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DE ONDE VIEMOS, PARA ONDE VAMOS? AUTOCRÍTICA COLETIVA E HORIZONTES DESEJÁVEIS AOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS NO BRASIL

Os textos que se seguem, versões daqueles proferidos em sessão livre do VI Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais (CBEO), tomam a autocrítica coletiva como imprescindível à evolução dos pesquisadores de Estudos Organizacionais (EOR), que precisa forjar horizontes desejáveis para si própria, e convidam os pares à reflexão acerca da nossa trajetória recente, em particular sobre: (1) heranças, tensionamentos e demarcações de distância em relação à sua disciplina-mãe, a Administração; (2) uma possibilidade de crescimento ao sermos tocados pela virtude acadêmica;

1. os desafios enfrentados e as proposições que podem advir de uma experiência editorial recente; e, por fim, (4) novos direcionamentos à atuação de um grupo de pesquisa para se fazer mais efetivo e articulado em suas ações de ensino, pesquisa e extensão. Ao final, um esforço de síntese reflexiva também é registrado.

APRESENTAÇÃO

Por Marcio Sá

No IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais (CBEO), em Porto Alegre, foi promovido um debate intitulado “Habitus, antes que método, de um pesquisador ‘político’”, registrado na Revista Brasileira de Estudos Organizacionais (Barros, Sá, Mattos, & Oliveira, 2016Barros, A. N., Sá, M. G., Mattos, P. L. C. L., & Oliveira, S. A. (2016). Habitus, antes que método, de um pesquisador “político". Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 3(2), 194-217. doi: 10.21583/2447-4851.rbeo.2016.v3n2.86
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). No V CBEO, em Curitiba, o debate anterior foi prolongado e inscrito no título “Autoformação política em pesquisa social: Intencionalidades duradoras e a prioridade do local”, que tomou como ponto de partida uma simples provocação: pesquisadores e pesquisadoras estão em processo permanente de (auto)formação. Os textos lá proferidos foram reunidos e publicados na revista Teoria e Prática em Administração (Mattos, Barros, Sá, & Costa, 2019Mattos, P. L., Barros, A., Sá, M. G., & Costa, A. S. M. (Eds.). (2019). Autoformação política em pesquisa social: Intencionalidades duradouras e a prioridade do local [artigo de opinião]. TPA - Teoria e Prática em Administração, 9(1), 1-14. doi: 10.21714/2238-104X2019v9i1-41576
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), com o mesmo título. Com esse breve resgate, gostaria apenas de registrar a trajetória que antecede e possibilita o debate que teve lugar no VI CBEO, posteriormente adaptado para esta publicação.

Criticar, em meios nos quais o adjetivo “crítico” parece servir como uma senha de acesso ou sobrenome mais recorrente, não parece ser tarefa inovadora, mesmo havendo Críticas (bem- elaboradas, perspicazes e inspiradoras) e “críticas” (reprodutivismo inócuo). Com a pretensão de ir além de ambas, este debate toma como ponto de partida o seguinte entendimento: para o amadurecimento de uma jovem comunidade científica, é necessário praticar e estimular o desenvolvimento de sua capacidade autocrítica coletiva.

A competência autocrítica não se costuma expor em ambientes acadêmicos. Todavia, quanto mais uma comunidade demonstra abertura para exercícios de tal natureza, ou seja, de reflexividade substantiva, radical e pública sobre si mesma, mais merecerá reconhecimento como espaço plural, que acolhe e respeita depoimentos genuínos e divergentes - desde que observadas premissas éticas, claro. É por meio da liberdade de posicionar-se sobre um devir coletivo que podemos tanto olhar para sua trajetória recente de modo a aprender com o que avaliamos terem sido seus (des)caminhos quanto esboçar planos para além do curto prazo.

Os textos que se seguem tomam a autocrítica como componente imprescindível para a evolução substantiva de uma coletividade, que se reconhece e se constitui como uma sociedade nacional de pesquisadores, e convida os pares à reflexão sobre aspectos da sua/nossa trajetória histórica recente a partir de tal prisma. Ao fazê-lo, busca-se ampliar a discussão para o escopo da própria comunidade, com o intuito de expor e provocar debate sobre: (1) heranças, tensionamentos e demarcações de distância em relação à sua disciplina-mãe, a Administração; (2) uma possibilidade de crescimento ao sermos tocados pela virtude acadêmica e modo de vida de colegas mais experientes com os quais convivemos; (3) os desafios enfrentados e as proposições que podem advir de uma experiência editorial recente; e, por fim, (4) novos direcionamentos ao modo de atuar de um grupo de pesquisa no afã de se fazer mais efetivo e articulado em suas ações de ensino, pesquisa e extensão do conhecimento que produz à sociedade. Afinal, acredita-se que, para uma coletividade - que se propõe usar vestes científicas - seguir adiante e se desenvolver do melhor modo possível, precisa entender-se com as realizações e frustrações de seu passado recente.

Em síntese, o que nos motivou a abraçar esta proposta foi o anseio de promover um debate sobre aspectos mais recentes presentes nos EOR no Brasil e expandir nosso olhar para a próxima década e vislumbrar horizontes. A todos, foi facultada a liberdade necessária para um relato mais ou menos íntimo, de suas experiências pessoais, conforme mais apetecesse a cada um dos participantes. Mas, para além do modo de dizer, nos reunimos pelo propósito da discussão de ideias sobre e para nós mesmos. Ao final dos proferimentos originais, foi acrescentado um esforço de síntese reflexiva.

A AMIZADE COMO FUTURO

Por Rafael Alcadipani

As origens

Qualquer apreciação a respeito dos Estudos Organizacionais (EOR) no Brasil será necessariamente um retrato parcial pela perspectiva daquele que o faz. Por isso, a minha apreciação do nosso campo de conhecimento não se pretende neutra e portadora da verdade a respeito do que foram e do que são os EOR nacionais. Este texto é uma reflexão a respeito daquilo que notei ao longo desta minha trajetória no campo que já dura 20 anos.

Não existe uma definição consensual a respeito do que EOR, que, para mim, são pesquisas e reflexões acadêmicas que analisam o funcionamento, definido de maneira ampla, e as peculiaridades das organizações. Considero que suas origens no Brasil estão nos trabalhos de Alberto Guerreiro Ramos, Mauricio Tragtenberg e Fernando Prestes Motta. Embora Guerreiro Ramos e Tragtenberg tenham tido parte importante de suas carreiras em departamentos de Ciências Sociais e Prestes Motta tenha trabalhado também na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, os EOR brasileiros, assim como em outros países do mundo, ganharam destaque e proeminência dentro de escolas de Administração. Em suas origens, o pensamento organizacional brasileiro teve pouca preocupação com a elaboração de estudos empíricos. Exceção importante é o trabalho de Liliana Segnini (1988)Segnini, L. (1988). A liturgia do poder: Trabalho e disciplina. São Paulo, SP: EDUC., orientada de Tragtenberg, que, em sua obra A liturgia do poder: Trabalho e disciplina, analisou os mecanismos de poder em operação no Bradesco. Considero que esse seja um dos textos clássicos dos EOR nacionais.

O mal-estar dos Estudos Organizacionais

A verve eminentemente teórica, a forte inspiração sociológica de matiz reflexiva e a não preocupação com a aplicabilidade gerencial fizeram com que nossos EOR não tivessem uma posição fácil dentro das escolas de Administração. Por um lado, as demais áreas da Administração, como Marketing, Finanças e Operações, identificadas com uma visão funcional e de aplicabilidade do conhecimento, viam com desconfiança os EOR, por outro, os próprios EOR sentiam-se pouco identificados com o que é um curso de Administração tradicional e percebiam-se muito mais como uma forma de Ciência Social.

