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"TUPI, OR NOT TUPI THAT IS THE QUESTION": PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO E ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

"Tupi, or not Tupi that is the question": Perspectivismo amerindio y Estudios Organizacionales

RESUMO

Esse ensaio discorre sobre as possibilidades que o conceito de perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro oferece aos Estudos Organizacionais. O "Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade é o fio condutor de nossa investigação. O perspectivismo ameríndio sugere um deslocamento reflexivo para a posição ocupada pelo objeto de investigação que, assim, se torna o sujeito a partir do qual devemos questionar nossas próprias premissas. O que importa saber é como nosso sujeito/ex-objeto percebe nossas categorias/conceitos criadas para descrevê-lo. Para Viveiros de Castro, o deslocamento reflexivo deve ocorrer considerado-se uma equivocidade intencional. Portanto, devemos refletir sobre as consequências que nossas escolhas ontoepistemológicas terão sobre nossa pesquisa a partir do ponto de vista do Outro. Os conceitos de deslocamento reflexivo e equivocidade intencional têm muito a contribuir com a construção do Outro em EOR e com o conceito de border thinking nos estudos decolonais.

PALAVRAS-CHAVE
Perspectivismo ameríndio; antropofagia; border thinking; equivocidade intencional; deslocamento reflexivo

RESUMEN

Este ensayo analiza las posibilidades que el concepto de perspectivismo amerindio de Viveiros de Castro ofrece a los Estudios Organizacionales. El Manifiesto Antropófago de Oswald de Andrdade es el hilo conductor de nuestra investigación. El perspectivismo amerindio sugiere un desplazamiento reflexivo a la posición ocupada por el objeto de la investigación, que se convierte así en el sujeto a partir del cual debemos cuestionar nuestras propias premisas. Lo que importa es saber cómo nuestro sujeto/objeto anterior percibe nuestras categorías/ conceptos creados para describirlo. Para Viveiros de Castro, el desplazamiento reflexivo debe ocurrir considerando una equivocidad intencional. Por lo tanto, debemos reflexionar sobre las consecuencias que nuestras elecciones onto-epistemológicas tendrán en nuestra investigación desde el punto de vista del otro. Los conceptos de desplazamiento reflexivo y equivocidad intencional tienen mucho que aportar a la construcción del otro en EO y al concepto de pensamiento fronterizo en los estudios decoloniales.

PALABRAS CLAVE
Perspectivismo amerindio; antropofagia; border thinking; equivocidad intencional; desplazamiento reflexivo

ABSTRACT

This essay discusses the possibilities that Viveiros de Castro's concept of Amerindian perspectivism offers to Organizational Studies. Oswald de Andrade's Anthropophagous Manifesto is the guiding thread of our investigation. Amerindian perspectivism suggests a reflexive shift to the position occupied by the object of inquiry, which, thus, becomes the subject from which we must question our own premises. What matters is knowing how our subject/former object perceives the categories/concepts we created to describe it. For Viveiros de Castro, the reflexive displacement should occur using a controlled equivocation. Therefore, we must be reflexive on the consequences that our onto-epistemological choices will have on our research from the Other's point of view. The concepts of reflexive displacement and controlled equivocation have much to contribute to the construction of the other in Organizational Studies and to the concept of border thinking in decolonial studies.

KEYWORDS
Amerindian perspectivism; anthropophagy; border thinking; controlled equivocation; reflexive displacement

INTRODUÇÃO

Tupi, or not tupi that is the question” é um dos aforismos mais conhecidos e citados do “Manifesto antropófago” publicado, em maio de 1928, por Oswald de Andrade, no primeiro número da Revista de Antropofagia. O Manifesto é ilustrado pelo quadro “O Abaporu” - homem que come homem, em tupi - que Oswald havia recebido de presente de sua companheira, Tarsila do Amaral. O quadro exprime o processo antropofágico que Oswald imprime no texto e, no ano seguinte, Tarsila apresentaria o quadro “Antropofagia”. Nesse aforismo, Oswald devora o dilema hamletiano e, sem uma palavra sequer em português, representa, por meio do binômio Tupi/To be, “uma das tensões centrais que será explorada durante todo o texto do Manifesto” em que promove uma subversão da “relação Brasil/mundo, ou tribo primitiva/cultura ocidental” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 109).

Uma subversão similar é proposta pelo “etnólogo americanista” brasileiro Viveiros de Castro (2015, p. 155)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. com base na introdução do conceito de perspectivismo ameríndio. Viveiros de Castro (1986)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. desenvolveu esse conceito a partir de sua pesquisa de doutorado em meio aos Araweté, povo de língua tupi da região amazônica ocidental. Portanto, a origem desse conceito é bem diversa do conceito de antropofagia lançado por Oswald de Andrade a partir do movimento modernista iniciado com a Semana de Arte de 1922. Todavia, antropofagia e perspectivismo ameríndio têm como base as “Metafísicas canibais” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., 2016Castro, E. V. de. (2016). Prefácio. In B. Azevedo, Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify.).

Para Viveiros de Castro (2016)Castro, E. V. de. (2016). Prefácio. In B. Azevedo, Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., a antropofagia oswaldiana é a reflexão metacultural mais original já produzida na América Latina, e sugere que o "Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade é uma proposta decolonial muito avant la lettre. A antropofagia no pensamento social revela-se como a reflexão que busca identificar o que há de melhor no outro, absorvendo aquilo que nos torna mais fortes. Não rejeita o que vem de fora, busca identificar o que pode ser útil para a realidade presente, a partir do local do sujeito. Porém, relega o que vem de fora sempre a uma posição subalterna (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify.).

O perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. sugere um “deslocamento reflexivo” (p. 72) para a posição ocupada pelo objeto de investigação que, assim, se torna o sujeito a partir do qual devemos questionar nossas próprias premissas. O que importa saber não é como nossas categorias entendem/descrevem o objeto, muito menos que parte de nós está refletida no objeto, mas sim como nosso sujeito/ex-objeto percebe nossas categorias/conceitos criadas para descrevê-lo. Ademais, devemos nos questionar se - a partir do ponto de vista de nosso sujeito - categorias/conceitos de fato são necessárias. Dito de outra maneira,

é preciso buscar um conceito antropológico de conceito que assuma a extraposicionalidade de todo pensamento criador ("selvagem") em sua positividade integral, e que se desenvolva em direção completamente diversa das noções tradicionais de categoria (inata ou adquirida), de representação (proposicional ou semi) ou de crença (simples ou "dobrada", como se diz das flores) (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 75).

Para Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., o deslocamento reflexivo deve ocorrer considerando-se uma “equivocidade intencional” ao procurarmos ocupar o ponto de vista do Outro, uma vez que “traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última - uma semelhança essencial - entre o que ele e nós “estávamos dizendo”” (p. 91).

