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O QUE PRECISAMOS SABER SOBRE O ANTROPOCENO?

O ANTROPOCENO E A CIÊNCIA DO SISTEMA TERRA Veiga, José Eli da. . São Paulo, SP: Editora 34, 2019. 152 p.

Depois de anos de pouquíssimas reações às implicações das organizações sobre questões como o aquecimento global, a mudança na composição atmosférica e a acidificação dos oceanos, parece que, em 2019, as reflexões sobre o Antropoceno finalmente chegaram com mais força ao campo dos Estudos Organizacionais (EOs)1 1 No EGOS de Edimburgo, o Antropoceno foi abordado explicitamente no título de um subtema (Critical Anthropocene studies), além de ter figurado como foco central da discussão de pelo menos um outro (Discursive and material struggles over the natural environment) e como tema central de uma concorrida subplenária (Grand challenges: Organizations and the Anthropocene). Antes disso, em 2018, a revista Organization publicou uma edição especial dedicada à temática, chamada Organizing in the Anthropocene. Os EOs da América Latina e do Brasil podem se gabar de ter chegado ao tema de maneira pioneira (ainda que não menos atrasada em relação a outros campos científicos). Espaços de discussão sobre o Antropoceno surgiram nas edições de 2018 e 2019 do CBEO (nos subtemas “Estudos Organizacionais no Antropoceno” e “Relações organização-natureza no Antropoceno: Crise epistêmica do antropocentrismo e a emergência de novas biossocialidades”, respectivamente). O mesmo ocorreu no congresso internacional da Red Pilares no Chile, em 2018 (na mesa temática Cambio climático y otros riesgos del Antropoceno para América Latina). Também antes dos europeus, a Desacatos: Revista de Ciencias Sociales, organizada pelo Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (Ciesas) do México, lançou em 2017 o número 54 - Cambio Climático y Antropoceno - disponível neste link: http://desacatos.ciesas.edu.mx/index.php/Desacatos/issue/view/102/showToc. A demora em juntarmo-nos ao coro de cientistas que vêm estudando os impactos das ações humanas sobre o planeta Terra e denunciando seus efeitos faz parecer que chegamos a este momento talvez mais por efeito de disponibilidade de informação que por compromisso político. Afinal, à medida que desastres ambientais cada vez mais associados à ação humana passam a ser mais percebidos e noticiados, parece que ficamos mais atentos e mais propensos a aderir ao assunto em nossas agendas de pesquisa (talvez sem a consciência de que podemos ser influenciados pela facilidade com que eventos catastróficos agora nos vêm à mente e informam a opinião pública). Mas o súbito interesse sobre o tema é um lampejo de consciência, e não podemos perder o momento2 2 Ressaltamos que a reflexão crítica sobre a relação das organizações com o ambiente integra a agenda dos EOs desde os anos 1990, como o capítulo de Egri e Pinfield (1996) do Handbook de Estudos Organizacionais pode atestar. Em 2006, já depois da proposição do termo Antropoceno, o capítulo de Jermier, Forbes, Benn e Orsato (2006) atualizou a discussão, sem, contudo, abordar a questão. Não ignoramos as contribuições que os estudos críticos à perspectiva da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável têm feito para problematizar o impacto da ação humana (potencializada pelas organizações) no planeta Terra. Mas queremos ressaltar a falta de engajamento com a temática do Antropoceno, especificamente. Essa palavra amplia o vocabulário da área, introduzindo um conceito novo, que pode ajudar a explicar a realidade de maneira mais sintonizada com os problemas contemporâneos e o modo como estão sendo colocados em outros domínios científicos. . Conforme ressaltam DeCock, Nyrberg e Wright (2019DeCock, C., Nyberg, D., & Wright, C. (2019). Disrupting climate changes futures: conceptual tools for lost histories. Organization, 00(0), 1-15. doi: 10.1111/gwao.12189
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), é chegado o momento de desenvolver os EOs como uma disciplina que se ajuste ao Antropoceno. Temos não apenas que nos engajar rápido com os debates científicos sobre o Antropoceno, mas agir rápido, se quisermos que os EOs sejam parte da solução (e não apenas uma das fontes) da crise ambiental.

