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A humanidade e seu(s) gênero(s): mito, parentesco e diferença no noroeste amazônico1 1 Agradecemos os comentários de Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Melissa Oliveira e dos pareceristas anônimos às versões que resultaram neste texto.

Humanity and its gender(s): myth, kinship and difference in the Northwest Amazonia

RESUMO

Este artigo pretende articular duas investigações etnográficas, entre os Tukano e Baniwa, que abordam a relação entre parentesco e mito. Pretende-se compreender a produção das diferenças sociocosmológicas no Noroeste Amazônico recorrendo-se às narrativas míticas da origem da humanidade. A análise seguirá os acontecimentos que se desdobram a partir de Jurupari, uma criança extraordinária e artefato cerimonial possuidor de capacidades reprodutivas; da cobra-canoa, um animal-objeto-útero que gesta a humanidade; dos nascimentos nas cachoeiras de Hipana e Ipanoré; do adultério com uma cobra-homem branco; e da guerra entre homens e mulheres. Todos estes eventos, personagens e relações, articulam de modo complexo transespecificidade e relações de sexo cruzado. Esperamos ao final evidenciar esses dois distintos modos pelos quais a humanidade atual é estabilizada a partir de um fundo virtual de alteridade, notando as importantes transformações tukano e baniwa no Alto Rio Negro.

PALAVRAS-CHAVE
Noroeste Amazônico; mito; parentesco

ABSTRACT

This article aims to articulate two ethnographic investigations, among the Tukano and Baniwa, that address the relations between kinship and myth. The aim is to understand the production of sociocosmological differences in the Northwest Amazonia from the mythical narratives of the origin of humanity. The analysis will follow the events that unfold from Jurupari, an extraordinary child and ceremonial artifact possessing reproductive capacities; from the snake-canoe, an animal-object-uter that manages humanity; from births in the waterfalls of Hipana and Ipanoré; from adultery with a snake-white man; and from the war between men and women. All these events, characters and relationships, articulate in a complex way transespecificity and cross-sex relationships. At the end, we hope to highlight these two distinct ways in which today's humanity is stabilized from a virtual background of alterity, noting the important tukano and baniwa transformations in the Upper rio Negro.

KEYWORDS
Northwest Amazonia; myth; kinship

INTRODUÇÃO1 1 Agradecemos os comentários de Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Melissa Oliveira e dos pareceristas anônimos às versões que resultaram neste texto.

Este artigo pretende articular duas investigações etnográficas que em comum abordam a relação entre parentesco e mito nos povos indígenas do Alto Rio Negro. Os autores realizaram pesquisa, respectivamente, entre os Tukano (Andrello, 2006ANDRELLO, Geraldo. 2006. Cidade do Índio. Transformações e cotidiano em Iauareté. São Paulo, Editora UNESP- ISA; Rio de Janeiro, NUTI.) e Baniwa (Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.), que figuram entre os povos demograficamente mais significativos no interior do extenso sistema social regional. Pretende-se abordar as formas de produção de diferenças sociocosmológicas no Noroeste Amazônico por meio de análises míticas, no intuito de extrair consequências para a compreensão de alguns aspectos da socialidade na região, bem como do lugar central que as relações transespecíficas e de gênero aí ocupam. Partindo de trabalhos de campo com povos habitantes das bacias do rio Uaupés e rio Içana e das famílias linguísticas tukano oriental e arawak que compõem a complexa rede de relações do Alto Rio Negro3 3 Na porção brasileira do noroeste amazônico habitam 22 povos indígenas, representantes das famílias linguísticas tukano oriental (Cubeo, Desana, Tukano, Miriti-Tapuia, Arapasso, Tuyuka, Makuna, Bará, Barasana, Siriano, Carapanã, Wanano e Pira-tapuia), arawak (Tariano, Baniwa, Kuripako, Warekena e Baré) e maku (Hupda, Yuhup, Nadeb e Dow). Esses grupos ocupam cerca de 700 povoados de tamanhos variáveis, estabelecidos ao longo dos rios Negro, Uaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari, Xié e vários outros afluentes menores, perfazendo uma população total de cerca de 33 mil pessoas, montante que incorpora os cerca de 7 a 8 mil índios que vivem nas sedes municipais regionais (Scolfaro; Oliveira; Hernandez, 2014). Todos esses povos apresentam como características sociomorfológicas básicas a terminologia dravidiana, a exogamia linguística ou frátrica e a descendência patrilinear, além de uma segmentação expressa em um número considerável de sibs (“clãs”) hierarquizados entre si, cuja distribuição espacial é extremamente variada. , nossa intenção é superar uma possível imagem de dois blocos etnográficos estanques, demonstrando as transformações entre eles. Lévi-Strauss (2004: 316)LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004. O Cru e o Cozido. São Paulo, Cosac Naify. em Mitológicas demonstra que “os mitos se pensam entre si” em uma comunicação que não se vê restrita a nenhum tipo de fronteira. Assim, perscrutaremos o que as transformações míticas entre os Tukano e os Baniwa nos ensinam sobre o parentesco e a organização social no Alto Rio Negro.

A consolidação da etnografia da região foi construída sob um desequilíbrio que não reflete sua distribuição demográfica e territorial. O Alto Rio Negro é geralmente entendido pela literatura antropológica por um viés tukano e uaupesiano (Reid, 1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Cambridge, Tese de doutorado, University of Cambridge.; S. Hugh-Jones, 1996HUGH-JONES, Stephen. 1996. Resenha de La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie), de Nicolas Journet. American Anthropologist, vol. 98: 672-673. DOI 10.1525/aa.1996.98.3.02a00510
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) que tende a ofuscar os povos de língua arawak da bacia do Içana e do rio Negro, bem como os povos de língua nadehup que vivem no interflúvio destas bacias. Neste trabalho, o Alto Rio Negro será tomado como uma série de nexos relacionais em articulação e que nenhuma de suas perspectivas é capaz de totalizar a rede mais ampla. Portanto, nossa argumentação buscará uma apreensão possível que funcionará como um fundo (background) para a descrição de algumas de suas transformações específicas entre os Baniwa da bacia do rio Içana e os Tukano da bacia do rio Uaupés.

Os mitos que serão analisados exprimem aspectos e fundamentos complementares da socialidade atual no Noroeste Amazônico: por um lado, a terminologia dravidiana e um plano de relações egocentradas (a descrição das relações particulares) e, por outro, a organização clânica e um plano de relações sociocentradas (a descrição das relações coletivas).4 4 Sobre a distinção entre relações particulares e coletivas, ver Strathern (1988, cap. 7), bem como sua associação com relações de sexo cruzado e relações de mesmo sexo, respectivamente. Sobre a terminologia de egocentramento e sociocentramento podemos compreender como sendo análoga a distinção proposta por Lévi-Strauss (1982) entre método das classes e método das relações. Tanto os Baniwa quanto os Tukano possuem motivos míticos relacionados à socialidade atual que podemos formular por meio de dualidades complementares: egocentramento e sociocentramento, aliança e descendência, parentesco uterino e agnático. No entanto, esses aspectos estão distribuídos (e, portanto, transformados) de modos distintos em suas narrativas. Em trabalhos anteriores (Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.; 2020VIANNA, João. 2020. A coafinidade baniwa: descrições e modelos no Noroeste Amazônico. Maloca. Revista de Estudos Indígenas, vol. 3, n. 1: e020009. DOI 10.20396/maloca.v3i.13502
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) sugeriu-se uma relação de obviação (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac e Naify.) entre o plano egocentrado (classificação terminológica) e o plano sociocentrado (classificação sociopolítica), bem como entre o parentesco agnático e o parentesco uterino, no Alto Rio Negro. Pretendeu-se demonstrar que estes planos de relações e parentescos coexistem, mas negam-se mutuamente, sem por isso se anularem, posicionando-se alternadamente, ora como fundo, ora enquanto figura.

Obviar é entendido como o duplo movimento de visibilizar certas associações, pontos de vista, planos de relações e de parentesco ao custo de invisibilizar outras associações, pontos de vista, planos de relações e de parentesco, sua contraparte (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac e Naify.; Kelly, 2005KELLY, José. 2005. Notas para uma teoria do “virar branco”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 11, n.1: 201-234. DOI 10.1590/S0104-93132005000100007
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; Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.). Portanto, sugere-se que o plano agnático, ao ser tornado visível, contra-inventa a invisibilização do plano uterino de parentesco, do mesmo modo que analogamente as relações coletivas entre clãs, ao serem tornadas visíveis, contra-inventam a invisibilização das relações egocentradas, e vice e versa. Para toda invenção uma contra-invenção, por isso invisibilização ou visibilização não são descrições definitivas. Poderíamos sugerir também a noção de pressuposição recíproca para descrever esses conjuntos de relações em relação que, segundo Viveiros de Castro (2007a)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007a. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos estudos CEBRAP. Vol. 77: 91-126. DOI 10.1590/S0101-33002007000100006
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, designa a determinação de “dois pólos de qualquer dualidade como igualmente necessários, visto que mutuamente condicionantes, mas não faz deles pólos simétricos ou equivalentes” (2007a: 105).

Diante da proposição destas dualidades da socialidade rionegrina como estando em obviação ou em pressuposição recíproca, avaliamos que a literatura regional nem sempre considerou estes aspectos e princípios em uma tal dinâmica, tendendo a privilegiar a descrição do parentesco agnático e de um plano sociocentrado de relações como sendo mais determinantes para a descrição etnográfica. Sugerimos aqui que a menor atenção ao plano uterino e ao egocentramento ocorra não por uma determinação apenas residual, mas, justamente, por sua invisibilidade produzida pelo parentesco agnático e pela saliência das descrições oferecidas pelas classificações sociocentradas. Defenderemos que a dinâmica que enfatiza alguns aspectos da socialidade rionegrina e minimiza outros, pode ser observada também na análise das variações míticas tukano e baniwa dos mitos que tematizam relações de gênero e transespecificidade - em particular o famoso mito do Jurupari.5 5 O mito de Jurupari foi objeto de muitas análises na antropologia (Bollens, 1967; S. Hugh-Jones, 1979; Mich, 1994; Reichel-Dolmatoff, 1996; Wright, 2017; Hill, 2009; Journet, 2006; Karadimas, 2008; Maia, 2009, entre outros). Não retomaremos aqui todos esses trabalhos, focaremos naqueles que nos auxiliam em uma interpretação que aponte para sua expressão nos estudos de parentesco e organização social. Esses dois conjuntos etnográficos compartilham esses aspectos, mas não igualmente, de modo que algumas transformações enfatizadas entre os Tukano se encontram minimizadas entre os Baniwa, bem como algumas transformações enfatizadas entre os Baniwa encontram-se minimizadas entre os Tukano.

Assim, vamos sugerir que a afinidade virtual, como especificação da afinidade potencial (cf. Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.)6 6 Viveiros de Castro (2002: 128) distinguiu três afinidades: atual (efetiva), virtual (cognática) e potencial (sociopolítica). , entre os Baniwa é formulada no mito primeiro e de modo mais evidente em termos de relações particulares de sexo cruzado (entre conjugues virtuais), ao passo que nos mitos Tukano e Desana a ênfase é posta nas relações coletivas de mesmo sexo (entre cunhados clânicos). Essa distinção pode talvez colaborar para uma melhor compreensão da maior importância de nomes e outros emblemas clânicos entre os povos de língua tukano do rio Uaupés se comparados com o povo baniwa do Içana. Ainda que integrantes da mesma e extensa rede regional altorionegrina, veremos que o importante “problema da afinidade na Amazônia” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.) recebe ali distintas inflexões, as quais procuraremos explicitar. Coletivas ou particulares, tratam-se, no entanto, de relações cuja formulação é antes de mais nada marcada pelo problema do gênero, e, sobretudo, pela abertura do campo do parentesco operada pelas mulheres, cujos corpos fornecem aos homens os instrumentos (ora uma criança extraordinária, ora artefatos, as poderosas flautas e trompetes) por meio dos quais pleiteiam a patrifiliação. Mais do que complementares, defendemos que as participações feminina e masculina no processo de estabilização da humanidade são distintamente salientes.

Nosso problema nesse artigo é como as transformações tukano e baniwa formulam a passagem de uma ordem intensiva (o plano do mito) para um sistema extensivo (o plano do parentesco e da organização social). Para tanto vamos recorrer às categorias de gênero (homem e mulher, feminino e masculino) e transespecificidade (humano e não humano) para explicitar a atualização que conforma a humanidade. A ordem intensiva do mito é aquela que não conhece “distinção de pessoas nem de gêneros, tampouco conhece qualquer distinção de espécies, particularmente uma distinção entre humanos e não-humanos” (Viveiros de Castro, 2007aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007a. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos estudos CEBRAP. Vol. 77: 91-126. DOI 10.1590/S0101-33002007000100006
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: 114). Considerando isso, podemos compreender que os seres do mito habitam um campo interacional único, ontologicamente heterogêneo, onde se supõe “variações pré-pessoais em intensidade”7 7 Formulação extraída por Viveiros de Castro (2007) do livro Milles plateaux. Capitalisme et schizophrénie (1981: 183) de Deleuze & Guatarri. , mas sociologicamente contínuo (ibid: 114). Acompanharemos, justamente, a extensão dessas variações pré-pessoais às pessoas e aos clãs atuais, bem como o fato de a heterogeneidade ontológica primordial implicar na descontinuidade sociológica, enunciada pela instauração das relações de sexo cruzado.

De um fundo de variações pré-pessoais, pré-gêneros e pré-específicas em intensidade, vislumbraremos a instanciação de relações extensivas de gêneros especificados e do cosmos como composto por perspectivas irredutíveis umas às outras, no qual os humanos já não podem mais ordinariamente se comunicar com os não humanos e já não podem mais produzir pessoas sem utilizar como recurso as relações de sexo cruzado. Nesse processo de efetuação da humanidade exclusiva, a passagem do intensivo ao extensivo, notaremos a mitopoese de categorias e termos importantes para a descrição sociopolítica no Alto Rio Negro: afinidade, cunhadio, termos para parentesco cruzado, exogamia, relações uterinas, co-afinidade, agnação, termos de parentesco paralelo, classificações egocentradas, germanidade, classificações sociocentradas, organização clânica, senioridade. Veremos que essas categorias e termos funcionam como códigos que nos permitem acesso à descrição sociopolítica e de parentesco da região.

