Resumo
O propósito deste estudo é testar a hipótese de que há clara diferença entre as remunerações médias percebidas por juízes e juízas de 8 tribunais de justiça brasileiros. Por meio da técnica de matching, realizou-se um pareamento entre juízes e juízas condicionado ao cargo, ao tempo de magistratura, ao mês e ao ano da remuneração, bem como ao tribunal. As diferenças nas médias remuneratórias persistem mesmo após o pareamento, o que pode ser explicado pelos mediadores de gênero, que operam gerando melhores oportunidades para homens em desfavor das mulheres.
Palavras-chave:
magistratura; estudos de gênero; diferenças salariais; desigualdades
Resumen
El objetivo de este estudio es probar la hipótesis de que existe una clara diferencia entre las remuneraciones promedio percibidas por los jueces de ocho tribunales de justicia brasileños. Mediante la técnica de matching se realizó un emparejamiento entre jueces y juezas condicionado al cargo, a la duración de la magistratura, al mes y año de remuneración y al tribunal. Las diferencias en los promedios salariales persisten incluso después del emparejamiento, lo que puede explicarse por los mediadores de género, que operan generando mejores oportunidades para los hombres en detrimento de las mujeres.
Palabras clave:
poder judicial; estudios de género; diferencias salariales; desigualdades
Abstract
This study tests the hypothesis that there is a clear difference between the average salaries perceived by male judges and female judges in eight Brazilian courts of justice. Using propensity score matching, judges were paired according to position, length of service as a judge, and court. The differences in average salaries persist even after the matching, although to a lesser degree, which can be explained by gender mediators that operate by generating better opportunities for men than for women.
Keywords:
judiciary; gender studies; gender pay gap; inequalities
1. INTRODUÇÃO
O aumento de mulheres na composição da magistratura brasileira ocorrido nas últimas 2 décadas não tem sido suficiente para alterar seu perfil sociodemográfico, sobretudo nas posições hierárquicas mais altas das carreiras e nas funções de presidência de tribunais ou comissões. Além disso, esse aumento convive com diversas barreiras e discriminações que impedem a progressão de mulheres e de outros grupos minoritários em posições superiores, resultando em relações desiguais na profissão (Duarte, Fernando, Gomes, & A. Oliveira, 2014Duarte, M; Fernando, P; Gomes, C; & Oliveira, A. (2014) The feminization of the judiciary in Portugal: dilemmas and paradoxes. Utrecht Law Review, 10(1), 29-43.; Fragale, Moreira, & Sciammarella, 2015Fragale, R Filho Moreira, R. S; & Sciammarella, A. P. (2015). Magistratura e gênero: um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do judiciário brasileiro. E-cadernos CES, 24, 57-77.; Kahwage & Severi, 2019Kahwage, T; & Severi, F. C. (2019). Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa, 56(222), 51-73.; Rhode, 2001Rhode, D. L. (2001). The unfinished agenda: women and the legal profession. Chicago, IL: American Bar Association.; Schultz & Shaw, 2003Schultz, U. (2003). Women lawyers in Germany: perception and construction of femininity. In U. Schultz; & G. Shaw (Eds.), Women in the world’s legal professions. Oxford, UK: Hart Publishing.; Sommerlad, Webley, Duff, Muzio, & Tomlinson, 2010Sommerlad, H., Webley, L., Duff, L., Muzio, D., & Tomlinson, J. (2010). Diversity in the legal profession in England and Wales: a qualitative study of barriers and individual choices. London, UK: University of Westminster.).
Para analisar as desigualdades de gênero na magistratura, a literatura tem utilizado categorias como segregação vertical (ou tetos de vidro), segregação horizontal (ou paredes de vidro), concentração em áreas ou funções e ideário do profissionalismo (ou ideologia da neutralidade do profissionalismo). Os tetos de vidro (Bahillo, Saso, & Muñio, 2016Bahillo, C. G; Saso, C. E; & Muñio, C. M. (2016). Feminización de la judicatura española. Convergencia - Revista de Ciencias Sociales, 23(70), 199-226.; Bergallo, 2007Bergallo, P. (2007). ¿Un techo de cristal en el poder judicial? la selección de los jueces federales y nacionales en Buenos Aires. In L. Cabal; & C. Motta (Eds.), Más allá del derecho: justicia y género en América Latina. Bogota, Colombia: Siglo del Hombre.; Bonet, 2014Bonet, M. A. R. (2014) Desigualdades de género en el mercado laboral: un problema actual. Islas Baleares, España: Universitat de les Illes Balears. ; Centro Regional de Derechos Humanos y Justicia de Género, 2019Centro Regional de Derechos Humanos y Justicia de Género. (2007). Informe regional: iguales en méritos, desiguales en oportunidades - acceso de mujeres a los sistemas de administración de justicia. Bogota, Colombia: Autor) se referem a barreiras invisíveis e discriminações que impedem as mulheres e outras categorias também minoritárias na magistratura (negros, indígenas, pessoas com deficiência, entre outras) de progredirem na carreira ou de ocuparem funções de maior poder, visibilidade ou prestígio. As paredes de vidro envolvem as dificuldades para as mulheres atuarem em determinadas áreas de especialização (Kahwage & Severi, 2019Kahwage, T; & Severi, F. C. (2019). Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa, 56(222), 51-73.; Ribera, Miguel, & Pérez, 2009Ribera, T. B., Miguel, S. E., & Pérez, C. M. D. (2009). Obstáculos en la promoción de las mujeres: el “techo de cristal”. Congreso de Ingenieria de Organización, 12, 133-142.). O ideário de profissionalismo funciona como uma barreira na progressão horizontal das mulheres na magistratura, ao invisibilizar ou naturalizar as desigualdades de gênero na organização da carreira (Bonelli, 2011Bonelli, M. G. (2011). Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. Revista Contemporânea, 1, 103-123.; Gastiazoro, 2016Gastiazoro, M. E. (2016). Inserción de las mujeres en las grandes firmas jurídicas de Argentina. Trabajo y Sociedad, 27, 139-153.).