O livro de Veiga é um atalho para que os pesquisadores brasileiros possam se apropriar do histórico e do vocabulário sobre a questão. Ao percorrer o texto, composto por Prólogo (A nova Época), três seções razoavelmente independentes entre si (Sobrevoo, Zoom e Achados) e Epílogo (A promessa), o leitor ou a leitora não apenas encurta seu caminho sobre os fatos em torno da proposição da nova Época (em maiúscula, como Veiga ressalta ser a grafia correta), como também relembra (e aprende) conceitos distantes para os cientistas dos EOs que, possivelmente, desconhecem os métodos da Geologia (como a estratigrafia, importantíssima para compreender as contendas em relação à proposição de um marco para o início da nova Época Antropoceno). Evitando investidas custosas a outras ciências, os estudiosos dos EOs brasileiros podem descobrir sobre o debate atual em torno do Antropoceno por parte de importantes entidades científicas (IGBP, IPCC, IPBES, entre tantos outros acrônimos citados no livro) e conhecer os bastidores e idiossincrasias das Ciências do Sistema Terra. O livro traz o conhecimento sobre o Antropoceno para um contexto glocal, ao mencionar a contribuição de alguns cientistas brasileiros dedicados à questão (ainda que pudéssemos usufruir mais de outras referências a autores brasileiros em todo o livro).

Embora Veiga não proponha o diálogo com o estudo das organizações, insinua a possibilidade ao mostrar as conexões entre Ciências do Sistema Terra e as Ciências Sociais. O livro-atalho pode ser também indicativo de novos caminhos, se tomarmos a problemática epistemológica levantada por Veiga, entre a reincidência de perspectivas sistêmicas em face da complexidade, ou ontológicas, como o pensamento antropocêntrico e sua superação, e ainda cosmológicas, como as narrativas contraditórias de Gaia e Medeia explicando a Terra em colapso. Todavia, é preciso escapar de algumas armadilhas deixadas pelo próprio autor. São pensamentos apenas rascunhados, ou digressões que pouco contribuem para que o livro seja mais do que um guia introdutório, a ser citado mais pela sua peremptoriedade (e originalidade localizada, afinal se trata de um dos únicos livros brasileiros do tipo) do que por estimular o desenvolvimento da ciência no Antropoceno, no Brasil, em diferentes campos do conhecimento.

Escrutinando o texto em suas partes, no capítulo Sobrevoo vemos, já no primeiro parágrafo, a referência espectral ao processo civilizador, de Norbert Elias. É sabido que teorias sobre o início do Antropoceno se referem a certa ideia de civilização. Todavia, o sentido empregado por Veiga é vago e contraditório. Por exemplo, o autor destaca duas referências atuais e bastante populares, que elaboraram ideias diferentes sobre “civilização”. Primeiro, Kate Raworth (2017), cujas propostas são descritas com entusiasmo (com direito à reprodução do gráfico da rosquinha representando os limites planetários e os limites da ação humana). Depois, Yuval Harari (2015Harari, Y. N. (2015). Sapiens: Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: LP&M., 2016, 2018) é acusado de ser um dos que “desvirtuam a ideia inicial” (Veiga, p. 31) do termo Antropoceno, numa crítica que pode soar injusta a quem já percorreu essas obras sem encontrar o mesmo vulto ao Antropoceno percebido por Veiga. Ao fim do capítulo, não se sabe porque Raworth é exaltada e Harari é condenado por referirem-se, cada qual à sua maneira e conforme propósitos distintos, aos impactos das civilizações humanas sobre o planeta Terra. Ao longo do livro, Veiga diminui a importância das discussões sobre a definição do Antropoceno a partir de um marco estratigráfico (embora tenha feito seu leitor ou sua leitora conhecer e compreender a questão), ao explicitar (sem explicar) sua adesão à tese da Grande Aceleração. A simpatia por Raworth parece corroborar a ideia de que são os “processos civilizatórios” dos países desenvolvidos os principais causadores do estado de coisas do Antropoceno, mas isso não fica claro. Ainda mais delicada é a menção vaga e sem âncora teórica sobre “a propensão psíquica dos humanos sobre a natureza”, ou “a natureza humana”, conjugada ao “processo civilizador”.