Este ensaio discorre sobre as possibilidades que o conceito de perspectivismo ameríndio oferece aos Estudos Organizacionais (EOR). O "Manifesto antropófago", em seus 51 aforismos, conforme dissecado por Azevedo (2016)Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., será o fio condutor de nosso ensaio teórico, trajetória já iniciada com o título. Os aforismos do Manifesto surgirão ao longo deste ensaio como demarcadores, ou exclamadores, e serão o guia em nosso processo de antrofagização da principal obra de Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. investigada aqui: “Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural”. Dessa maneira, já iniciamos nosso ensaio com um deslocamento reflexivo ao tratarmos a literatura do Manifesto como ciência, diante da proposta de “tratarmos a ciência como literatura” para a produção de conhecimento (Czarniawska, 2004Czarniawska, B. (2004). Narratives in social science research. London, UK: Sage., p. 103). As questões que nos nortearão neste ensaio serão: Quais reflexões ontoepistemológicas podemos fazer em EOR com base no conceito de perspectivismo ameríndio? O que devemos considerar na construção do Outro em EOR com base em um deslocamento reflexivo, assumindo-se uma equivocidade intencional?

A área de EOR já se apropriou de contribuições da antropologia, como a teoria ator-rede de Bruno Latour - em quem Viveiros de Castro também se apoiou - e, no mesmo sentido, os estudos decoloniais contam entre seus pesquisadores com os antropólogos Arturo Escobar e Fernando Coronil, por exemplo. Assim, uma outra pretensão deste ensaio é - como produto do nosso processo de antropofagização - trazer os pensamentos de Oswald de Andrade e Viveiros de Castro para expandir as fronteiras dos estudos decoloniais na América Latina. Os estudos decoloniais têm se esforçado em dar foco aos pensamentos e jogar luz à realidade latino-americana. Contudo, notamos que a presença do Brasil nos estudos decoloniais não é devidamente explorada. Alguns pensadores brasileiros são citados, tais como Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Milton Santos, entre outros, mas suas construções teóricas não são devidamente exploradas (Wanderley & Barros, 2019Wanderley, S., & Barros, A. (2019). Decoloniality, geopolitics of knowledge and historic turn: Towards a Latin American agenda.Management & Organizational History, 14(1), 79-97. doi: 10.1080/17449359.2018.1431551
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). O pensamento social brasileiro conta com proposições teóricas que podem fortalecer os estudos decoloniais (Maia, 2009Maia, J. (2009). Pensamento brasileiro e teoria social: Notas para uma agenda de pesquisa. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24(71), 155-168. doi: 10.1590/S0102-69092009000300011
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). Acreditamos que o campo de EOR pode beber na fonte das Ciências Sociais para ampliar os caminhos epistemológicos sem cair nos perigos do “epistemocídio” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 104), evitando, assim, o pensamento euro-estadunidense como possibilidade única. Afinal, “sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (Andradre, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..).

Sobretudo, como sugere Oswald de Andrade, buscamos promover a “inversão de hierarquias temporais e geográficas” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 155), e, assim, girar a geografia do raciocínio para escaparmos da colonização do tempo-espaço imposta pela modernidade euro-estadunidense (Mignolo, 2011Mignolo, W. (2011). The darker side of Western modernity: Global futures, decolonial options. London, UK: Duke University Press.). Sobretudo, estamos empenhados na tarefa de “penser autrement (Foucault) o pensamento - de pensar “outramente”, pensar outra mente, pensar com outras mentes” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 25).

Após esta introdução, discorremos sobre a tradição e a autonomia dos EOR críticos no Brasil e suas tendências atuais com destaque para o conceito de antropofagia. Na terceira parte, apresentamos os conceitos que Viveiros de Castro elabora a partir das “Metafísicas canibais”, e discorremos sobre as possibilidades do perspectivismo ameríndio nos estudos organizacionais e discutimos como esses conceitos podem colaborar com os estudos decoloniais. Encerramos o ensaio com as considerações finais.

“NUNCA FOMOS CATEQUIZADOS”: OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CRÍTICOS NO BRASIL

“Nunca fomos catequizados” é uma das poucas frases que Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.. repete no Manifesto. Essa frase destaca a resistência indígena à colonização portuguesa e, sobretudo, a reação ao catolicismo imposto pelos jesuítas. Mais do que resistir, o processo de inversão sugerido por Oswald no Manifesto tem por objetivo ressaltar que o Brasil “não está “atrasado” em relação à Europa. Não precisa “copiar” nada nem se guiar por leis estrangeiras, ao contrário, é pioneiro e matriz original do futuro” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 196). No mesmo sentido, esta seção tem por objetivo apresentar a tradição e a autonomia dos Estudos Organizacionais Críticos (EOC) (Paes de Paula, 2010Paula, A. P. de. (2010). A tradição e a autonomia dos estudos organizacionais críticos no Brasil. RAE-Revista de Administração de Empresas, 50(1), 10-23. doi: 10.1590/s0034-75902010000100002
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) no Brasil e algumas de suas tendências atuais.

Oswald de Andrade (1928, p. 3)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.. inicia seu manifesto apontando que “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Assim demonstra, conforme aponta Azevedo (2016)Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., uma resposta ao manifesto comunista, pretendendo ilustrar, que antes mesmo de o ideal comunista se desenvolver, a antropofagia já era praticada pelos povos originários, resgatando o ritual ancestral da nação. A obra é denominada manifesto, pois essa intitulação prevê um cunho político e de provocação, e essa é a intenção do autor. Dessa forma, Oswald segue desvelando e buscando demonstrar como já existia vida antes do “descobrimento”, e não havia necessidade de um movimento de apresentação ao mundo, já se vivia nele, um cotidiano se desenrolava nas terras dos povos originários (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify.).

O penúltimo aforismo do Manifesto traz as sentenças “a nossa independência ainda não foi proclamada” [...] É preciso expulsar o espírito bragantino”, referindo-se ao evento “oficial” da proclamação da independência de maneira crítica. Essas frases realçam o movimento de independência cultural proposto pela Semana de 22, momento em que a proclamação oficial de nossa independência completou 100 anos (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify.). Ou seja, mesmo mais de 100 anos depois de proclamada a independência do Brasil, Oswald denuncia que ainda é necessário proclamar a libertação do Brasil. Em outras palavras, a colonialidade epistêmica (Ibarra-Colado, 2008Ibarra-Colado, E. (2008). Is there any future for critical management studies in Latin America? Moving from epistemic coloniality to ‘trans-discipline’. Organization, 15(6), 932-935. doi: 10.1177/1350508408095822
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) prossegue mesmo ao final da dominação colonial. Esse é um dos motivos pelos quais podemos considerar o "Manifesto antropófago" uma manifestação decolonial muito antes de o projeto político ser lançado por pesquisadores latino-americanos (hispanofônicos).