Essa literatura tem deixado de lado a temática da remuneração. Possivelmente, isso se dê graças à pressuposição de que, por ser uma carreira pública com valores salariais definidos em tabelas e segundo critérios objetivos, não haveria diferença significativa nos rendimentos auferidos por homens e mulheres. Ou seja, ao contrário do que se percebe em profissões como a advocacia, no caso do Poder Judiciário, uma vez em posição similar, homens e mulheres com o mesmo tempo de carreira teriam rendimentos iguais. Todavia, ao aceitarmos essa premissa, deixamos de considerar possíveis diferenças de gênero que resultam em relações desiguais no acesso aos diversos benefícios e vantagens pecuniárias remuneratórias decorrentes, principalmente, dos valores referentes a tipos de pagamentos previstos na estrutura remuneratória dos diversos órgãos do Poder Judiciário brasileiro, como gratificações, adicionais, prêmios, abonos, verbas de representação, auxílios etc.
Não nos parece ser improvável, portanto, haver efeitos semelhantes no acesso a vantagens ou benefícios remuneratórios dos tribunais de justiça brasileiros. Considerando que cada tribunal estabelece as próprias regras remuneratórias, é possível supor que, no momento de aplicação dos critérios que resultem no pagamento de vantagens a magistrados e magistradas, mecanismos sutis baseados no gênero funcionem de modo a resultar em maiores vantagens aos homens e desvantagens às mulheres nos contracheques de integrantes de tais carreiras.
Nossa pesquisa buscou investigar a presença de diferenças de gênero na remuneração da magistratura em tribunais de justiça estaduais. A hipótese da desigualdade baseada no gênero foi elaborada com apoio nos estudos sobre gênero na magistratura e na análise dos modelos de organização de vencimentos da magistratura brasileira, que muitas vezes resultam da somatória entre um vencimento base (igual) e os valores obtidos como vantagens ou benefícios.
2. DESIGUALDADES DE GÊNERO NA CARREIRA DA MAGISTRATURA E A QUESTÃO DA REMUNERAÇÃO
De acordo com dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) relativos ao perfil sociodemográfico da magistratura brasileira, o aumento de mulheres1
1
Em comparação com os anos de 1990, 25% eram mulheres e 75% eram homens. Em 2018, 37% eram mulheres e 63%, homens.
e de pessoas negras ocorrido sobretudo nas 2 últimas décadas ainda não foi suficiente para alterar o perfil de integrantes do Poder Judiciário brasileiro, que ainda é composto, majoritariamente, por homens, pessoas brancas, casadas ou em união estável, provenientes de camadas sociais médias e altas, com filhos, idade média de 46 anos e católicas (CNJ, 2018Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
).
A chegada das mulheres e de outros grupos minoritários ao Judiciário brasileiro ocorreu nos anos 1990, como reflexo das adaptações das instituições ao momento de transformações democratizantes ensejadas pela Constituição Federal de 1988 (Sadek, 2006Sadek, M. T. (2006). Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro, RJ: FGV Direito Rio.). A expectativa no início dos anos 2000, nutrida por diversos órgãos profissionais do campo jurídico que também viam o aumento significativo das mulheres nos cursos jurídicos e na advocacia, era a de que a diversificação do corpo da magistratura e a ascensão delas às entrâncias finais seria uma questão de tempo (Bonelli & F. L. Oliveira, 2020Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163.).
O campo de estudos sobre feminização da magistratura (e de outras profissões jurídicas) também começa a ganhar vigor no país nesse mesmo período, em diálogo com trabalhos de outros países sobre o mesmo tema, com interesse em acompanhar as possíveis mudanças nos modelos de prestação jurisdicional e de funcionamento do Poder Judiciário derivadas das transformações no perfil sociodemográfico de seus quadros (Bercholc, 2015Bercholc, J. (2015). Mujeres supremas: la cuestión de género en cortes supremas y tribunales constitucionales. Datos comparados sobre la perfomance de las juezas. Revista Científica Codex, 1(1), 211-226.; Hunter, 2015Hunter, R. (2015). More than just a different face? Judicial diversity and decision-making. Current Legal Problems, 68(1), 119-141.; Kahwage & Severi, 2019Kahwage, T; & Severi, F. C. (2019). Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa, 56(222), 51-73.; Menkel-Meadow, 2013Meadow, C. M. (2013). A sociologia comparada das advogadas: a feminização da profissão jurídica. Panóptica, 8(25), 67-96.). Essa expectativa, no entanto, até hoje não se realizou. O aumento de mulheres e de outros grupos numericamente minoritários tem acontecido de forma lenta e segregada.
A segregação vertical foi analisada em diversos estudos como resultante da interação entre vida familiar/tarefas de cuidado e atuação profissional (Bonelli, 2011Bonelli, M. G. (2011). Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. Revista Contemporânea, 1, 103-123., 2016Bonelli, M. G. (2016). Carreiras jurídicas e vida privada: intersecções entre trabalho e família. Cadernos Pagu, 46, 245-277. ; Fragale et al., 2015Fragale, R Filho Moreira, R. S; & Sciammarella, A. P. (2015). Magistratura e gênero: um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do judiciário brasileiro. E-cadernos CES, 24, 57-77.; Junqueira, 1988Junqueira, E. B. (1998). A mulher juíza e a juíza mulher. In C. Bruschini, & H. B. Holanda (Eds.), Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo, SP: Fundação Carlos Chagas. ; Marques, 2014Marques, G., Jr . (2014). Espaço, profissão e gênero: mobilidade e carreira entre juízes e juízas no estado de São Paulo. Cadernos Pagu, 43, 265-297. ). Um dos elementos mais reiterados em tais análises como responsável por afetar desproporcionalmente as chances e as oportunidades de ascensão de mulheres na carreira da magistratura se refere às dificuldades em conciliar trabalho e vida familiar, sobretudo no caso de mulheres responsáveis por tarefas de cuidado de crianças ou demais familiares, mesmo quando têm apoio de serviços ou de outras pessoas (empregadas domésticas e avós, por exemplo).