Todavia, boa parte da Ciência Social brasileira nutria e nutre grandes preconceitos com relação ao trabalho desenvolvido em escolas de Administração. É como se todos os bacharéis em Administração fossem incapazes de compreender a complexidade do pensamento social e estivessem, necessariamente, a favor do mercado - grande pecado para o pensamento social brasileiro. As Ciências Sociais brasileiras, em larga medida insular e provinciana como se estabeleceu e se mantém, nunca viu a Administração como campo de conhecimento que ela pudesse respeitar. Soma-se a isso ao fato de que, nos EOR, até pouco tempo atrás havia um compromisso mínimo com a análise com fundamentação empírica, o que fez com que o campo se distanciasse ainda mais das escolas de Administração, pois criou-se, em algumas pesquisas do campo, uma visão estereotipada e pouco complexa do que são empresas e organizações, do que fazem os gestores etc. Mais recentemente, a preocupação empírica se estabeleceu, mas muito sob a lógica de uma divisão do trabalho onde o professor não coleta e não analisa os dados. Muitos professores não fazem pesquisa, quem faz são os alunos. Além disso, os estudos empíricos raramente são indutivos, na sua grande maioria eles usam um pensador europeu e tentam forçar o material empírico para ser explicado pelo grande senhor teórico europeu.

Nesse contexto, considero que os EOR brasileiros possuem um problema identitário em sua raiz de não se verem reconhecidos pelo pensamento social no Brasil, ao mesmo tempo que não se sentem confortáveis dentro das escolas de Administração. É como se EOR não reconhecesse como válidas as áreas funcionais da Administração. Ou seja, EOR vive um grave paradoxo no Brasil: não é reconhecido por quem se deseja ser, e não reconhece quem está no mesmo espaço. Dentro dessa lógica, parte importante dos EOR brasileiros tende a negar a empresa tradicional e suas variações contemporâneas como objeto de análise, focando tipos organizacionais que estão à beira do sistema econômico. Isso não é um problema por si só. A consequência é que, cada vez menos, os EOR falam do objeto das escolas de Administração onde estão colocados, distanciando-se ainda mais da Administração do ponto de vista tradicional. Não defendo, em hipótese alguma, que os EOR precisem produzir um gerencialismo raso, tampouco o fechamento do campo. Por outro lado, perdemos muitas oportunidades de produzirmos conhecimento profundo a respeito da complexidade das organizações capitalistas tradicionais e emergentes. A falta de uma preocupação empírica seguindo uma metodologia rigorosa faz com que muitas análises sejam superficiais e não deem conta da complexidade das organizações.

Somando-se a isso, a área de EOR sempre se mostrou bastante conflagrada. Disputas, não se sabe ao certo por que e para que, entre críticos, institucionalistas, comportamentais, simbolistas e por aí afora, marcam a trajetória do nosso campo. Essas disputas quase pueris de egolatria sem sentido, também características das Ciências Sociais brasileiras, fizeram e fazem com que o convívio em debates públicos do campo seja, algumas vezes, marcado por violência simbólica que, a meu ver, inibe novos talentos. Há, ainda, mais uma incoerência: alguns pesquisam sobre poder e praticam abuso de poder. Alguns pesquisam sobre cultura e desrespeitam as culturas diferentes. Alguns pesquisadores autodeclarados críticos praticam exatamente aquilo que criticam. Alguns estudam diversidade, porém não demonstram o menor respeito pela diversidade em sua prática cotidiana.

Além disso, embora EOR tente se apresentar como diferente das demais áreas, nela também há a presença de pesquisadores que praticam o produtivismo acadêmico sem a menor cerimônia, o que fragiliza o campo de conhecimento. Um último aspecto a se destacar é que foi e é muito comum “pesquisadores” da nossa área estarem mais preocupados com a presença em disputas políticas do campo universitário e acadêmico, buscando galgar postos de poder em diretorias de associação de programas, de agências de fomento, reitorias e pró-reitorias de universidades públicas e privadas, com a criação e edição de periódicos, em detrimento da consolidação de uma carreira sólida de pesquisa. Por fim, infelizmente, nota-se que muitas das novas gerações repetem aquilo que viram como modelo das gerações anteriores, e algumas figuras que deveriam ser o modelo para os mais jovens parecem atuar mais com o fígado do que com a razão, espalhando ressentimento para todos os lados. Um grave problema aqui é a endogenia atávica de nossas instituições de ensino, que faz com que orientados consigam emprego na mesma instituição de seus orientadores, que, em muitos casos, mantêm uma vassalagem acadêmica. Os EOR nacionais aproximam-se fortemente das Ciências Sociais brasileiras ao adotarem a incoerência entre teoria e prática, ao se prenderem em brigas de poder espúrias e ao se acomodarem diante da inércia da endogenia. Relendo a sessão, acredito, realizei uma análise um tanto quanto negativa de nossa área até aqui. Apesar disso, considero que o futuro dos EOR no Brasil é bastante promissor.

Qual o nosso futuro?

Em primeiro lugar, noto que estamos finalmente falando de muitos de nossos problemas e trazendo, assim, a reflexividade para o campo. Devemos isso, em larga medida, à organização das mulheres pesquisadoras e à emergência de pessoas negras a posições de visibilidade em EOR que ajudam a pensar em práticas estabelecidas e a abrir a “caixa de Pandora” daquelas pouco coerentes e violentas. Evidentemente que o ranço dos que sempre buscam posição de poder tenta atrapalhar a emergência do diverso no campo, mas a força do futuro é muito maior do que o ressentimento do passado.

Além disso, as atuais transformações de nossa sociedade em relação a estar mais atenta à diversidade, as mudanças profundas que as organizações estão sofrendo devido a alterações de ordem social e tecnológica, fazem com que nosso campo tenha muito a contribuir para se pensar e refletir sobre o futuro das organizações em nosso país. Para isso, os EOR estão bastante equipados com conceitos e podem desenvolver pesquisas que tragam importantes perguntas e esbocem respostas para uma sociedade em que os desafios estão cada vez maiores. O contexto atual pede o tipo de reflexão que é possível ser feita em EOR.

Nota-se, ainda, que a geração que aos poucos vai assumindo as posições de poder no campo possui, a meu ver, um maior sentido de amizade e respeito do que as anteriores e busca abrir espaço para novas formas de pensar e agir. A construção futura do campo de EOR no Brasil depende do aprofundamento do sentimento de ser amigo, em vez do sentimento de ser competidor, para gerar colaboração catalisada em momentos como o que estamos vivendo hoje. É importante, ainda, que os professores do campo se assumam como pesquisadores e não apenas como gestores das pesquisas dos alunos.

É preciso pensar em uma área de EOR que busque o diálogo com academias fora do Brasil, tanto para o Sul quanto para o Norte. A exposição internacional é fundamental para trocas de experiências e inovações.

Por fi é importante que tenhamos pessoas que, pelo seu exemplo cotidiano, nos façam ser melhores. Hoje, em nosso campo, temos inúmeras fi as que inspiram e tantas outras que eu acredito que ajudam a construir nossos EOR. Há, ainda, muitos alunos que tenho encontrado por tantos congressos pelo Brasil que personificam a mudança que precisamos. São fi as assim que me fazem acreditar em um futuro promissor para a nossa área. É essa janela de esperança que me faz notar um futuro melhor. Que assim seja!

