenham essas instituições sociais como meio de controle dos indivíduos e das populações através de uma ação intrinsecamente ligada ao saber das ciências humanas; é, pouco e pouco, começar-se a olhar de modo crítico o funcionamento da sociedade ao nível do cotidiano, dos aparelhos que assumem a gestão de nossas vidas, das instituições que produzem, aperfeiçoam ou orientam nosso comportamento.

2. NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA

A psiquiatria como disciplina teórica e técnica terapêutica, como saber de tipo médico sobre a loucura - considerada como doença mental - e como uma prática com a finalidade de curá-la por um tratamento físico-moral, só se constitui em determinado momento da história. A transformação da loucura em um tipo de doença diferente, fenômeno patológico, exigiu um tipo específico de medicina para tratá-la, a psiquiatria.

Só é possível compreender o nascimento da psiquiatria a partir da medicina, no momento em que esta incorpora a sociedade como novo objeto e se impõe como instância de controle social dos indivíduos. É no seio da medicina social que se constitui a psiquiatria. Do processo de medicalização da sociedade surge o projeto - característico da psiquiatria - de patologizar o comportamento do louco, somente a partir de então considerado anormal e, portanto, medicalizável.

É somente no início do século passado que a loucura ascende à categoria de doença mental. Nessa época os loucos se disseminavam indiferentemente entre os hospitais gerais, as casas, de detenção, as casas de caridade, os depósitos de mendigos e as prisões familiares. Nessa época a loucura figura claramente como estigma, isto é, como sinal distintivo e significante da pertinência do louco à categoria das "classes perigosas". A psiquiatria, então, ainda não se havia firmado, apropriando-se da insanidade como objeto próprio dentro da- legitimidade do seu saber e de sua técnica.

A classificação resultante na definição da doença mental não obedece a um esquema puramente teórico e pertinente a uma disciplina científica, mas tem a ver com a normatividade de uma ordem institucional particular. "Não se pode pensar essa ordem e, correlativamente, essa desordem, senão por referência à lei ou à norma que a institui e define" (Albuquerque, 1978). Mas os diversos sentidos da lei ainda se confundem amplamente na época da instituição da loucura em objeto científico, sobretudo no domínio das ciências do homem. "De cada uma das concepções de lei e de ordem a caracterização da doença mental, enquanto desordem dó espírito, irá retirar sua contribuição. Da idéia de ordem enquanto sujeição a uma norma, decreto, expressão de uma vontade superior, a definição científica da doença mental retira a caracterização do louco como insubmisso, infenso a qualquer norma ou regularidade. Da idéia de ordem como expressão de um princípio abstrato, deriva a idéia de irracionalidade do louco e do caráter anormal e, portanto, especial da doença mental. Finalmente, da idéia de lei como regularidade imanente e necessária do? fenômenos deriva a concepção da loucura como patologia, exceção" (Castel, 1978).

Enfim, a psiquiatria nascente, na tentativa de medicalizar a doença mental, de se apropriar da loucura dentro de um paradigma científico, acaba não sabendo se deriva a legitimidade de sua ação sobre a doença mental das normas científicas ou da legislação que lhe confere autoridade legal sobre a doença mental e, particularmente, sobre os "doentes mentais".

Tal como o saber jurídico, o saber sobre a doença mental produz, então, sua verdade em virtude do que explicita a lei e não a partir da evidência empíricas dos fatos ou de teorias aceitas.

Essa aproximação entre os dois saberes teórico-práticos e altamente institucionalizados, um sobre a ordem legal e outro sobre a desordem mental, é praticamente constitutivo da ciência da doença mental.

2.1 Ampliação da autonomia do saber psiquiátrico

A descoberta das "monomanias" (conceito que define a loucura sem a ocorrência de delírio) constitui uma resposta satisfatória, tanto para a psiquiatria, como profissão que, por seu intermédio, estende o âmbito de sua atuação legítima, como para a instituição da justiça, que vem, assim, a classificar convenientemente casos não catalogáveis dentro de suas próprias categorias. Uma constatação importante, porém, é que a definição de doença mental, no caso das monomanias, não decorre, aí, do quadro teórico nem da prática experimental da psiquiatria, mas sim da questão prática da inclusão, ou não, de um objeto no âmbito institucional da justiça ou da psiquiatria.

O ponto de partida desta questão é um estado de relações específico entre as duas instituições, em que a medicina, tradicionalmente, desempenhava papel subordinado. No início do século XLX, a tradição e a lei excluem a noção de crime ou delito em casos de demência ou de coerção irresistível. O papel do médico era claro e indiscutível, mas irrelevante. Na medida em que a demência era estritamente equivalente ao delírio, a instituição judiciária só abandonava à medicina os casos que ela mesma decidia eximir de culpa.

O problema aparecia, entretanto, nos casos em que não existia o delírio para caracterizar a loucura, mas era percebido de maneira clara que o caráter do crime evidenciava uma natureza involuntária do ato. O fato é que não só os distúrbios de vontade não cabiam no quadro conceituai de doença mental de então - a loucura era caracterizada como distúrbio do entendimento e não havia loucura sem delírio - como também não se observavam casos desse tipo.

A monomania surge, neste contexto, como coação irresistível interna, estendendo, assim, o campo da patologia mental do terreno do entendimento para o da vontade e ocupando, com isto, um terreno que a justiça não declarava como seu, mas não consentia em deixar vago.

Assim, a monomania recebe, no início, apenas o reconhecimento prático de sua utilidade, numa distante relação com a mania, sendo, porém, parcial e relativa à vontade, enquanto que a mania, no campo mais geral da demência, seria geral e relativa ao entendimento.