Diferentemente do discurso oficial que afirma ser a progressão regulada pelo critério de antiguidade, as mulheres, em especial quando têm filhos ou são as responsáveis principais por tarefas familiares ligadas ao cuidado, apresentam mais dificuldades para progredir na carreira da magistratura, já que muitas das oportunidades de ascensão requerem, por exemplo, mobilidade espacial entre comarcas ou varas distintas (Marques, 2014Marques, G., Jr . (2014). Espaço, profissão e gênero: mobilidade e carreira entre juízes e juízas no estado de São Paulo. Cadernos Pagu, 43, 265-297. ). Para ocuparem espaços de poder, com frequência elas precisam demonstrar notório merecimento, de acordo com padrões masculinizados de produtividade e de postura profissional (Gastiazoro, 2010Gastiazoro, M. E. (2010). Construcción de la identidad profesional y de género en la administración de justicia Argentina. Via Iuris, 9, 11-32.; Kahwage, 2017Kahwage, T; & Severi, F. C. (2019). Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa, 56(222), 51-73.; Sommerlad et al., 2010Sommerlad, H., Webley, L., Duff, L., Muzio, D., & Tomlinson, J. (2010). Diversity in the legal profession in England and Wales: a qualitative study of barriers and individual choices. London, UK: University of Westminster.). De igual modo, precisam provar capacidade de gerenciamento do tempo dedicado à função, sobretudo quando são responsáveis por tarefas de cuidado na vida privada (Fragale et al., 2015Fragale, R Filho Moreira, R. S; & Sciammarella, A. P. (2015). Magistratura e gênero: um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do judiciário brasileiro. E-cadernos CES, 24, 57-77.).
A necessidade de harmonização entre carreira e vida familiar e tarefas de cuidado também tem sido usada como chave explicativa para a concentração de mulheres em cargos em determinados áreas ou funções, em pesquisas feitas no Brasil e em diversos outros países. Na análise feita por Bergallo (2007Bergallo, P. (2007). ¿Un techo de cristal en el poder judicial? la selección de los jueces federales y nacionales en Buenos Aires. In L. Cabal; & C. Motta (Eds.), Más allá del derecho: justicia y género en América Latina. Bogota, Colombia: Siglo del Hombre.) sobre a magistratura argentina, problemas com o tempo a ser dedicado a tarefas de cuidado e a interação permanente entre demandas do trabalho em casa ou demandas familiares no trabalho conduzem as mulheres a optarem por posições na carreira que tenham jornadas mais flexíveis e lhes garantam estabilidade familiar, o que por vezes resulta no abandono das aspirações por ascensão (Bahillo et al., 2016Bahillo, C. G; Saso, C. E; & Muñio, C. M. (2016). Feminización de la judicatura española. Convergencia - Revista de Ciencias Sociales, 23(70), 199-226.; Gastiazoro, 2008Gastiazoro, M. E. (2008). La concentración de las mujeres en la administración de justicia. Anuario del CIJS, 11, 705-721. , 2016Gastiazoro, M. E. (2013). Género y trabajo: mujeres en el poder judicial. Córdoba, Argentina: Centro de Estudios Avanzados. ; Schultz & Shaw, 2003Schultz, U. (2003). Women lawyers in Germany: perception and construction of femininity. In U. Schultz; & G. Shaw (Eds.), Women in the world’s legal professions. Oxford, UK: Hart Publishing.).
Bonelli (2010Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163., 2011Bonet, M. A. R. (2014) Desigualdades de género en el mercado laboral: un problema actual. Islas Baleares, España: Universitat de les Illes Balears. , 2016Cahuc, P; Carcillo, S; & Zylberberg, A. (2014). Labor Economics. Cambridge, UK: MIT Press .) tem analisado as desigualdades na progressão profissional da magistratura, articulando gênero com a ideologia do profissionalismo como neutralidade. Segundo a autora, a construção da identidade de juízes e juízas ligada a um ideário de profissionalismo como neutralidade foi uma das formas com que as forças tradicionais das cúpulas do Judiciário lidaram com a ampliação no recrutamento e na heterogeneidade da sua composição, iniciada nos anos 1990, e o risco de, com isso, a carreira perder prestígio e poder social. O sucesso de poucas mulheres nos concursos de ingresso foi sendo convertido em evidência de que a seleção era realizada por critério de mérito, baseado apenas no desempenho daquelas pessoas mais capacitadas. A questão da desigualdade de gênero seria, então, naturalmente superada com o passar do tempo.
No exercício profissional, a neutralidade é o parâmetro para avaliação do bom desempenho do fazer da magistratura - mulheres ou homens. Só que a neutralidade, segundo Bonelli (2010)Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163., envolve menos determinado saber técnico e mais uma forma de construção identitária de prática profissional que, em geral, toma o homem e as características atribuídas ao masculino - branco e heterossexual - como pontos de referência para sua construção. Ou seja, a neutralidade é um éthos profissional marcadamente masculino - também branco, socialmente favorecidos e heterossexuais. Para mulheres, negros, indígenas ou não pertencentes ao perfil sociodemográfico predominante na magistratura, as chances de ascensão, de estar em algum espaço de prestígio ou de poder na carreira, ou mesmo de não serem submetidos a constrangimentos entre os pares no exercício de suas funções, estão relacionadas com os níveis variados de demonstração de adesão a esse referencial dominante.