No mesmo sentido, os EOC no Brasil antecedem o movimento crítico no mundo anglo-saxão que ficou conhecido como Critical Management Studies (CMS). Pensadores como Alberto Guerreiro Ramos, Maurício Tragtenberg e Fernando Prestes Motta produziram estudos com as características do CMS, antes mesmo que essa vertente fosse inaugurada (Paes de Paula Paula, 2010Paula, A. P. de. (2010). A tradição e a autonomia dos estudos organizacionais críticos no Brasil. RAE-Revista de Administração de Empresas, 50(1), 10-23. doi: 10.1590/s0034-75902010000100002
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). A autora argumenta que “a ideia central é que essa antecedência constitui uma tradição, que é autônoma porque a base teórica e epistemológica utilizada por esses pensadores críticos é distinta” (Paes de Paula, 2015Paes de Paula, A. P. de. (2015). Repensando os estudos organizacionais: Por uma Nova Teoria do Conhecimento. Rio de Janeiro, RJ: EdFGV, Fapemig., p. 410). Por exemplo, Ramos (1954, p. 67)Ramos, A. G. (1954). Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo. Rio de Janeiro, RJ: Andes. denunciava a "sociologia enlatada", ou seja, o ranço do pensamento brasileiro em executar meros transplantes de experiências já vividas nos contextos de países mais avançados. Por seu turno, Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.. proclamou: “Contra todos os importadores de consciência enlatada”.

A antropofagia sugerida por Oswald já foi aproximada dos EOR e dos estudos sobre gestão. O estudo pioneiro de Wood e Caldas (1998)Wood, T., Jr., & Caldas, M, P. (1998). Antropofagia organizacional. RAE-Revista de Administração de Empresas, 38(4), 6-17. doi: 10.1590/s0034-75901998000400002
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, denominado “Antropofagia organizacional”, percebeu que a importação de modelos estrangeiros mostra-se problemática. Buscou, assim, discutir por que ocorre essa importação, depois mostrar que peculiaridades locais impedem sua implantação como previsto e, por fim, propor e ilustrar um “método antropofágico” de ação para essa importação em países emergentes. Tal método para importar modelos de gestão visa uma forma adaptativa e reflexiva com o compromisso criativo e adequado, sugerindo que as organizações de países emergentes não importem “de forma direta e irrefletida a tecnologia estrangeira, mas deve, quando for essencial utilizar modelos estrangeiros, selecionar sem preconceitos e de forma criativa o que de melhor tais referenciais estrangeiros podem oferecer” (Wood & Caldas, 1998Wood, T., Jr., & Caldas, M, P. (1998). Antropofagia organizacional. RAE-Revista de Administração de Empresas, 38(4), 6-17. doi: 10.1590/s0034-75901998000400002
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, p. 17).

A antropofagia também foi explorada nos estudos de Faria, Carvalho e Collares (2001)Faria, A., Carvalho, J. L. F. S., & Collares, L. (2001, setembro). Antropofagia, antropofagia organizacional e estudos tribais: Em busca da conciliação dialética de arte, cultura e management no Brasil. XXV Encontro da ANPAD, Campinas, SP., que enfocaram a proposta de antropofagia organizacional e a necessidade de uma proposta menos "nacionalística" e cientificista para abordar as questões de conhecimento e cultura. Em seguida, baseados em cuidadosa reconstrução do movimento antropofágico original e de sua epistemologia particular, os autores propõem a criação no Brasil de uma linha denominada estudos tribais.

Islam (2012)Islam, G. (2012). Can the subaltern eat? Anthropophagic culture as a Brazilian lens on post-colonial theory. Organization, 19(2), 159-180. doi: 10.1177/1350508411429396
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utilizou a antropofagia como uma metáfora para a compreensão do conhecimento em organização, aproximando o conceito do pensamento pós-colonial, e contruibuindo para a melhor compreensão das questões de mistura e hibridismo essenciais à teoria social contemporânea. Em seu artigo seguinte, Islam (2014)Islam, G. (2014). Appropriating the abject: An anthropophagic approach to organizational diversity. Equality, Diversity and Inclusion: An International Journal, 33(7), 595-613. doi: 10.1108/edi-03-2012-0023
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buscou trazer uma contribuição teórica, introduzindo o conceito de antropofagia cultural na literatura sobre diversidade. O autor apropriou-se da noção de abjeção de Kristeva, para compreender de maneira mais clara a antropofagia cultural, trazendo o argumento de que os antropófagos culturais cruzam fronteiras e constroem identidade por meio do desejo e da agressão para com os que são valorizados por eles. Islam (2015)Islam, G. (2015). A taste for otherness: Anthropophagy and the embodied self in organizations. Scandinavian Journal of Management, 31, 351-361. doi: 10.1016/j.scaman.2015.04.001
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investiga a corporalidade e a mistura de cultura. Seu objetivo é contribuir para o pensamento organizacional sobre a mistura cultural como um processo sensorial corporificado, investigando o conceito de antropofagia organizacional como uma metáfora para um modo particular de compreensão organizacional. Vale ressaltar que Islam (2012Islam, G. (2012). Can the subaltern eat? Anthropophagic culture as a Brazilian lens on post-colonial theory. Organization, 19(2), 159-180. doi: 10.1177/1350508411429396
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, 2014Islam, G. (2014). Appropriating the abject: An anthropophagic approach to organizational diversity. Equality, Diversity and Inclusion: An International Journal, 33(7), 595-613. doi: 10.1108/edi-03-2012-0023
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, 2015)Islam, G. (2015). A taste for otherness: Anthropophagy and the embodied self in organizations. Scandinavian Journal of Management, 31, 351-361. doi: 10.1016/j.scaman.2015.04.001
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se fundamentou em Viveiros de Castro, entre outros autores, para compreender a antropofagia.

Faria, Wanderley, Reis e Celano (2013)Faria, A., Wanderley, S., Reis, Y., & Celano, A. (2013). Can the subaltern teach? Performativity otherwise through anthropophagy?. In V. Malin , J. Murphy, & M. Siltaoja (Eds.),Dialogues in critical management studies (Vol. 2, pp. 205-224). utilizaram a antropofagia para apresentar os aprendizados de um estudo de caso realizado no Galpão Aplauso (GA). O GA é uma ONG localizada no Rio de Janeiro, que tem como objetivo principal (re)socializar jovens de baixa renda por meio de uma metodologia crítica informada pela antropofagia. Os autores apontaram que se apropriar dessa metodologia revela a capacidade que esses jovens possuem de contribuir com o conhecimento produzido no GA. Além disso, Faria et al. (2013)Faria, A., Wanderley, S., Reis, Y., & Celano, A. (2013). Can the subaltern teach? Performativity otherwise through anthropophagy?. In V. Malin , J. Murphy, & M. Siltaoja (Eds.),Dialogues in critical management studies (Vol. 2, pp. 205-224). demonstraram que, por meio da metodologia crítica informada pela antropofagia, é possível ir além das tradições eurocêntricas, ampliando, assim, as referências geográficas e culturais.

O trabalho de Pinto (2014)Pinto, F. R. (2014, setembro). A Redução Antropofágica: A poética de O. Andrade como método para transplantação acelerativa de tecnologias gerenciais. XXXVIII Encontro da Anpad, Rio de Janeiro, RJ. buscou elaborar um método para transplantação acelerativa de tecnologias gerenciais. Esse trabalho baseou-se na redução sociológica da poética oswaldiana em seu desenvolvimento histórico, e se insere no movimento antropofágico por promover respostas estratégicas criadoras diante das pressões institucionais.