Iniciamos com o material tukano, em seguida passamos aos Baniwa, para, na conclusão, apontar mais diretamente suas aproximações e contrastes.

TRANSFORMAÇÕES TUKANO-DESANA

A narrativas míticas dos povos de língua tukano do rio Uaupés tratam, de modo geral, dos eventos cosmológicos que originaram o mundo, em seus diferentes elementos constitutivos, e, por fim, uma humanidade extensamente variada. Notáveis por sua duração, os relatos elaboram o tempo das origens a partir do prisma de narradores inseridos na extensa rede social que veio a se constituir ao longo dos grandes afluentes e subafluentes do rio Negro, conectando centenas de grupos locais de tamanhos e padrões variáveis. As narrativas expressam, assim, o ponto de vista de clãs situados em posições específicas no interior dessa rede, estabelecendo simultaneamente as coordenadas de um mapa mais geral dessas posições.8 8 Nesta seção, utilizaremos um conjunto de relatos míticos desana e tukano já publicados na Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro, editada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em particular Umusi Parokumu & Tõrãmu Kehíri (1995); Diakuru & Kisibi (1996); Nahuri & Kumarõ (2003); Bayaru & Ye Ni (2004); Maia, Moisés & Maia, Tiago (2004). Alguns aspectos serão tomados ainda de uma narrativa tariano publicada por Adriano de Jesus, Pedro de Jesus e Luís Aguiar (2018).

Para uma noção global desses relatos, podemos dizer que sua estrutura geral é tripartite, e seu fio condutor é o tema da origem e fixação de uma verdadeira humanidade no centro do mundo, ati imikoho, “aqui/este tempo/mundo”. É na parte final dos relatos que se dá conta de que tudo que veio antes corresponde ao modo como um narrador específico, de um clã específico, elabora uma sequência de eventos que culmina no estabelecimento de seu próprio grupo em um domínio territorial, em geral um segmento específico de um curso d’água. A etapa anterior a esta corresponde ao período de surgimento e crescimento de uma proto-humanidade em pontos específicos da trajetória da pamiri-yukese, a cobra-canoa que a conduz desde o extremo leste do mundo, o lago de leite, através dos rios Amazonas, Negro e Uaupés.

O motivo da viagem da cobra-canoa é talvez o mais emblemático no conjunto de narrativas tukano, e parece operar, precisamente, a passagem de um contexto cuja marca principal são as transformações e distinções intensivas próprias ao mito para o atual mundo humano, no qual as formas e os atributos dos seres apresentam maior estabilidade. Esse contexto originário, ainda anterior à viagem da cobra-canoa, corresponde a um ciclo mais ou menos extenso de acordo com o propósito de cada narrativa e corresponde à primeira parte dos relatos, que trata de uma série de eventos que já prefiguram alguns aspectos das relações entre os grupos atuais. Seus protagonistas formam um conjunto heteróclito designado genericamente como “gente-pedra”, na língua tukano, î’ta-masa. Afirma-se que, até a viagem da cobra-canoa, todos os existentes eram î’ta-mahsã, dentre os quais os pamuri-mahsã, os humanos verdadeiros, viriam a se extrair. Os principais protagonistas das histórias narradas nesse primeiro tempo são apresentados em algumas versões (notadamente, as dos Desana) como filhos de uma personagem já existente ao lado de duas divindades que figuram invariavelmente no início das narrativas: o Avô do Mundo, Trovão, e sua filha, também chamada “Avó do Mundo”. Ao lado do Avô e da Avó do Mundo já estava Baseboo, ou Baariboo, o “dono da alimentação”, aquele que já trazia em seu corpo todas as manivas que serão futuramente cultivadas pelos humanos. De acordo com narrativas desana (Bayaru & Ye Ni, 2004BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.) e tukano (Gentil, 2000GENTIL, Gabriel. 2000. Mito Tukano. Quatro Tempos de Antiguidades. Zurich/Basel, Waldgut.), Baseboo gerou uma série de irmãos engravidando a Avó do Mundo, ainda que com ela não tenha tido relações sexuais. Como a mulher ainda não possuía vagina, ele lhe abriu uma entre as pernas usando seu brinco laminado de ouro, introduzindo-lhe em seguida o osso de sua coxa, com a finalidade de preparar seu útero. Por esse orifício, soprou fumaça de tabaco misturada ao pó de ipadu e a engravidou.

Assim, uma primeira e diminuta geração de seres começaria a povoar aquilo que era um escuro, pequeno e solitário universo com apenas três seres - seu intuito era, precisamente, o de povoar este mundo com gente. Esses que vieram a nascer da gravidez da filha de trovão são os “moradores do osso de multiplicação de baaribo”, ou waigoa marahã, (Bayaru & Ye Ni, 2004BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.: 30); em uma narrativa tukano (Gentil, 2000GENTIL, Gabriel. 2000. Mito Tukano. Quatro Tempos de Antiguidades. Zurich/Basel, Waldgut.) eles são mais sinteticamente chamados de o’amara, termo que o narrador Gabriel Gentil irá traduzir como “Criadores”. Trata-se de termo composto, onde o’a, “osso”, qualifica o substantivo associado mara, “fragmentos”. Poderíamos aventar, assim, que esses seres do começo se originam daquilo que passa pelo interior oco de uma forma tubular, isto é, apontam para aquelas substâncias cujo fluxo corresponde a um princípio vital, nesse tempo primordial, a fumaça de tabaco e o ipadu.

Essa gente-pedra do começo apresenta, assim, dois atributos que a distingue dos humanos atuais: sua multiplicação prescindia de relações sexuais propriamente ditas e sua comida consistia nas próprias substâncias com as quais se inseminavam entre si, tabaco e ipadu. Ações como a aniquilação de uma gente-onça canibal, ou a preparação dos lugares para construção de armadilhas de pesca nas cachoeiras, bem como a origem das plantas cultivadas, da cestaria e da alternância entre dia noite, tudo ocorre por meio das ações dos itá-mahsã. O extermínio da gente-onça (Pãrõkumu & Kẽhíri, 1995PANLÕN KUMU, Umusi [Firmiano Arantes Lana]; KEHÍRI, Tõrãmu [Luiz Gomes Lana]. 1995. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Diakuru & Kisibi, 1996DIAKURU [Américo Castro Fernandes); KISIBI (Durvalino Moura Fernandes). 1996. A mitologia sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Nahuri & Kumarõ, 2003NAHURI [Miguel Azevedo] & KUMARÕ [Antenor Azevedo]. 2003. Dahsea Hausirõ Poã ukushe wiophesase merã bueri turi. Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Bayaru & Ye Ni, 2004BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.; Jesus et al, 2018JESUS, Adriano de; JESUS, Pedro de; Aguiar, Luís. 2018. Ennu Ianáperi. História dos Tariano pelo clã Koivathe. São Gabriel da Cachoeira, COIDI/FOIRN.) é especialmente interessante, uma vez que elabora um conjunto de parâmetros que virão a nortear a existência futura, bem como, em certas versões, aludir ao deslocamento da cobra-canoa que origina a humanidade. Seu tema central diz respeito ao potencial originário de hostilidade embutido nas relações de afinidade, que, no mito, é o que liga um herói-demiurgo à gente-onça e a outros povos-animais daquele tempo primordial. Trata-se, assim, de uma antecipação do tema das relações entre cunhados, que virá a ganhar novos tons com a emergência futura da humanidade. Relações de hostilidade e predação já aparecem, portanto, no começo dos tempos, indicando alguns dilemas que marcarão a vida da futura humanidade.

É, precisamente, com o ciclo posterior da cobra-canoa que o tema do parentesco e da afinidade, nos primeiros tempos problematizado no contexto das relações entre demiurgos e gentes-animais, virá a ser projetado para uma esfera intra (ou proto) humana propriamente dita. A forma que assume tal processo é o tema de todas as narrativas, que, sem exceção, culminam na determinação da identidade dos grupos atualmente presentes na região, e, mais que isso, na definição de suas relações - quais dentre eles serão cunhados ou irmãos, isto é, quem são meus afins aliados e quem são meus parentes agnáticos. As narrativas, desse modo, não cumprem apenas o papel de estabelecer a origem de um grupo em particular, pois fornecem simultaneamente uma visão mais global do quadro de relações sociais no qual se inserem. Em suma, esses relatos não tematizam apenas o modo pelo qual um grupo específico veio a se extrair daquele fundo pré-humano de diferenças intensivas (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.: 422), mas também o modo como veio a se conformar a presente configuração de diferenças extensivas intra-humanas sociocentradas, isto é, entre diferentes grupos humanos.

A passagem daquele contexto originário a esta outra fase é complexa, e os vários relatos sugerem que o motivo da cobra-canoa representa uma solução para os impasses nos quais aquela gente-pedra do começo enredou-se a si mesma no intuito de originar uma humanidade exclusiva. Entre outros episódios, nos quais intrigas e excessos impedem o andamento de seus intentos, um deles parece delinear a questão central que viria a marcar a geração de novas pessoas: o roubo das flautas sagradas pelas primeiras mulheres. Motivo central de antigos relatos já coletados desde fins do século XIX por Stradelli (2009 [1890])STRADELLI, Ermano. 2009. Lendas e notas de viagem. A Amazônia de Ermano Stradelli. São Paulo, Martins Fontes., Barbosa Rodrigues (1890)BARBOSA RODRIGUES, João. 1890. Poranduba Amazonense. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/402630/per402630_1980_00100.pdf acesso em 23 de agosto de 2021.
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e Brandão de Amorim (1987 [1926])BRANDÃO DE AMORIM, Antonio. 1987 [1926]. Lendas em Nheengatu e em Português. Manaus, Fundo Editorial - ACA., esses instrumentos figuram no centro de um velho debate sobre cultos masculinos vedados à participação feminina que, via de regra, foram interpretados como uma forma de dominação masculina sobre as mulheres. Em estudos mais recentes, no entanto, as chamadas flautas Jurupari, termo da língua geral amazônica traduzido como “diabo” nos relatos mais antigos, têm sido repensadas em termos de sua presença constante em rituais de crescimento e fertilidade, articulando elementos masculinos e femininos (S. Hugh-Jones, 1979HUGH-JONES, Christine. 1979. From the Milk River. Spatial and Temporal Processes in North-west Amazonia. Cambridge, Cambridge University Press.; 2001HUGH-JONES, Stephen. 2001. “The Gender of some Amazonian Gifts: An Experiment with an Experiment”. In: GREGOR, Thomas; TUZIN, Donald. (eds.), Gender in Amazonia and Melanesia. Berkeley: University of California Press. pp. 245-278.; Hill & Chaumeil, 2008), abordagem que as narrativas do Uaupés, não sem especificidades, parecem reforçar.

Com efeito, uma diferença importante entre as narrativas diz respeito a uma oscilação entre aquelas nas quais Jurupari corresponde ao primeiro filho nascido da filha do trovão (Miriã Porã Masí9 9 O termo Miriã, nome da personagem de cujo corpo as flautas irão se originar, significa “submerso” na língua tukano, alusão ao modo como as flautas são guardadas sob as águas de pequenos cursos d’água, onde ficam escondidas de mulheres e crianças. Em algumas narrativas, este personagem recebe o apelido Bisiu, cuja acepção é “aquele que ressoa ou produz sons”. Uma vez que os termos são usados de modo variável nas narrativas, seguimos nesta seção usando o termo Jurupari, palavra da língua geral amazônica com a qual se designa este complexo de maneira mais ampla. , o Dono das Flautas), e que trazia todas as flautas em seu corpo, e aquelas nas quais os instrumentos aparecem inicialmente na forma de palmeiras paxiúbas. Aparentemente, trata-se e uma diferença de ênfase em distintos aspectos da história da conformação do mundo, pois, ao passo que as primeiras se concentram nas características agressivas de um personagem que demonstra um caráter canibal, as segundas salientam os poderes vitais encapsulados em artefatos (as flautas) confeccionados a partir do tronco de palmeiras que irrompem no solo da floresta desde um patamar inferior - e há ainda narrativas desana que combinam os dois episódios em sequência. Em todos os casos, no entanto, a trama gira em torno da iniciação dos rapazes de uma primeira geração que se origina da gente-pedra do começo. Nesse caso, ao falar de iniciação (amó-yee, termo que designa a menstruação) as narrativas se referem a um processo pelo qual os rapazes seriam dotados de capacidades reprodutivas ao soprar as flautas pela primeira vez. Em todas as versões, o plano é frustrado, ora pela desobediência dos rapazes - que terminam devorados por Jurupari --, ora pela indolência de um deles - que deveria ter despertado de madrugada para banhar-se e tocar as flautas de paxíuba na beira do rio. No primeiro caso, Jurupari é objeto de vingança por parte dos pais dos meninos devorados, e vem a ser queimado vivo em uma grande fogueira. De suas cinzas nascem as paxiúbas com as quais as flautas serão fabricadas pela futura humanidade. Resultantes da queima de Jurupari, ou oriundas do mundo inferior e irrompendo violentamente através do solo da floresta, as palmeiras paxiúba são a matéria prima das flautas que serão roubadas pelas primeiras mulheres, episódio presente em todas as narrativas. Em vários relatos tukano, aponta-se que os ancestrais de cada um dos grupos atuais deveriam ter confeccionado sua própria flauta com as diferentes paxiúbas que surgiram em diferentes partes do patamar terrestre. Quando a paxiúba destinada aos Desana (gente-universo) foi roubada pelas primeiras mulheres - inadvertidamente regurgitadas pelo ancestral --, todas as demais foram sugadas de volta para o aquático mundo inferior.