O sentido que Bonelli (2010)Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163. emprega ao termo “neutralidade” se refere ao senso comum corrente no direito, ou ao que Hunter (2015Hunter, R. (2015). More than just a different face? Judicial diversity and decision-making. Current Legal Problems, 68(1), 119-141.) nomeia de ideologia judicial, ligado à expectativa de que a pessoa magistrada seja capaz de desconsiderar a própria visão de mundo, crenças e valores pessoais na análise dos casos e de não se comprometer com as nuanças dos casos concretos e dos aspectos subjetivos das partes no processo de tomada de decisão. Esse senso comum não apenas é expresso por uma forma de tomar decisões judiciais, mas também por certa identidade profissional. Não é incomum neutralidade ser confundida com imparcialidade, sendo este um dever da pessoa magistrada decorrente do princípio do juiz natural que expressa a exigência de atuação equidistante em relação às partes no processo judicial. Se a imparcialidade é um dever jurídico, a neutralidade é uma ideologia, que reforça a percepção de que qualquer tipo de diferença explicitada por quem exerce a magistratura (diferenças de gênero, étnico-raciais etc.) seja questionada em sua qualificação e competência, já que ingressaram no Judiciário sob a condição de uma atuação pautada pela neutralidade.
Bonelli e F. L. Oliveira (2020Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163., p. 148) discutem o ideário de neutralidade como um “viés implícito em relação ao trabalho das mulheres, colocando obstáculos a seu percurso na carreira” ao mesmo tempo que gera mais oportunidades para os homens brancos socialmente favorecidos. Esse viés define a distribuição desigual de privilégios e desvantagens na carreira, de modo a favorecer o percurso dos homens brancos e socialmente favorecidos aos espaços de maior poder e prestígio, enquanto cria dificuldades para as mulheres, que precisam se ajustar permanentemente. Pelos dados analisados pelas autoras sobre composição e progressão, as desigualdades de gênero na magistratura não parecem estar diminuindo com o passar do tempo. Elas ainda continuam figurando em maior percentual nas posições iniciais da carreira. As autoras também argumentam que o acesso recente de algumas mulheres a cargos ou funções de direção ou presidência nos tribunais têm acontecido num momento em que tais posições estão perdendo “poder, recursos e autonomia”, já que estão mais reguladas por parâmetros e metas exigidas pelo CNJ.
A questão das diferenças na remuneração pouco foi abordada em tais estudos, pois há um pressuposto compartilhado socialmente de que as regras que a definem nas carreiras públicas seriam mais “objetivas” ou menos suscetíveis a algum tipo de viés de gênero implícito. Quando há diferenças remuneratórias, elas seriam decorrentes de cargos ou funções exercidos e do tempo na carreira. Até 2017, seria muito difícil testar essa hipótese, haja vista que não tínhamos acesso, de maneira ampla, aos dados de contracheques do corpo da magistratura brasileira.
A advocacia privada é uma das profissões jurídicas em que as diferenças salariais baseadas no gênero são frequentemente analisadas. Schultz (2003Schultz, U. (2003). Women lawyers in Germany: perception and construction of femininity. In U. Schultz; & G. Shaw (Eds.), Women in the world’s legal professions. Oxford, UK: Hart Publishing.), considerando dados de diferentes países, afirma que elas ocorrem em vários locais, oscilando entre 10 e 35%, e que essas diferenças são só parcialmente justificadas por critérios como especialização, tempo de profissão, experiência profissional. Elas também podem ser atribuídas à discriminação de gênero. Um dos argumentos que a autora identificou no campo das justificativas junto à categoria para as diferenças salariais entre advogadas e advogados é o de que as mulheres não precisam, com seus salários, garantir o sustento de suas famílias, mas os homens, sim.
Fora das carreiras jurídicas, porém ainda falando sobre serviços públicos, há um conjunto de estudos que acumulam evidências sobre segregação vertical e desigualdades salariais baseadas no gênero em ocupações dos 3 poderes e nos 3 níveis federativos (Lopez & Guedes, 2019Lopez, F; & Guedes, E. (2019). Três décadas de funcionalismo brasileiro (1986-2017): atlas do Estado brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Ipea.). Ainda que o acesso aos cargos e às carreiras públicas seja por concurso e que as mulheres constituam uma expressiva maioria na administração pública, em 2017, as servidoras obtiveram rendimentos brutos, em média, 24,2% menores que os homens (Lopez & Guedes, 2019Lopez, F; & Guedes, E. (2019). Três décadas de funcionalismo brasileiro (1986-2017): atlas do Estado brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Ipea.). Mesmo quando consideramos posições equivalentes, os rendimentos auferidos por elas são 16,9% menores em relação ao rendimento auferido pelos homens (Vaz, 2018Bonet, M. A. R. (2014) Desigualdades de género en el mercado laboral: un problema actual. Islas Baleares, España: Universitat de les Illes Balears. ). A presunção, portanto, de isonomia na remuneração de homens e mulheres no setor público não parece se confirmar. Quanto à segregação vertical, na administração pública federal, por exemplo, as mulheres estão menos presentes quanto mais alto é o cargo ou o nível decisório associado ao posto de trabalho. Em geral, os cargos em comissão ligados a direção, assessoramento e chefias são preenchidos por nomeação e em caráter provisório, condições que favorecem a discriminação contra as mulheres (Vaz, 2010Bonelli, M. G; & Oliveira, F. L. (2020). Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos Cebrap, 39(1), 143-163.).
Esses resultados também sugerem haver uma forte heterogeneidade nas práticas remuneratórias observadas no setor público, com fatores distintos influenciando a formação dos salários em cada poder e esfera de governo. O segmento com pior remuneração é o Executivo municipal, ao passo que o mais bem remunerado é o Judiciário federal. Essas disparidades não se explicam apenas por características observáveis das pessoas que ocupam cada cargo (escolaridade, experiência profissional, tempo na carreira etc.), mas também por fatores como poder de barganha, capacidade de organização e de representação e proximidade aos núcleos decisórios centrais do Estado de cada categoria ou segmento. A autonomia financeira e administrativa, bem como o tipo de controle externo e interno das finanças públicas de cada poder, também é um fator que influencia a maneira como os salários são fixados no setor público (Nakamura & Vaz, 2020Nakamura, L. M., & Vaz, D. V. (2020). Quão heterogêneo é o setor público no Brasil? uma análise das diferenças salariais entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Administração Pública e Gestão Social, 12(4), 1-24.).