Prado e Sapsed (2016)Prado, P., & Sapsed, J. (2016). The Anthropophagic organization: How innovations transcend the temporary in a project-based organization. Organization Studies, 37(12), 1793-1818. doi: 10.1177/0170840616655491
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debruçaram-se em trazer a antropofagia para os estudos em Administração por meio da inovação. Os autores apontam como as inovações em projetos podem ser difundidas com sucesso dentro de uma organização baseada em projeto e como elas seguem com as atividades por meio de sua adaptação. Para desenvolver esse trabalho, Prado e Sapsed (2016)Prado, P., & Sapsed, J. (2016). The Anthropophagic organization: How innovations transcend the temporary in a project-based organization. Organization Studies, 37(12), 1793-1818. doi: 10.1177/0170840616655491
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basearam-se na noção metafórica da antropofagia, utilizando-a para explicar a apropriação da alteridade resultante na vida organizacional em curso.

Assim, nota-se que as contribuições da antropofagia já suscitaram debates no campo de EOR, gestão e até mesmo em estratégia, inovação, corporalidade e diversidade. Além disso, gostaríamos de destacar alguns dos debates atuais em EOR que buscam ampliar as possibilidades de se compreenderem os fenômenos por meio de outras epistemologias e ontologias. Para isso, agregamos as discussões sobre teoria interseccional e Antropoceno.

A teoria interseccional tem origem no campo do feminismo negro, onde se busca propor teorias que contribuam com a desconstrução das estruturas de desigualdades (Teixeira, Oliveira, & Mesquita, 2019Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., & Mesquita, J. S. (2019, maio). Pode a interseccionalidade ser afrocentrada no campo da administração? Um ensaio teórico sobre as contribuições da teoria interseccional para a área de administração. X Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD, Fortaleza, CE.). A interseccionalidade apropria-se de uma conceituação metafórica da intersecção, entendendo que o problema que busca capturar vem das “consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (Crenshaw, 2002Crenshaw, Kimberlé. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/s0104-026x2002000100011
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, p. 177). A interseccionalidade trata especificamente como o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e os demais processos discriminatórios resultam e geram desigualdades básicas que dão forma às posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (Crenshaw, 2002Crenshaw, Kimberlé. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/s0104-026x2002000100011
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). O desempoderamento também é um aspecto tratado pela interseccionalidade, uma vez que as “ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (Crenshaw, 2002Crenshaw, Kimberlé. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/s0104-026x2002000100011
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, p. 177). Já é possível notar trabalhos que se apropriam desse aporte teórico no campo dos EOR e discutidos em congressos (e.g. Teixeira et al., 2019Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., & Mesquita, J. S. (2019, maio). Pode a interseccionalidade ser afrocentrada no campo da administração? Um ensaio teórico sobre as contribuições da teoria interseccional para a área de administração. X Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD, Fortaleza, CE.).

Viveiros de Castro (2019)Viveiros de Castro, E. B. (2019). On models and examples: engineers and bricoleurs in the Anthropocene. Current Anthropology, 60, p. S296-S308. doi: 10.1086/70278
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atualmente tem se dedicado aos science studies, explorando a noção do Antropoceno em diálogo com teóricos como Bruno Latour (2014)Latour, B. (2014). Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11-31. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
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, Donna Haraway (2016)Haraway, D (2016). Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5. Recuperado de climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5258
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e Isabelle Stengers (2018)Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464.. O Antropoceno pode ser compreendido como a era que estamos vivendo, em que os seres humanos e as sociedades se tornaram uma enorme força geofísica para o planeta, em que a grande aceleração do desenvolvimento e o aumento da concentração de dióxido de caborno na atmosfera trouxeram consequências relevantes para o sistema terrestre (Steffen, Crutzen, & McNeill, 2007Steffen, W., Crutzen, P. J., & McNeill, J. R. (2007). The Anthropocene: Are humans now overwhelming the great forces of nature. AMBIO: A Journal of the Human Environment, 36(8), 614-621. doi:10.1579/0044-7447(2007)36[614:taahno]2.0.co;2
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). A discussão sobre o Antropoceno, assim como a teoria interseccional, também vem ganhando espaço na área de EOR (e.g. Figueiredo & Marquesan, 2019Figueiredo, M., & Marquesan, F. (2019, maio). O Antropoceno como projeto científico para a América Latina: Possibilidades a partir dos estudos organizacionais. X Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD, Fortaleza, CE.).

Latour (2014)Latour, B. (2014). Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11-31. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
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, em sua discussão sobre o Antropoceno, alerta para a tensão entre ciência e política formada em torno do conceitual dessa era, uma vez que não há consenso sobre sua existência nos parâmetros geológicos. O autor analisa que o conceito de Antropoceno deve ir além das dimensões geológicas e chegar à filosofia, antropologia e política. Porém, diante das incertezas e dissensos que o campo científico e político trazem sobre esse conceito, faz-se importante destacar que a relevância do conceito do Antropoceno é a sua apropriação como uma opção para a noção de modernidade (Latour, 2014Latour, B. (2014). Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11-31. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
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era atual (Latour, 2014Latour, B. (2014). Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11-31. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
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).

Por seu turno, Haraway (2016)Haraway, D (2016). Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5. Recuperado de climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5258
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apontou que “ a relevância de nomear de Antropoceno, Plantationoceno ou Capitaloceno tem a ver com a escala, a relação taxa/velocidade, a sincronicidade e a complexidade” (p. 139). A autora questiona se há um ponto de inflexão que altera “o nome do jogo da vida na terra para todos e para tudo”, algo além das mudanças climáticas, contando também com os produtos químicos tóxicos, esgotamento de rios e lagos, grandes genocídios, todos esses fatores que poderão acarretar colapsos recursivos do sistema (Haraway, 2016Haraway, D (2016). Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5. Recuperado de climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5258
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, p. 139).

Stengers (2018)Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. também contribui para a ampliação da percepção sobre o entendimento do mundo e sugere a proposição cosmopolítica. Tal proposição não tem a intenção de se fazer teoria ou de se tornar universalizante, “a proposição cosmopolítica é mesmo incapaz de dar uma 'boa' definição dos procedimentos que permitem alcançar a 'boa' definição de um 'bom' mundo comum” (Stengers, 2018Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464., p. 446). A autora ressalta que “cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos, divergentes” (Stengers, 2018Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464., p. 447). Stengers (2018)Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. busca evidenciar as diferenças, inconstâncias sem se preocupar em propor soluções ou padrões neutros que permitam replicações no mundo social.