EM DEFESA DA VIRTUDE ACADÊMICA OU SOBRE UM “MODO DE VIDA” VOLTADO PARA O ESTUDO, A CONVERSA E A PESQUISA

Por Ariston Azevedo

Este é necessariamente um relato pessoal, mas escrito na esperança de que outros, em especial, aqueles que estão iniciando um trabalho independente, o tornem menos pessoal através dos fatos de sua própria existência. (Mills, 2009Mills, C. W. (2009). Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editores., p. 21)

À primeira vista, talvez o que aqui direi tenha mais em comum com o que foi discutido nas já lembradas Sessões “Habitus, antes que método, de um pesquisador político” e “Autoformação política em pesquisa social: Intencionalidades duradouras e a prioridade do local”, realizadas no IV e V CBEO, respectivamente. Digo isso porque, ao realizar um balanço sobre “De onde viemos, para onde estamos indo?”, o que me ocorreu depois foi o desejo de falar de “um modo como ir”. Se modifico o rumo de minha fala, o faço em razão da percepção do fato de o “modo como estamos indo” ter revelado uma faceta, nos últimos 10 anos pelo menos, fortemente danosa, e não somente para mim, acredito, mas para muitos que anelam por uma comunidade acadêmica mais vigorosa e desafiadora, e por esse motivo se negam ou esboçam frequente resistência em “jogar o jogo”. Mas também o faço com a intenção de sugerir uma alternativa ao “modo” predominante como estamos indo.

Nós, enquanto acadêmicos, ou pretensos acadêmicos que somos, embora tenhamos um leque amplo de atuação, como ensino, estudo, pesquisa, extensão, consultoria, gestão universitária, gestão científica, prestação de serviços etc., concentramos em torno da docência e da pesquisa grande parte das atividades que realizamos ao longo de nossa carreira. No ensinar e no pesquisar, resumimos, digamos assim, nosso ofício. E é exatamente aqui que, em meu entendimento, enfrentamos um grave problema nos dias atuais: o “modo” como estamos indo nos têm feito não realizar bem nem uma coisa nem outra.

Cada vez mais nos afastamos da excelência no ensino, porque, ao promover a crença de que quem sabe pesquisar sabe educar, praticamente anulamos o processo de formação didático- pedagógico de mestres e doutores nos Programas e Cursos de Pós-Graduação stricto sensu (PPGs). Ou seja, temos insistido de maneira demasiada na formação de “pesquisadores”, em detrimento da formação de educadores. É inadmissível o cultivo do analfabetismo pedagógico que impera nos PPGs, em especial na Administração, pois, como bem apontaram Paulo Freire (2013)Freire, P. (2013). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (47a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. e Pedro Demo (1997)Demo, P. (1997). Educar pela pesquisa (2a ed.). Campinas, SP: Autores Associados., ensinar exige pesquisa, mas não podemos esquecer que o que está em jogo na prática educativa é a formação humana, é o desafio de, pelo processo educativo, formar e ser formado, humanamente falando. Nesse sentido, ensinar exige um conjunto diversos de saberes nos quais o(a) pós-graduando(a), para o correto exercício da prática educativa, deve ser versado(a).

Também estamos nos distanciando da excelência no pesquisar, pois a submissão das práticas de pesquisas filosófico-científico-tecnológicas aos imperativos de uma racionalidade instrumental homogeneizadora elimina as complexidades e as diferenças do fazer científico para as fazer caberem em uma única linha de montagem voltada para a produção indiscriminada de papers. Esta eliminação, consequentemente, faz com que deixe se ser possibilitada aos estudantes uma formação consciente, crítica, autônoma, criativa, responsável e comprometida com o desenvolvimento do conhecimento e do saber, para ofertar apenas o papel de produtor fugaz e alienado, que, embora plenamente apto para o manuseio formalístico ou cerimonial de teorias e métodos, quase sempre produz seus papers sem alinhamento a um projeto de pesquisa e de estudo de longo prazo, daí um dos motivos de sermos mais consumidores do que produtores de teoria.

Ao que parece, essa não é uma visão particular minha, uma vez que a denúncia desses fatos vem de longa data. Em 2006, por exemplo, a partir da constatação de que os PPGs em Administração estavam privilegiando, em suas estruturas curriculares e práticas educativas, a “formação do pesquisador” em detrimento da “formação do professor”, Fischer (2006)Fischer, T. (2006). Uma luz sobre as práticas docentes na pós-graduação: A pesquisa sobre ensino e aprendizagem em administração. Revista de Administração Contemporânea, 10(4), 193-197. doi: 10.1590/ S1415-65552006000400010
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propôs um redirecionamento para combater essa situação: os PPGs deveriam instituir “uma linha de pesquisa, um programa, ou, no mínimo, uma atividade que promova a reflexão sobre o ensino e aprendizagem em Administração” (pp. 193-194) (grifos no original). Não se pode negar os esforços feitos pelos PPGs para amenizar o problema. De lá para cá, proliferaram atividades que visavam à preparação docente dos pós-graduandos, como exemplo: estágio docência, co-orientação de estudantes na graduação, no mestrado e, mesmo, no doutorado, avaliação de artigos para congressos e revistas, aulas que exigiram a preparação e apresentação de seminários, flexibilidade para que os pós-graduandos pudessem ter direito à integralidade do valor da bolsa de estudos e atuar como professores na graduação, compartilhamento de aulas na própria pós-graduação stricto sensu, entre outras. Apesar disso, quase uma década depois do diagnóstico de Fischer (2006)Fischer, T. (2006). Uma luz sobre as práticas docentes na pós-graduação: A pesquisa sobre ensino e aprendizagem em administração. Revista de Administração Contemporânea, 10(4), 193-197. doi: 10.1590/ S1415-65552006000400010
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, o problema ainda ecoava nas palavras de analistas como Patrus e Lima (2014)Patrus, R., & Lima, M. C. (2014). A formação de professores e de pesquisadores em administração: Contradições e alternativas. Revista Economia & Gestão, 14(34), 4-29. doi: 10.5752/P.1984-6606.2014v14n34p4
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: “os programas de pós-graduação estão prioritariamente voltados para a formação de pesquisadores e visivelmente distantes da formação pedagógica” (p. 6). Dois anos depois, novamente a acusação viria à tona na avaliação de Lourenço, Lima e Narciso (2016)Lourenço, C. D. D. S., Lima, M. C., & Narciso, E. R. P. (2016). Formação pedagógica no ensino superior: O que diz a legislação e a literatura em educação e administração? Avaliação, 21(3), 691-717. doi: 10.1590/S1414-40772016000300003
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, nos seguintes termos: nos programas de pós-graduação em administração, a dimensão pedagógica é “dimensão esquecida” (p. 708). Fora uma iniciativa aqui e outra acolá, no conjunto, quase nada mudou.

Abandonada a formação docente em nossas pós- graduações, cabe perguntar sobre a formação de pesquisadores. Um dos aspectos que mais salta aos olhos, e que é fruto desse processo formativo exclusivista, é o fato de termos alcançado níveis de produção de papers tão altos que nos referimos aos resultados de nossas atividades como produtivismo acadêmico. Não esqueçamos que há muita controvérsia sobre o que conta e não conta como produção acadêmica. O produtivismo que atribuímos a nós mesmos e nos é exigido diz respeito somente à quantidade de publicações, não necessariamente à de leituras, de estudos, de pesquisas, de conversas, de avaliações de artigos, de participações em bancas, congressos, de orientações, de aulas, de gestão universitária etc., ou seja, não diz respeito às atividades outras que realizamos, também em demasia. Aliás, em seu estudo de análise semântica de nomes terminados em “-ismo”, Barbosa (2014)Barbosa, A. V. (2014). Estrutura semântica de -ismo. Revista Diacrítica, 28(1), 73-101. Recuperado de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_serial&pid=0807-8967&lng=en&nrm=iso
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destaca aquelas palavras que recebem o sufixo “-ismo” e que carregam o significado de uma patologia (p. 84). Esse me parece ser exatamente o caso do nosso produtivismo, que é patológico e unidimensional.