Outra armadilha é uma incursão pela complexidade a partir de Edgar Morin. O debate epistemológico sobre as Ciências do Sistema-Terra, iniciado no capítulo Zoom, nos dá a ideia das dificuldades de integração da(s) ciência(s) para a compreensão do Antropoceno e seus desafios. Veiga explica que alguns pesquisadores desse campo são mais e outros menos inclinados à aproximação com as humanidades. Mas, no capítulo seguinte, chamado de Achados, ele reduz o melting-pot da complexidade às propostas de Morin e despende esforços em descrever os conceitos e criticar elementos particulares da obra desse autor. A redução da complexidade a Morin é limitada, para não dizer ultrapassada, se pensarmos na complexidade do Antropoceno (problemas dinâmicos, de magnitude planetária e que revelam a integração da Terra de uma forma assombrosa). Embora Veiga elabore a distinção entre Gaia e Medeia em partes anteriores do texto, ele não recupera essa perspectiva cosmológica para enriquecer o debate ou ampliar a visão sobre complexidade. Da mesma forma, embora o autor cite referências importantes para a compreensão da contribuição das Ciências Sociais para a definição do Antropoceno, deixa de fora essas fontes e escolhe elaborar o debate sobre complexidade a partir de Morin apenas.

Os pesquisadores dos EOs terão que lidar, ainda, com o fato de Veiga ter restrito a definição da nova Época Antropoceno ao âmbito da História da Terra, nos parágrafos conclusivos do livro. Depois de acalentar a promessa de integração das humanidades às Ciências do Sistema-Terra (por meio do “indispensável destaque à natureza humana e o processo civilizador”, para que enfim a nova ciência possa decolar, como colocado na p. 122), Veiga é categórico ao afirmar que a concepção do Antropoceno “em nada depende das atuais incertezas transdisciplinares sobre o conhecimento complexo” e que a ciência do Antropoceno “depende, sim, dos profícuos trabalhos conjuntos dos pesquisadores de duas disciplinas científicas muito bem estabelecidas: A História e a Geologia” (p. 123). Restringindo dessa forma o debate, Veiga parece circunscrever a questão do Antropoceno a uma elaboração sobre o tempo da Terra ou da vida humana, atida ao preciosismo de descrever a nova Época em detrimento de explorar as consequências do conceito no aqui e agora, no campo político. Para tanto, o trabalho dos pesquisadores dos EOs é oportuno e valioso. No momento atual, a degradação ambiental se soma a outras questões complexas, como a problemática de refugiados e migrantes, decisões sobre o futuro do planeta diante das possibilidades de geoengenharia de ecossistemas, a transição para outras formas de produção menos dependentes de combustíveis fósseis e mudanças teóricas e práticas em direção a modelos econômicos e organizacionais para lidar com as crises ambientais. Esses, entre outros desafios, demandam posturas éticas por parte de pesquisadores e gestores, uma nova ideia de gestão, alinhada à nova época geológica cujos efeitos já se fazem sentir; uma nova gestão preocupada com a questão ambiental.

Por fim, o conceito de Antropoceno, com sua trajetória de debates e controvérsias nas Ciências do Sistema-Terra, não deve ser tomado como uma abstração para o campo dos EOs, mas sim servir de recurso científico para que os acadêmicos desse campo aprofundem a reflexão sobre como as organizações estão transformando natureza e moldando a forma como a sociedade responde às crises ambientais. Uma das ações a serem tomadas diz respeito a exercícios de criticar o passado e reimaginar o futuro, para elaborar caminhos alternativos ao colapso ecológico (Ergene, Calás, & Smircich, 2018Ergene, S., Calás, M. B., Smircich, L. (2018). Ecologies of sustainable concerns: organization theorizing for the Anthropocene. Gender, Work & Organization, 25(3), 222-245. doi: 10.1111/gwao.12189
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; Nyberg & Wright, 2019Nyberg, D. & Wright, C. (2019). Making climate change fit for capitalism: the corporate translation of climate adaptation. In Academy of Management Proceedings(Vol. 2019, No. 1, p. 12618). Briarcliff Manor, NY.Raworth, K. (2017). Doughnut economy: Seven ways to think like a 21 st Century economist. New York, USA: Random House.). O engajamento dos EOs com as questões do Antropoceno também pode perpassar ações que podem ser tomadas para que as organizações se tornem parte da solução da crise ambiental. Por enquanto, elas foram propostas como movimentos ao redor das seguintes questões: como vemos nossa relação com a natureza; como nossa linguagem está conformada ao problema ambiental e como pode se tornar disruptiva; como podemos promover mais democracia na política ambiental; como podemos apreender o valor da natureza para além das relações de mercado; como podemos desenvolver uma identidade ambientalista para além do consumo; e como podemos promover disposições emocionais positivas à ação em prol das mudanças necessárias para combater a crise ambiental (Wright & Nyberg, 2015).