O surgimento da noção da monomania evidencia, assim, a necessidade da psiquiatria de então, de conquistar uma parte das prerrogativas tradicionais da justiça. Assim, passa-se a fazer uma clara distinção entre "lesões de vontade" e "lesões de entendimento ou delírio".

Entretanto, o que importa não é tanto a noção de monomania em si mesma, mas, sim, o que se conseguiu através dela-uma elaboração teórica e delimitação de um espaço maior de intervenção prática. O importante é que uma estratégia, que se apoia sobre um saber aproximado, elabora-o e o transforma a fim de conquistar uma área de intervenção paralela ao funcionamento do aparelho judiciário. Assim, os alienistas intervêm como verdadeiro grupo de pressão a fim de forçar uma decisão comprovando sua "competência especial".

Do impasse surgido entre os dois aparelhos - médico e judiciário - trata-se de dar a cada um o que lhe é devido: os loucos aos psiquiatras e os criminosos aos juízes. É a operação alienista patologizando novos setores do comportamento e complementando a operação judiciária, cujo objetivo é remanejar o direito de punir numa base completamente racional.

O serviço que o alienista presta ao juiz no início do século XIX é suscetível de ser transposto para uma outra escala: através das monomanías os psiquiatras conseguiram realizar a difícil tarefa de desvendar a subjetividade para codificar os comportamentos problemáticos em outros códigos e, portanto, não geríveis pelos outros aparelhos. Dessa maneira, cumprindo a tarefa social de codificação de comportamentos desviantes e de solucionar o problema que se apresentava à sociedade de então, surge o diagnóstico, inaugurando o destino institucional. Inicialmente, asilo ou prisão, dependendo do acusado ser ou não monomaniaco; e, posteriormente, o desenvolvimento de um leque institucional, cuja diversificação se fará em função da diversificação das populações a serem "atendidas". A atividade da perícia, situando o indivíduo numa escala de responsabilidade e de desempenhos, tornar-se-á atividade de triagem, de despistagem, de orientação, classificação, abarcando um número crescente de indivíduos.

Sendo a perícia a superação da competência técnica, decorre daí uma autoridade que é legitimada pelo conhecimento que contém. Na base de seus conhecimentos e de suas práticas, o especialista é chamado a decidir entre opções que engajam valores fundamentais da existência. A delegação de poder faz parte da própria definição de perícia. Através de um raciocínio de estilo técnico ou científico, toma-se uma decisão que diz respeito a um terceiro e que irá doravante selar seu destino. O desenvolvimento dessa função de perícia é uma das características das civilizações modernas. £ o mandato, outorgado a especialistas, atribuindo-lhes o monopólio das avaliações significantes, provocando, como conseqüência, a burocratização, o desencantamento do mundo e a expropriação dos homens de qualquer autonomia de decisão. Os médicos, em geral, e os psiquiatras, em particular, ocupam uma posição estratégica no desenvolvimento desse processo, cuja função foi herdada do papel tradicional do médico que arbitra em nome de sua arte. Essa prerrogativa irá deslocar-se e se generalizar com a vinculação da arte médica a um saber racional. Elliot Freidson descreveu, sob o nome de "autonomia profissional", a base objetiva dessas intervenções, ao mesmo tempo que mostra por que os médicos a possuem no mais alto grau (Cooper, 1967).

Apresentando sinais exteriores de cientificidade e utilizando uma técnica específica, os médicos aumentam a distância em relação aos saberes práticos comuns e, com isso, impõem sua legitimidade como exclusiva, não somente ao tratamento técnico das questões que residem no âmbito de sua competência, como também quanto à maneira como elas devem ser colocadas: "Seu mandato consiste em definir se um problema existe, ou não, qual é a sua 'verdadeira' natureza e como deve ser tratado" (Foucault, 1968). Assim, os peritos definem a realidade para a sociedade global e, particularmente, para aqueles que vivem suas contradições. O psiquiatra realiza essa' operação de maneira exemplar: a partir do momento em que seu diagnóstico define o doente mental no seu status completo, pode, como diz Szasz, "transformar seu julgamento em realidade social" (Foucault, 1972).

Com a questão da monomania, então, a medicina mental se desenvolveu definindo diferencialmente os doentes mentais, os criminosos e os outros desviantes. O importante a observar é que procedeu-se a um remanejamento fundamental nas relações entre os âmbitos institucionais da psiquiatria e da justiça em torno de uma noção imprecisa, rejeitada na prática pela psiquiatria científica, que, apesar disso, não deixou de empregá-la na definição concreta da doença mental.

Além do papel de assegurar maior amplitude de intervenção por parte da psiquiatria, a noção de monomania abre outro campo, que a loucura, antes de ascender à categoria de doença mental, era insuficiente para garantir. Essa noção atesta a possibilidade de a loucura criminosa, perigosa socialmente, estar oculta por trás das aparências da razão e do comportamento razoável: fato que exige a perícia do profissional e a autoridade da prevenção.

Entretanto, a "medicalização" da loucura não significa somente a sua confiscação por um olhar médico, mas implica a definição de um novo status jurídico, social e civil do louco: a fixação do alienado num completo estado de minoridade social. A internação em um "estabelecimento especial" é o elemento determinante que condiciona esse status. Portanto, o essencial da "medicalização" da loucura não é a relação médico doente, mas a relação medicina hospitalização, o desenvolvimento de uma tecnologia hospitalar, o desenvolvimento de um novo tipo de poder na instituição, a aquisição de um novo mandato social a partir de práticas centradas, inicialmente, no baluarte asilar.

