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Garcia, Wilson Galhego. Nhande Rembypy. Nossas origens

Francisco Silva Noelli

Professor do Departamento de Fundamentos da Educação – UEM

Garcia, Wilson Galhego.

Nhande Rembypy. Nossas origens, Araraquara, Centro de Estudos Indígenas "Miguel A Menéndez" - UNESP, 2000, 1001 p.

Garcia, Wilson Galhego e Ribeiro, Aniceto

"Cinco versões dos mitos dos gêmeos entre os Kaiová", Terra Indígena, n. 82: 11-201.

Garcia, Wilson Galhego e Ribeiro, Aniceto

"Estórias e relatos Kaiová", Terra Indígena, n. 84: 11-440.

Já se disse em várias ocasiões que quando um velho morre desaparece uma biblioteca. Isso causa impacto, especialmente naquelas pequenas comunidades que têm nos seus velhos parte da memória coletiva e dos exemplos educacionais. O registro em meios diversos é a alternativa encontrada por pesquisadores e nativos de todo o mundo para remediar essas perdas e preservar uma parte da memória, considerada fundamental para a manutenção das identidades, dos conhecimentos locais, das histórias e da autodeterminação dos povos.

Com esse objetivo, as três publicações em questão contêm os mais extensos conjuntos de mitos, histórias, estórias, ritos e relatos indígenas já publicados no Brasil, constituindo uma obra de grande importância para os pesquisadores e, principalmente, para os próprios indígenas que atuam no campo da educação e da escrita das memórias dos seus povos. Os textos bilíngües português-kaiová-guarani foram reunidos ao longo dos últimos trinta anos por Wilson Galhego Garcia, antropólogo da Universidade Estadual Paulista - Araçatuba – e Aniceto Ribeiro, representante da comunidade Kaiová do Amambai.

O grande mérito dessas publicações foi a preocupação em fixar a "voz falada" pelos Kaiová. A metodologia utilizada para fixar a grafia Kaiová é a do Summer Institute of Linguistics, e a coleta das informações deu-se em sessões públicas, ocorridas nas habitações dos mais idosos habitantes de Amambai e outros espaços. As três publicações reúnem textos em Kaiová traduzidos para o português por Ribeiro e Garcia, transcritos tal como a língua brasileira é falada pelos indígenas, visando o registro das peculiaridades locais, livre de correções gramaticais. Os textos em Kaiová apresentam palavras e expressões em português, cuja presença é rara nos mitos, nos contos e nos ritos. Nas narrativas em que os brasileiros aparecem, como no caso dos relatos, estórias e reuniões, o emprego do português ocorre com maior freqüência.

Trata-se de uma das raras obras publicadas no Brasil que podem ser incluídas em uma literatura nativa que começou a ganhar força na década de 1990, preocupada com a apresentação de narrativas completas, elaboradas para o leitor indígena alfabetizado na sua própria língua. Isto implica a necessidade de uma forma, de uma estrutura textual específica e de uma tradução esmerada, que sejam úteis e atuais dentro dos códigos hêmicos vigentes naquelas comunidades onde essas narrativas foram produzidas e para as quais são destinadas. Pode-se dizer que os antropólogos seriam um endereço secundário, mas não menos importantes, que a sua destinação principal.

O livro Nhande rembypy ou Nossas origens reúne em suas mais de mil páginas uma vasta quantidade de mitos, contos e ritos, coligidos com o propósito de servir como um referencial de cultura Kaiová. A parceria de Wilson Garcia com o Kaiová Aniceto Ribeiro atesta essa importância, ao constituirem um trabalho feito "por dentro" dos referenciais culturais e políticos dos Kaiová, em plena simetria social, que encontra paralelo na famosa obra Ayvu Rapyta do paraguaio Leon Cadogan. O livro de Garcia e Ribeiro foi lançado na sede da ONU, em Genebra, com apoio do prêmio Nobel da Paz Rigoberta Menchu e deve servir como exemplo para a execução de obras similares em outros povos nativos espalhados pelo mundo. Não foi em vão que Bartomeu Melià, um dos grandes conhecedores da história, da cultura e da realidade dos povos Guarani, escreveu no prefácio que "a informação coletada é quantitativamente uma das maiores já realizadas, qualitativamente apresenta uma densidade cultural imponderável; lingüisticamente, um canteiro inesgotável".

O textos publicados nos números 82 e 84 do periódico Terra indígena não receberam os títulos gerais que foram artificialmente inseridos acima, no título da resenha. São, de fato, duas coletâneas de narrativas variadas, cada uma com o seu título próprio (por exemplo, "O mito dos gêmeos segundo Rosalina Medina"; "O veado e o carrapato"; "Explicações das alimentações durante a dança"; "História de um passarinho revoltado"; "Adair Sanches, índio empreiteiro" etc.). Esse material tem o mesmo formato de Nhande rembypy e demonstra a variedade e a fartura de informações coletadas e ordenadas por Wilson Garcia. As cinco variantes dos mitos dos gêmeos, inseridos no número 82 da revista, constituem um importante acréscimo à Etnologia Guarani e americanista, abrindo novas perspectivas para os estudos comparados e para a percepção de que os mitos possuem variações conforme o narrador. No mesmo número, os autores também apresentam informações úteis para uso médico, com listas de anatomia, de doenças, de sintomas e de expressões mais usadas em exames clínicos. O número 84 contém uma série de estórias que demonstram inúmeras nuances da cultura narrativa dos Kaiová, que visam tanto a educação quanto a diversão de crianças e adolescentes. Muitas delas ilustram comportamentos sociais "corretos" e "incorretos", tratam de deveres, de política, de economia ou de diversão pura e simples, constituindo um exemplo sobre práticas de didática educacional. Este número também mostra alguns exemplos de relatos sobre as relações políticas entre os Kaiová e os brasileiros, explicitando como os conflitos, as diferenças e as relações de poder são percebidas pelos Kaiová através da lente e da voz dos narradores.

Esse material foi colhido em uma população que vive um cotidiano sobre grande pressão da sociedade brasileira no Mato Grosso do Sul, lutando estoicamente para manter a sua autodeterminação e dignidade. Dali, há quase cem anos, saíram aqueles grupos que Curt Nimuendajú encontrou em São Paulo no início do século XX, buscando a "terra sem mal" e fugindo de uma pressão semelhante. Muitos Kaiová do Amambai sucumbiram sob o peso dessa imensa pressão, suicidando-se, como lamentavelmente ficou notório nas últimas duas décadas. Apesar dessa impiedosa força e das incertezas, as narrativas revelam a vontade de viver e a riqueza de uma variada gama de gêneros discursivos narrados ou cantados.

Wilson Garcia e Aniceto Ribeiro são dignos do maior crédito e autores de uma grande obra que deve servir de exemplo para outros autores indígenas. Certamente, em cada uma das comunidades indígenas situadas no Brasil, deve haver mais de um bom contador de histórias e guardião de narrativas imemoriais. Esperamos que aqueles que tenham condições de incentivar ou de encaminhar trabalhos tão importantes como Nhande rembypy, não o deixem de tentar ou de fazer, pois existe um legado a ser preservado e divulgado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    2002
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