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    No EGOS de Edimburgo, o Antropoceno foi abordado explicitamente no título de um subtema (Critical Anthropocene studies), além de ter figurado como foco central da discussão de pelo menos um outro (Discursive and material struggles over the natural environment) e como tema central de uma concorrida subplenária (Grand challenges: Organizations and the Anthropocene). Antes disso, em 2018, a revista Organization publicou uma edição especial dedicada à temática, chamada Organizing in the Anthropocene. Os EOs da América Latina e do Brasil podem se gabar de ter chegado ao tema de maneira pioneira (ainda que não menos atrasada em relação a outros campos científicos). Espaços de discussão sobre o Antropoceno surgiram nas edições de 2018 e 2019 do CBEO (nos subtemas “Estudos Organizacionais no Antropoceno” e “Relações organização-natureza no Antropoceno: Crise epistêmica do antropocentrismo e a emergência de novas biossocialidades”, respectivamente). O mesmo ocorreu no congresso internacional da Red Pilares no Chile, em 2018 (na mesa temática Cambio climático y otros riesgos del Antropoceno para América Latina). Também antes dos europeus, a Desacatos: Revista de Ciencias Sociales, organizada pelo Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (Ciesas) do México, lançou em 2017 o número 54 - Cambio Climático y Antropoceno - disponível neste link: http://desacatos.ciesas.edu.mx/index.php/Desacatos/issue/view/102/showToc.
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    Ressaltamos que a reflexão crítica sobre a relação das organizações com o ambiente integra a agenda dos EOs desde os anos 1990, como o capítulo de Egri e Pinfield (1996) do Handbook de Estudos Organizacionais pode atestar. Em 2006, já depois da proposição do termo Antropoceno, o capítulo de Jermier, Forbes, Benn e Orsato (2006) atualizou a discussão, sem, contudo, abordar a questão. Não ignoramos as contribuições que os estudos críticos à perspectiva da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável têm feito para problematizar o impacto da ação humana (potencializada pelas organizações) no planeta Terra. Mas queremos ressaltar a falta de engajamento com a temática do Antropoceno, especificamente. Essa palavra amplia o vocabulário da área, introduzindo um conceito novo, que pode ajudar a explicar a realidade de maneira mais sintonizada com os problemas contemporâneos e o modo como estão sendo colocados em outros domínios científicos.

REFERÊNCIAS

  • DeCock, C., Nyberg, D., & Wright, C. (2019). Disrupting climate changes futures: conceptual tools for lost histories. Organization, 00(0), 1-15. doi: 10.1111/gwao.12189
    » https://doi.org/10.1111/gwao.12189
  • Egri, C. P., & Pinfield, L. T. (1996). Organizations and the biosphere: Ecologies and environments. In S. Clegg, C. Hardy, & W. R. Nord, Handbook of organization studies London, Thousand Oaks and New Dehli: Sage Publications (pp. 459-483).
  • Ergene, S., Calás, M. B., Smircich, L. (2018). Ecologies of sustainable concerns: organization theorizing for the Anthropocene. Gender, Work & Organization, 25(3), 222-245. doi: 10.1111/gwao.12189
    » https://doi.org/10.1111/gwao.12189
  • Harari, Y. N. (2015). Sapiens: Uma breve história da humanidade Porto Alegre, RS: LP&M.
  • Harari, Y. N. (2016). Homo Deus: Uma breve história do amanhã São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Harari, Y. N. (2018). 21 lições para o século 21 São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Jermier, J. M., Forbes, L. C., Benn, S., & Orsato, R. J. (2006). The new corporate environmentalism and green politics. In S. Clegg, C. Hardy, & W. R. Nord, Handbook of organization studies London, Thousand Oaks and New Dehli: Sage Publications (2nd ed., pp. 618-650).
  • Nyberg, D. & Wright, C. (2019). Making climate change fit for capitalism: the corporate translation of climate adaptation. In Academy of Management Proceedings(Vol. 2019, No. 1, p. 12618). Briarcliff Manor, NY.Raworth, K. (2017). Doughnut economy: Seven ways to think like a 21 st Century economist New York, USA: Random House.
  • Wright, C. & Nyberg, D. (2015). Climate change, capitalism, and corporations Cambridge: Cambridge University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020
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