2.2 O instrumento terapêutico da psiquiatria: o asilo

O hospício, principal instrumento terapêutico da psiquiatria, aparece como exigência de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições de enclausuramento e ao perigo presente em uma população que se começa a se perceber como desviante, a partir de critérios que a própria medicina social institui.

O louco aparece como potencialmente perigoso e como atentado à moral pública, à caridade e à segurança. A loucura passa a ser um perigo a ser evitado das ruas da cidade. Loucura passa a ser antônimo de liberdade. Para o psiquiatra, o lugar do louco não é a rua, nem a prisão, mas o hospício, onde a loucura é tratada, não com liberdade, nem com repressão, mas com disciplina. O hospício é a grande evidência terapêutica da psiquiatria nascente.

A apropriação da loucura por parte da psiquiatria configura-se basicamente na proposta de criação de uma instituição capaz de medicalizá-la, com a possibilidade de inferir a loucura naturalmente nos objetivos de uma medicina do espaço social. Por um lado, a proposta de organização e funcionamento da cidade deve retirar o louco da livre circulação em seu interior, pois que ele representa um foco de perigo; por outro, a instituição médica constitui o espaço próprio do louco, capaz não de dominá-lo - destruir os seus efeitos, subjugar sua ameaça - mas de atingir sua loucura e integrá-la à vida urbana por um processo de recuperação. Na medida em que a loucura é um comportamento caracterizado medicamente, e no momento em que, formulando uma etiologia social da doença, a medicina urbana detecta os diversos perigos que podem ameaçar a existência de uma sociedade em vias de normalização, a loucura e prevenção estarão sempre ligadas.

Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o louco, com o objetivo de reduzir o perigo por ele apresentado, e impossibilitar o efeito destrutivo caracterizado em sua doença. Essa tarefa foi desempenhada através da competência do poder psiquiátrico, que era baseada em seu saber, para distinguir o normal do patológico e realizar o controle e a vigilância dos indivíduos considerados doentes mentais.

Na fundação da psiquiatria o hospício é então concebido como o lugar de exercício da ação terapêutica, tendo como objetivo destruir a loucura. Sua característica principal é uma ação que não se dá como negativa, dedicada a impedir, tolher ou afastar, mas como positiva, recuperadora; desse modo, a psiquiatria precisa ser instrumentalizada através de uma série de dispositivos que possibilitem a eficácia de sua intervenção. Daí a importância da organização de um espaço terapêutico e a necessidade do doente mental ser colocado em um ambiente criado especialmente para ele, que não seja exterior ou acidental com relação ao núcleo básico da prática psiquiátrica, mas que, obedecendo aos requisitos fundamentais postulados pelos médicos, deve canalizar sua ação para possibilitar sua eficácia. Não há, portanto, entre o hospício e a psiquiatria relação de exterioridade. O hospício é mais do que um espaço utilizado para a medicalização da loucura: é uma instituição concebida medicamente. Tanto sua estrutura quanto seu funcionamento realizam o projeto psiquiátrico nascente.

O isolamento do louco no hospício justifica-se ao nível das causas da doença e ao nível do tratamento. O hospício separa o louco das causas de sua loucura, inscritas na sociedade e principalmente na família. O princípio do isolamento expressa uma zona de conflito entre a família da época e a psiquiatria: o louco deve ser distanciado do meio doméstico, que não só causa, mas confirma, a alienação mental. Trata-se, portanto, de realizar o contato entre o doente e a família, através do hospício.

O objetivo do alienista é se colocar como defensor e protetor da família, na medida em que retira o peso que a amedronta.

O segundo nível de justificação do isolamento é a possibilidade de intervenção terapêutica. Não há cura sem isolamento, o que implica que todo tratamento deve ser asilar. O hospício se caracteriza por um isolamento que se constitui não só como um espaço fechado sobre si mesmo, mas também como deficiente, heterogêneo com relação às outras instituições, o que não implica que a população asilar seja homogênea: O hospício é um espaço classificatório que localiza e distribui os indivíduos em seu interior, a partir de categorias muito pouco médicas.

A vigilância é uma propriedade essencial do hospício. O louco deve ser vigiado em todos os momentos e em todos os lugares. Deve estar submetido a um olhar permanente. O pessoal administrativo constitui uma rede de olhares que se estende por todo o hospício, embora não seja especialmente localizada. O fundamental é que no hospício está presente o princípio da inspeção, segundo o qual deve haver uma presença total e constante do diretor do estabelecimento junto aos indivíduos, presença essa que deve induzir a um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Ao mesmo tempo em que é partilhado, exercido em pontos diferentes e a diversos níveis, o poder deve estar submetido ao médico como princípio de sua unificação. "A administração de um asilo de alienados deve ser entregue a um médico: assim o reclama a psiquiatria, assim o aconselha a experiência. Em um estabelecimento desta ordem todo movimento, toda ação deve estar subordinada a um único fim, à cura e bem-estar dos alienados. Ao poder administrativo deve estar reunido o poder médico, sem o que não pode haver uma unidade de ação, unidade de governo" (Foucault, 1979).

Outra característica básica do hospício é a distribuição do tempo dos internos. Assumindo o encargo total da vida dos indivíduos, isolando-os e vigiando-os permanentemente, o hospício prescreve uma ocupação aos alienados. Não pode ser lugar de ócio ou de inércia, na medida em que o isolamento da sociedade não visa a uma simples exclusão de suas fronteiras, mas à possibilidade de uma reinserção do alienado na sociedade depois de sua reabilitação através de um tratamento.