Apoderando-se das flautas, as mulheres passavam a protagonizar as tentativas de gerar a nova humanidade, antecipando-se aos homens. Porém, ao soprá-las, geravam apenas outras mulheres a partir de plantas, o que levará os homens a persegui-las por diferentes partes do mundo de então. Embora capturadas, em algumas narrativas salienta-se que uma das mulheres veio a ocultar um dos instrumentos na vagina, gesto que irá determinar decisivamente os episódios subsequentes: a iniciação dos rapazes não foi, ou não foi mais uma vez, possível (a depender de como a narrativa encadeia os episódios), e, talvez mais importante, o corpo feminino veio com isso a concentrar em si os poderes das flautas, definindo o modo pelo qual a futura humanidade viria a procriar - ou, desde um outro prisma, as flautas viriam a ser um dispositivo pelo qual aqueles poderes reprodutivos concentrados no corpo feminino poderão vir a ser compartilhados com os homens. Mas isso não ocorre de imediato, pois no episódio do roubo uma das mulheres é castigada pelo irmão que, tomando-as todas como inimigas, a violenta. Com isso, elas se dirigem (numió paramerá, “mulheres-netas”) às beiradas do mundo, duas delas tendo se deslocado até o distante Lago de Leite, no extremo leste, onde tornar-se-ão as donas das roupas e mercadorias. É também para lá que, mais tarde, os ancestrais tukano e desana seguirão atraídos por seus movimentos. E dali iniciam a longa jornada da cobra-canoa através dos rios Amazonas, Negro e Uaupés, e que conduz a futura humanidade na forma de um cardume de peixes. Seja por meio de uma decisão deliberada, ou por meio de uma constatação irrevogável, as narrativas apontam de modo geral que é através dos peixes que a humanidade encontrará finalmente os meios de sua vida futura. Embora as narrativas não o mencionem, podemos supor que as roupas fabricadas pelas mulheres que desceram ao Lago de Leite denotam tanto a roupa dos brancos como uma roupa de peixe, com a qual a futura humanidade seguirá pelo curso dos rios até alcançar a Cachoeira de Ipanoré, no médio rio Uaupés, onde, aos despi-la, saem como humanos de um grande buraco existente em uma de suas lajes.

Significativamente, foram os peixes que, em todas as versões, ensinaram as mulheres a tocar as flautas, precisamente porque são oriundas de um patamar inferior que apresenta contiguidade com o mundo subaquático - a paxiúba, aliás, ocorre em florestas inundáveis ou em áreas de transição para a floresta de terra firme (nas zonas próximas de rios e igarapés); além disso trata-se de uma palmeira monóica, que contém os elementos masculino e feminino, com a propriedade de autopolinizar-se (cf. Reichel-Dolmatoff, 1996REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. 1996. Yuruparí: studies of an Amazonian foundation myth. Cambridge/Massachusetts, Harvard University press.). No episódio em que a paxiúba será derrubada para a confecção das flautas aparecem vários animais para ajudar na tarefa, e cada um deles recebe um segmento específico do tronco da palmeira, que lhes assigna um canto ou grito característico. Já os peixes, o sabemos através de um relato makuna (Arhem et al, 2003), seriam “como o jurupari”, pois a “zoada” que produzem na piracema é equivalente ao som produzido pelas flautas de paxiúba. Mas de modo ainda mais significativo, o mesmo relato aponta que os peixes prescindem da relação sexual para se reproduzir porque boa parte de seu alimento corresponde aos caroços de frutas, em grande medida de palmeiras, que caem nas águas dos rios, especialmente antes do início das piracemas em novembro: são frutos de palmeiras que permitem sua reprodução, porém dotando machos e fêmeas de capacidades procriativas específicas, as ovas e o sêmen, reiterando que as frutas, e portanto as palmeiras, condensam os dois aspectos em um mesmo ser andrógino. Essas são imagens implícitas nas viagens da cobra-canoa, em cuja descrição estará presente um conjunto de índices da potência (re)generativa dos ciclos naturais. Em suma, as viagens da cobra-canoa à montante refletem os sucessivos movimentos dos peixes rio acima, conforme a sazonalidade do nível das águas, dos verões e invernos marcados pela subida e queda de um conjunto de constelações ao longo do ano.

As narrativas que fornecem mais detalhes sobre o ciclo da cobra-canoa apontam, de fato, ao menos duas viagens de subida pelos rios - uma delas chegando a detalhar minuciosamente quatro viagens (Bayaru & Ye Ni, 2004BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.), ao longo das quais são arroladas mais de uma centena de casas subaquáticas nos rios Negro e Uaupés (com seus afluentes Tiquié e Papuri), cujas marcas são pedrais e corredeiras. Os pontos extremos do percurso correspondem ao lago de leite, de onde partem os ancestrais da humanidade conduzido por dois irmãos, em geral dois daqueles gente-pedra do começo, designados como ancestrais tukano e desana, e ao igarapé Macucu, afluente da margem esquerda do Papuri, em cujas cabeceiras se localiza o centro do universo, marcado pelo aparecimento das primeiras paxiúbas. O lago de leite veio a ser identificado como a Baía da Guanabara, mas em geral as várias versões o situam também na chamada “porta das águas”, ora associada à foz do Amazonas, ora ao encontro do rio Negro com o Solimões, logo abaixo de Manaus.

Assim, umas das subidas da cobra-canoa, segundo uma extensa narrativa desana (Bayaru & Ye Ni, 2004BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.) concentra-se em indicar minuciosamente os locais (as casas) ao longo dos rios onde praticamente todo o conjunto de frutos silvestres consumidos pelos povos da região foi aparecendo, bem como quais deles viriam a ser ofertados entre parentes nos futuros dabucuris e quais passariam a ser utilizados para “fortalecer o coração dos recém-nascidos” (buiuiú, abio, ingá, umari, ucuqui, bacaba, patauá, açaí, uirapixuna, cunuri, buriti, caju). Nessa mesma viagem, os tripulantes da cobra-canoa vão recolhendo ainda um conjunto de penas de pássaros que serão utilizadas futuramente na confecção dos adornos cerimoniais, assim como uma série de materiais utilizados na produção de outros itens rituais (penas de arara, papagaio, gavião, jacú, garça, pelos de rabos de macaco e onça, cipós e palhas, breus, argilas, tinturas). Em algumas das casas são igualmente obtidas novas flautas de osso.10 10 Em algumas versões os ornamentos são entregues já prontos pelo Avô do Mundo (ora trovão, ora sol), em uma visita específica que os ancestrais lhe fazem. Ali irão obter um par do diversificado conjunto de adornos cerimoniais, que, ao que parece, prefiguram a forma exterior da futura humanidade (cf. Maia & Maia, 2003) Ao final dessa etapa, os dois irmãos que conduzem o processo constatam que, afinal, “recuperamos aquilo que tínhamos perdido”, isto é, a narrativa parece sugerir uma equivalência entre as flautas anteriormente furtadas pelas mulheres e as frutas, penas de pássaro, flautas de osso e outras substâncias e materiais. A cada parada, depois de encontrar cada um desses itens, o narrador acrescenta frases significativas: “fazendo isso, eles tiravam sua roupa de invisibilidade”, e, assim, “se tornavam um pouco mais humanos”. Isso sugere que, tal como se afirma quanto aos peixes em geral, ao alcançar as casas subaquáticas, essa proto-humanidade tirava a roupa de peixe, mostrando-se e vendo seus anfitriões-peixe em forma humana. Esse tornar-se “mais humanos” era, portanto, muito singular, pois tratava-se de uma humanidade compartilhada com a gente-peixe, em cujas casas aquela série de itens era recolhido. Assim, a proto-humanidade experimenta a si mesma inicialmente segundo a autopercepção dos habitantes das águas, de modo que sua exteriorização, para si mesma, se efetua à medida em que adota o ponto de vista dos peixes. Por isso, os peixes são ditos parentes em alguma medida, mais especificamente cunhados.

Esse ponto nos leva à última das viagens, a subida derradeira pelos rios que leva à passagem dos viajantes à terra, no buraco de surgimento de Ipanoré, com o abandono definitivo da roupa de peixe. Mas os dois episódios mais instrutivos dessa última viagem, e que operam uma modulação, por assim dizer, das relações externas com os peixes às relações internas da futura humanidade entre si, ocorrem em dois pontos mais abaixo no trajeto, ambos designados como Dia Wi’í, “casa do rio”, ou também TeyaWi’í, a “casa dos cunhados”. O primeiro é situado na metade do caminho, como se aponta em uma narrativa, exatamente na localidade conhecida até hoje como Temendavi, situada no médio rio Negro abaixo da cidade de Santa Izabel; o segundo é situado já no baixo rio Uaupés, mais ou menos também na metade entre Temendavi e o destino final da humanidade, o centro do universo situado nas cabeceiras do Igarapé Macucu. Os dois locais são marcados - no baixo Negro e no baixo Uaupés - pelo (re)aparecimento da flauta Jurupari, mas, sobretudo, por um duplo (ou gêmeo) seu: o caapi (ayahuasca, banisteriopis caapi), uma substância psicoativa utilizada, principalmente no passado, pois hoje em desuso, nos rituais com flautas. As narrativas variam significativamente na elaboração desses episódios, ora situando essas novas aparições em cada um dos pontos, ora condensando as duas em um ou outro episódio.

Seja como for, esses acontecimentos míticos estabelecem novos parâmetros para a vida da humanidade que, logo em seguida, irá emergir pelo buraco de surgimento em Ipanoré. Esquematicamente, as coisas se passam da seguinte maneira: até então, a proto-humanidade cresceu seguindo as piracemas, isto é, dançando nos rituais subaquáticos dos peixes, valendo-se de seus cantos e instrumentos cerimoniais. Agora através do uso do caapi, essa humanidade que falava uma mesma língua, irá passar a falar línguas variadas, de modo que, de irmãos entre si, eles passam a se relacionar como cunhados - eis aqui o correspondente mítico daquilo que a literatura etnográfica qualificou classicamente como um traço característico dos povos do Uaupés, sua exogamia linguística (Sorensen, 1967SORENSEN, Arthur. 1967. Multilingualism in the Northwest Amazon. American Anthropologist, vol.69, n.6: 670-684. DOI 10.1525/aa.1967.69.6.02a00030
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; Jackson, 1983JACKSON, Jean. 1983. Fish People. Linguistic exogamy and Tukanoan identity in Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press). A diversificação das línguas aparece, portanto, como marca da relação de afinidade, que, na primeira casa dos cunhados (Temendavi no médio rio Negro), é apontada como o vínculo que os viajantes mantiveram com os peixes, ao passo que, na segunda, vem a substituir a relação de germanidade que vigorava entre os tripulantes da cobra-canoa. A proto-humanidade seguia com os peixes visitando suas casas, mas sem com eles estabelecer alianças matrimoniais (casamentos com animais ocorrem no primeiro tempo do mito), pois suas espécies, concebidas como irmãos maiores e menores, se reproduzem internamente a seus respectivos grupos, e sem intercurso sexual - por meio dos caroços de frutas que ingerem, como vimos. Os peixes, enquanto cunhados, são aqueles, portanto, com os quais não se obtém esposas, mas sim instrumentos rituais -- frutas, penas, flautas e cantos. Nesse sentido, seriam como que a versão não-humana dos chamados afins potenciais, esses parceiros de trocas rituais que constituem o elemento exterior do parentesco humano (cf. Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.). A partir dessa primeira casa, conta-se que a cobra canoa seguiu levando somente aqueles que iriam se transformar em humanos, deixando ali os waí-mahsã, a gente-peixe, momento a partir do qual passam a chamar-se a si mesmos de pamuri-mahsã, a gente de transformação (cf. Diakuru & Kisibi, 1996DIAKURU [Américo Castro Fernandes); KISIBI (Durvalino Moura Fernandes). 1996. A mitologia sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.). Na segunda casa, a Casa do Rio propriamente dita, já muito próximos à passagem à condição humana, a afinidade passa a marcar a esfera intra-humana, na qual a troca de irmãs e o intercurso sexual serão os meios de seguir crescendo e reproduzindo. Mais marcadamente, é nesta segunda casa que se dá a diversificação das línguas, projetando a afinidade potencial de até então para o interior da esfera humana, a afinidade efetiva.

Nas duas casas os viajantes encontram uma cuia repleta de ipadu, um fino pó produzido com folhas torradas e pulverizadas de coca. Esse conteúdo deveria ter sido experimentado pelos ancestrais da humanidade, o que lhes proporcionaria a eterna juventude por meio de uma troca de pele na velhice. Como havia insetos peçonhentos em suas bordas, eles hesitaram, mas suas duas irmãs experimentam do conteúdo da cuia, mais uma vez se adiantando aos homens. O resultado foi sua gravidez imediata - isto é, se no primeiro episódio em que aparecem, as mulheres roubaram as flautas, aqui elas tomam a frente dos homens na ingestão do ipadu, que é como o sêmen (cf. Umusi Parokumu & Tõrãmu Kehíri, 1995PANLÕN KUMU, Umusi [Firmiano Arantes Lana]; KEHÍRI, Tõrãmu [Luiz Gomes Lana]. 1995. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Maia & Maia, 2004MAIA, Moisés; MAIA, Tiago. 2004. Yekisimia Masîke’. O conhecimento dos nossos antepassados. Uma narrativa Oyé. São Gabriel da Cachoeira, COIDI/FOIRN.). Em outras versões, conta-se que o caapi iria ser recolhido por um irmão mais novo, ou retirado de seu próprio corpo, que, uma vez introduzido enquanto esperma em um fruto de abiú, seria dado às irmãs para que engravidassem da fruta (cf. Diakuru & Kisibi, 1996DIAKURU [Américo Castro Fernandes); KISIBI (Durvalino Moura Fernandes). 1996. A mitologia sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Nahuri & Kumaro, 2003NAHURI [Miguel Azevedo] & KUMARÕ [Antenor Azevedo]. 2003. Dahsea Hausirõ Poã ukushe wiophesase merã bueri turi. Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.). Em todos os casos, a participação masculina diz respeito, mais uma vez, à abertura da vagina feminina pelos irmãos, para o que se valem ora da ponta da forquilha de seu cigarro, ora de seus brincos laminados.