Ao centrar a formação de pesquisadores na produção formalística e alienada de papers, criou-se essa disfunção. Entre suas causas externas estão, por exemplo: a opção por acolher o viés e as práticas de cunho gerencialistas em nossas atividades cotidianas nas universidades, nos PPGs, nos grupos de pesquisa e, até mesmo, em nossas aulas, o que tem convertido professores e, principalmente, pesquisadores em gerentes e burocratas da ciência; o aumento das pressões institucionais dos órgãos de fomento e de controle (CAPES, CNPq, Fundações de Apoio à Pesquisa); o aumento exorbitante de textos em coautoria por pressões institucionais; a distribuição dos recursos financeiros pela via de editais, o que estimula ainda mais a competição entre pesquisadores e seus PPGs. Haveria também causas internas, como: uma visão deturpada sobre o que venha a ser o alcance da glória e da excelência em âmbito acadêmico, que associa sucesso na academia com quantidade de publicações; a busca desenfreada pelo monopólio sobre temas, objetos, teorias e métodos; o cientificismo dogmático que quase sempre caminha para o formalismo no fazer ciência e repetição incessante de estudos de casos; a exacerbação da vaidade intelectual que tem transformado a Plataforma Lattes em uma passarela de glamour de egos; a adoção da tática de “ciência salame” para turbinar o Lattes; entre tantas outras.

Ao analisar a questão, Mattos (2012)Mattos, P. L. (2012). Pés de barro do texto “produtivista” na academia. ERA-Revista de Administração de Empresas, 52(5), 566- 573. doi: 10.1590/S0034-75902012000500007
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sustenta que a causa principal do produtivismo estaria em uma espécie de “distorção” criada pelos próprios pesquisadores, quer dizer, ele é consequência direta da baixa qualidade de nossa produção acadêmica (teses, dissertações e, principalmente, papers), uma vez que se busca “dissimular” com o formalismo científico “o amadurecimento que o projeto de pesquisa não conseguiu alcançar. Assim, produtivismo torna-se a expansão da má produção acadêmica, porque a boa, quanto mais, melhor” (p. 566). De maneira específica, diz o autor, o problema estaria sendo causado por alguns tipos de comportamentos viciosos e viciados que se tornaram habituais entre nós, como o uso demasiado de citações indiretas e apropriação indevida de ideias, o uso de instrumentos no tratamento de dados que permitem replicações e experimentos similares recorrentes, a demasiada permissividade metodológica conferida aos chamados estudos qualitativos e a desconsideração, nos textos, para com o leitor externo ao mundo acadêmico. Não é à toa que, tanto em relação aos congressos quanto à imensa maioria dos papers que produzimos, nos deparamos cotidianamente com acusações como: “artigos fracos, discussões rasas, falta de inovação conceitual, argumentos pouco rigorosos, artigos metodologicamente pífios” (Alcadipani, 2011Alcadipani, R. (2011). Resistir ao produtivismo: Uma ode à perturbação Acadêmica. Cadernos EBAPE.BR, 9(4), 1174-1178. doi: 10.1590/S1679-39512011000400015
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, p. 1175) ou textos “imaturos, incompletos, ‘fatiados’, repetitivos ou ‘requentados’” e com indícios de condutas acadêmicas eticamente questionáveis (plágio, autoplágio, coautoria indevida) (Rego, 2014Rego, T. C. (2014). Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: Entre o veneno e o remédio. Educação e Pesquisa, 40(2), 325-346. doi: 10.1590/S1517-97022014061843
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, pp. 340-341).

Embora o produtivismo seja um problema recente e que caminha de braços dados com uma “má qualidade da produção acadêmica”, não me parece que esta seja uma consequência exclusiva daquele. Machado-da-Silva, Cunha e Amboni (1990)Machado-da-Silva, C. L., Cunha, V. C., & Amboni, N. (1990, setembro). Organizações: O estado da arte da produção acadêmica no Brasil. Artigo apresentado no Décimo Quarto Encontro da ANPAD, Belo Horizonte, MG., ao realizarem um dos primeiros levantamentos bibliográficos analíticos da produção científica na área de Estudos Organizacionais, já haviam percebido a presença do problema da má qualidade nos textos produzidos durante o período de 1985-1989. Ele se manteve ao longo de toda a década de 1990, conforme escreveram Bertero, Caldas e Wood (1999)Bertero, C. O., Caldas, M. P., & Wood Jr., T., (1999). Produção científica em administração de empresas: Provocações, insinuações e contribuições para um debate local. Revista de Administração Contemporânea, 3(1), 147-178. doi: 10.1590/S1415-
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, mas se tornou gritante em nossos dias. A ciência, como sabemos, é fenômeno histórico-cultural, e sua qualidade idem. Haverá sempre ciência de boa qualidade e de má qualidade. O que muda é o fato de ser, em determinado período, um fenômeno raro ou corriqueiro, tal como ocorre atualmente.

Infelizmente, esse modo de fazer ciência deturpa a própria formação de pesquisadores, ao sustentar um tipo de sociabilidade produtiva fundada em pesquisas efêmeras, de baixíssimos impactos científicos e sociais, onde prolifera o produtivismo e sua “mais-valia-acadêmica” correspondente, bem como a aniquilação da autonomia de pensamento, do espaço plural de diálogos necessários entre nós mesmos e entre nós e sociedade, e do compromisso do pesquisador com os reais problemas de sua realidade social imediata. Em meu entendimento, a naturalização, no âmbito da pós-graduação stricto sensu, do desprezo pela formação docente, por um lado, e da exaltação da formação do pesquisador pela via produtivista, por outro, tornou-se um caso patológico entre nós. Estamos diante daquilo que Ramos (1995)Ramos, A. G. (1995). Introdução crítica à sociologia brasileira (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ., ao elaborar suas acusações à sociologia nacional de sua época, denominou “patologia da normalidade”: uma vez que determinado modus operandi instala-se em uma comunidade, assumem-se como normais determinadas posturas mentais e, por conseguinte, modos de proceder. Seus membros, portanto, introjetam determinados hábitos por considerá-los normais, embora eles sejam patogênicos, embora sejam mórbidos. Mais recentemente, outros autores designaram esse tipo de comportamento como “normose”, definindo-a como “o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Em outras palavras, é algo patogênico e letal, executado sem que os seus autores e atores tenha consciência de sua natureza patológica” (Weil, Leloup, & Crema, 2003Weil, P., Leloup, J-Y., & Crema, R. (2003). Normose: A patologia da normalidade. Campinas, SP: Verus Editora., p. 22).

Essa patologia que nos acomete deturpa a própria noção de academia e de ciência, ao criar um consenso social que a faz desconsiderar as críticas sobre si, em especial porque os principais beneficiários desse mal generalizado articulam-se para a conservação do status quo. Nesse sentido, formam um estrato acadêmico de natureza conservadora-reacionária que quer continuar a moldar a formação e a atuação dos jovens na pós- graduação stricto sensu, de maneira a garantir, pela quantidade, a conquista de verbas e o prestígio acadêmico. Não querem projeção pelas ideias, mas pelos números! Parece-me necessário, então, oferecer alternativas.

Minha proposta seria a de reabilitar o processo de formação didático-pedagógico nos PPGs e de reformular o processo de formação de pesquisadores hoje em vigor, de maneira a viabilizar a consolidação de uma virtude própria ao modo de vida acadêmico - a virtude acadêmica. Trata-se de uma virtude cujo ingrediente principal seria o que, junto com o amigo Paulo Grave, designamos de Rigor Conceitual, Metodológico e Teleológico (RCMT), e que se manifesta nas atividades particulares do fazer acadêmico, no caso, no estudo, na conversa e na pesquisa, como atividades destinadas à construção do saber.