Os princípios do isolamento, da organização do espaço terapêutico, da vigilância e distribuição do tempo regem a totalidade da vida dos alienados, atingem cada minuto de sua existência. Ao mesmo tempo que circunscrevem individualmente o alienado, percorrendo a minúcia de seus corpos, de seus gestos, estes princípios dizem respeito à população que vive no hospício. Estabelecendo normas de comportamento, intervindo para que estas normas sejam interiorizadas, transformando e criando a docilidade, eles funcionam para toda a coletividade que habita o hospício.

Assim, a grande realização da psiquiatria, na época de sua constituição, é o hospício como poder disciplinar. Contando com dispositivos específicos, população selecionada, arcabouço jurídico, passa a existir uma nova realidade institucional, resultado de uma luta médica, que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade em que vivemos.

Verifica-se, então, que a psiquiatria não se constitui como uma idéia, uma idealidade discursiva, um simples efeito ideológico, uma justificação ou legitimação com o objetivo de ofuscar, mistificar, obscurecer os mecanismos de dominação de uma classe sobre a outra. Sua ação é muito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atinge diretamente o corpo das pessoas; é uma realidade que desempenha um papel de transformação dos indivíduos, assumindo o encargo de suas vidas, gerindo sua existência, impondo uma norma ou conduta a um comportamento desregrado. Denota, assim, a presença da medicina em um aspecto da realidade que até então lhe era estranho, desconhecido, exterior. Através da psiquiatria, o médico penetra ainda mais profundamente na vida social, através de seu instrumento terapêutico básico que é o hospício.

Na ação da medicina com relação à loucura, tudo converge para a implantação desse espaço específico de reclusão que, abrigando as pessoas consideradas doentes mentais, é capaz de recuperá-las pela própria força terapêutica de sua organização. É toda estrutura asilar que, em seus diversos aspectos, se concentra nesse objetivo de transformação da vida de um tipo específico de desviante. A eficácia do hospício reside em sua presença na sociedade como operação de cura: cura de uma doença que tem características especiais e que justifica um tipo de intervenção que é original com relação à medicina científica.

A existência da doença mental pede um tratamento moral, advindo daí o fato de a intervenção terapêutica da psiquiatria ser menos uma medicação do que uma educação. A organização arquitetônica deve ser marcada intrinsecamente por uma característica médica: no hospício o que cura é o próprio hospício; o bom emprego do tempo é condição indispensável do processo de transformação do alienado em um ser útil e dócil: ele deve introjetar a lei moral do trabalho; a direção centralizada, conjugando saber e autoridade, encarna a norma de comportamento e estabelece as etapas do percurso terapêutico: o médico deve ocupar o topo da estrutura de poder característica do hospício; a internação do alienado deve possuir um fundamento legal que evite o perigo das seqüestrações arbitrárias; a medicina deve impregnar a legislação e a justiça.

Toda essa estrutura asilar apresenta características de uma instituição total, onde a estrutura hierárquica e heterônoma está presente, refletindo, na sua própria estrutura, toda a estrutura da sociedade na qual esta organização está inserida, sociedade que, ao legitimar essa instituição terapêutica da loucura, confere aos gestores dessa organização os poderes decorrentes de seu saber - o saber psiquiátrico. Esse saber confere, então, aos psiquiatras, o poder de classificação e tratamento de uma anomalia que surge como um desvio, uma patologia, no seio da sociedade "sadia".

2.3 Movimento por maior autonomia institucional da psiquiatria

Pouco a pouco, porém, surgem críticas ao hospício, e são críticas internas. Entretanto, não se trata de uma crítica à figura do psiquiatra, mas justamente ao que escapa ao seu controle: os obstáculos institucionais e mesmo jurídicos a uma gestão intrinsecamente médico administrativa. Sentem-se impotentes, sugerem reformas e exigem o poder.

A importância dessas críticas é desvelar a própria natureza da psiquiatria, que possui um duplo significado. Por um lado, é explicitada a exigência de medicalizar um espaço criado para a medicalização do louco, e a dificuldade que teve a psiquiatria para impor seus objetivos. A denúncia é parte de uma estratégia por maior poder da medicina, que neste momento tem que se defrontar com outras instituições ou outras instâncias sociais, para disseminar seu projeto normalizador da sociedade e ver possibilitado o funcionamento do hospício. Por outro lado. é explicitado o fracasso da psiquiatria como uma instância terapêutica.

A crítica ao não funcionamento da psiquiatria tem, até hoje, acompanhado sua história, como uma de suas características essenciais, atestando uma incapacidade ou uma impossibilidade terapêutica que serve fundamentalmente de apoio a uma exigência de maior medicalização.

A crítica à insuficiência e ineficácia do hospício aponta para uma exigência de multiplicação de instituições articuladas que sejam escudadas por uma lei dando aos hospícios exclusividade de seqüestração do louco. O importante é criar hospícios de características diferentes, de acordo com as necessidades impostas aos loucos; é criar uma lei que regule a situação do louco na sociedade.

No sentido de difundir a medicalização do louco, a crítica que se volta para o momento de admissão do louco no hospício é de particular importância. Através dessa discussão são abordados problemas, como o direito de seqüestração, a relação entre o louco e a família, louco e justiça, louco e psiquiatra, louco e Estado. Fundamentalmente, a admissão torna-se ponto de destaque na crítica ao funcionamento asilar, por poder conferir, ou não, à psiquiatria, o mandato social do reconhecimento e destinação do louco.