Variando de acordo com a versão, as mulheres deram à luz a Jurupari e ao menino caapi, ora condensados em uma mesma pessoa, ora dois irmãos gêmeos de uma mesma mulher ou de duas irmãs. O primeiro originará mais tarde a palmeira paxiúba, com cuja madeira se fabrica as flautas rituais de hoje, mas neste episódio ele é levado a uma casa celeste sem que sua mãe possa vê-lo; ela apenas escuta seu choro, que é como o som de uma flauta (ver especialmente Maia & Maia, 2004MAIA, Moisés; MAIA, Tiago. 2004. Yekisimia Masîke’. O conhecimento dos nossos antepassados. Uma narrativa Oyé. São Gabriel da Cachoeira, COIDI/FOIRN.). Já a segunda criança origina o alucinógeno caapi (banisteriopis caapi, a ayahuasca). Foi por ocasião de seu nascimento, e sob o transe que provocou, que a diferenciação intra-humana ocorre: os irmãos passaram a falar línguas diferentes, como vimos. Essa intensa embriaguez é provocada pelo sangue do parto, especialmente aquele contido no cordão umbilical, e os leva a enxergar uma série de imagens que correspondem aos desenhos das esteiras trançadas em arumã preparadas para receber o bebê. A cena é descrita como uma grande confusão, causada pelo fato que já não podiam entender-se entre si. Cada qual tem agora uma “fala” própria, u’ukunsehé, condição, de acordo com as narrativas, adequada para a relação entre cunhados. Ao final, os irmãos dividem entre si as partes do corpo da criança, cada qual adquirindo assim um caapi com intensidade específica, com poder variável de produzir visões - os mais fortes são os que ficaram com os grupos situados nas cabeceiras. As visões geradas pelo efeito do caapi se reduplicam assim em uma multiplicidade sinestésica de sons, de línguas e falas variadas (cf. S. Hugh-Jones, 2019HUGH-JONES, Stephen. 2019. Thinking through Tubes: Flowing H/air and Synaesthesia. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America: Vol. 16: n. 2: 20-46.). Significativamente, uma das versões desana aponta que o caapi se originou da cabeça e dos membros do menino, ao passo que seu tronco, adquirindo a forma de um pênis, dispara para o céu: ele é o Jurupari, que mais tarde virá à terra para iniciar os filhos da humanidade (cf. Diakuru & Kisibi, 1996DIAKURU [Américo Castro Fernandes); KISIBI (Durvalino Moura Fernandes). 1996. A mitologia sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.). De sua queima, aparecerão novas paxiúbas que fornecem a matéria-prima para as flautas de hoje.

Um ponto a explorar a partir desse episódio seria sua possível analogia com aquela gravidez primordial da filha de Trovão que aparece em algumas narrativas desana. Como veremos, tal como estas, as narrativas baniwa (arawak) situam o nascimento do Jurupari logo no início dos mitos de origem, ao que se segue sua queima (o castigo pela devoração dos primeiros rapazes) e o surgimento das paxiúbas a partir de suas cinzas. Em uma das versões baniwa, logo ao nascer Jurupari é posto sobre uma peneira - comumente utilizada para coar a massa ralada de mandioca -, fazendo isso, a mãe separava a criança do sangue vertido no parto. À medida que o menino cresce, o sangue recolhido e decantado origina um veneno potente, capaz de causar a morte de mulheres no parto e de homens por hemorragia (Journet, 1985: 270). Nos relatos tukano, o Jurupari nasce, por outro lado, da segunda e mais tardia gravidez, por meio do ipadu que proporcionaria a troca de pele e a eterna juventude aos homens. Mas o contraste com a narrativa baniwa demonstra que o caapi, esse gêmeo de Jurupari, pode ser tomado como um veneno de baixa intensidade. Um veneno administrado em boa medida, por assim dizer, que viria a proporcionar uma língua específica, ou uma força-fala distintiva, característica de grupos que passavam de irmãos a cunhados. Oriundo do sangue feminino, o caapi evoca ainda o episódio inicial no qual uma das primeiras mulheres introduz a flauta na vagina para escondê-la dos homens, especialmente salientado nas narrativas tukano-desana. Como se aponta em geral, essa é a origem da menstruação feminina (cf. especificamente Cayón, 2013CAYÓN, Luis. 2013. Pienso, logo creo. La teoria Makuna del mundo. Bogotá, Instituto Colombiano de História y Antropologia.). Assim, é como se as mulheres já possuíssem desde então algo de imortalidade, proporcionada por uma troca interna de pele sinalizada pelo sangramento menstrual (Belaunde, 2006BELAUNDE, Luisa Elvira. 2006. A força dos pensamentos, o fedor do sangue. Hematologia e gênero na Amazônia. Revista de Antropologia vol. 49, n. 1: 205-243. DOI 10.1590/S0034-77012006000100007
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; Karadimas, 2008KARADIMAS, Dimitri. 2008. La métamorphose de Yurupari: flûtes, trompes et reproduction rituelle dans le Nord-Ouest amazonien. Journal de la Société des Americaniste, vol. 94, n. 1: 127-169. DOI 10.4000/jsa.9253
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).11 11 Significativamente, o nome dessa mulher é um termo que designa tanto a “menstruação” (feminina), como a “iniciação” (masculina): Amó. Literalmente, essa palavra significa a fase “crisálida” dos insetos que passam por metamorfoses completas em seu ciclo de vida. Denota ainda “ecdise”, a troca de exoesqueleto experimentada por outros insetos. Em suma: trata-se de um termo associado às transformações ligadas ao motivo da troca de pele (para o complexo do Jurupari, ver Karadimas, 2008, e, para uma abordagem mais ampla do tema, Belaunde, 2006). Já os homens deveriam ter provado do ipadu para poder trocar de pele. Em sua hesitação, eles ficam com o caapi, essa outra manifestação das flautas, espécie de duplo placentário do bebê Jurupari processado interiormente pelo corpo feminino. Em sua forma exterior, esse outro aspecto do Jurupari vem a se materializar sonoramente nas falas de cada grupo, com as quais, através das encantações sopradas da nominação, os homens poderão igualmente dotar seus filhos de vitalidade. Homens e mulheres possuem assim o Jurupari, mas cada qual a seu modo.

Significativamente, na Casa do Rio, após a diversificação das línguas, os viajantes irão fazer um grande dabucuri entre si, oferecendo vários tipos de frutas às mulheres. Quando falavam uma mesma língua, os dabucuris não funcionavam, pois não respondiam adequadamente entre si - suas falas, por serem as mesmas, não operavam o contraste que marca esse tipo de cerimônia. Mas com o caapi, passaram se expressar apropriada e contrastivamente, respondendo reciprocamente às interpelações nos diálogos cerimoniais. O dabucuri veio a ser adequadamente instaurado, ao final do qual, guardadas as flautas, ocorre a entrega de uma grande quantidade de frutas às mulheres. É exatamente o que se passa no ritual de iniciação masculina, quando, após longo aprendizado na mata com as flautas, os neófitos entregam frutas às suas mães e irmãs. Assim, por meio da ingestão do ipadu, as mulheres proporcionam aos homens os instrumentos fundamentais para os rituais, as flautas e o caapi, ao passo que estes entregam às mulheres as frutas, que, afinal, é sêmen, o que sugere que a iniciação masculina pode ser interpretada como uma troca mediada e genderizada, um dabucuri entre sexos. Se o dabucuri entre cunhados de mesmo sexo é a forma mais típica desse ritual de trocas, encontramos aqui sua prefiguração originária no contexto das relações de sexo cruzado.

Na seção seguinte, esta implicação das relações de afinidade nas relações de gênero será evidenciada de modo ligeiramente distinta. Como veremos na versão baniwa do mito de nascimento de Jurupari, uma relação primordial de sexo cruzado já insinua o parentesco por afinidade no começo dos tempos, antes mesmo da emergência de uma humanidade segmentada em clãs. Se a versão tukano situa o aparecimento dos cunhados em relações coletivas (sociocentramento) naqueles movimentos imediatamente anteriores à origem da humanidade em Ipanoré, quando grupos exogâmicos e clãs ganham existência e passam a empregar categorias de tratamento próprias à nova relação, na versão baniwa os termos de afinidade aparecem primeiro codificados em uma classificação egocentrada para relações particulares e, mais importante, para qualificar relações de sexo cruzado. No caso tukano, a narrativa introduz um termo de referência para os cunhados prototípicos - teya - em substituição a categorias de germanidade masculina - mamí e nihá, “irmão”, maior e menor respectivamente --; já no caso baniwa, veremos a seguir, a narrativa explicita por meio de um termo de parentesco de referência um casamento amital entre Ñaperikoli e sua tia paterna Amaro, do qual nasce Kowai, o Jurupari baniwa.

TRANSFORMAÇÕES BANIWA

A mitologia baniwa explica a origem da humanidade atual por meio de diferentes mitos. Wright (1993-1994)WRIGHT, Robin. 1993-1994. Umawali. Hohodene myths of the Anaconda, father of fish. Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, Genebra, v. 57/58: 37-48. http://www.sag-ssa.ch/bssa/pdf/bssa57-58_05.pdf
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e Hill (2009)HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press., dois importantes etnógrafos do povo Baniwa, pesquisando, respectivamente, os clãs Hohodene12 12 Hohodene é um clã baniwa cuja população é bastante numerosa, suas comunidades situam-se principalmente no rio Aiari. O seu animal epônimo é o inambu e, por isso, os Hohodene se consideram os “netos do inambu”. no Brasil e Dzawinai13 13 Dzawinai é um clã cuja população vive hoje principalmente na Venezuela, tendo migrado da região do médio rio Içana e baixo rio Aiari. O seu animal epônimo é a onça e, por isso, consideramse os “netos da onça”. na Venezuela, propuseram compreender a cosmogonia mítica como um conjunto internamente diferenciado que pode ser apreendido em três grandes ciclos. O primeiro ciclo trata de uma temporalidade marcada por conflitos incessantes de Ñapirikoli e seus irmãos, os demiurgos criadores, contra os animais que eram os seus cunhados e sogros. Nesse conjunto de mitos, as esposas de Ñapirikoli eram sempre filhas e irmãs de seres não humanos, portanto, os casamentos assinalavam relações de aliança matrimonial com o não humano. Em primeiro plano nessas narrativas, notam-se as relações conflituosas com os verdadeiramente outros, os afins potenciais: inimigos, animais, não humanos.

O segundo ciclo é marcado principalmente pelo mito que narra o nascimento de Kowai, o filho branco e extraordinário de Ñapirikoli com a sua tia paterna Amaro. Wright (1993-1994WRIGHT, Robin. 1993-1994. Umawali. Hohodene myths of the Anaconda, father of fish. Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, Genebra, v. 57/58: 37-48. http://www.sag-ssa.ch/bssa/pdf/bssa57-58_05.pdf
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; 2013WRIGHT, Robin. 2013. Mysteries of the jaguar shamans of the northwest Amazon. Lincoln, University of Nebraska Press.; 2017)WRIGHT, Robin. 2017. As tradições sagradas de Kuwai entre os povos aruaque setentrionais: estruturas, movimentos e variações. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 23, n. 3: 609-652. DOI 10.1590/1678-49442017v23n3p609
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reforça que esse mito narra a criação das condições por meio das quais se configura a reprodução da ordem social da humanidade, ressaltando suas expressões rituais atuais para o nascimento, iniciação e morte. Neste segundo ciclo, a relação matrimonial primordial ocorre por meio de termos específicos para a afinidade virtual cognática (a tia paterna), que podemos reconhecer na terminologia baniwa de tipo dravidiana. A aliança matrimonial é entre os demiurgos criadores, Ñapirikoli e Amaro, e não mais dele com os não humanos. As relações entre afins continuam conflituosas, mas essas encontram-se especificadas entre a inimizade (com os não humanos) e a afinidade virtual (com os humanos). A mediação destas relações pela terminologia de parentesco parece impedir a projeção de um cenário caótico que marca o primeiro ciclo ao fornecer meios para controlar as relações com os afins. Por fim, o terceiro ciclo é um desdobramento do segundo, pois uma vez elicitada as condições de reprodução social - termos para parentesco cruzado, diferenciação de gênero, rituais de iniciação -, o que ocorre é a estabilização dessas conquistas e a expansão do cosmos. Destaca-se nesse ciclo o mito da cachoeira de Hipana, de onde Ñapirikoli retira os ancestrais dos atuais clãs baniwa e os distribui na Terra, conformando a disposição territorial atual de comunidades na bacia do rio Içana (Wright, 1993-1994WRIGHT, Robin. 1993-1994. Umawali. Hohodene myths of the Anaconda, father of fish. Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, Genebra, v. 57/58: 37-48. http://www.sag-ssa.ch/bssa/pdf/bssa57-58_05.pdf
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).

A proposição de três ciclos míticos é evidentemente fruto do artifício antropológico, uma vez que os mitos não supõem em si uma ordem cronológica explícita. Devemos considerar que os diferentes episódios cosmogônicos, ora categorizados em um ciclo podem remeter também às questões e problemas caracterizados em outro ciclo e, ainda, que algumas narrativas escapam completamente a estas categorizações. Não é fortuito, portanto, que parte dos mitos que Wright (1993-1994)WRIGHT, Robin. 1993-1994. Umawali. Hohodene myths of the Anaconda, father of fish. Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, Genebra, v. 57/58: 37-48. http://www.sag-ssa.ch/bssa/pdf/bssa57-58_05.pdf
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localiza no terceiro ciclo, Hill (2009)HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press. situe-os no segundo ciclo mítico. Para Hill, o mito de Kowai encerra a tripartição cosmogônica, enquanto para Wright é Hipana. A propósito, Hill (2009)HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press. quando propõe a tripartição cosmogônica não menciona o mito de surgimento dos clãs baniwa na cachoeira mítica, embora dedique uma análise dele em outro trabalho (Hill, 1993HILL, Jonathann. 1993. Keepers of Sacred Chants. The Poetics of Ritual Power in an Amazonian Society. Tucson, The University of Arizona Press.). Não obstante os múltiplos caminhos para caracterizar os três ciclos míticos baniwa, essa proposição ajuda-nos a compreender alguns dos modos pelos quais os Baniwa formulam complexamente a passagem de uma ordem intensiva (o plano do mito) para um sistema extensivo (o plano do parentesco e da organização social). Com esse intuito, agora analisaremos o mito de Kowai, mas para tanto faremos primeiro uma comparação com o mito de Hipana e, por fim, notar uma transformação do mito de Kowai no mito da cobra sucuriju Hoianali (ou Oliamali).