Essa proposta implica a mudança de hábito (automatismo, rotina) para habitus, aqui entendido na concepção aristotélica. No IV CBEO, falou-se de habitus na acepção bourdieusiana; aqui falo de habitus como virtude, na acepção aristotélica: a virtude é um hábito {habitus} ou disposição {hexis} de caráter que habilita seu portador a realizar perfeitamente uma atividade ou função e, por conseguinte, a praticar boas ações (Aristóteles, 1999Aristóteles. (1999). Ética a Nicômacos (3a ed.). Brasília, DF: Editora da UnB., II, 5, 1106a 14-25). No V CBEO, falou-se sobre “autoformação” e “intencionalidades duradouras”; aqui falo de virtude como uma disposição {hexis} também autoformadora e duradoura: as atividades desenvolvidas em conformidade com a virtude ou excelência “são as mais duradouras, por ocuparem completa e constantemente a vida dos homens felizes, pois esta parece ser a razão de não as esquecermos. O homem feliz está (...) estará sempre, ou pelo menos frequentemente, engajado na prática ou na contemplação do que é conforme à excelência” (Aristóteles, 1999Aristóteles. (1999). Ética a Nicômacos (3a ed.). Brasília, DF: Editora da UnB., 1100b 6-12).

Em resumo, é a hexis, como uma possessão estável, quer dizer, duradoura tanto quanto possível, que exprime a autarquia ou domínio que tem sobre si mesmo determinado agente e o torna virtuoso, ou seja, em um spoudaios. Assim, spoudaios academicus é aquele que estuda bem, conversa bem e pesquisa bem, ou seja, em conformidade com o rigor conceitual, metodológico e teleológico que sua finalidade e seu objeto exigem. O sociólogo Wright Mills, por exemplo, tinha clara consciência da necessidade desse rigor na formação de quem se lança na empreitada acadêmica (e intelectual): “Não sei quais são as plenas condições sociais para a melhor produção intelectual, mas certamente cercar-se de um círculo de pessoas dispostas a ouvir e falar - e, por vezes, elas terão de ser personagens imaginários - é uma delas” (Mills, 2009Mills, C. W. (2009). Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editores., p. 28).

Opiniões como a de Mills e de pessoas com as quais convivi e convivo, bem como tantas outras sobre as quais li e estudei, é que me levam a afirmar que o RCMT poderia ser anelado como uma qualidade do acadêmico, seja da Administração, seja dos Estudos Organizacionais. A atenção a tal rigor é que tem marcado a incessante busca daqueles que denomino spoudaios academicus. Eles são, com relação a tal virtude e suas finalidades, incansáveis, inconformados, por isso sempre se destinaram a combater as patologias de normalidade que incessantemente acometem o âmbito acadêmico.

“DO OUTRO LADO DO BALCÃO”: O DESAFIO DA AVALIAÇÃO POR PARES NO PROCESSO DE PUBLICAÇÃO ACADÊMICA

Por Ariádne Scalfoni Rigo

O convite para participar da sessão livre no CBEO 2019 chegou em março. Naquela ocasião, a decisão de sair da editoria da revista Organizações & Sociedade (O&S) já estava amadurecida. De acordo com alguns amigos na academia, seria uma boa ocasião para uma despedida. Particularmente, tive dúvidas em aceitar o convite, pois tratava-se de nos interrogarmos sobre de onde vem e para onde vai o campo dos Estudos Organizacionais (EOR) no Brasil. Isso me pareceu uma daquelas incômodas sessões de análise (falo da psicanálise mesmo), todavia imprescindíveis para o autoconhecimento e consequentes reedições de si mesmo.

Desafio aceito, tentarei aqui contribuir com a parte que me coube: apresentar alguns desafios e proposições a partir da minha experiência editorial à frente da O&S. Farei algumas intervenções sobre a trajetória do campo, mas ressalto que minha contribuição nesse sentido é restrita. Começarei contextualizando, pois acredito que as principais inquietações, desafios e proposições se originam do contexto que construímos e em que vivemos.

A “civilização científica” e a dor de publicar

Criada para nos proteger e compensar nossas limitações individuais, nossa comunidade científica é, ao mesmo tempo, fonte de segurança e de sofrimento. Freud (2010)Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1930). São Paulo, SP: Companhia das Letras. explicou a existência da civilização, em Mal-estar da civilização, como uma forma de limitar as transgressões dos indivíduos, submetendo-os às suas normas e regras. Nossa “civilização científica” (podemos aqui pensar apenas no campo da Administração ou, mais estreitamente, no campo dos EOR) é carregada de leis, normas e códigos que orientam nosso comportamento e nos impõe, muitas vezes, processos dolorosos, entre eles, publicar. Sim, o processo de publicar frequentemente dói. Dói quando é imposto e serve ao cumprimento de duras medidas de desempenho. O produtivismo acadêmico, bem traduzido pela expressão publish or perish, é violento. Entre ter uma ideia, estudá-la, escrevê-la e submetê-la à apreciação e aceitação dos pares, um longo e não raramente frustrante processo acontece.

Consequências do que podemos entender como “política” do produtivismo acadêmico já são discutidas na academia de Administração brasileira (Freitas, 2007Freitas, M. E. (2007). A carne e os ossos do ofício acadêmico. Organizações & Sociedade, 14(43), 187-191., 2011Freitas, M. E. (2011). Pesquisador hoje: Entre o artesanato intelectual e a produção em série. Cadernos EBAPE.BR, 9(4), 1158-1163. doi: 10.1590/S1679-39512011000400013
https://doi.org/10.1590/S1679-3951201100...
). As consequências mais comumente debatidas - e inclusive publicadas - são a produção em massa de trabalhos de qualidade duvidosa (Freitas, 2011Freitas, M. E. (2011). Pesquisador hoje: Entre o artesanato intelectual e a produção em série. Cadernos EBAPE.BR, 9(4), 1158-1163. doi: 10.1590/S1679-39512011000400013
https://doi.org/10.1590/S1679-3951201100...
), erros de conduta de autores como plágio e autoplágio (Clair, 2015Clair, J. A. (2015). Procedural injustice in the system blind peer review and scientific misconduct. Academy of Management Learning & Education, 14(2), 159-172. doi: 10.5465/amle.2013.0243
https://doi.org/10.5465/amle.2013.0243...
), erros de conduta de avaliadores como avaliações vagas e descorteses (Gondim, 2004Gondim, S. (2004). A face oculta do parecerista: Discussões éticas sobre o processo de avaliação de mérito de trabalhos científicos. Organizações & Sociedade, 11(31), 195-199.), efeitos perversos sobre a saúde e a psique dos pesquisadores pressionados, conflitos e rivalidades entre colegas de trabalho (Rego, 2014Rego, T. C. (2014). Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: Entre o veneno e o remédio. Educação e Pesquisa, 40(2), 325-346. doi: 10.1590/S1517-97022014061843
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201406...
), entre outras. Para além das consequências sobre “os ombros” dos pesquisadores, o fato é que a ação de produzir artigos para alcançar as metas estabelecidas pela nossa comunidade científica produz efeitos diretos nos processos editoriais. Obviamente que esses efeitos não são exclusivos do campo da Administração, muito menos dos EOR, mas, na O&S, alguns desafios podem estar relacionados às características do campo.

O aparentemente intransponível desafio da avaliação por pares

A pressão por publicar em periódicos qualificados contribui para “inchar” e “inflamar” os processos editoriais. “Incha” porque aumenta o número de artigos. “Inflama” porque deixa o processo mais doloroso. A O&S, nesses quase 26 anos de existência, construiu reconhecimento no campo e se manteve, desde 2010, no extrato A2 do Qualis Capes. Por isso, recebe cerca de 400 artigos por ano, mas publica cerca de 10% disso. Esses números não são maiores do que os da RAE, por exemplo, que é mais generalista no seu escopo e recebe quase mil artigos por ano. Mas, a meu ver, as especificidades teóricas e empíricas do campo dos EOR deixam “a coisa” mais complicada.