A seqüestração do louco é feita em nome da defesa da coletividade. A eminência ou realidade de perturbação da ordem ou moral pública dá à autoridade o direito de seqüestro. Mas, em princípio, a seqüestração representa um atentado praticado contra o princípio da liberdade individual, base da organização social: é atentado às bases do contrato social, sendo, portanto, injusta. Essa contradição só poderá ser resolvida apelando-se para a psiquiatria, que transforma a reclusão, em si negativa, em bem, em proteção ao homem enlouquecido. A psiquiatria faz da seqüestração um ato não arbitrário, mas, para tal, é necessário uma modificação: a psiquiatria deve-se transformar em instância definidora do estatuto do louco, como doente e como incapaz; portanto, como sujeito a ser tratado e protegido. A condição para que isso possa ocorrer é o reconhecimento da psiquiatria e a definição da relação da família, da administração e do hospício com o alienista e com o alienado: a lei medicalizada pode resolver este problema.

A incapacidade do louco deve ser, portanto, cuidadosamente regulada, para que não se transforme em possibilidade de atentado à liberdade individual. O louco deve delegar sua vida a um elemento idôneo - o psiquiatra. Não é, portanto, suficiente dar ao louco o estatuto de doente. É necessário e fundamental dar a ele o estatuto de minoridade e fazer destes dois aspectos uma mesma realidade.

2.4 O louco e o psiquiatra dentro do espaço asilar

Existe uma correlação histórica do louco e do psiquiatra dentro do espaço asilar.

Antes do século XVIII a loucura não era sistematicamente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza, pois que era a forma visível da verdade; ela mesma tinha o poder de dissipar o erro. Outro lugar terapêutico usual era o teatro, que se apresentava como a natureza invertida: "Apresentava-se ao doente a comédia de sua própria loucura colocando-a em cena, que era verdadeira por meio de cenários e fantasias, de forma que, caindo nesta cilada, o engano acabasse por estourar diante dos próprios olhos daquele que era sua vítima" (Foucault, 1977).

A prática do internamento, no começo do século XIX, coincidiu com o momento em que a loucura é percebida com relação à conduta regular e normal, e não com relação ao erro. É o momento em que aparece como desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre.

"Existem alienados cujo delírio é quase imperceptível; não existe um no qual as paixões, as afeições morais não sejam desordenadas, pervertidas ou anuladas (...) A diminuição do delírio é só um sinal efetivo de cura quando os alienados retornam às suas primeiras afeições" (Machado, 1978).

A função do asilo, então, é a de permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que no meio do doente possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas estranhas, alimentá-la e também estimulá-la. Mais do que um lugar de desvelamento, o hospício é um lugar de confronto. Este afrontamento produzirá dois efeitos; a vontade do doente, que não é expressa em nenhum delírio e que, por isso, poderia permanecer inatingível, revelará abertamente seu mal, pela resistência que contrapõe à vontade reta do médico; e, por outro lado, a luta que a partir daí se instala poderá conduzir a vontade reta à vitória e a vontade perturbada à submissão e à renúncia. Instala-se, portanto, um processo de oposição, de luta, de dominação. Estabelece-se, então, a função do hospital psiquiátrico: "lugar de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta, mas também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão. O grande médico do asilo é, ao mesmo tempo, aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente" (Revista Tempo Brasileiro, 1974).

Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo - isolamento, interrogatórios, tratamentos, punições, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, relações de posse, de domesticidade e, às vezes, de servidão entre doente e médico - tudo isso contribui para que o médico seja transformado em "mestre da loucura".

Esta exaltação se produz numa época em que o poder médico é garantido e justificado pelos privilégios do conhecimento. O médico é competente, conhece as doenças, os doentes, detém um saber científico, que é o que permite sua intervenção e sua decisão. O poder que o asilo dá ao psiquiatra se justifica e mascara esse poder como sobrepoder fundamental, produzindo fenômenos integráveis à ciência médica. O poder do médico lhe permite produzir, daí em diante, a realidade de uma doença mental, que tem a propriedade de reproduzir fenômenos inteiramente acessíveis ao conhecimento.

2.5 O poder psiquiátrico

Todos os abalos que sacudiram a psiquiatria desde o fim do século XIX colocaram essencialmente a questão do poder do médico e o efeito que este poder produzia sobre o doente, mais do que seu saber e a verdade que dizia sobre a doença. O que é questionado é a maneira pela qual a verdade pode ser fabricada e comprometida pelo seu poder.

As relações de poder constituíam o aspecto fundamental da prática psiquiátrica: condicionavam o funcionamento da instituição asilar, distribuíam as relações entre os indivíduos e regiam as formas de intervenção médica. O que estava, desde logo, implicado nestas relações de poder era o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura. Direito explicitado em termos de competência que se exercia sobre uma ignorância, corrigindo erros (ilusões, alucinações, fantasmas) de normalidade e impondo-se à desordem e ao desvio.

Através desse triplo poder a loucura era constituída como objeto de conhecimento possível para uma ciência médica, como doença, no exato momento em que o doente mental encontrava-se desqualificado como louco, ou seja, despojado de todo o poder e de todo o saber quanto à sua doença.

3. SITUAÇÃO ATUAL DA PSIQUIATRIA

"Como todas as invasões, a invasão da psiquiatria na jornada do homem através da vida começou nas fronteiras de sua existência e daí se estendeu gradualmente rumo ao seu interior" (Szasz, 1980).

A partir do início do século, especialmente depois de cada uma das duas grandes guerras mundiais, o ritmo da conquista psiquiátrica cresceu rapidamente, como se difundiu, rapidamente também, a ideologia da doença mental. O resultado é que hoje todas as dificuldades e problemas da vida são considerados doenças psiquiátricas, e todos, com exceção daqueles que diagnosticam, isto é, os psiquiatras, são considerados doentes mentais.