Hipana e Kupipan são as cachoeiras das quais Ñapirikoli retirou os ancestrais dos diferentes clãs baniwa e curripaco14 14 Etnônimo que designa os clãs baniwa que vivem no alto rio Içana no Brasil, Colômbia e Venezuela. , bem como os dos brancos e de outros povos indígenas. Essas primeiras pessoas ao romperem à terra não eram propriamente humanas, conforme os atributos atuais. Sobre isso, um interlocutor do clã Komada Minanai15 15 Komada minanai é um clã baniwa cujas comunidades situam-se principalmente no Alto Rio Içana entre Brasil e Colômbia. O seu animal epônimo é o pato e, por isso, os Komada Minanani se consideram os “netos do pato”. observou para Journet: “quando nós viemos ao mundo, nós ainda tínhamos uma cauda, como os animais (1995: 304: nossa tradução)”. Esse narrador explica que Ñapirikoli precisou extirpar a cauda de cada um dos “nascidos”, bem como lhes conferir a fala. Estas primeiras pessoas receberam ainda de Ñapirikoli: um nome, um território, espécies de tabaco e pimenta, além das flautas e trompetes Kowai (Jurupari) exclusivos ao clã de pertencimento.

Esse mito é em geral narrado pelos Baniwa de modo muito breve e pouco detalhado, mas ainda assim assume um valor fundamental, na medida em que instancia relações hierárquicas entre os clãs de suas fratrias16 16 A literatura etnológica sobre os Baniwa convencionou chamar de fratria uma associação que varia entre 3 a 7 clãs (sibs) que se classificam mutuamente como sendo parentes (-kitsinape), isto é, clãs germanos. Convencionouse chamar a fratria pelo nome do clã irmão mais velho e, portanto, chefe. Esta associação de clãs parentes entre si tem o valor de uma unidade exógama, importante no cálculo dos casamentos. Os ancestrais dos clãs de uma fratria nasceram em Hipana segundo uma ordem de ascensão à terra que determina a senioridade entre germanos e, por consequência, a hierarquia dentro da fratria. Para uma complexificação desta categoria ver (Vianna, 2017:157). . Esta narrativa, no que toca à segmentação da humanidade em grupos, é análoga à da cobra-canoa, no entanto entre os Tukano e Desana, vimos, recebem uma extensa elaboração. Esse contraste faz equivocar a equivalência desses mitos ao explicitar suas diferenças, revelando que sua analogia é mais interessante se situarmos as continuidades sem excluir as descontinuidades. Vimos nas Transformações tukano-desana, que o surgimento da humanidade segmentarizada enuncia as relações de afinidade virtual cognática entre os grupos exogâmicos. Foi nesta ocasião que os ancestrais Tukano e Desana de irmãos passaram a se tratar como cunhados (teya). Diferentemente, um narrador baniwa ao descrever o nascimento da humanidade segmentarizada em Hipana não faz referências ao surgimento mítico de seus afins virtuais cognáticos (Cornelio, 1999CORNELIO, José; FONTES, Ricardo; SILVA, Manuel. 1999. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. São Gabriel da Cachoeira, FOIRN.: 82-89; Garnelo, 2003: 193; Hill, 1993HILL, Jonathann. 1993. Keepers of Sacred Chants. The Poetics of Ritual Power in an Amazonian Society. Tucson, The University of Arizona Press.: 36; Journet, 1995JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.: 299; Rojas, 1997ROJAS, Filintro. 1997. Ciencias naturales em la mitología Curripaco. Guainia, Fundación Etnollano.: 210; Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 158).

Em suma, um narrador baniwa descreve o nascimento mítico da humanidade, narrando o surgimento dos ancestrais de seus clãs e dos clãs irmãos (consanguíneos), isto é, os clãs de sua fratria, relata também o surgimento dos ancestrais dos coletivos estrangeiros (afins potenciais), mas suprime os ancestrais dos clãs de seus cunhados (afins virtuais cognáticos). Quando questionados, os narradores geralmente alegam que somente uma pessoa do clã pode contar a sua própria origem e dos seus parentes. Notamos neste ponto da comparação entre os mitos Baniwa e Tukano um tratamento diferencial da afinidade virtual que possui efeitos importantes na descrição das transformações da socialidade entre esses povos.

Assim, não perscrutaremos mais o que seria a versão baniwa do motivo da segmentação da humanidade em grupos exogâmicos (relações coletivas em uma classificação sociocentrada), mas abordaremos o outro polo da socialidade atual no Alto Rio Negro. O que é saliente na mitologia baniwa, com destaque para o nascimento de Kowai, é a formulação do parentesco em um plano egocentrado, em especial relações particulares de afinidade virtual sem consideração a grupos exogâmicos.

Este é o mito de Kowai, a partir da versão hohodene de Afonso Fontes17 17 Esse é o resumo de uma versão foi fornecida a um dos autores em trabalho de campo por Afonso Fontes, do clã Hohodene, com a transcrição em baniwa e a tradução para o português realizadas por sua esposa Ilda Cardoso do clã Awadzoro. Awadzoro é um clã baniwa, sua população é pouco numerosa e encontra-se atualmente dispersa. O seu animal epônimo é a paca e, por isso, os Awadzoro se consideram os “netos da paca”. :

Havia um homem chamado Ñapirikoli que morava em uma aldeia chamada Warokoa. Com ele havia quatros mulheres irmãs, suas tias paternas, eram as Amaronai18 18 -nai é um sufixo coletivizador, portanto, trata-se do coletivo das mulheres, Amaro e suas irmãs. . Ñapirikoli começou a gostar de uma delas. Então, ele se transformou em ralo de mandioca e em tipiti e, sem que Amaro percebesse, Ñapirikoli estava tendo relações sexuais com ela. É por isso que hoje não se respeitam as tias. Assim foi desde o princípio.

Amaro percebeu que estava grávida, o coração de Amaro se agitou. Era o filho do Ñapirikoli na sua tia. Ñapirikoli sabia os pensamentos dela, sabia quando a criança nasceria e estava preocupado, pois Amaro não tinha vagina. Na hora do parto, Amaro gemia e, para que não morresse de dor, Ñapirikoli a fez dormir profundamente. Ele aproveitou para fazer-lhe uma vagina e, em seguida, o parto. Após o nascimento, Ñapirikoli observou que o bebê não era humano, como hoje em dia, ele era totalmente diferente, bonito, branco e o seu choro não era normal. Enquanto isso, Amaro estava desmaiada.

No lugar da criança, Ñapirikoli deixou uma preguiça. Quando Amaro voltou a respirar falou: “Este não é meu filho”, “É ele mesmo”, retrucou Ñapirikoli, apontando para o animal. Ñapirikoli tinha escondido Kowai, mas não conseguiria mantê-lo assim por muito tempo, pois ele era totalmente diferente dos bebês de hoje. Então, Ñapirikoli o mandou para o Outro Mundo, outra camada chamada Céu (Enolikolhe).

Este é o primeiro episódio, o único que analisaremos mais detidamente19 19 Para outras análises do mito em seus diferentes episódios, remetemos o leitor a outros trabalhos (Hill, 1993, 2009; Vianna, 2017, Wright, 2013; 2017). , de um total de três que caracterizam a armação do mito de Kowai para os Baniwa.20 20 O mito se divide basicamente em três episódios bem definidos, coincidindo com o que propôs, primeiro, Saake (1976 [1956]). Nele acompanhamos a disputa de Ñapirikoli, o pai, e Amaro por Kowai, em que o primeiro impõe à revelia da segunda, a mãe do bebê, o exílio do recém-nascido deste mundo para o outro mundo, porque ele não era humano. Nesse momento, o cosmos já não é descrito como um campo interacional único, pois passa a ser dividido entre céu (outro mundo) e terra (este mundo). No segundo episódio, Kowai é um adulto e mora no Céu, a sua aparência é a de um homem branco, “como um patrão”, o que confirma sua estranheza. Ele volta à Terra para iniciar os seus primos paralelos matrilaterais, isto é, os filhos dos irmãos (niri, “filhos classificatórios”) de Ñapirikoli21 21 Sobre a relação destes meninos com Ñapirikoli, Wright comentou “Their relationship to Nhiaperikuli is as ‘younger brother’s children’ or some say ‘grandchildren’ or ‘his children’ (2013: 252)”. Estes meninos são chamados de Kanheekanai e são os descendentes de Ñapirikoli e os ascendentes dos Baniwa atuais. Em outra versão do mito o narrador observa “[...] nós [os Baniwa] surgimos através daqueles Kanheekanai” (EIBCCPDEK, 2012, v.1). Isso talvez sugira uma inflexão oblíqua na terminologia baniwa de caráter dravidiano, referente ao casamento inaugural entre Ñapirikoli e sua tia Amaro. , mas eles rompem o jejum cerimonial imposto e são, por isso, devorados por Kowai que, para tanto, se transformou em uma caverna e esperou que os jovens se refugiassem nela após uma chuva torrencial que ele mesmo provocou.22 22 Nota-se aqui o aspecto afim na relação entre primos paralelos matrilaterais entre os Baniwa, para ver mais sobre esse motivo (Vianna, 2017; 2020). Em vingança pelos “filhos classificatórios” canibalizados, Ñapirikoli mata Kowai em uma fogueira, de suas cinzas ele renasce na forma de uma palmeira a partir da qual são confeccionados as flautas e trompetes cerimoniais Kowai. No terceiro episódio, os homens possuíam esses aerofones, sendo seus primeiros detentores, entretanto, logo são roubados pelas mulheres que os inauguram a passam a utilizá-los ritualmente em suas cerimônias. Assim, retoma-se a disputa do primeiro episódio entre Ñapirikoli e Amaro por Kowai na forma de uma guerra entre mulheres/mães e homens/pais não mais por um bebê, mas pelos aerofones utilizados atualmente em rituais. Os homens perseguem as mulheres e o desfecho do mito é a retomada dos instrumentos Kowai roubados pelas mulheres Amaro que foram assassinadas ou exiladas por Ñapirikoli nas franjas do território indígena, onde vivem os brancos.

Consta nas versões baniwa de Kowai aqui analisadas (Saake, 1976SAAKE, Wilhelm G. 1976. “O mito do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana”. In SCHADEN, Egon. (org.), Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional. pp. 277-285. [1956]; Cornélio, 1999CORNELIO, José; FONTES, Ricardo; SILVA, Manuel. 1999. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. São Gabriel da Cachoeira, FOIRN.; Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.; ACEP, 2012ACEP. 2012. O que a gente precisa para viver e estar bem no mundo. v. 1 e 2, São Gabriel da Cachoeira, ACEP. Disponível em <https://issuu.com/institutosocioambiental/docs/manejo_pamaali_portugues > acesso em 20 de abril de 2016.
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; Garnelo, 2005GARNELO, Luiza; ALBUQUERQUE, Gabriel; SAMPAIO, Suelly; BRANDÃO, Luiz Carlos. (Orgs.) (2005). Cultura, escola, tradição: mitoteca na escola Baniwa. Manaus, RASI/UFAM.; Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.) que Amaro é a tia paterna (-koiro) de Ñapirikoli. Queremos destacar esse aspecto, pois atualmente entre os Baniwa, cuja terminologia de parentesco é de tipo dravidiana, embora privilegiem os casamentos entre primos cruzados, o casamento amital é possível na medida em que a tia paterna é uma afim. O termo de referência para sogra em baniwa é -nhêro (Ramirez, 2001RAMIREZ, Henri. 2001. Dicionário Baniwa Português. Manaus, Ed. Universidade do Amazonas.) ou em curripaco -hñerru (Journet, 1995JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.), mas o seu uso diante desta afim é ofensivo, devendo ser evitado (Journet, 1995JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.: 155). No lugar utiliza-se o termo de referência -koiro ou o vocativo koíkoi que designa a irmã do pai, tia paterna, FZ (ou MBW). Classificatoriamente, tia paterna é o mesmo que sogra (FZ=WM). Em ambientes patrilineares, a tia paterna é uma parenta agnática não consanguínea e, portanto, uma afim terminológica, tal como, em contrapartida, a mãe (M) é uma parenta uterina (portanto, de um clã diferentes daquele de Ego) e uma consanguínea (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.: 127; Journet, 1995JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.: 153).

Consideradas estas ressalvas, observamos nessa relação entre Ñapirikoli e Amaro, um homem e sua tia paterna, a codificação da afinidade virtual cognática em termos de relações particulares e de sexo cruzado (cônjuges). Notamos ainda nessa relação desembrulhar-se a construção da intraespecificidade na mitologia baniwa. Essa intersecção não nos parece sem importância, pois nota-se nela a experimentação do que seriam as primeiras relações que prefiguram a reprodução que considera as relações de sexo cruzado como capaz de agenciar modos específicos de produzir pessoas: a filiação atual via reprodução sexuada. Não parece ser fortuito que antes de Amaro e Kowai o mundo fosse pequeno, os humanos eram poucos, apenas Ñapirikoli e os seus irmãos Dzooli, Eeri e Mawirikoli. Tratava-se de uma humanidade que não se diferenciava internamente de modo evidente e que não crescia como atualmente, uma proto-humanidade pré-gênero, onde não havia mulheres humanas e, tampouco, crianças.