No caso das carreiras da magistratura, a somatória autonomia para definir os próprios salários, o grande poder de negociação junto ao Executivo (Carvalho & Leitão, 2013Carvalho, E; & Leitão, N. (2013). O poder dos juízes: Supremo Tribunal Federal e o desenho institucional do Conselho Nacional de Justiça. Revista de Sociologia Política, 21(45), 13-27.), a função estratégica junto ao Estado e o baixo controle externo dos seus gastos efetuados com salários pode explicar sua posição entre as carreiras com maior remuneração. Em termos de desigualdade de gênero, a magistratura figura, mesmo entre as demais carreiras públicas do sistema de Justiça, como aquela em que a dominação masculina é mais evidente, ou seja, as possibilidades de ascensão e de distribuição do poder interno que as profissões jurídicas permitem aos seus membros são marcadas fortemente por diferenças baseadas no gênero (Almeida, 2010Almeida, F. (2010). A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).
3. COMO SE DEFINEM OS SALÁRIOS NO PODER JUDICIÁRIO
A transparência quanto aos valores dos pagamentos feitos aos magistrados por ramo do Judiciário é uma discussão antiga. Somente após a Resolução nº 215/2015 do CNJ, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. (2011). Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), é que os tribunais passaram a disponibilizar em suas páginas eletrônicas dados sobre remuneração. A Portaria n° 63/2017 do CNJ determinou que todos os tribunais brasileiros enviem ao CNJ os dados relativos a pagamentos efetuados a integrantes da magistratura. As informações enviadas pelos tribunais são disponibilizadas pelo CNJ por meio de um sistema único, pelo qual é possível identificar os pagamentos mensais de cada integrante da magistratura, em termos de vencimentos, vantagens, indenizações e benefícios.
A remuneração de cada integrante da magistratura pode variar bastante - em primeiro lugar, de acordo com o cargo em cada uma das carreiras nos órgãos que compõem o Poder Judiciário (tribunais superiores, federais, eleitorais, militares, do trabalho, estaduais e do Distrito Federal). Cada carreira é composta por cargos hierarquizados, dos inferiores aos superiores. A mobilidade entre eles (promoção) se dá, em geral, respeitando-se o critério da maior antiguidade entre os membros.
Há um valor básico (vencimento) fixado por lei específica para cada órgão e cargo, respeitando os limites impostos pela Constituição Federal (art. 37, inciso XI), pela Lei Orgânica da Magistratura (Lei complementar nº 35, de 14 de março de 1979Lei complementar nº 35, de 14 de março de 1979. (1979). Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
) e pelas resoluções do CNJ sobre o tema, em especial a Resolução CNJ n° 13/2006. Um desses limites é o chamado teto remuneratório, que se refere à proibição de remuneração de pessoal do serviço público superior ao subsídio mensal pago a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse limite recai somente sobre o valor dos vencimentos, ficando excluídos os valores referentes às vantagens. Cada tribunal tem competência para definir tipos e valores de referência das vantagens a serem outorgadas, considerando o rol previsto no art. 65 da Lei Orgânica da Magistratura: ajuda de custo (auxílio-mudança e transporte, auxílio-moradia, auxílio-saúde, auxílio-creche, auxílio-parto etc.), salário-família, diárias, representação, gratificação pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral, gratificação pela prestação de serviço à Justiça do Trabalho, gratificação por cada quinquênio de serviço, gratificação de magistério, por aula proferida em curso oficial de preparação para a Magistratura ou em Escola Oficial de Aperfeiçoamento de Magistrados, além de gratificação pelo efetivo exercício em Comarca de difícil provimento.
Esse rol de vantagens é categorizado nos contracheques de magistrados e magistradas, com frequência, da seguinte forma: vantagens pessoais, que correspondem a retribuições pagas pelo tempo de serviço ou de função exercida no âmbito do tribunal; vantagens pecuniárias (ou indenizações), correspondendo a recomposições patrimoniais e que compreendem auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio pré-escolar, auxílio-saúde, auxílio-natalidade, auxílio-moradia etc.; vantagens eventuais, que contemplam pagamentos de direitos como férias ou serviços eventuais, como substituição; e as gratificações referentes às recompensas pagas pelo exercício de funções temporárias (como presidências, chefias etc.) ou a título de ajuda em razão de encargos pessoais decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições atípicas.
As vantagens pessoais são taxativas, cabendo a cada ente da federação estabelecer as suas. Já as vantagens pecuniárias - adicional e gratificação - não são definidas de forma técnica e sistematizada na legislação, o que causa a imprecisão na definição de seus conceitos, mas podem ser identificadas por serem compensações por serviços comuns ou especiais realizados por tais magistrados (Meirelles, 2016Meirelles, H. L. (2016). Direito administrativo brasileiro. São Paulo, SP: Malheiros.).