"A ideologia psiquiátrica moderna é uma adaptação, para uma era científica, da ideologia tradicional da teologia cristã. Em vez de nascer para o pecado, o homem nasce para a doença. Hoje, da mesma forma como antigamente acontecia com o sacerdote, o médico é o guia do homem, do berço ao túmulo. Em resumo, enquanto que na Idade da Fé a ideologia era a cristã, a tecnologia era clerical e o perito era o sacerdote, na Idade da Loucura a ideologia é médica, a tecnologia é clínica e o perito é o psiquiatra" (Szasz, 1978).

Hoje, uma característica dominante da nossa era moderna e burocrática é esse processo de tornar médicos e psiquiátricos os problemas pessoais, sociais e políticos.

Como todas as ideologias, a ideologia da doença mental - através dos "diagnósticos", "prognósticos" e "tratamentos psiquiátricos", e incorporada no sistema burocrático da psiquiatria institucional e seus sanatórios - se expressa caracteristicamente no compromisso com uma imagem ou definição da "realidade" oficialmente proibida.

A intervenção da psiquiatria contemporânea na vida dos indivíduos se dá, hoje, pela tecnificação dos problemas éticos que justificam o trabalho psiquiátrico. Segundo afirmação de T. J. Sachar, professor associado de psiquiatria da Escola de Medicina Albert Einstein de Nova Iorque, "o psiquiatra deve considerar, sob um ponto de vista científico, todo comportamento - criminal, legal, doentio e sadio - como determinado ... " (Sachar, 1963). Assim, o crime não é mais um problema de direito e moral, mas da medicina e dos terapeutas. Essa transformação de ético em técnico - de crime em doença, de direito em medicina, de criminologia em psiquiatria, e de punição em terapia - é assumida por muitos médicos, cientistas sociais e leigos.

3.1 Definição da doença mental - uma análise critica

As definições e considerações descritas neste tópico tomam por referência as análises e críticas elaboradas por Thomas S. Szasz, psiquiatra e professor de psiquiatria na Universidade do Estado de Nova Iorque em Siracusa, que estudou não só a questão da psiquiatria institucional, como também é autor de uma obra sobre o mito e a ideologia da doença mental.

T. Szasz questiona se existe, ou não, o que se chama de doença mental e defende a idéia de que não existe. Segundo ele, a doença mental não é uma coisa ou objeto físico, só pode existir da mesma maneira que os outros conceitos teóricos.

Em certos períodos históricos, conceitos explicativos, tais como divindades, feiticeiras e instintos, apareceram, não somente como teorias, mas como causas evidentes por si, de um vasto número de eventos. "Hoje em dia, afirma Szasz, a doença mental é vista, largamente, de um modo semelhante, ou seja, como a causa de inúmeros acontecimentos diferentes" (Szasz, 1980, p. 19).

Toda a discussão que se segue será feita na tentativa de descrever os principais usos da doença mental e de demonstrar que essa noção tem sobrevivido a despeito da utilidade que possa ter tido para o conhecimento, e que agora funciona como um mito.

3.2 Noção de doença mental

A noção de doença mental é definida e se explica, principalmente, por fenômenos tais como a sífilis cerebral, ou paralisia cerebral, ou os estados de delírio nos quais as pessoas podem manifestar certas desordens de pensamento e comportamento. Portanto, são doenças do cérebro e não da mente. De acordo com algumas escolas de pensamento, toda doença mental é desse tipo. O pressuposto dessa teoria é de que algum defeito neurológico será por fim encontrado para explicar todas as desordens 55 de pensamento e comportamento. Essa definição de doença mental tem sido aceita por muitos médicos, psiquiatras e outros cientistas contemporâneos, o que implica que se reduza todos os problemas das pessoas às causas citadas acima, e não a necessidades pessoais conflitivas, opiniões, aspirações sociais e valores. Assim, esses "problemas existenciais" são atribuídos a processos psicoquímicos e classificados como sintomas de doença mental.

Dessa maneira, as doenças mentais são consideradas, basicamente, como semelhantes às outras doenças, sendo que a única diferença entre doença mental e doença corporal é que a primeira, afetando o cérebro, manifesta-se por meio de sintomas mentais, enquanto que a doença corporal, afetando outros sistemas do organismo, manifesta-se por sintomas referentes àquelas partes do corpo.

Por outro lado, o termo "doença mental" é também de amplo uso para descrever algo totalmente da doença cerebral. No contexto das dificuldades encontradas na vida moderna, onde, para muitas pessoas, viver constitui-se uma tarefa penosa, onde as dificuldades da vida para o homem moderno derivam das depressões e tensões inerentes à interação social entre personalidades humanas, a noção de doença mental é usada para identificar ou descrever algum aspecto da assim chamada personalidade de um indivíduo. A doença mental - como deformação da personalidade - é vista, então, como a causa da desarmonia humana, como se a interação social entre pessoas significasse algo inerentemente harmonioso, sendo seu distúrbio devido à presença da "doença mental" em várias pessoas.

Segundo Szasz, esse raciocínio é falho porque faz da abstração "doença mental" a causa de certos tipos de comportamento humano.

O conceito de enfermidade, física ou mental, implica a noção de desvio de alguma norma claramente definida. No caso de enfermidade física, a norma e a integridade estrutural e funcional do corpo humano. Assim, à questão - ó que é saúde - pode-se responder em termos anatômicos e fisiológicos. Já com relação à questão - o que é a saúde mental - a resposta torna-se mais difícil de ser dada; qualquer que seja a norma, porém, essa deve ser estabelecida em termos de conceitos psicossociais, éticos e legais. Portanto, quando alguém fala de doença mental, a norma à qual o desvio é comparado é um padrão psicossocial e ético. Contudo, procura-se corrigir o "desvio" através de medidas "médicas", que são supostas de serem isentas de valores éticos.