Os EOR mobilizam teorias e metodologias diversas em realidades curiosas. Racionalidades, temporalidades, análise crítica do discurso, semiótica, teoria crítica, corpos, sociomaterialidade, análise sociológica discursivo-imagética, silêncios... São exemplos de categorias teóricas e posturas metodológicas para compreender, por exemplo, circos, tribos, escolas de samba, terreiros de candomblé, funerárias e o próprio inconsciente. Não são raros os casos em que encontrar avaliadores dispostos a embarcar nas “empreitadas” teórico- empíricas e metodológicas dos autores se torna uma missão quase impossível.

Empreendi certo esforço tentando identificar algum padrão na trajetória das temáticas publicadas na O&S entre os mais de 100 números publicados (cerca de mil artigos) por meio de palavras-chave e títulos. A variedade de temas é imensa e retrata bem a pluralidade do campo. Pude perceber que alguns temas se diluíram no caminho (entre 1990 e 2019), talvez por saturação e consequente desinteresse. Por exemplo, os temas da cultura organizacional e das relações de poder nas organizações são raramente submetidos ou aparecem como categorias secundárias nas análises. Outros se mantiveram presentes desde a década de 1990, como os temas da aprendizagem organizacional, os relacionados ao trabalho (sentido, significado e mercado) e os relacionados a processos de mudança organizacional. Também pude identificar alguns temas que passaram a ser frequentes na última década. Por exemplo, as abordagens relativas a todo tipo de discriminação no ambiente organizacional (como as de gênero, homofobia e raça), as sobre consumo e consumismo, as relativas à sustentabilidade e à corrupção. Sei que essas abordagens não retratam todo o campo dos EOR, mas indicam sua preocupação com os rumos da nossa sociedade.

Essa pluralidade teórica, metodológica e de realidades investigadas na produção acadêmica em EOR é bem-vinda, mas tem um preço. Ela deixa ainda mais apertado aquilo que é, para mim, o maior gargalo no processo de publicação: a avaliação por pares. Onde estão os pares? Eles são poucos e já estão muito ocupados. Como encontrar mais pares? Na Sociologia, na Psicologia e na Filosofia, é possível, mas não sem enfrentar algum preconceito pelo fato de “sermos da Administração”, conhecida por existir apenas para fazer o mercado funcionar. Uma alternativa interessante é inserir desde já nossos jovens doutores (ou mesmo doutorandos) nos processos avaliativos de periódicos. Mas, se ignoramos a necessidade de prepará- los melhor para isso, reforçaremos o conhecido problema da qualidade dos pareceres. Nos tornamos avaliadores sem muito preparo, no feeling. Avaliar um artigo científico exige mais do que conhecer a teoria e o método. Exige conhecer e reconhecer seu papel de avaliador e a importância dele no processo. Nos EOR, avaliar um artigo científico exige, ainda, conhecer a complexidade do campo e estar aberto às múltiplas possibilidades de construir conhecimento. Exige sensibilidade e abertura para a pluralidade na pesquisa.

Transpondo o desafio da avaliação por pares: uma possibilidade

Sem dúvida, é muito importante intensificarmos as atividades de formação dos nossos estudantes de pós-graduação sobre todos os aspectos do processo de avaliação, bem como sobre os temas, campos e métodos que julgamos relevantes discutir e publicar. Nossos grupos de pesquisa e trilhas curriculares são espaços apropriados para isso. Em EOR, podemos nos esforçar mais na direção de uma ampla formação sobre epistemologia e possibilidades de métodos e análises qualitativos; uma formação que aponte para a pluralidade do campo e, claro, ensine a construir pareceres construtivos. Também me parece importante discutir continuamente como viver melhor na “civilização científica” e como reconstruí-la.

Mas mecanismos institucionais de valorização do trabalho do avaliador são fundamentais. Essa ideia não é nova, mas as ações ainda não foram empreendidas por aqui. Como sabemos, a avaliação de artigos em periódicos não tem valor concreto no sistema de avaliação da Capes. Inquietava-me, ao longo dos mais de cinco anos como editora, deparar-me com inúmeros pareceres que contribuíam sensivelmente para a melhoria dos artigos publicados e dizer aos avaliadores apenas “muito obrigado”. Sabemos que, em algumas situações na carreira acadêmica, essas avaliações contam, mas, no processo de publicação, deveriam contar mais do que algumas coautorias duvidosas.

Obviamente, construir e institucionalizar um tal processo de reconhecimento não é simples. Afinal, a forma de funcionar da comunidade científica está posta há muito tempo, dificultando imaginarmos mudanças significativas. Mas elas são possíveis. A princípio, aspectos como o fator de impacto, a classificação Qualis dos periódicos nacionais e a avaliação objetiva dos pareceres pelo editor e pelos próprios autores poderiam ser considerados pontos de partida. Acredito nessa possibilidade e no seu potencial para desatar o nó dos processos de publicação acadêmica, inclusive diminuindo os prazos entre submissão e publicização da pesquisa. É fundamental reconhecermos que a apreciação crítica dos nossos pares é o que nos permite não apenas aumentar a qualidade daquilo que publicamos, mas também enriquecer nossas trajetórias acadêmicas.

DESGASTANDO A TORRE DE MARFIM: A EXPERIÊNCIA DO NEOS/UFMG

Por Luiz Alex Silva Saraiva

Apesar de o termo universidade encerrar grandes diferenças de concepção, não é de hoje que, como instituição, a universidade se encontra em crise em todo o mundo. Diversas discussões sugerem sua inadequação como locus de formação profissional (Tight, 2010Tight, M. (2010). Crisis, what crisis? Rhetoric and reality in higher education. British Journal of Educational Studies, 42(4), 363-374. doi: 10.1080/00071005.1994.9974009
https://doi.org/10.1080/00071005.1994.99...
), seu conservadorismo, elitização e limitações em proporcionar inclusão e a emancipação social (Amano & Poole, 2005Amano, I., & Poole, G. S. (2005). The Japanese university in crisis. Higher Education, 50(4), 685-711.), suas falhas em romper as hierarquias profi sionais institucionalizadas (Fry, 2015Fry, T. (2015). Dead institution walking: The university, crisis, design and remaking. Design Philosophy Papers, 5(1), 267-282. doi: 10.2752/14 4871303X13965299302712
https://doi.org/10.2752/14 4871303X13965...
), sua falta de diálogo para com a sociedade (Mamdani, 1993Mamdani, M. (1993). University crisis and reform: A reflection on the African experience. Review of African Political Economy, 20(58), 7-19. doi: 10.1080/03056249308704016
https://doi.org/10.1080/0305624930870401...
), entre outros aspectos de um complexo grupo de problemas da e na universidade.

Em parte, isso se deve a uma indefinição sobre o peso da sociedade e do mercado na sua configuração (Fischer, 2001Fischer, T. M. D. (2001). A difusão do conhecimento sobre organizações e gestão no Brasil: Seis propostas de ensino para o decênio 2000/2010. Revista de Administração Contemporânea, 5(n.spe.), 121-139. doi: 10.1590/S1415-65552001000500007
https://doi.org/10.1590/S1415-6555200100...
). Apesar de haver concepções elaboradas em torno da sociedade e do atendimento de necessidades sociais, boa parte das universidades é concretizada e avaliada em razão do atendimento de demandas do mercado (Saraiva, 2011Saraiva, L. A. S. (2011). A educação superior em administração no Brasil e a questão da emancipação: Um túnel no fim da luz? Gestão & Planejamento, 12(1), 41-60.), o que torna instrumentais as decisões relacionadas ao currículo (Fischer, Waiandt, & Silva, 2008Fischer, T., Waiandt, C., & Silva, M. R. (2008). Estudos organizacionais e estudos curriculares: Uma agenda de convergência entre o passado e futuro de campos paralelos. Organizações & Sociedade, 15(47), 175-196. doi: 10.1590/S1984-92302008000400010
https://doi.org/10.1590/S1984-9230200800...
), a seleção de docentes, o ensino, a pesquisa etc. Não surpreende, nesse sentido, o crescente peso de gestores acadêmicos (Saraiva, Bauer, & Paiva, 2009Saraiva, L. A. S., Bauer, M. C. L., & Paiva, K. C. M. (2009). Desafios no universo das organizações de educação superior. Gestão & Planejamento, 10(2), 1-13. .), que pendem muito mais para a gestão do que para a academia propriamente dita (Costa, Barros, & Saraiva, 2014Costa, A. S. M., Barros, D. F., & Saraiva, L. A. S. (2014). Management industry. Cadernos EBAPE.BR, 12(1), 1-6.).