O mito de Kowai demarca, portanto, uma modificação importante em relação ao mundo primordial do primeiro ciclo, ao descrever Warokoa, uma aldeia mítica, cuja população estava dividia por gênero: de um lado, Ñapirikoli com três irmãos e, de outro, Amaro com três irmãs. Esse advento é coroado com a relação “sexual” entre Ñapirikoli e sua tia paterna Amaro. O mito sugere-nos que a diferença de gênero entre os Baniwa instanciada pelas relações de sexo cruzado (e não pelas de mesmo sexo) passam a engendrar a intraespecificidade, produzindo condições para a atualização da ordem intensiva em uma humanidade exclusiva.

Nas versões míticas aqui analisadas, a relação entre Ñapirikoli e Amaro varia entre o “desrespeito” e a aceitação sem restrições (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.: 117); do mesmo modo, a relação sexual é descrita em alguns casos de modo indireto, por meio do ralo de mandioca, tipiti, pensamento ou sonho (A. Fontes; Cornelio, 1999CORNELIO, José; FONTES, Ricardo; SILVA, Manuel. 1999. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. São Gabriel da Cachoeira, FOIRN.; Saake, 1976SAAKE, Wilhelm G. 1976. “O mito do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana”. In SCHADEN, Egon. (org.), Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional. pp. 277-285.), ou então, de modo explícito, por meio de um intercurso sexual convencional (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.; Garnelo, 2005GARNELO, Luiza; ALBUQUERQUE, Gabriel; SAMPAIO, Suelly; BRANDÃO, Luiz Carlos. (Orgs.) (2005). Cultura, escola, tradição: mitoteca na escola Baniwa. Manaus, RASI/UFAM.). O mito em suas variações levanta dúvidas sobre a ocorrência de relações sexuais entre Ñapirikoli e Amaro; mas, em contrapartida, em Warokoa, sugere-se sem hesitações a pertinência e a consumação de relações de sexo cruzado entre os irmãos de Ñapirikoli e suas “esposas”, as suas tias paternas. É o que podemos saber no segundo episódio do mito de Kowai, ao descobrir que Ñapirikoli possui “filhos classificatórios” (niri), filhos de seus irmãos, aqueles que seriam em seguida iniciados por um Kowai adulto. O resultado destas relações de sexo cruzado é a reprodução sexuada entre homens e mulheres e a filiação como seu efeito possível.

Na versão de Pequeira, narrador do clã Dzawinai (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.), Amaro e Ñapirikoli eram amantes, mas este não queria que a relação fosse revelada: “Ele [Ñapirikoli] teve intercurso sexual com a Amaro, sua tia. Eles esconderam suas relações sexuais do restante de sua família (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.:117: nossa tradução)”. Nesta versão, não se revela as razões pelas quais Ñapirikoli pretendia ocultar a relação, mas em uma das versões walipere23 23 Walipere ou Walipere dakenai é um clã baniwa cuja população é bastante numerosa, suas comunidades situam-se principalmente no médio rio Içana. O seu animal epônimo é a anta e, por isso, consideramse os “netos da anta”. (ACEP, 2012ACEP. 2012. O que a gente precisa para viver e estar bem no mundo. v. 1 e 2, São Gabriel da Cachoeira, ACEP. Disponível em <https://issuu.com/institutosocioambiental/docs/manejo_pamaali_portugues > acesso em 20 de abril de 2016.
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:5) narra-se o seguinte: “Quando os irmãos de Ñapirikoli perceberam que Amaro estava grávida, falaram: - Então você será o marido da nossa tia!”. A relação “conjugal” descoberta pelos irmãos de Ñapirikoli contou com a aprovação daqueles que eram a sociedade de então. A despeito deste fato, Ñapirikoli escondeu-se. Então, Amaro, grávida e solteira, sabia o que se seguiria ao parto: Ñapirikoli tentaria capturar ou desfazer-se da criança (Kowai) que nasceria.

A partir de então, a questão que o mito coloca em relevo é que para Ñapirikoli não propriamente o casamento era indesejado, mas a criança. Ñapirikoli, quando perguntado por seus parentes se sabia quem tinha engravidado Amaro, respondeu: “Não é nada [...] isto é somente o esperma deste mundo” (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.: 116: tradução nossa), negando que fosse o seu sêmen. Ele exime-se de qualquer participação nesta concepção, recusando a relação de filiação e não reconhecendo-se na posição de inseminador. A hesitação de Ñapirikoli na afirmação de paternidade de Kowai coloca-se como uma questão. Na versão koripako de Rojas24 24 Filintro Antonio Rojas é um autor curripaco do clã Walipere que elaborou uma compilação a partir do registro em gravações de áudio, transcrição e tradução para o castelhano de narrativas de diferentes narradores de clãs baniwa que vivem principalmente na Colômbia. (1997), Kowai diz o seguinte: “Escutem bem que vou dizer uma só vez o que eu sou. Sou o espírito do espaço, perigoso. Sêmen do espírito, espírito do firmamento (1997: 210: nossa tradução)”. Em outra narrativa da compilação de Rojas, Kowai diz: “- Ji... Ji... para onde eu vou? Para o céu eu vou, eu vou para o final do universo, não tenho pai, sou único” (idem: 117: nossa tradução). Kowai não é órfão25 25 Não temos espaço aqui para explorar o motivo mítico da orfandade, para tanto remetemos o leitor a mitos já publicados que registram as razões de Ñapirikoli e seus irmãos serem órfãos (Cornelio, 1999; Cardoso, s/d; Garnelo et al, 2005; Hill, 2009; Rojas, 1997). , mhanirídali, mas bastardo, maapatsika, o que fica mais evidente na versão walipere: “Kowai era filho de Ñapirikoli para a Amaro. Mas não é totalmente filho, pois era o pensamento de Ñapirikoli que penetrou nela, ou seja, Ñapirikoli imaapatsikale (ACEP, 2012ACEP. 2012. O que a gente precisa para viver e estar bem no mundo. v. 1 e 2, São Gabriel da Cachoeira, ACEP. Disponível em <https://issuu.com/institutosocioambiental/docs/manejo_pamaali_portugues > acesso em 20 de abril de 2016.
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: 8)”. A tradução da expressão “Ñapirikoli imaapatsikale” é o “bastardo de Ñapirikoli”, deixando evidente a ambiguidade e as dúvidas que se suscita sobre a filiação paterna deste nascimento. Portanto, a primeira filiação entendida como o resultado de relações de sexo cruzado no mundo mítico foi recusada pelo pai e era, portanto, a de um maapatsika, um bastardo, o que significa dizer que ele era um “filho de mãe”, cuja ascendência uterina é a única evidente ou assumida.

A antropóloga baniwa Francineia Fontes, do clã Walipere, observa em sua dissertação de mestrado:

Entendi a importância de saber que Kowai é mapatica (criança que não é assumida pelo pai) para o mito. Essa é uma pergunta que não é comum ouvir, pois os velhos não falam muito abertamente sobre isso. [...] O mito do Kowai me ajuda a entender qual é a importância das mães no parentesco Baniwa, falamos muito dos pais, mas não sabemos a importância das mães, o mito ajuda nesse entendimento (2019: 28).

O mito de Kowai traz ao primeiro plano as relações uterinas, destacando a relação do herói com sua mãe Amaro, contrapondo-se à dominância do idioma do parentesco agnático e da filiação patrilinear. Nesse sentido, é interessante notar a relativização da capacidade de Ñapirikoli em ter filhos, o que coloca em questão a filiação paterna de Kowai. Alguns narradores baniwa apontam, em um conjunto de outros mitos, que Ñapirikoli é estéril ou impotente. Journet (1995)JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme. observa: “Ele [Ñapirikoli] é celibatário e repugna as relações sexuais: os narradores atribuem a ele um pênis muito pequeno e flácido (Idem: 110-111 nossa tradução)”. Em outro mito, na versão hohodene do narrador Gabriel Silva, a sucuriju Ooliamali propõe à esposa de Ñapirikoli:

-Deixa que eu faça relação contigo?

-Eu não sei, você que deve saber... É que nunca meu esposo fez relação comigo, mas posso fazer relação contigo se você quiser.

Sabemos, assim, que Ñapirikoli não se relaciona sexualmente com suas esposas, seja porque não consegue, seja porque não quer. A impotência e esterilidade de Ñapirikoli apontada pelos narradores em um conjunto amplo de mitos contrasta com a lascívia e a fertilidade feminina. Assim, façamos agora um salto, acompanhando por meio do motivo da fertilidade feminina não somente as transformações do mito de Kowai entre as versões de diferentes clãs baniwa, mas suas transformações em diferentes mitos baniwa, em especial, o mito de Omawali, a cobra sucuriju, chamada Hoianali.

O que se segue é um resumo da versão de Afonso Fontes:

No princípio, Ñapirikoli tinha uma esposa. Todos os dias ela ia à roça e enquanto isso ele ia caçar. Ao fim da tarde, eles voltavam para casa. Um dia, após a mulher voltar da roça e ralar toda a mandioca, ela desceu até o rio para tomar banho. Na beira do rio, ela aproveitou para limpar o ralo de mandioca, batendo em seu fundo de madeira, fazendo desgrudar a sujeira. Com o barulho surgiu no rio uma sucuriju, era um homem branco e estava todo vestido, ele apareceu pilotando uma lancha de alumínio com motor de popa. Este era a cobra chamada Hoianali. Eles ficaram conversando, se enrolaram e fizeram amor. Assim aconteceu.

Sempre depois da roça, a mulher descia para o porto, batia na água e Hoianali aparecia. Mas não demorou até Ñapirikoli descobrir e matar o amante de sua esposa, sem que ela soubesse. Ñapirikoli preparou uma vingança. Ele foi ao rio onde estava o cadáver de Hoianali boiando e cortou o pênis da cobra em vários pedaços, transformando-os em sardinhas, separando dos outros peixes que havia também pescado. Ao voltar para casa, ele assou os peixes e sua esposa pediu do peixe. Ñapirikoli deu as sardinhas que eram na verdade o pênis de Hoianali. Ele a esperou e quando só faltava um peixinho por comer, falou:

‒ Puxa, mulher, é assim que se goza com o pênis do seu amante? Será que é gostoso comer o pênis de uma pessoa?

Imediatamente, ela correu para a beira do igarapé, tentou vomitar, mas não conseguiu expelir todos os peixes. Depois disso, Ñapirikoli a abandonou. O peixinho que ficou nela gerou uma cobra. A barriga dela encheu, era o filho daquele finado cobra Hoianali. Ela ficou sozinha até nascer o filho cobra que, quando nasceu, se enrolou nela, sentando-se em sua clavícula sem querer se separar dela. Com este filho parasita, ela andou, muito tempo, sozinha. Assim, foi no princípio.

Wright (1993-94) e Hill (2009)HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press. oferecem diferentes análises para este mito da cobra sucuriju Hoianali ou Ooliamali, designada genericamente pelos Baniwa como Omawali e considerada o pai dos peixes. Hill defende que o mito demonstraria a desintegração da vida social humana quando indivíduos perdem o controle de seu desejo sexual.26 26 Essa análise se aproxima de uma elaborada por Chernela (1988) para o mito da cobra Onoratu entre os Arapaço, povo de língua tukano. Para o autor, este mito pode ser ainda uma metáfora das relações interétnicas, entre indígenas e brancos. Por sua vez, Wright compreende que o mito não é tanto sobre o contexto colonial, e nem possui uma finalidade moral, tematizando antes a filiação e a reprodução sexuada, bem como os elementos que estão implicados nesse processo: gênero, troca, afinidade e consanguinidade. Apesar das divergências, os etnógrafos notam em comum relações de continuidade deste mito com o de Kowai, na medida em que ambos os personagens são brancos (ialanawi), associando cobras e estrangeiros não indígenas enquanto a epítome dos perigos e poderes da alteridade. Tratam, assim, por diferentes caminhos das condições e meios pelos quais se produz parentes e a ordem social que marcam o segundo ciclo mítico baniwa. Partindo dessas aproximações, propomos a descrição de outra transformação entre os mitos de Kowai e de Hoianali.

A esposa de Ñapirikoli no mito de Hoianali não é Amaro, nenhum narrador nunca nos sugeriu isso, no entanto, no exercício da análise estrutural do mito podemos notar que elas parecem ocupar uma mesma posição, não tanto por seus comportamentos, díspares nos dois mitos, mas pelas atitudes de Ñapirikoli endereçadas a elas. Ñapirikoli se comporta com Amaro como se ela fosse a sua esposa no mito de Hoianali. É como se o acontecimento em um mito, a traição da esposa com a cobra-homem branco Hoianali justificasse, no outro mito, a desconfiança de Ñapirikoli em relação à gravidez de Amaro. Em comum, as duas mulheres dão à luz a uma criança indesejada por Ñapirikoli e que ele não reconhece como sendo sua. No mito de Hoianali, Ñapirikoli não tem dúvidas de que o filho é da cobra-homem branco, ele mesmo inoculou o esperma de seu rival (e não o seu próprio) em sua esposa, e, no mito de Kowai, ele atribui a criança às substâncias de um outro, ao “esperma deste mundo”. Nos dois casos, os filhos são seres ambíguos, não humanos, em um caso, um bebê-cobra e, no outro, um bebê-branco (animal-vegetal-musical). Por fim, a esterilidade de Ñapirikoli é contrastada pela fertilidade não apenas das mulheres, mas também de Hoianali. Ñapirikoli somente consegue inseminar suas esposas por meio de outros, Hoianali, ou de artefatos, ralo de mandioca, tipiti, ou de artifícios xamânicos, como benzimento e sonhos. Sobre isso, Garnelo et al (2005)GARNELO, Luiza; ALBUQUERQUE, Gabriel; SAMPAIO, Suelly; BRANDÃO, Luiz Carlos. (Orgs.) (2005). Cultura, escola, tradição: mitoteca na escola Baniwa. Manaus, RASI/UFAM. registra a narrativa de Alberto Lourenço, do clã Awadzoro, segundo a qual Omawali era um homem que tinha por ofício fabricar ralos de mandioca, das lascas de madeira que sobravam da sua confecção e que caiam na água, nasciam os peixes. Assim, o ralo de mandioca que aparece como inseminador e mediador das relações sexuais é atribuído à cobra sucuriju que é “pai dos peixes”, ou então, “carpinteiro dos peixes”.