Decorre daí uma questão que é relativa à competência do saber médico: identificadas as normas usadas para medir os desvios nos casos de perturbação mental, quem define as normas e os conseqüentes desvios?

Em primeiro lugar, pode ser o próprio paciente, isto é, a pessoa quem decide se se desvia de uma norma; ou pode ser outra pessoa, que não o "paciente", quem decide se este está perturbado, como, por exemplo, os parentes, médicos, autoridades legais, a sociedade em geral. Assim, o psiquiatra pode ser contratado por outros, que não o "paciente", para fazer-lhe algo para corrigir o desvio no qual se encontra. De uma certa maneira, então, o psiquiatra pode ser agente do paciente, dos familiares da escola, do serviço militar, de uma empresa, corte judiciária, etc.

Desse modo, no uso social contemporâneo, supõe-se que a doença mental se estabeleça a partir de um desvio de comportamento de certos padrões psicossociais, éticos ou legais. O julgamento a respeito desses desvios pode ser feito pelo paciente, pelo psiquiatra ou outros. A ação terapêutica tende, finalmente, a ser procurada numa estrutura médica, criando, portanto, uma situação ná qual se afirma que os desvios psicossociais, éticos e legais podem ser corrigidos pela ação médica. Cria-se, então, um impasse, pois que, já que as intervenções médicas são designadas para curar somente problemas médicos, não se pode esperar que essas intervenções possam resolver problemas cuja existência tem sido definida e estabelecida em bases não médicas.

Do que foi delineado acima, podemos deduzir que os psicoterapeutas contemporâneos lidam com problemas existenciais, e não com doenças mentais e suas curas. Porém, essa constatação contrasta profundamente com a posição que prevalece hoje entre os psiquiatras, que dizem tratar de "doenças mentais" que são tão "reais" e "objetivas" quanto as doenças físicas. Segundo Szasz, esta afirmação da psiquiatria contemporânea não possui argumentos suficientes que a sustentem e, diz mais, que é usada como uma espécie de propaganda psiquiátrica, com o objetivo de criar na mentalidade popular uma convicção de que a doença mental é um tipo de entidade patológica, como uma infecção ou uma moléstia.

Enquanto o termo "doença física" se refere a ocorrências físico-químicas que não são afetadas quando tornadas públicas, o termo "doença mental" refere-se a eventos sócio-psicológicos, profundamente afetados quando tornados públicos. Desse modo, o psiquiatra não pode e não consegue ficar alheio à pessoa que observa, como o pode fazer, e o faz, o patologista. O psiquiatra está comprometido com um quadro daquilo que considera a realidade e com o que pensa que a sociedade considera real; observa e julga o comportamento do paciente à luz dessas crenças. A simples noção de "sintoma mental" ou de "doença mental" implica uma comparação dissimulada e freqüentemente em conflito entre observador e observado, psiquiatra e paciente. Paradoxalmente, a psiquiatria insiste em negar os aspectos morais envolvidos nos "tratamentos" que propõe, substituindo os por conceitos e intervenções médicas pretensamente isentas. A psiquiatria é, pois, praticada como se não acarretasse nada além de restaurar o paciente de um estado de enfermidade mental para um estado de sanidade mental, sem que apareçam neste processo os problemas de valores, como se a doença mental nada tivesse a ver com as relações sociais e interpessoais do homem.

É nos conflitos de valores existentes na sociedade moderna que reside a fonte dos conflitos nas relações humanas. Esta é uma afirmação que se constata em todos os níveis e planos dos relacionamentos sociais. Entretanto, as teorias científicas do comportamento falham em aceitar o fato de que as relações humanas são inerentemente carregadas de dificuldades e que depende de um trabalho árduo torná-las mais harmoniosas. Assim, a idéia de doença mental tem funcionado como um disfarce: "Em vez de chamar a atenção para necessidades, aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito de doença mental produz uma coisa moral e impessoal uma doença - como explicação para problemas existenciais' (...) A crença na doença mental, como algo diferente do problema do homem em conviver com seus semelhantes, é a própria herdeira da crença em demônios e feitiçarias. Assim, a doença mental existe, ou é real, exatamente no mesmo sentido no qual as feiticeiras existiam ou eram reais (Szasz, 1980, p. 27).

3.3 O mito da doença mental

Segundo Szasz tem tentado demonstrar, a noção de doença mental tem sobrevivido a qualquer utilidade que possa ter tido e agora funciona como mito. Dessa maneira ela se constitui como herdeira legítima dos mitos religiosos, em geral. A função desse sistema de crenças era agir como tranqüilizadores sociais. Assim, o conceito de doença mental é usado, principalmente, para obscurecer o fato cotidiano de que a vida, para a maioria das pessoas, é uma luta contínua, por algum outro significado de vida ou valor. Neste conflito de valores, em meio à insegurança de não saber o que fazer com sua própria vida, a adesão ao mito da doença mental permite às pessoas evitar confrontar-se com seu problema, acreditando que a saúde mental - ausência de doença mental - assegura a escolha certa e segura na condução da vida.

A expressão "doente mental" tem sido usada correntemente e de forma análoga à noção de "doente físico". Quando nos referimos a pessoas fisicamente doentes, usamos essa expressão para descrever um estado físico em que o funcionamento do corpo viola certas normas anatômicas e fisiológicas; da mesma forma, quando nos referimos a pessoas mentalmente insanas, nos referimos a pessoas cuja conduta pessoal viola certas normas éticas, políticas e sociais. Isso acontece porque o mito da doença mental nos faz acreditar, através dos conceitos utilizados para rotular a insanidade mental, que existe um conceito de normalidade no que refere às relações sociais, isto é, que estas seriam harmoniosas, não fosse pelas influências desagregadoras da doença mental.