Em seu trabalho mais recente, Viveiros de Castro (2019)Viveiros de Castro, E. B. (2019). On models and examples: engineers and bricoleurs in the Anthropocene. Current Anthropology, 60, p. S296-S308. doi: 10.1086/70278
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buscou desenhar os esboços de uma noção de "anarquismo ontológico" como o metamodo apropriado de existência do Antropoceno, entendendo que o pensamento antropoceno exige a prática de uma forma radical de pluralismo ontológico. Podemos dizer que essa pluralismo está presente na cosmovisão dos ameríndios (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify.). Viveiros de Castro (2019)Viveiros de Castro, E. B. (2019). On models and examples: engineers and bricoleurs in the Anthropocene. Current Anthropology, 60, p. S296-S308. doi: 10.1086/70278
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faz uma uma distinção entre modelo e exemplo como modos contrastantes de articular pensamento e ação no Antropoceno. O autor considera que a distinção é útil para compreender os pressupostos ontológicos da geoengenharia como uma correção tecnopolítica.

Latour (2014)Latour, B. (2014). Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11-31. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2014.87702
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, Haraway (2016)Haraway, D (2016). Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5. Recuperado de climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5258
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e Stengers (2018)Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. não são pensadores antropofágicos, contudo suas discussões em torno do Antropoceno e dentro de science studies se relacionam com questões como pós-humanismo, natureza e corpo que fazem parte da cosmovisão de diversos povos originários da América Latina, entre eles os Araweté pesquisados por Viveiros de Castro (1986)Castro, E. V. de. (1986). Araweté: Os deuses canibais. Rio de Janeiro, RJ: J. J. Zahar..

“NO MATRIARCADO DE PINDORAMA”: VIVEIROS DE CASTRO E AS METAFÍSICAS CANIBAIS

“No matriarcado de Pindorama” é um aforismo curinga que Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.. utiliza para criar um “espaço-tempo” inventado e, assim, demarcar seu próprio território - atemporal - invertendo o patriarcado herdado do ocidente (Azevedo 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 91). Foi a partir de sua imersão no espaço-tempo dos Araweté que Viveiros de Castro (1986)Castro, E. V. de. (1986). Araweté: Os deuses canibais. Rio de Janeiro, RJ: J. J. Zahar. elaborou o conceito de perspectivismo ameríndio. Portanto, para preservar a originalidade da pesquisa de Viveiros de Castro, mantivemos sempre que possível as citações orginais.

Eduardo Batalha Viveiros de Castro nasceu no Rio de Janeiro e é formado em Ciências Sociais pela PUC-RJ, e é professor titular de Antropologia Social no Museu Nacional da UFRJ ( Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify.). Sua obra de grande destaque, “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (1996), foi traduzida para diversas línguas e inspirou a reflexão antropológica em todo o mundo. Roy Wagner (um antropólogo estadunidense que teve grande influência na área) diz que as contribuições de Viveiros de Castro fizeram com que pessoas como ele adquirissem uma percepção crítica do trabalho que estavam realizando (Wagner, 2011Wagner, R. (2011, agosto 17). O Apache era o meu reverso. Entrevista com Roy Wagner, realizada por Florencia Ferrari, Iracema Dulley, Jamille Pinheiro, Luísa Valentini, Renato Sztutman e Stelio Marras em São Paulo, SP.). Ainda segundo Wagner (2011)Wagner, R. (2011, agosto 17). O Apache era o meu reverso. Entrevista com Roy Wagner, realizada por Florencia Ferrari, Iracema Dulley, Jamille Pinheiro, Luísa Valentini, Renato Sztutman e Stelio Marras em São Paulo, SP., a introdução desse conceito foi uma grande contribuição do Brasil ao mundo da antropologia.

Nesta seção, apresentamos o conceito perspectivismo ameríndio buscando seu pontencial de contribuição para os EOR e para os estudos decoloniais. Esta seção está subdividida de modo a apresentar os diferentes conceitos que Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. propõe para compreendermos a visão de mundo dos nativos e que compõem o perspectivismo ameríndio: multinaturalismo, deslocamento reflexivo, equivocidade intencional e xamanismo. Antes, porém, cabem os alertas que fez Viveiros de Castro (2015, pp. 95 e 231)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify.: “[...] as teorias indígenas não se apresentam pré-embaladas de maneira tão prática, caro leitor [...] pois não podemos pensar como os índios; podemos, no máximo, pensar com os índios”.

“Contra todas as catequeses” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..): perspectivismo ameríndio ou multinaturalismo perspectivista

Para ilustrar como se dá o perspectivismo, Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. reporta seu ponto de partida à parábola de Lévi-Strauss sobre a conquista da América. Segundo essa parábola, nas Antilhas, enquanto os espanhóis criavam comissões para discutir se os indígenas possuíam alma, estes tratavam de submergir os cadávares dos espanhóis para, após longa observação, verificar se seus corpos também apodreciam. A análise que Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. faz dessa parábola aponta que:

A hipótese perspectivista segundo a qual os regimes ontológicos ameríndios divergem daqueles mais difundidos no Ocidente precisamente no que concerne às funções semióticas inversas atribuídas ao corpo e à alma. Para os espanhóis do incidente das Antilhas, a dimensão marcada era a alma; para os índios, era o corpo. Por outras palavras os europeus nunca duvidaram de que os índios tivessem corpo (os animais também os têm); os índios nunca duvidaram de que os europeus tivessem alma (os animais também as têm). O etnocentrismo dos europeus consistia em duvidar que os corpos dos outros contivessem uma alma formalmente semelhante às que habitavam os seus próprios corpos; o etnocentrismo ameríndio, ao contrário, consistia em duvidar que outras almas ou espíritos fossem dotados de um corpo materialmente semelhante aos corpos indígenas. (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., pp. 36-37)

A conclusão de Lévi-Strauss para essa parábola é que, em face da ignorância mútua sobre o outro, os indígenas foram mais humanos ao imaginarem que os espanhóis pudessem ser deuses, ao passo que os espanhóis, ao entenderem que os indígenas não possuíam alma, consideraram-nos como animais. Sendo animais, estavam passíveis de serem caçados e domesticados (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify.). E, ao serem dizimados e espoliados, permitiram que os europeus praticassem o ego conquiro, sem o qual não teria surgido o ego cogito (Dussel, 1993Dussel, E. (1993). 1492. O encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes.).

A parábola das Antilhas nos auxilia a compreender o chão de onde parte o pensamento sobre o perspectivismo ameríndio, demonstrando tratar-se de uma virada ontológica, e não somente epistemológica, uma vez que é preciso entender como os outros seres entendem a sua próprio natureza, assim como entender como eles nos compreendem, para então compreender como acontecem suas ações, rituais, crenças e modos de vida e organização.

O perspectivismo ameríndio tem como ponto de partida as etnografias amazônicas e suas inúmeras referências, que abordam uma teoria indígena que versa sobre as visões de mundo, onde

o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo - deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos -, é profundamente diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem. (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 117)

Portanto, faz-se necessário um despredimento do nosso ponto de vista para que seja possível captar como a visão de mundo e a natureza do Outro direcionam suas ações. O perspectivismo ameríndio traz a noção de que

os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predadores). (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 117)

Em contrapartida, de um outro ponto de vista, os animais e os espíritos “se vêem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura” (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 117). Esses seres também organizam seu mapa mental e percebem “seu alimento como alimento humano ([...]os urubus vêem os vermes da carne podre como peixe assado), seus atributos corporais como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos)” (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
, p. 117). Em suma, “a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 60; itálico no original).