Em um contexto periférico como o brasileiro, essa indefinição adquire contornos ainda mais dramáticos, não apenas por conta da discrepância entre a quantidade de oferta de vagas em universidades públicas e universidades privadas, mas pela concentração de estudantes nas universidades privadas, focadas basicamente em ensino, enquanto as universidades públicas, apesar dos recorrentes problemas de continuidade de políticas públicas, exibem maior força em ensino, pesquisa e extensão. Dada a relevância das universidades públicas no Brasil, é delas que falarei neste texto, sob uma perspectiva organizacional.

O campo de Estudos Organizacionais possivelmente experimenta essas questões de maneira mais aguda que as demais disciplinas na Administração, em virtude, entre outros aspectos, da predileção pela teorização, pela crítica ao empirismo irrefletido, o que perigosamente o aproxima da metáfora da torre de marfim: uma academia com concepções e práticas complexas e herméticas, resplandecentes ao longe em toda a sua pompa e glória, mas inacessível aos não acadêmicos que dela desejarem se aproximar. O resultado é um grupo que fala para si próprio na maior parte das vezes. De costas para a sociedade e suas necessidades, condescendentemente se satisfaz ao ouvir a sua própria voz, sobre temas que ele próprio considera relevantes, em abordagens que lhe parecem adequadas, em um contexto mínimo de contato com a sociedade.

Pretendo brevemente relatar a experiência do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade da Universidade Federal de Minas Gerais (NEOS/UFMG), que vem reformulando sua configuração, concepção e ações para atuar de maneira mais efetiva no que tange ao ensino, à pesquisa e à extensão com vistas a uma aproximação efetiva com a sociedade. A perspectiva que adotamos desgasta a torre de marfim, propondo outras formas de fazer a universidade. Note-se que não falamos em derrubar a torre; isso seria pretensioso, levando em conta que nos inserimos em uma institucionalidade historicamente estabelecida. Todavia, isso não deve nos impedir de pensar em desgastar, enfraquecer, puir o que nos é apresentado como a única forma de universidade possível, a favor de outras concepções e práticas mais comprometidas e próximas dos anseios sociais..

O projeto “Divulgação Científica do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS/FACE/UFMG)” (Saraiva, 2018Saraiva, L. A. S. (2018). Projeto de extensão divulgação científica do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS/FACE/UFMG). Belo Horizonte, MG: PROEX/UFMG.) é constituído por 17 ações de extensão no eixo “Comunicação” que, de maneira integrada, sistematizam, registram e promovem as ações do grupo de acordo com as diretrizes para a extensão na educação superior brasileira (Resolução no 7, 2018).

O NEOS/UFMG é organizado em Grupos de Estudo e Trabalho (GETs) que têm como objetivo associar pesquisadores de graduação e de pós-graduação em torno de temáticas agregadoras que integrem ensino, pesquisa e extensão. Hoje há três GETs em vigor: “Gênero, sexualidade e raça”, coordenado pelo professor Rafael Diogo Pereira, “História, cotidiano e poder”, coordenado pelo professor Alexandre de Pádua Carrieri, e “Cidades”, coordenado pelo professor Luiz Alex Silva Saraiva. Há GETs que se voltam para reuniões periódicas de estudo e, a partir daí, desenham a sua atuação, outros que se estruturam a partir de pesquisas, e outros que se articulam em torno da extensão..

Esses GETs têm subcoordenações próprias, responsáveis pela organização das atividades, distribuição de atribuições, elaboração e gestão de projetos. As três subcoordenações integram estudantes, além do coordenador do GET, que se subordina a um grupo de gestão, que objetiva planejar, organizar e acompanhar todos os processos relacionados ao ensino, à pesquisa, à extensão e gestão universitária realizados no âmbito do núcleo. Esse grupo atua sob a responsabilidade de um coordenador geral, que responde pela gestão acadêmica do grupo. São ações de extensão do grupo:

  • Manutenção do blog do NEOS, no qual ocorre a divulgação e a inscrição on-line para eventos realizados voltados à sociedade, relato de atividades e reuniões realizadas pelos diversos GETs e registro de informações gerais;

  • Boletim informativo e relatório anual de atividades NEOS, que divulga as atividades acadêmicas relacionadas a pesquisas individuais ou coletivas;

  • Canal do NEOS no YouTube: acervo público digital e gratuito de eventos realizados pelo núcleo;

  • comunicação interna: canal de comunicação formal entre a coordenação e seus membros, que centraliza todo o fluxo de comunicações;

  • DesConstruções: ciclo de debates que tem como objetivo promover discussões de interesse de pesquisadores e social. O evento é gratuito, e os participantes recebem certificados, sendo as horas da atividade válidas como horas de atividades complementares para os estudantes de graduação;

  • Devolutivas de pesquisa: divulgação pública e gratuita dos resultados dos trabalhos realizados pelos pesquisadores do NEOS para a sociedade;

  • Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade: periódico científico quadrimestral do NEOS/UFMG) que busca contribuir para os Estudos Organizacionais em uma ótica não funcionalista;

  • Oficinas metodológicas NEOS: abordam conceitos e conteúdos teóricos por professores de reconhecida experiência e expertise nas temáticas abordadas, como forma de aumentar o repertório teórico-metodológico dos integrantes do grupo;

  • Página do NEOS no Facebook;

  • Rodas de conversa NEOS: proporcionam discussões informais com convidados que abordem questões inovadoras e desafiadoras para pesquisadores do grupo;

  • Site institucional do NEOS: apresenta, de modo geral, o Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade e como se posiciona em relação à comunidade;

  • Reunião geral NEOS: integra todos os pesquisadores do NEOS em uma pauta em torno de aspectos estratégicos e desafios do grupo;

  • Reunião GET Cidades: problematiza o conhecimento em torno da relação Cidades e Estudos Organizacionais;

  • Reunião GET Gênero, Sexualidade e Raça: problematiza o conhecimento em torno da relação Gênero, Sexualidade e Raça e Estudos Organizacionais;

  • Reunião o GET História, Cotidiano e Poder: problematiza o conhecimento em torno da relação História, Cotidiano e Poder e Estudos Organizacionais.

Todas essas atividades presenciais são divulgadas pelas mídias sociais, gratuitas e abertas ao público, permitindo a emissão de certificados com carga horária de participação aos presentes.

O GET “Gênero, sexualidade e raça” desenvolve um trabalho de extensão com a Casa de Referência da Mulher Tina Martins, atuando no suporte à gestão e, em parceria com o curso de design, na confecção de objetos que podem ser elaborados e comercializados pelas próprias mulheres, com o objetivo de geração de emprego e renda. Essa atividade tem reconhecimento no âmbito da Rede de Direitos Humanos da UFMG.

No GET “História, cotidiano e poder”, as ações de extensão dão-se em torno do projeto “Governança dos recursos hídricos: Análises do perfil e do processo de formação dos representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e Comitês de Bacia Hidrográfica”, financiado pela CAPES, e que tem permitido dezenas de atividades de capacitação de agentes para lidar com a questão da água em sociedade. Há duas teses de doutorado em andamento, e inúmeras ações de integração com o ensino, principalmente na graduação.