As carreiras estaduais da magistratura são regidas pela lei orgânica de cada um dos estados e do Distrito Federal. O mais frequente nessas carreiras é que juízes e juízas tomem posse inicialmente como substitutos ou substitutas. Quando passam a ser titulares, podem seguir em promoções organizadas pelos tribunais em cargos de entrâncias iniciais, intermediárias e finais. Além do cargo público, magistrados e magistradas podem exercer determinadas funções públicas de chefia, assessoramento ou direção, remuneradas, normalmente, mediante acréscimos pecuniários ao padrão do funcionário, sob os mais variados títulos, como a gratificação. Cada tribunal também estipula outras vantagens pecuniárias, como os adicionais - por função ou tempo de serviço - e as indenizações - como auxílio-transporte, auxílio-moradia, auxílio-creche e auxílio-paletó. Com isso, além dos vencimentos,2 2 De acordo com o art. 39, §8º da CF/1988, existe a possibilidade, para servidores públicos organizados em carreira, como é o caso dos magistrados, de o Estado optar pela remuneração mediante subsídio (parcela única estabelecida por lei). Contudo, em regra, os estados optam pela remuneração dos magistrados estaduais mediante vencimento (parcela fixa estabelecida por lei) e vantagens pecuniárias (parcela variável). que têm valores fixados em lei, magistrados e magistradas estaduais podem receber vantagens pecuniárias, com valores variáveis. A remuneração corresponde ao valor do vencimento somado às demais vantagens.
As vantagens são reguladas pelo princípio da impessoalidade,3 3 Ver art. 37 da Constituição Federal de 1988. o que reduziria, em tese, a possibilidade de diferenças remuneratórias por gênero ou por outro marcador social. Por que, então, imaginar que poderia haver, na prática, diferenças de gênero nos salários pagos a juízes homens e mulheres? A desigualdade de acesso às vantagens poderia ocorrer não em razão da natureza das atividades judiciais ou administrativas a serem acumuladas, já que todas as atividades que geram pagamento de vantagens podem ser desempenhadas por magistrados e magistradas.
A interação entre as atividades públicas e a vida privada também pode resultar em desigualdades de remuneração marcadas pelo gênero. A progressão na carreira dos magistrados ocorre por merecimento e antiguidade (art. 93, III CF/1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
). O requisito de merecimento deve observar critérios objetivos e estar disposto nos Regulamentos dos Tribunais de Justiça.4
4
Ver art. 80, II da Lei Complementar nº 35/1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).
Em geral, o merecimento está ligado ao nível de eficiência (produtividade) e à participação em cursos internos. A disponibilidade de magistradas responsáveis pela economia do cuidado frequentarem os cursos ou corresponderem a determinadas demandas de produtividade, por exemplo, é menor do que a de magistrados que estão desobrigados de tarefas de cuidado no âmbito privado. Como dito no início, o critério da anterioridade ainda segue privilegiando o gênero historicamente majoritário no sistema de Justiça: o masculino.
Em alguns tribunais estaduais, como o TJSP, a antiguidade é considerada um merecimento, de forma que o único critério que tem vigorado para a promoção na carreira é esse. Mesmo assim, como a progressão acaba por resultar muitas vezes em mudanças de município ou região em que atuarão, na prática, muitas juízas que cumprem o critério da antiguidade acabam por retardar a promoção, aguardando determinadas comarcas, ou decidindo permanecer em comarcas do estado - que, em regra, são de entrância inicial - para não afetar as condições de trabalho de seus companheiros ou de escolaridade de filhos e filhas. Elas desistem, assim, da progressão na carreira, mesmo cumprindo o critério de antiguidade, para poder melhor conciliar vida profissional e pessoal (Marques, 2014Marques, G., Jr . (2014). Espaço, profissão e gênero: mobilidade e carreira entre juízes e juízas no estado de São Paulo. Cadernos Pagu, 43, 265-297. ).
4. METODOLOGIA
A pesquisa busca testar a hipótese de que há clara5 5 Seguimos a terminologia adotada por Kain e Bolker (2019) de usar “evidente” ou “claramente”, em vez de “significância estatística”. diferença entre as remunerações médias recebidas por juízes e juízas em 8 tribunais de justiça estaduais brasileiros, mantendo o controle sobre o tempo de exercício na magistratura e o cargo ocupado6 6 O código e os dados podem ser visualizados no seguinte repositório público: https://github.com/jjesusfilho/remuneracao .
A proposta inicial era contemplar todos os tribunais estaduais na pesquisa. Todavia, não foi possível obter dados sobre o tempo de exercício na magistratura de todos os tribunais estaduais brasileiros - apenas de 8 -, implicando na limitação de unidades analisadas. Além disso, os tribunais adotam diferentes políticas para progressão na carreira. Há tribunais, como o TJSP, que optam por uma progressão conforme a entrância e o cargo, de modo que uma juíza ou um juiz ingressa como substituto(a), passando por primeira e segunda entrâncias, ou por entrância especial. Mesmo em segundo grau, há desembargadoras e juízas auxiliares. Por sua vez, há tribunais que adotam apenas 2 progressões: a de juiz ou juíza de direito e a de desembargadora ou desembargador.
Inicialmente, foram coletados dados de 12 tribunais: TJBA, TJES, TJGO, TJMG, TJMS, TJPB, TJPE, TJRJ, TJRN, TJSE, TJSP e TJAL. No entanto, 4 foram excluídos da análise - TJRJ, TJMS, TJAL e TJGO - porque não adotam os mesmos critérios para a contagem do tempo de magistratura dos demais, de forma que não foi possível compará-los. A análise foi realizada em 92.779 observações sobre a remuneração adicional de 3.499 magistrados, entre os meses de setembro de 2017 e dezembro de 2020.
Nossas análises, delimitando apenas os tribunais com critérios similares de progressão, não alteraram os estimadores para a variável de interesse, que é o sexo,7 7 Utilizamos o termo “sexo” por ser a categoria usada nos dados que serviram para nossas análises. de modo que preferimos manter uma classificação simplificada: juiz substituto, juiz de direito, desembargador. Outro recorte diz respeito à variável dependente ou à variável resposta, ou seja, remuneração. Juízes e juízas percebem valores idênticos para o subsídio, de modo que preferimos excluí-lo da análise. Nosso foco foram as vantagens adicionais, nomeadamente direitos pessoais, direitos eventuais e indenizações, que, somados, chamamos de adicionais.