Todavia, essa “humanidade é reflexiva, mas não pode ser mútua” ” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 62), pois dois polos “humanos” não podem estar ativados simultaneamente e reconhecerem a si mesmo e ao Outro como humanos. Isso se explica pelo fato de que:

é humano quem ocupa vicariamente a posição de sujeito cosmológico; todo existente pode ser pensado como pensante (“isto existe, logo isto pensa”), isto é, como “ativado” ou “agenciado por um ponto de vista"; do outro lado, uma radical diversidade real ou objetiva. O perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação. Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 65)

Viveiros de Castro (2015, p. 69)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. apresenta o conceito de “multinaturalismo perspectivista” como similiar ao perspectivismo ameríndio, pois o “multinaturalismo amazônico não afirma uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a variação como natureza”. O multinaturalismo serve como contraponto ao conceito do ocidente de multiculturalismo, pois este parte de uma "unicidade de natureza e uma multiplicidade das culturas”, ao passo que a concepção ameríndia pressupõe o oposto, a natureza ou o objeto é a forma do particular, enquanto a “cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 43).

Nesse entremeio de mundos, a teoria indígena percebe que os animais também são gente, ou se notam como pessoas, pois o ponto de vista está no corpo (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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). Essa construção “está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma 'roupa') a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs” (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 117). Nessa dialética dos diversos mundos, a figura do xamã torna-se imprescindível. Os xamãs são “dedicados a comunicar e administrar essas perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou tornar inteligíveis as intuições” (Viveiros de Castro, 1996Castro, E. V. de. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MANA, 2(2), 115-144. doi: 10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 117).

A roupa é a forma como o corpo se apresenta, pois a questão de fundo para o perspectivismo é que todos os seres - vivos ou não, humanos ou não - têm a potencialidade ontológica de adquirir a forma humana. É dessa (des)continuidade entre humanos vivos ou mortos-não-humanos-natureza e nas diferentes formas que se apresentam que emerge o perspectivismo. Portanto, “a “personitude” e a “perspectividade” - a capacidade de ocupar um ponto de vista - são uma questão de grau, de contexto e de posição, antes que uma propriedade distintiva de tal ou qual espécie” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 46). É por essa razão que Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.. exclamou que “o que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior”. O que Oswald parece nos propor aqui é “uma maior interpenetração entre esses dois mundos, reavivando um dialógo natural que foi corrompido pela “roupa” que (re)veste a civilização” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., pp. 117-118).

Destarte, estarmos limitados por nossa “roupa” - ou pela “couraça” de nossas premissas teórico-metodológicas - é o que nos faz perceber as outras formas de pensar e a natureza dos outros seres como algo distante e externo a nós e, por conseguinte, faz com que nossa ancestralidade/localidade seja rejeitada e, assim, pode nos levar a enaltecer a visão do norte. Dessa forma, “supor que todo o discurso 'europeu' sobre os povos de tradição não européia só serve para iluminar nossas 'representações do Outro' é fazer de um certo pós-colonialismo teórico a manifestação mais perversa do etnocentrismo” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 21).

O autor tece uma crítica ao modo de se fazer e pesquisar no seu campo, a Antropologia. Para ele, “é preciso tirar todas as consequências da ideia de que as sociedades e as culturas que são o objeto da pesquisa antropológica influenciam, ou, [...] coproduzem as teorias sobre a sociedade e a cultura formuladas a partir dessas pesquisas” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 22). Nesse sentido, negar essa questão significa assumir um construtivismo de mão única, onde o pesquisador percebe o outro apenas como objeto, não negando a imparcialidade. É importante não fazer do nativo um “outramento” (othering), que significa “qualquer caracterização antropológica que não faça dele um espelho no qual nos reconheçamos” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 22).

O que Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. propõe é fazermos exatamente o inverso, é tomarmos o pensamento nativo “como prática de sentido: como dispositivo autorreferencial de produção de conceitos, de 'símbolos que representam a si mesmos'” (p. 229; itálico no original). Portanto, o perspectivismo não é um tipo, mas um conceito; aliás, ele não é um tipo de tipo, mas um conceito de conceito, cujo emprego mais interessante não consiste tanto em classificar cosmologias que nos parecem excessivamente exóticas, mas em contra-analisar antropologias que nos são demasiadamente familiares. (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 73)

Assim como no "Manifesto antropófago" “tudo passa pelo corpo e ao corpo retornará” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 205), “o perspectivismo é um maneirismo corporal” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 66). O perspectivismo pressupõe uma unicidade de espírito e uma diversidade de corpos e “é o corpo como feixe de afetos e capacidades, e que é a origem das perspectivas (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 66). Ou, como nas palavras de Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.., “o espírito recusa-se a receber o espírito sem o corpo”. Então, se os animais, ou os mortos, se veem como humanos e, nessa forma, são capazes de enxergar objetos da mesma maneira como nós enxergamos objetos diversos, temos a representação de um sentido único, porém com base em referências múltiplas: “todos os seres veem ('representam') o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles veem” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 64; itálico no original). Portanto, o “perspectivismo pressupõe uma epistemologia constante e ontologias variáveis”, e sua questão não é de “encontrar a referência comum, mas, ao contrário, o de encontrar o equívoco” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 67).

“Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas, cadaverizadas”: deslocamento reflexivo/equivocidade intencional

Para “encontrar o equívoco”, é necessário que, para a compreensão/ocupação do ponto de vista do Outro, efetuemos um deslocamento reflexivo baseado numa equivocidade intencional (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 67). Esse é um outro caminho possível para os EOR irem além de “ideias objetivadas, cadaverizadas” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..).

Em sua convivência com os Araweté, Viveiros de Castro (1986)Castro, E. V. de. (1986). Araweté: Os deuses canibais. Rio de Janeiro, RJ: J. J. Zahar. conta que uma de suas inspirações para a formulação do conceito do perspectivismo ameríndio foi o canto durante o ritual canibal do guerreiro que fará o sacrifício do inimigo capturado em combate. É importante ressaltar que os Araweté não devoram suas vítimas, pois essas eram oferecidas como sacrifício a ““entidades sobrenaturais” [que estavam] no papel de polo ativo da relação canibal” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 158). O guerreiro canta pela voz de seu inimigo e conta, a partir do ponto de vista de seu inimigo, como vê o próprio guerreiro e quantos dos Araweté ele, o inimigo, teria exterminado. O que é devorado não é o corpo, mas o que ele simboliza, a relação do inimigo com o seu devorador. Em outras palavras, “o que se assimilava da vítima eram os signos de sua alteridade, e o que se visava mesmo era essa alteridade como ponto de vista sobre o Eu” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 160).