No GET “Cidades”, o programa de extensão “Troca de saberes, valorização e visibilidade da identidade e cultura do Quilombo Luizes” estruturou uma série de ações de formação, debates, rodas de conversa, que foram subsídios para a oferta de duas disciplinas optativas na pós-graduação stricto sensu: “Diferenças e territorialidades na cidade” e “Territorialidades e diferenças na cidade” (total de 45 horas) no primeiro semestre de 2018. Essas disciplinas, somadas à experiência da extensão e aos dados de pesquisa, foram o ponto de partida para a oferta da disciplina optativa “Diferenças e territorialidade nas cidades” (total de 60 horas) na graduação em Administração, no segundo semestre de 2018. Além dos evidentes ganhos para o professor e os estudantes de pós-graduação envolvidos, foi extraordinário o retorno dos estudantes de graduação, que não haviam tido a experiência de disciplinas optativas dirigidas a partir da pesquisa integrada com extensão. O mesmo se deu em 2019, mas com foco diferente. Uma vez que no grupo há três mulheres negras oriundas da periferia de Belo Horizonte, a disciplina optativa “Organização, territorialidade e negritude” (60 horas) problematiza o silêncio sobre a questão racial na formação de administradores a partir da discussão de baile funk, favelas, quilombos urbanos e blocos afro de carnaval. Todas essas atividades têm gerado também dissertações e teses de doutorado.

Este relato não tem a pretensão de servir de norte para quem quer que seja, já que, dentro de um mesmo contexto institucional, a universidade pode ser compreendida, concebida e concretizada de maneiras bastante distintas. Todavia, parece-me importante tornar pública uma experiência bem-sucedida. Nosso percurso sugere que criatividade e organização podem mudar a face de um grupo de pesquisa e fazê-lo cada vez mais preocupado com a relevância social de suas concepções e práticas. Este nos parece ser o caminho para desgastar a torre de marfim: tornando a universidade efetivamente orientada pela sociedade, sua verdadeira razão de existência.

UM ESFORÇO DE SÍNTESE E QUESTIONAMENTOS

Por Marcio Sá

Não poderia iniciar este esforço de destacar alguns dos pontos tratados pelos estimados colegas de ofício sem reiterar o que fiz na ocasião da abertura da referida mesa, ou seja, o registro do afeto pessoal e do respeito profissional que alimento por cada um. Ao relê-los para preparar este pretenso “fechamento”, fiquei feliz por constatar novamente que, cada um ao seu modo, todos foram exitosos no projetar-se pessoal-profissional para a discussão inicialmente proposta; sou-lhes grato também por isso.

O que talvez dê mais força ao que foi dito naquela tarde seja o espírito do que se procurou inscrever nos termos “autocrítica coletiva” e “horizontes desejáveis”. Afinal, nos dispusemos a explicitar o que pensamos sobre dimensões de uma coletividade da qual fazemos parte e queremos ver num futuro melhor. Além disso, também fomos movidos por partilhar a convicção que a exposição de ideias com liberdade, honestidade intelectual e respeito ao contraditório é uma prática acadêmica salutar que desejamos cultivar.

Rafael foi contundente ao reiterar aspectos de seu posicionamento (auto)crítico acerca da trajetória do campo no qual esteve imerso e por meio do qual se constituiu profissionalmente ao longo das duas últimas décadas, mas também procurou semear esperança ao destacar laços de afetividade que percebe em fortalecimento entre alguns de nós, afinal isso pode ser contagioso. Por um lado, a “amizade como futuro” pode servir de motivação à superação do histórico “mal- estar” nos EOR nacionais; por outro, ser o lastro relacional capaz de viabilizar construções conjuntas e vislumbres de horizontes potencialmente mais frutíferos. Mas me pergunto o quão distante

estaríamos dela. Precisaríamos, de fato, de tal sentimento para construir uma atmosfera saudável e próspera para o campo? Talvez um primeiro passo para isso seria semear cooperação, mas como fazê-la germinar em espaço-tempo de tamanha competição? Já Ariston, após sintetizar sua leitura do “produtivismo”, apresenta proposta original para a formação de docentes e pesquisadores na área, “viabilizar a consolidação de uma virtude própria ao modo de vida acadêmico” entre nós. Em sua tese, os rigores (conceitual, metodológico e teleológico) e as atividades (estudo, conversa e pesquisa), nas quais os primeiros deveriam se manifestar, poderiam nos colocar em bons rumos formativos e de construção de saber. O desafio que observo no proposto é coletivo, a (re)incorporação de práticas sociais mais condizentes com uma academia de virtuosidade mais explícita, e íntimo, a (re)conversão de crenças internalizadas e estimuladas pela “nova ideologia econômica da ciência” (Serva, 2017Serva, M. (2017). A nova ideologia econômica da ciência e a (re) politização do campo. Ciências em Debate, 2, 52-58.). Aqui confesso não conseguir esperançar como eu mesmo gostaria, mas a explicitação recorrente entre pares da insatisfação com o modus operandi prevalente serve de alento. Se muitos não estão satisfeitos com o que estão vendo ou vivenciando na formação de docentes e de pesquisadores em nossos programas de pós- graduação, talvez dimensões e práticas mais substantivas ao ofício possam ser ressignificadas nos termos do século 21. Mas estaríamos dispostos a isso? Não creio que a maioria possa vir a agir com o sim, mas não duvido que seja possível a cada um de nós se nos inspirarmos em nossos spoudaios. Os que tive foram minoria, mas ainda hoje me são significativos, tanto nos momentos que demandam decisões maiores quanto na busca por diminuir a incoerência entre convicções e práticas cotidianas.

Depois de anos na editoria de O&S, Ariádne amealhou um conjunto de experiências que a autorizam a fazer análises e apresentar propostas na seara da avaliação por pares, a partir do ponto de vista de quem esteve “do outro lado do balcão”. A problemática da formação e da virtude em nosso ofício também reverbera aqui, afinal não há preparação sistemática para tal atividade entre nós que “aprendemos fazendo”. Além disso, o desempenho não virtuoso de função capital ao mercado editorial científico tem promovido dores e deixado marcas em muitos de nós. A proposta de maior valorização do trabalho de quem se dispõe a desempenhar tal papel com justiça, seriedade e respeito ao próximo é pertinente e poderia ecoar entre aqueles que ocupam posições de decisão no plano nacional. Uma sistemática de acreditação mais justa e generosa, com quem empenha tempo no exercício de tal atividade com qualidade, pode colaborar para a redução do afã produtivista que tem se mostrado nocivo em diversos aspectos e níveis de análise.

Quando um dos principais grupos de pesquisa da subárea, senão o principal, se propõe a desgastar a “torre” na qual também se soergueu, e projeta uma atuação em ensino, pesquisa e extensão direcionada para as problemáticas sociais deste pedaço de mundo no qual vivemos, percebemos o quanto autocrítica e horizontes podem se retroalimentar. O que Luiz Alex projeta e as iniciativas já em curso no NEOS podem reverberar entre diversos outros grupos (formais ou não) Brasil afora, ou seja, o NEOS pode também ser vanguarda no sentido de um maior imbricamento dos EOR nacionais com questões sociais e organizacionais urgentes. Ou seja, talvez buscando um maior engajamento com a transformação social e organizacional, possamos elaborar e projetar sentidos mais efetivos para nossas práticas de ensino e pesquisa articuladas com extensão universitária. Mas, assim como a incorporação e a prática do publish or perish cobram um preço, a guinada no rumo apontado pelo NEOS também deverá cobrar, impossível não reiterar o questionamento: quem de nós estará disposto?

Respostas cabem a cada um. O que me permito afirmar, por fim, é que ao menos alguns de nós estão se questionando, elaborando alternativas e nos provocando esperançar. Termino registrando dois prazeres, um por ter reunido Rafael, Ariston, Ariádne e Luiz Alex em debate, e outro por sintetizar e refletir sobre suas opiniões, iniciativas e proposições.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2020
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