A conseqüência derivada dessa classificação de doença mental, atingindo todos os problemas existenciais da vida do homem moderno, é que ela cria a contrapartida, isto é, a necessidade de um tratamento baseado em linhas médicas e psicoterápicas, que sugere que o alcance da sanidade mental só poderá ser realizada por meio da ajuda de um profissional competente - o psiquiatra.

3.4 A psiquiatria institucional

Hoje em dia, são classificados de doentes mentais aqueles indivíduos que não obedecem à lei e que desafiam as convenções da moralidade e da sociedade. Na maioria das vezes, esses indivíduos são colocados involuntariamente neste papel, e a organização responsável por sua situação é a psiquiatria institucional.

A psiquiatria institucional pode ser definida como intervenções psiquiátricas impostas por outros às pessoas. Essas intervenções se caracterizam por perda completa de controle, pelo "paciente", de sua participação nas relações com o especialista. O serviço típico da psiquiatria institucional é a hospitalização involuntária em hospital psiquiátrico (Szasz, 1978).

A psiquiatria institucional apresenta várias características, sendo que a característica econômica mais importante é que o psiquiatra institucional é um empregado burocrático, pago pelos seus serviços por uma organização particular ou oficial (e não pelo indivíduo que é o seu cliente); e sua característica social mais importante é o uso da força. Além do processo de imposição e do internamento a longo prazo do insano, as intervenções do psiquiatra institucional incluem diversas medidas - o exame dos acusados para verificar sua sanidade ou sua capacidade para enfrentar julgamento; de empregados para verificar sua capacidade para um emprego; de candidatos à Universidade, Faculdade de Medicina ou Instituto de Psicanálise, para verificar sua adequação para a admissão nestas instituições. Os psiquiatras empregados pelos hospitais psiquiátricos públicos, por serviços de saúde das universidades, pelas organizações militares, pelos tribunais, pelas prisões e outros em posição semelhante são, segundo essa definição, psiquiatras institucionais.

A apropriação da loucura como objeto primordial da psiquiatria institucional surge com o declínio do poder da Igreja e da interpretação religiosa do mundo, num novo clima cultural - secular e científico onde continuavam a existir os prejudicados, os dissidentes e os homens que pensavam e criticavam demais. Os não-conformistas, quando a regra era ser conformista, os que faziam objeções, os que questionavam a ordem estabelecida, enfim, todos os que negavam os valores dominantes da sociedade ou se recusavam a aceitá-las, eram considerados os inimigos da sociedade. Como a ordenação adequada dessa nova sociedade era conceituada em função da saúde pública, seus inimigos internos eram considerados loucos. Para proteger a sociedade da ameaça representada pelo alienado, surge a psiquiatria institucional.

Esta instituição tem três séculos de existência e, cada vez mais, se consolida enquanto saber, pois continua a significar um movimento de salvaguarda dos valores vigentes na sociedade, que a legitima e lhe confere os poderes de intervenção, classificação e tratamento daqueles que ameaçam a ordem, a moral e a "harmonia" reinante. Cada vez mais, ela amplia o âmbito de sua atuação, pois, com o poder que possui - advindo de sua competência e de seu saber - com a legitimação da sociedade, com a ideologia que a sustenta, ela assume para si a tarefa de resolver todas as dificuldades encontradas pelo homem moderno, na trajetória de sua vida, transformando todas essas dificuldades em problemas e "doenças" mentais, e oferecendo "ajuda" para a solução ou cura dessas "doenças".

O que podemos perceber, através da análise realizada neste ensaio, é que, cada vez mais, a psiquiatria amplia seu universo de intervenção, a partir da apropriação, cada vez mais abrangente, de um objeto que continua indefinido concretamente e que, por isso mesmo, passível de ser absorvido por um saber que se diz competente e científico.

Outra constatação é que a psiquiatria cumpre uma função social bem determinada, que reside no serviço que ela presta à sociedade através de um sistema intelectualmente significativo, moralmente elevado e socialmente bem organizado no sentido da afirmação dos valores dominantes. Tranqüilizando as angústias maciças - mobilizadas por um excesso de escolhas, ausência de causas valiosas e de líderes que mereçam confiança - a psiquiatria atende também a essa função que lhe fora confiada pela sociedade: disfarçar, e assim tornar mais aceitável, a emergência dos conflitos morais existentes nas relações sociais e humanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Albuquerque, J. A. G. Metáforas da desordem. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Castel, R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Cooper, D. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo, Perspectiva, 1967.

Foucault, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.

______. História da loucura. São Paulo, Perspectiva, 1972.

______. Microfisica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

______. Nascimento da clinica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977.

Machado, R. Danação da norma. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 35, 1974.

Sachar, T. J. Behavioral science and the criminal law. Scientific American, 209: 39-45, Nov. 1963. In: Szasz, T. S. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 15.

Szasz, T. S. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.

______. Fabricação da loucura. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

  • Albuquerque, J. A. G. Metáforas da desordem. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
  • Castel, R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro, Graal, 1978.
  • Cooper, D. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo, Perspectiva, 1967.
  • Foucault, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.
  • ______. História da loucura. São Paulo, Perspectiva, 1972.
  • ______. Microfisica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
  • ______. Nascimento da clinica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977.
  • Machado, R. Danação da norma. Rio de Janeiro, Graal, 1978.
  • Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 35, 1974.
  • Sachar, T. J. Behavioral science and the criminal law. Scientific American, 209: 39-45, Nov. 1963.
  • In: Szasz, T. S. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 15.
  • Szasz, T. S. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
  • ______. Fabricação da loucura. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 1981
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br