Mormente, percebemos que o ritual canibal dos Araweté representa “um movimento paradoxal de autodeterminação recíproca pelo ponto de vista do inimigo” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 160): com base num deslocamento reflexivo, o guerreiro, a partir do ponto de vista do inimigo, apreende-se como sujeito, “ou antes, em que ele pronuncia sua própria singularidade pela voz do outro. Perspectivismo” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 161).

Viveiros de Castro (2015, p. 159)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. terminou por definir o canibalismo tupi como “esquema actancial” como “um processo de transmutação de perspectivas, onde o 'eu' se determina como 'outro' pelo ato mesmo de incorporar este outro, que por sua vez se torna um 'eu', mas sempre no outro, através do outro ('através' também no sentido solecístico de 'por meio de').”

O deslocamento reflexivo é feito com o intuito de “instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo. Não para desfazê-lo, o que suporia que ele nunca existiu, mas muito ao contrário, para potencializá-lo, abrindo e alargando o espaço que se imaginava não existir entre as linguagens conceituais” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 90). O equívoco toma como premissa que as linguagens em jogo são heterôgeneas e que há um espaço em branco entre elas: “o equívoco, em suma, não é uma falha subjetiva, mas um dispositivo de objetivação. Ele não é um erro ou uma ilusão [...]” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 90).

“A baixa antropofogia... é contra ela que estamos agindo. Antropófagos” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..): xamã um border thinker?

Estamos nós aqui em nosso ambiente estéril de pesquisa tentando praticar a alta antropofagia. Nós não estivemos com Oswald de Andrade na Semana de Arte de 1922, não escrevemos para a Revista de Antropofagia, tampouco estivemos junto com os Araweté por alguns anos como Viveiros de Castro. Sequer visitamos uma tribo indígena para elaborar este ensaio. O máximo que conseguimos fazer é pensar com eles - Oswald e Viveiros de Castro - uma vez que “não podemos pensar como” eles (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 231). Afinal, “que temos nós [em EOR] com isso?” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..).

Sobretudo, o conceito de perspectivismo ameríndio nos remete a refletirmos como pesquisadores sobre as escolhas teórico-metodológicas que fazemos para investigar nosso objeto/sujeito. Refletirmos não somente a partir de nossa própria perspectiva, mas também a partir do ponto de vista de nosso sujeito/ex-objeto. Afinal, “toda experiência de um outro pensamento é uma experiência sobre o nosso próprio” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 96). Devemos refletir sobre as consequências de nossa tarefa como investigadores ao dominarmos uma estrutura teórico-metodológica - nossa roupa - e sairmos pelo mundo procurando objetos/sujeitos em que possamos - vestir - aplicar essa estrutura-roupa. Para o perspectivismo ameríndio, “um objeto é um sujeito incompletamente interpretado” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 52).

Portanto, para interpretarmos esse sujeito, devemos refletir sobre as consequências que nossas escolhas ontoepistemológicas terão sobre nossa pesquisa a partir do ponto de vista do Outro. Neste ponto, entendemos que os conceitos de deslocamento reflexivo e equivocidade intencional (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify.) têm muito a contribuir com a construção do Outro em EOR e com o conceito de border thinking nos estudos decolonais. O border thinker busca produzir um outro conhecimento a partir dos conhecimentos com os quais se relaciona, sem ser um mero reprodutor, mas um agente que transita entre as fronteiras sem se identificar com nenhuma delas (Faria, 2013Faria, A., Wanderley, S., Reis, Y., & Celano, A. (2013). Can the subaltern teach? Performativity otherwise through anthropophagy?. In V. Malin , J. Murphy, & M. Siltaoja (Eds.),Dialogues in critical management studies (Vol. 2, pp. 205-224).), ou seja, movimenta-se em ambos os lados e tradições sem ser de nenhuma delas (Mignolo & Tlostanova, 2006Mignolo, W., & Tlostanova, M. (2006). Theorizing from the borders: Shifting to geo-and body-politics of knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221. doi: 10.1177/1368431006063333
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). Afinal, “o objeto da interpretação é a contrainterpretação do objeto” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 52).

Nesse giro ontológico de perspectiva, o pesquisador seria um xamã do lado externo da borda ao dialogar com o conhecimento produzido no lado interno. Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. aponta que “o xamanismo é um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes, um certo ideal de conhecimento” (p. 50). Percebemos que essa função do xamã se aproxima de uma atitude border thinking, uma vez que o “xamanismo ameríndio pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies e adotar a perspectiva de subjetividades 'estrangeiras', de modo a administrar as relações entre estas e os humanos” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 49). E administrar essas relações não quer dizer encontrar sinônimos entre as representações similares para objetos diferentes que cada espécie faz, mas sim “é não perder de vista a diferença oculta dentro dos homônimos equívocos que conectam-separam nossa língua e a das outras espécies” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 68; itálico no original).

Nesse sentido, é importante ressaltar que essa perspectiva é fruto de um outro modo de pensar, que se afasta da lógica objetivista que é motivada pela modernidade do ocidente. Para tal modernidade, “conhecer é “objetivar”; é poder distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 50). A epistemologia moderna entende que conhecer “é dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal (ou a ampliá-la demonstrativamente em vista da obtenção de efeitos críticos espetaculares)” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 50).

Dessa maneira, para a modernidade ocidental, tudo se torna objeto e passível de ser objetificado, é preciso racionalizar e dar forma ao que se pretende conhecer:

Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são concedidos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver “de fora”, como um “isso” [...] o que não foi objetivado permanece irreal e abstrato, a forma do Outro é coisa. (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 50)

O border thinking traz à superfície diferentes atores do campo, que desenvolvem teorias e ideias de conhecimento buscando jogar luz a todos, deslocando da modernidade europeia a legitimidade exclusiva de articular conceitos e teorias, buscando capacitar aqueles que foram “desempregados pelo ego e a política do conhecimento” (Mignolo & Tlostanova, 2006Mignolo, W., & Tlostanova, M. (2006). Theorizing from the borders: Shifting to geo-and body-politics of knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221. doi: 10.1177/1368431006063333
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, p. 207). O border thinking compreende a existência e convivência de todos os mundos, e visa a “construção de um mundo em que muitos mundos e conhecimentos podem coexistir” (Faria, 2013Faria, A., Wanderley, S., Reis, Y., & Celano, A. (2013). Can the subaltern teach? Performativity otherwise through anthropophagy?. In V. Malin , J. Murphy, & M. Siltaoja (Eds.),Dialogues in critical management studies (Vol. 2, pp. 205-224)., p. 278). Portanto,

a mudança epistêmica decolonial não está mais fundamentada nas categorias de pensamento grega e latina que informaram a epistemologia moderna (desde o Renascimento) nas seis línguas imperiais (italiano, espanhol e português para o Renascimento, francês, inglês e alemão para o Iluminismo), mas nas fronteiras epistêmicas entre as categorias imperiais europeias e as e categorias que a epistemologia moderna descartou como epistemologicamente não sustentável (por exemplo, mandarim, japonês, russo, hindu, urdu, aymara, náuatl, wolof, árabe, etc.). (Mignolo & Tlostanova, 2006Mignolo, W., & Tlostanova, M. (2006). Theorizing from the borders: Shifting to geo-and body-politics of knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221. doi: 10.1177/1368431006063333
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, p. 207)

Devemos acrescentar a essa lista não somente as línguas dos povos originários da America Latina, mas também, e sobretudo, a cosmovisão que desenvolveram com base nessas línguas, como o tupi dos Araweté estudados por Viveiros de Castro. É importante ressaltar que Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. sugere que alguns dos elementos das cosmovisões dos Araweté são comuns à vários povos da América Latina.