Mas há também inversões interessantes, no mito de Kowai, a criança bastarda é indesejada pelo pai, no mito de Hoianali, a criança órfã de pai é indesejada pela mãe. O mito de Hoianali explicita a patrilinearidade, destacando a relação por meio da aparência entre um pai-cobra morto e um filho-cobra órfão, eclipsando a relação de transmissão entre a mãe-humana (esposa de Ñapirikoli) e o filho-cobra (filho do Hoianali). Vimos que no mito de Kowai é a relação com o pai que está mascarada, dando destaque à relação entre mãe e um filho bastardo. Assim, se até aqui a bastardia nos auxiliou na compreensão da importância do parentesco uterino e do vínculo entre Amaro e seu filho Kowai, motivo pelo qual afastamos provisoriamente do foco a patrilinearidade como modo de compreender o mito, no caso da narrativa de Hoianali, o motivo da orfandade de um filho pelo pai e da recusa materna da filiação, recoloca a patrilinearidade como linha importante para a análise. Nossa aposta é que a relação entre o pai-cobra morto e o filho-cobra vivo fornece pistas para compreender a condição ontológica ambígua de Kowai.

Os brancos na mitologia baniwa estão associados ao Kowai e à Amaro, ao primeiro porque este é branco, e à segunda porque é a “mãe dos brancos”. Kowai é o único Jurupari que assume a aparência de um homem branco nos mitos registrados no Alto Rio Negro do qual temos notícias, por sua vez, associar a mãe do Jurupari aos brancos é recorrente. Nenhum narrador ou versão mítica sugere explicitamente, mas podemos depreender no exercício da análise estrutural que o mito de Hoianali, ao apontar um amante para a esposa de Ñapirikoli, especula um amante também para Amaro e, por consequência, um pai para Kowai.

A comunidade Warokoa é caracterizada por uma sociedade primordial dividida simetricamente entre quatro homens, os Ñapirikonai, e quatro mulheres, as Amaronai. A partir do nascimento do filho de Amaro com o “esperma deste mundo” (Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.) ou “sêmen do espírito” (Rojas, 1997ROJAS, Filintro. 1997. Ciencias naturales em la mitología Curripaco. Guainia, Fundación Etnollano.), um terceiro elemento se insinua e a dualidade é desiquilibrada por um terceiro elemento: Kowai. Agora, podemos sugerir que ele é um terceiro não somente porque é o fruto da relação que o precede entre Ñapirikoli e Amaro, mas porque talvez ele seja filho de Outro, o que insere potencialmente um quarto elemento na aldeia primordial do mito. A relação “conjugal” entre Ñapirikoli e Amaro é controversa, ainda assim capaz de delinear uma aliança matrimonial que, ao esboçar uma intraespecificidade marcada por uma relação de sexo cruzado e de afinidade virtual cognática, é a figura central do mito. No entanto, o nascimento de Kowai, sua estranheza e sua aparência de homem branco, revela a instabilidade dos relacionamentos que esboça e, então, o que estava no fundo (background) da narrativa de Warokoa, a afinidade potencial, ameaça vir ao primeiro plano. O aspecto branco (ialanawi) de Kowai - que é também artefato, vegetal, animal - e de Hoianali - que é também uma cobra -, assinalam a exterioridade destes personagens se insinuando (e determinando) na sociabilidade proto-humana descrita nos mitos. Se, portanto, a filiação intraespecífica como produto de relações de sexo cruzado é um dos motivos chave do mito de Kowai, é a aliança com o não humano (neste caso Hoianali), a afinidade potencial, que é o seu fundo. É esta aliança que parece repor a diferença e que permite os processos do parentesco se atualizarem infinitamente. Esse fundo afim significado por Hoianali é cristalizado no corpo de Kowai. Para usar uma imagem do parentesco amazônico, Hoianali seria o “terceiro” e Kowai o “terceiro incluído” (cf. Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.).

Se atribuímos um caráter fundacional do parentesco ao relacionamento entre Ñapirikoli e Amaro por codificar termos para afinidade virtual cognática em relações particulares intraespecíficas de sexo cruzado, não é porque notamos neste episódio uma relação modelar que passou a ser performada no mundo pós mito, superando definitivamente relações como aquelas que constituem o primeiro ciclo mítico. As condições intensivas do sistema, “o estado basal do pré-cosmos amazônico” (Viveiros de Castro, 2007aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007a. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos estudos CEBRAP. Vol. 77: 91-126. DOI 10.1590/S0101-33002007000100006
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), não foram suplantadas com o tempo pós mito e o advento do cosmos como um sistema extensivo, de gêneros especificados e relações de sexo cruzado intraespecíficas. Entendemos que a suposta traição primordial que teria resultado em um filho não humano de Outro mundo, não demonstra o negativo de uma ordem social, ao contrário, trata do fundo de diferenças da qual se deriva a filiação na aldeia Warokoa entre os irmãos de Ñapirikoli e suas tias paternas. Enfim, este episódio parece-nos interessante para pensarmos o parentesco, exatamente porque tematiza não somente a sua atualização em termos de afinidade virtual e nem somente as condições intensivas de sua elicitação, mas o próprio processo do parentesco que envolve contra-efetuações e explicita, assim, maneiras pelas quais a tensão relacional entre seus distintos princípios torna-se produtiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acompanhamos aqui seres que, no princípio, possuíam roupas-peixe, rabos animais, que falavam a mesma língua de todos os outros seres do cosmos, que se casavam com mulheres-animais-vegetais e que tinham sogros não humanos. Esses demiurgos não tinham filhos por meio de relações de sexo cruzado, entretanto, por meio de certos acontecimentos, passaram a conformar um corpo humano, a dispor de línguas distintas entre si e a não serem mais capazes de se comunicar ordinariamente com os animais; passaram a se casar com mulheres-humanas e a ter afins (cunhados e sogros) humanos. É a partir disso que podemos assinalar que os povos Tukano e Baniwa, bem outros povos do Noroeste Amazônico, pertencem ao mesmo metaesquema de afinidade intensiva que constitui o estado basal — o plano de imanência — do pré-cosmos amazônico, conforme as formulações de Viveiros de Castro (Viveiros de Castro, 1993; 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180.) para o problema da afinidade na Amazônia e para o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996; Stolze Lima, 1996). Nesses termos, podemos assinalar a tematização da afinidade potencial entre Tukano e Baniwa como uma exterioridade (extraparentesco) englobante - os peixes, as frutas, artefatos cerimoniais, substâncias como ipadu, tabaco, caapi, cobra e os brancos -, isto é, aquilo que antecede, miticamente, à humanidade exclusiva, e procede escatologicamente aos humanos vivos.

Mas se há uma convergência de base entre Baniwa e Tukano com o problema amazônico da afinidade, há um conjunto importante de contrastes que abordamos aqui e que devemos assinalar. A diferença entre esses povos e seus mitos reside não tanto na tematização da afinidade potencial, mas na tematização da afinidade virtual (cognática). Vimos que esta última afinidade é, no caso tukano, formulada de modo mais elaborado em termos de relações coletivas, enquanto, no caso baniwa, é formulada em termos de relações particulares. No caso tukano, a afinidade virtual é formulada de modo muito nítido em termos de relações coletivas no mito da cobra-canoa, quando os ancestrais tukano e desana que até então se tratavam como “irmãos” passam a se tratar como “cunhados” (teya), narrando a história de como os povos Tukano e Desana se tornaram atualmente cunhados preferenciais. Notemos que esses ancestrais são magnificados enquanto coletivos e apontam para a segmentação da humanidade em grupos exogâmicos. Já no caso baniwa, a afinidade virtual aparece logo de saída no mito de Kowai em termos de relações particulares, isto é, entre um homem e sua tia paterna: eles fazem parte de um mesmo grupo ou sociedade que é diferenciado internamente por gênero e afinidade. Mesmo no mito de Hipana, onde é formulada a segmentação baniwa da humanidade, não há qualquer menção aos coletivos considerados afins virtuais (clãs classificados como cunhados), mas apenas aos coletivos considerados parentes (clãs classificados como consanguíneos) e aos afins potenciais (no caso, o coletivo significado pelos brancos). Esta ausência da afinidade virtual no mito de Hipana destaca a sua presença no mito de Kowai em termos de relações particulares. Assim, entre os Tukano e Desana destaca-se a afinidade virtual em relações de mesmo sexo, dois ancestrais cunhados, enquanto no caso Baniwa destaca-se a afinidade virtual em relações de sexo cruzado, um homem e sua tia paterna.

Poderíamos nos perguntar, por que o mito baniwa omite afins clânicos e o mito tukano omite afins em relações particulares, ou então, por que o mito baniwa opta por apresentar os afins virtuais em relações particulares e o mito tukano o faz por meio de afins coletivos? Por que enfatizar relações de sexo cruzado ou de mesmo sexo na codificação da afinidade? E então, por fim, quais os efeitos que esse tratamento diferencial da afinidade virtual imprimem no parentesco e na organização social destes povos que compõe o Alto Rio Negro?

Primeiro, com base nessas comparações, diríamos que a descrição desse tratamento diferencial da afinidade virtual entre Baniwa e Tukano nos permite compreender o que se designou como sistema regional do Alto Rio Negro em termos de sua complexidade, enquanto um conjunto diferenciado. Em seguida, poderíamos reiterar que a ênfase na afinidade virtual a partir de relações particulares e de sexo cruzado, de um lado, e em relações coletivas e de mesmo sexo, de outro, estariam associadas às diferenças e aos contrastes já fartamente descritos na literatura regional. Entre elas, figuram a alegada tendência mais hierarquizante dos povos do Uaupés e a tendência mais igualitária entre os clãs baniwa; o “pacifismo” tukano, com ausência de menções à antropofagia (S. Hugh-Jones, 2013HUGH-JONES, Stephen. 2013. Bride-service and the absent gift. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19/2: 356-377. https://doi.org/10.1111/1467-9655.12037
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), e a belicosidade baniwa e o canibalismo guerreiro do passado (Journet, 1995JOURNET, Nicholas. 1995. La paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris, Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.). A esses contrastes, associar-se-iam ainda uma ênfase no xamanismo vertical (sacerdotal) no Uaupés e no xamanismo horizontal (profético) entre os Baniwa (S. Hugh-Jones, 1994; Wright 2005), bem como uma maior importância de nomes pessoais e outros emblemas clãnicos entre os povos de língua tukano do rio Uaupés quando comparados com o povo baniwa do Içana (Maia & Andrello, 2019MAIA, Arlindo; ANDRELLO, Geraldo. 2019. Ye’pâDi’iro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Vaupés. Mundo Amazónico, 10(1): 53-81.). Assim, se é verdade que todos esses apresentam aspectos e elementos em comum, chamamos atenção para o fato de que eles são distintamente atualizados e enfatizados. A essa variação, pensamos, é preciso dedicar ainda alguma reflexão.

A literatura etnológica das Terras Baixas da América do Sul há muito tem enfatizado as relações particulares como modo prototípico de caracterizar a socialidade amazônica. Os exemplos mais paradigmáticos de povos que habitam a Amazônia indígena são aqueles cujas descrições atendem às ideologias de cognação, tidos como “igualitaristas”. Nas comparações etnográficas da região, o Noroeste Amazônico, tal como o Brasil Central, sempre funcionou como contraponto à Amazônia “típica”, descrita a partir das Guianas, Yanomami e alguns povos tupi. Uma das consequências da utilização deste contraste entre Tukano-Jê (Alto Rio Negro/Brasil Central) e Tupi (Amazônia) é a caracterização dos primeiros não por aquilo que falta, mas sobretudo por aquilo que excede (clãs, fratrias, hierarquia, classes) em relação aos primeiros. Como se o que os caracterizasse fosse exclusivamente aquilo que os singulariza na paisagem mais ampla.

Neste artigo, tentamos descrever os povos tukano e baniwa a partir dos mitos, cuja socialidade é marcada pela cognação e pela agnação, por relações particulares e coletivas, por ideais igualitários e hierárquicos, pela consanguinidade e afinidade, pelo parentesco agnático e uterino, em uma dinâmica de pressuposição recíproca. A nosso ver, os polos atratores dessas dualidades não são excludentes entre e si, nem revelam uma exterioridade dos Baniwa e Tukano em relação à Amazônia indígena. Diferentemente, apostamos que as análises aqui propostas, que trazem à tona tensões relacionais entre princípios distintos, poderão vir a re-situar os povos rionegrinos no interior de um debate mais amplo. Por essa via, talvez seja possível retomar o problema das relações entre interior e exterior sob uma nova luz, isto é, buscar precisar o modo específico como, entre os povos rionegrinos, se daria a passagem das relações domésticas (particulares) às relações (cosmo)políticas (coletivas) - e quais os efeitos recíprocos exercem entre si.

Um exame mais acurado das narrativas acerca da conformação e crescimento dos grupos rionegrinos no período pós-mítico - i. e. um exame da maneira pela qual eventos moleculares de fissão e dos processos molares de fusão de clãs são agenciados - apontaria precisamente para essa outra e talvez complementar face da moeda, isto é, para as relações de parentesco que se desenrolam no cotidiano, incluídas aqui aquelas relações entre cunhados tradicionais - aqueles definidos no mito -- e aquelas estabelecidas no curso da história humana propriamente dita - no movimento contínuo de busca por esposas. São essas relações que criam no presente ambientes e contextos locais marcados pelo cognatismo no próprio interior daquilo que a etnografia da região descreveu como o cenário agnático global do alto rio Negro, ao privilegiar o foco nas relações coletivas. É nessa escala que as mulheres majoritariamente circulam e se fixam nas comunidades de seus cônjuges garantindo seu crescimento. Em suma, são essas relações de sexo cruzado que, hipoteticamente, produzem uma objetificação -- ou são objetificadas por algo - que irá se expressar no contexto das relações de mesmo sexo entre clãs agnáticos: pessoas, o índice mais visível do crescimento e da força de vida de um grupo. Trata-se, portanto, da abertura do campo do parentesco proporcionada pelas mulheres, tal como aventamos na introdução, e que os mitos tukano e baniwa analisados nos parecem, em conjunto, guardar como tema de fundo.