Como variáveis explicativas, figuram o cargo, o tribunal e o tempo de magistratura. O tribunal foi incluído porque acaba por absorver fatores invariantes no tempo e que não estão correlacionados com os demais, como política remuneratória do tribunal, capacidade orçamentária alocativa e políticas afirmativas de gênero.
Entre os métodos quantitativos mais usados para comparar as médias salariais entre 2 grupos, 2 se destacam na literatura. Um deles é a decomposição oaxaca-blinder (Ronald, 1973), mais tradicional. O outro é o matching, que vem sendo cada vez mais usado para comparar as médias salariais entre homens e mulheres, em especial com base nos trabalhos de Hugo Ñopo (2008Ñopo, H. (2008). Matching as a tool to decompose wage gaps. The Review of Economics and Statistics, 90(2), 290-299.) e Markus Frolich (2007Frölich, M. (2007). Propensity score matching without conditional independence assumption - with an application to the gender wage gap in the United Kingdom. The Econometrics Journal, 10(2), 359-407.).
Pelo método oaxaca-Blinder, busca-se determinar a porção da diferença salarial entre homens e mulheres que pode ser atribuída à discriminação e a outros fatores, como preferências, habilidades ou mediadores de gênero que escapam aos aspectos discriminatórios. Para tanto, são estimadas 2 regressões lineares: uma contendo só os salários de mulheres e outra contendo os salários de homens. Baseado nos resultados das 2 regressões, calcula-se quanto da diferença média está no nível das variáveis explicativas, a diferença explicada, e quanto está no nível dos coeficientes, a diferença não explicada, que pode ser atribuída à discriminação (Hlavac, 2014Hlavac, M. (2014, novembro). Oaxaca: Blinder-Oaxaca decomposition in R. SSRN. Recuperado de http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2528391
https://doi.org/10.2139/ssrn.2528391...
).
A limitação desse método pode superestimar a importância da discriminação quando variáveis explicativas que afetam a remuneração não são propriamente controladas, como omissão de variáveis ou endogeneidade (Djurdjevic & Radyakin, 2007Djurdjevic, D; & Radyakin, S. (2007). Decomposition of the gender wage gap using matching: an application for Switzerland. Swiss Journal of Economics and Statistics, 143(4), 365-396.).
Ante as limitações de oaxaca-Blinder, Ñopo (2008Ñopo, H. (2008). Matching as a tool to decompose wage gaps. The Review of Economics and Statistics, 90(2), 290-299.) e Frolich (2007Frölich, M. (2007). Propensity score matching without conditional independence assumption - with an application to the gender wage gap in the United Kingdom. The Econometrics Journal, 10(2), 359-407.) propuseram o matching para comparar as médias remuneratórias entre homens e mulheres. Trata-se de uma técnica não paramétrica cujo objetivo é encontrar, num grupo controle (juízes), membros com características similares às do grupo de tratamento (Silva, 2018Silva, G. P. (2018). Desenho de pesquisa. Brasília, DF: Enap.), ou equilibrar a distribuição de covariáveis nos grupos controle e de tratamento (juízas).
Para este estudo, utilizamos o coarsened exact matching (CEM), um método de matching do tipo monotonoic imbalance bounding (MIB), o que significa que o balanceamento entre os grupos de tratamento e controle é determinado pelo usuário ex ante, em vez da verificação ex post facto, exigindo novas estimações para encontrar o balanceamento (Iacus, King, & Porro, 2012Iacus, S. M; King, G; & Porro, G. (2012). Causal inference without balance checking: Coarsened exact matching, Political Analysis, 20(1), 1-24.). Diferentemente do propensity score matching (PSM), o CEM permite ao usuário restringir o grau de dependência do modelo e o estimador do erro do efeito médio do tratamento.
Em resumo, o CEM funciona por meio de estratificação das covariáveis, categorizando as contínuas e/ou o reagrupamento das categorias, a fim de reduzir a granularidade dos dados. Em seguida, aplica-se matching exato para manter somente as observações cujos estratos contêm ao menos 1 tratamento (juíza) e 1 controle (juiz). Nos estratos em que houver muito mais de 1 controle para cada tratamento, ou vice-versa, atribuem-se pesos para indicar a proporção entre tratamento e controle em cada estrato.
No presente estudo, foram estabelecidos estratos de 5 anos no tempo de magistratura, exceto o primeiro, que foi de 2 anos, pois corresponde ao estágio probatório inicial, ao qual todos os magistrados ingressantes estão submetidos.
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao tempo da coleta dos dados, foi possível obter informações de 9 tribunais correspondentes aos anos de 2017 a 2019.
A tabela abaixo contêm os dados sobre a média salarial de magistrados por tribunal e por cargo:
Da Tabela 1, verifica-se que nem sempre juízas têm remuneração inferior a juízes. Por exemplo, na Bahia e no Espírito Santo, desembargadoras têm remuneração média maior do que desembargadores. Essa diferença, por vezes, não é aparentemente significativa em alguns tribunais, como no da Paraíba.
O tempo médio de magistratura não parece coerente no TJBA e no TJSP. Nos demais, há uma indicação de que os cargos correspondem ao tempo de magistratura, embora este não esteja necessariamente associado ao cargo, uma vez que o mérito tem um peso importante.
Antes do pareamento por meio do CEM, na base desbalanceada, verificou-se que juízas recebem 12% a menos que juízes - o que equivale a R$ 2.025,00. Após o balanceamento, esse percentual caiu para 8,4%, ou R$ 1.218,00.
Para realizar o pareamento, a variável tempo de magistratura foi agrupada em intervalos de 5 em 5 anos, exceto o primeiro, que foi de 2 anos. Isso porque os primeiros 2 anos são o tempo de estágio probatório.