Seja como xamã ou como border thinker, o que importa é que, como pesquisadores, devemos estar cientes de que “conhecer é “personificar”, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido. Ou antes, daquele; pois a questão é a de saber “o quem das coisas” (Guimarães Rosa), saber indispensável para responder com inteligência à questão do “por quê”. A forma do Outro é a pessoa” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 50; itálico no original). E, para tomarmos a forma do outro, ou habitar o seu corpo para podermos ativar seu ponto de vista, devemos estar cientes de que o equívoco é uma premissa. A proposta epistemológica introduzida pelo perspectivismo ameríndio parte do princípio de que “o conhecimento verdadeiro visa à revelação de um máximo de intencionalidade, por via de um processo de 'abdução de agência' sistemático e deliberado” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 51).

O que estamos sugerindo aqui é que nós “queremos a revolução Caraíba” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..), ou seja, queremos “descatequizar” o pensamento, a “consciência enlatada”, assim como Oswald opera “através das rupturas que introduz na própria linguagem e no encadeamento dos aforismos do Manifesto, onde não há sequência previsível nem sintaxe 'domesticada'” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 141). O que almejamos é “o mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César” (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..), por meio da inversão de hierarquias temporais e geográficas que dominam a construção do conhecimento (Mignolo, 2011Mignolo, W. (2011). The darker side of Western modernity: Global futures, decolonial options. London, UK: Duke University Press.). Em suma, “trata-se de ler os filósofos à luz do pensamento selvagem, e não o contrário: trata-se de atualizar os incontáveis devires-outrem que existem como vituralidades de nosso pensar”, pois “agora é a vez do nativo - the turn of the native” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 90 e 88).

“CONTRA O ÍNDIO DE TOCHEIRO”

O objetivo deste ensaio foi investigar as possibilidades do conceito de perspectivismo ameríndio em EOR. Por meio do "Manifesto antropófago" (Andrade, 1928Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3..), devoramos o livro de Viveiros de Castro (2015)Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. e, como consequência, trazemos os conceitos de antropofagia e perspectivismo ameríndio para ampliar o espaço de debates em EOR e nos estudos decoloniais. Ao aproximar as cosmovisões de mundo indígenas, podemos amplificar as perspectivas para a área, entendendo o perspectivismo como uma forma de romper barreiras ontoepistemológicas. Contudo, como adverte Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.., estamos “contra o índio de tocheiro” e contra o “índio vestido de senador do Império”, que simbolizam as “imagens do indianismo romântico brasileiro e sua transferência acrítica de valores” (Azevedo, 2016Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 170).

De maneira alguma pretendemos esgotar neste ensaio as possibilidades de utilização dos conceitos oriundos do perspectivismo ameríndio em EOR, ao contrário, queremos incentivar outros pesquisadores a explorarem devires possíveis. Entendemos o potencial do perspectivismo assim como Azevedo (2016)Azevedo, B. (2016) Antropofagia: Palimpsesto selvagem. São Paulo, SP: Cosac Naify. entende o "Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade: “não é obra fechada, ao contrário, é um espaço pleno de possibilidades e virtualidaes, pode e deve ser relido e recriado infinitamente” (pp. 213-214; itálico no original).

Na tentativa de decolonizar as teorizações difundidas na área, acreditamos que retornar aos pensamentos dos povos originários pode causar reflexões importantes sobre nosso lócus de enunciação, levando em consideração que essas perspectivas podem nos ajudar a traçar uma história dos saberes organizacionais, buscando não reproduzir os mapas mentais e conceituais dominantes. Assim, acreditamos que tanto o perspectivismo ameríndio como a antropofagia podem embasar as orientações para (re)contar possíveis histórias dos saberes organizacionais com base no compromisso decolonial latino-americano, promovendo um giro ontológico, no qual o pesquisador seria um xamã do lado externo da borda ao dialogar com o conhecimento produzido no lado interno.

Como um xamã que veste a “roupa” do Outro para transitar por outros mundos, é preciso que façamos de nossa roupa uma couraça para o encontro com o pensamento dominante do lado interno da borda, assim como devemos nos despir de nossa couração teórico-metodológica quando buscamos (re)construir o Outro em EOR. Nesse transitar, ou deslocamento reflexivo, devemos assumir uma atitude border thinking que esteja baseada num exercício de dupla consciência (Mignolo, 2011Mignolo, W. (2011). The darker side of Western modernity: Global futures, decolonial options. London, UK: Duke University Press.), afinal “o signo de uma inteligência xamânica de primeira linha é a capacidade de ver simultaneamente segundo duas perspectivas incompatíveis” (Viveiros de Castro, 2015Castro, E. V. de. (2015). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 63). Nesse deslocamento reflexivo, devemos assumir uma equivocidade intencional para, assim, buscarmos do lado interno da borda o que nos fortaleça - antropofagicamente - sem nos deixarmos catequizar, e retornarmos para o lado externo da borda. Assim, podemos nos habilitar com a roupa propiciada pelo perspectivismo ameríndio para investigarmos teorias que nos pareçam demasiado familiares, em vez de utilizá-las para investigar objetos que nos pareçam exóticos.

Acreditamos que o perspectivismo ameríndio para nós, pesquisadores no campo dos EOR, se aproxima de uma atitude de pesquisa que exalta a equivocidade, ou seja, a igualdade entre as vozes. Destacamos, como também contribuição do perspectivismo, a importância de partir para o campo de pesquisa com o entendimento de que todas as vozes têm o mesmo valor, compreendendo que o natural do campo são as diferenças e não as repetições, que a nossa contribuição é evidenciar as diferenças que emergem entre o entendimento que temos do campo e como o campo percebe o que achamos que entendemos. É a partir dessa heterogeneidade que devemos instalar nossa investigação.

Destarte, seguindo o "Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade (1928)Andrade, O. de. (1928, maio). O manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, 1, p. 3.., devemos lutar para inscrever nossas diversas origens indígenas na casa do conhecimento, e assim “expulsar o espírito bragantino” e rompermos com a colonialidade epistêmica: “contra a memória como fonte do costume. A experiência pessoal renovada”.

  • Avaliado pelo sistema double blind review. Editores Científicos convidados: Diego Szlechter, Leonardo Solarte Pazos, Juliana Cristina Teixeira, Jorge Feregrino, Pablo Isla Madariaga e Rafael Alcadipani

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2019
  • Aceito
    14 Out 2019
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