Na sequência ao pareamento, foram removidas 308 observações correspondentes a juízes e 122 correspondentes a juízas. A base balanceada foi submetida à regressão linear simples utilizando-se os pesos gerados pelo CEM. De igual modo, o erro padrão foi corrigido usando clustered standard errors por magistrado. Abaixo, o love plot com a covariância antes e depois do pareamento.
O resultado da regressão linear indica que há diferença significativa entre homens e mulheres (b = -0,084, t = -5.37, p < .01) (log) ou (-1.183, t = -6, p < .01) em reais (R$).
Uma vez que são ambos servidores públicos com cargos e tempo de magistratura similares, não se pode afirmar que há uma discriminação remuneratória sistemática em desfavor de mulheres, e sim que essas diferenças decorrem em maior medida de mediadores de gênero, como disponibilidade, por parte dos homens, para assumir cargos internos que exigem mais horas de trabalho ou para realizar cursos de aperfeiçoamento em horários não favoráveis para mulheres.
Essa diferença lança luz, por exemplo, à discussão sobre o tipo de atividade a ser desempenhada nas funções para as quais são pagos bônus. A expectativa é que as atividades sejam feitas em conjunto com o trabalho normal de carreira, que as pessoas tenham disponibilidade de tempo ou amplas condições de mobilidade (viagens, reuniões etc.), as quais muitas vezes são incompatíveis com a conciliação com tarefas da vida privada mais comum às mulheres.
Em diálogo com a revisão de literatura aqui realizada, podemos dizer que as mulheres geralmente não ocupam cargos na carreira que geram tal remuneração. Quando o acesso a essas funções é definido por eleições entre os membros de carreira, é mais comum que elas não sejam eleitas por seus colegas - a maioria dos quais, homens. Além disso, muitas se recusam a participar de processos eleitorais ou a aceitar cargos que as obriguem a trabalhar além da carga horária normal. Para elas, as funções especiais podem ter um impacto negativo na forma como conciliam seus deveres profissionais com seus papéis de mãe, esposa e dona de casa.
A aplicação das regras que definem o pagamento das vantagens pessoais, portanto, acaba interagindo com as normas sociais de gênero que regulam as condições concretas para que homens e mulheres as obtenham. Ou, de acordo com a literatura de gênero e as profissões jurídicas, essas regras fazem parte dos chamados tetos de vidro - nesse caso, para que as mulheres tenham as mesmas oportunidades de remuneração.
6. CONCLUSÃO
As desigualdades de gênero na remuneração das profissões jurídicas são mais frequentemente abordadas em carreiras jurídicas privadas, como advocacia. Na magistratura, esse assunto ainda é pouco explorado, seja pelo pressuposto de que o regime jurídico de direito público impediria a reprodução de discriminações que resultariam nesse tipo de desigualdade, seja porque, até 3 anos atrás, pesquisas sobre o tema, no modelo aqui proposto, teriam dificuldade em levantar os dados sobre a remuneração da magistratura brasileira.
Buscamos testar a hipótese da diferença remuneratória na magistratura baseada no gênero, com base em achados da literatura sobre gênero e profissões jurídicas e em estudos recentes que identificaram diferenças salariais nos diversos serviços públicos brasileiros baseadas no gênero. Com o auxílio do CEM, realizamos um pareamento entre juízes e juízas condicionado ao cargo, ao tempo de magistratura e ao tribunal. As diferenças nas médias remuneratórias persistem mesmo após o pareamento, embora em menor grau, o que pode ser explicado pelos mediadores de gênero, que operam gerando melhores oportunidades para homens em desfavor das mulheres.
Os resultados de nossa pesquisa corroboram as análises qualitativas feitas sobre desigualdades de gênero na magistratura brasileira que apontam para uma distribuição desigual de privilégios e desvantagens na carreira em termos de gênero, de modo a favorecer o percurso dos homens brancos e socialmente favorecidos, criando obstáculos para as mulheres no acesso a posições de maior poder ou recursos. Se já tínhamos evidências acumuladas sobre a baixa permeabilidade da participação feminina na magistratura, sobretudo nas posições mais altas da carreira, a presente pesquisa apontou um acesso desigual em termos de gênero aos itens da remuneração relativos às vantagens. Cabe destacar aqui que são esses itens os com maior autonomia para que cada um dos tribunais de Justiça estaduais defina seus valores e regras.
Em termos de trabalhos futuros, estudos desagregados e de caráter qualitativo poderiam investigar de modo mais aprofundado o funcionamento das regras relativas à estrutura remuneratória por tribunal, considerando a combinação entre gênero e outros fatores de discriminação que resultam em desigualdades, como raça e etnia, na participação de gratificações e vantagens remuneratórias.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem o apoio da Fundação para o Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa em Direito (FADEP).
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Em comparação com os anos de 1990, 25% eram mulheres e 75% eram homens. Em 2018, 37% eram mulheres e 63%, homens.
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De acordo com o art. 39, §8º da CF/1988, existe a possibilidade, para servidores públicos organizados em carreira, como é o caso dos magistrados, de o Estado optar pela remuneração mediante subsídio (parcela única estabelecida por lei). Contudo, em regra, os estados optam pela remuneração dos magistrados estaduais mediante vencimento (parcela fixa estabelecida por lei) e vantagens pecuniárias (parcela variável).
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3
Ver art. 37 da Constituição Federal de 1988.
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4
Ver art. 80, II da Lei Complementar nº 35/1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).
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5
Seguimos a terminologia adotada por Kain e Bolker (2019) de usar “evidente” ou “claramente”, em vez de “significância estatística”.
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6
O código e os dados podem ser visualizados no seguinte repositório público: https://github.com/jjesusfilho/remuneracao
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7
Utilizamos o termo “sexo” por ser a categoria usada nos dados que serviram para nossas análises.
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8
Tempo de magistratura em anos.
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9
Tempo de magistratura em meses.
APÊNDICE
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Mar-Apr 2022
Histórico
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Recebido
03 Maio 2021 -
Aceito
08 Abr 2022