O uso dessas expressões (“sexo cruzado”, “mesmo sexo”, como também “relações particulares” e “coletivas”) no contexto da etnografia rionegrina recomendaria, em princípio, verificar em que medida outros pares análogos a esse poderiam ser também relevantes neste caso. Trata-se, evidentemente, do conjunto do léxico stratherniano do qual fazem parte (ver Strathern, 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift. Cambridge, Cambridge University Press.: cap 7). Como propõe a autora, discriminações como essas correspondem a expansões ou contrações de outras, como troca não mediada e mediada, eventos de substituição e replicação, técnicas de reificação e personificação, convenção e invenção, socialidade doméstica e socialidade político-ritual, pessoas múltiplas e singulares. É importante frisar que esses pares não constituem sub-categorias de categorias mais gerais; são tropos, “metáforas que participam umas das outras”. E essas conexões, para a autora, constituem precisamente o objeto de investigação do antropólogo. Trata-se assim de todo um campo a ser explorado, melhor dizendo, toda uma nova exploração das ideias rionegrinas a ser empreendida.

De imediato, o que parece razoável aventar é uma possível conexão entre relações que se dão na esfera doméstica e aquelas próprias aos contextos de trocas político-rituais, e, sobretudo, a maneira com essas últimas se constituem a partir das primeiras. Outro ponto, que decorre desse primeiro e que segue a mesma inspiração stratherniana, diz respeito às formas pelas quais uma dessas “construções” - entendida como um ponto de vista privilegiado - permite que outras se tornem visíveis. Para que um clã apareça enquanto tal é preciso que operações desse tipo sejam efetuadas. A ação emerge, assim, como aquilo que promove uma “apresentação”, em um tornar visível determinada forma através da eliminação de outra. Mas essas ações dependem de uma reificação prévia, isto é, de convenções estéticas através das quais os atores apreendem os efeitos que exercem uns sobre outros. Se na Melanésia é o idioma de gênero, do masculino e do feminino, que fornece tal convenção, na Amazônia, e o rio Negro pode ser aqui exemplar, é o idioma do “humano versus o não-humano” que vem fazer as vezes. O problema da humanidade exclusiva, tema central nos mitos que tratamos, seria nesse caso a reificação que permanece oculta nessas operações de visibilização - operações que se situam no vértice da alternância entre as socialidades doméstica e ritual, entre o parentesco cognático e a política agnática da hierarquia entre clãs.

Em suma, a conexão entre a série de relações domésticas de sexo cruzado e a série de relações político-rituais de mesmo sexo parece efetuar-se por meio dessa outra convenção estética referente ao problema da humanidade e da não-humanidade. Isto é, uma forma de reificação que parece infletir a distinção de gênero. Para finalizar, pensamos que é possível tomar essa reificação como “uma convenção interpretativa básica da práxis indígena”, para usar uma formulação de Eduardo Viveiros de Castro (2007b)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007b. “Xamanismo transversal, Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: QUEIROZ, Rubem Caixeta de; NOBRE, Renarde Freire (org). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: UFMG, pp.87-136.. Mas essa é uma definição, entre outras elaboradas pelo autor, de perspectivismo. Nesse texto específico, Viveiros de Castro propõe que o perspectivismo se manifesta sobretudo no xamanismo, contexto no qual certos indivíduos mostram-se capazes de ver com olhos de outros, de outras corporalidades, enxergando espíritos e animais, e se fazendo ver por eles, como pessoa. O xamã é definido então como um “diplomata cosmopolítico”, atuando no espaço de confronto entre diferentes “interesses socionaturais”. Daí sua aproximação à figura do guerreiro amazônico, que, na relação com o espírito de suas vítimas, se vê envolvido em um processo de “agonismo perspectivo”. O problema é: “quem é o humano aqui”? Somos ambos humanos, congêneres, ou eu sou o humano e você minha presa? A comutação de perspectivas é, portanto, o dispositivo comum às operações do xamã e do guerreiro, o primeiro atuando na zona interespecífica e o segundo na zona inter-humana ou intersocietária.

Transpondo essas formulações para os mitos rionegrinos, vale reter o modo peculiar como o perspectivismo interespecífico se expressa nessa região. Ali, uma humanidade exclusiva parece resultar de transformações agenciadas (ou engendradas) com outras gentes-animais, e não de uma condição cuja atualização se dá pela subtração dos não-humanos. Essa dependência originária se reduplica com a instauração do sexo reprodutivo tal como este é especificado nas narrativas que analisamos, uma vez que este acontecimento mítico faz das mulheres, e, por extensão, dos cunhados virtuais de outros clãs, a dobradiça mestra da aliança com o não-humano. Eis a condição fundamental para a expansão do parentesco no tempo presente (e para um desenvolvimento deste ponto, sugerimos o artigo de Nicole Sores-Pinto neste dossiê). Assim, parece ser possível aplicar uma interpretação de Viveiros de Castro quanto à relação existente entre o espaço relacional interespecífico do xamanismo e o intra-humano do guerreiro aos espaços doméstico e político-ritual do rio Negro: “Essas zonas se superpõem intensivamente, mais do que se dispõem extensivamente em relação de adjacência (horizontal) ou de englobamento (vertical)” (Viveiros de Castro, 2007bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007b. “Xamanismo transversal, Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: QUEIROZ, Rubem Caixeta de; NOBRE, Renarde Freire (org). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: UFMG, pp.87-136., p 96). Outra maneira de tratar esse ponto face à etnografia rionegrina, de lidar com essas diferentes formas de “comunicação transversal” que sugerem aquela aliança incontornável com o não-humano, é tentar vislumbrar como relações de parentesco e relações políticas se constituem umas a partir das outras, e, além disso, como acionam diferentes aspectos de um mesmo fundo de relações cosmológicas entre humanidade e não-humanidade.

Os ajustes necessários para desenvolver essa transposição certamente dependerá de incursões mais aprofundadas nos mitos tukano e baniwa que começamos a explorar aqui.

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    Agradecemos os comentários de Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Melissa Oliveira e dos pareceristas anônimos às versões que resultaram neste texto.
  • 2
    Agradecemos os comentários de Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Melissa Oliveira e dos pareceristas anônimos às versões que resultaram neste texto.
  • 3
    Na porção brasileira do noroeste amazônico habitam 22 povos indígenas, representantes das famílias linguísticas tukano oriental (Cubeo, Desana, Tukano, Miriti-Tapuia, Arapasso, Tuyuka, Makuna, Bará, Barasana, Siriano, Carapanã, Wanano e Pira-tapuia), arawak (Tariano, Baniwa, Kuripako, Warekena e Baré) e maku (Hupda, Yuhup, Nadeb e Dow). Esses grupos ocupam cerca de 700 povoados de tamanhos variáveis, estabelecidos ao longo dos rios Negro, Uaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari, Xié e vários outros afluentes menores, perfazendo uma população total de cerca de 33 mil pessoas, montante que incorpora os cerca de 7 a 8 mil índios que vivem nas sedes municipais regionais (Scolfaro; Oliveira; Hernandez, 2014SCOLFARO, Aline, OLIVEIRA, Ana Gita; HERNÁNDEZ, Natalia; GÓMEZ, Silvia. 2014. Cartografia dos Sítios Sagrados. São Paulo, Instituto Socioambiental.). Todos esses povos apresentam como características sociomorfológicas básicas a terminologia dravidiana, a exogamia linguística ou frátrica e a descendência patrilinear, além de uma segmentação expressa em um número considerável de sibs (“clãs”) hierarquizados entre si, cuja distribuição espacial é extremamente variada.
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    Sobre a distinção entre relações particulares e coletivas, ver Strathern (1988, cap. 7)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift. Cambridge, Cambridge University Press., bem como sua associação com relações de sexo cruzado e relações de mesmo sexo, respectivamente. Sobre a terminologia de egocentramento e sociocentramento podemos compreender como sendo análoga a distinção proposta por Lévi-Strauss (1982) entre método das classes e método das relações.
  • 5
    O mito de Jurupari foi objeto de muitas análises na antropologia (Bollens, 1967BOLLENS, Jacqueline. 1967. Mythe de Jurupari - Introduction à une analyse. L’Homme, vol. 7, n.1: 50-66. https://doi.org/10.3406/hom.1967.366858
    https://doi.org/10.3406/hom.1967.366858...
    ; S. Hugh-Jones, 1979HUGH-JONES, Stephen. 1979. The Palm and the Pleiades: Initiation and Cosmology in North-west Amazonia. Cambridge, Cambridge University Press.; Mich, 1994MICH, Tadeusz. 1994. The Yuruparí Complex of the Yucuna Indians. The Yuruparí Rite Source. Anthropos, vol. 89, n. 1/3: 39-49. Disponível em https://www.jstor.org/stable/40463193, acesso em 23 de agosto de 2021.
    https://www.jstor.org/stable/40463193,...
    ; Reichel-Dolmatoff, 1996REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. 1996. Yuruparí: studies of an Amazonian foundation myth. Cambridge/Massachusetts, Harvard University press.; Wright, 2017WRIGHT, Robin. 2017. As tradições sagradas de Kuwai entre os povos aruaque setentrionais: estruturas, movimentos e variações. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 23, n. 3: 609-652. DOI 10.1590/1678-49442017v23n3p609
    https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
    ; Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.; Journet, 2006JOURNET, Nicholas. 2006. Sacred Flutes as the Medium for an Avowed Secret in Curripaco Masculine Ritual. Sevilla, 52nd International Congress of Americanists.; Karadimas, 2008KARADIMAS, Dimitri. 2008. La métamorphose de Yurupari: flûtes, trompes et reproduction rituelle dans le Nord-Ouest amazonien. Journal de la Société des Americaniste, vol. 94, n. 1: 127-169. DOI 10.4000/jsa.9253
    https://doi.org/10.4000/jsa.9253...
    ; Maia, 2009, entre outros). Não retomaremos aqui todos esses trabalhos, focaremos naqueles que nos auxiliam em uma interpretação que aponte para sua expressão nos estudos de parentesco e organização social.
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    Viveiros de Castro (2002: 128)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O problema da afinidade na Amazônia” In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naify, pp. 87-180. distinguiu três afinidades: atual (efetiva), virtual (cognática) e potencial (sociopolítica).
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    Formulação extraída por Viveiros de Castro (2007)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007a. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos estudos CEBRAP. Vol. 77: 91-126. DOI 10.1590/S0101-33002007000100006
    https://doi.org/10.1590/S0101-3300200700...
    do livro Milles plateaux. Capitalisme et schizophrénie (1981: 183) de Deleuze & Guatarri.
  • 8
    Nesta seção, utilizaremos um conjunto de relatos míticos desana e tukano já publicados na Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro, editada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em particular Umusi Parokumu & Tõrãmu Kehíri (1995)PANLÕN KUMU, Umusi [Firmiano Arantes Lana]; KEHÍRI, Tõrãmu [Luiz Gomes Lana]. 1995. Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Diakuru & Kisibi (1996)DIAKURU [Américo Castro Fernandes); KISIBI (Durvalino Moura Fernandes). 1996. A mitologia sagrada dos Desana-Wari Dihputiro Põrã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Nahuri & Kumarõ (2003)NAHURI [Miguel Azevedo] & KUMARÕ [Antenor Azevedo]. 2003. Dahsea Hausirõ Poã ukushe wiophesase merã bueri turi. Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã. São Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN.; Bayaru & Ye Ni (2004)BAYARU, Tõrãmu; YE NI, Guahari. 2004. Livro dos antigos Desana - Guahari Diputiro Porã. São Gabriel da Cachoeira, ONIMRP/FOIRN.; Maia, Moisés & Maia, Tiago (2004)MAIA, Moisés; MAIA, Tiago. 2004. Yekisimia Masîke’. O conhecimento dos nossos antepassados. Uma narrativa Oyé. São Gabriel da Cachoeira, COIDI/FOIRN.. Alguns aspectos serão tomados ainda de uma narrativa tariano publicada por Adriano de Jesus, Pedro de Jesus e Luís Aguiar (2018)JESUS, Adriano de; JESUS, Pedro de; Aguiar, Luís. 2018. Ennu Ianáperi. História dos Tariano pelo clã Koivathe. São Gabriel da Cachoeira, COIDI/FOIRN..
  • 9
    O termo Miriã, nome da personagem de cujo corpo as flautas irão se originar, significa “submerso” na língua tukano, alusão ao modo como as flautas são guardadas sob as águas de pequenos cursos d’água, onde ficam escondidas de mulheres e crianças. Em algumas narrativas, este personagem recebe o apelido Bisiu, cuja acepção é “aquele que ressoa ou produz sons”. Uma vez que os termos são usados de modo variável nas narrativas, seguimos nesta seção usando o termo Jurupari, palavra da língua geral amazônica com a qual se designa este complexo de maneira mais ampla.
  • 10
    Em algumas versões os ornamentos são entregues já prontos pelo Avô do Mundo (ora trovão, ora sol), em uma visita específica que os ancestrais lhe fazem. Ali irão obter um par do diversificado conjunto de adornos cerimoniais, que, ao que parece, prefiguram a forma exterior da futura humanidade (cf. Maia & Maia, 2003)
  • 11
    Significativamente, o nome dessa mulher é um termo que designa tanto a “menstruação” (feminina), como a “iniciação” (masculina): Amó. Literalmente, essa palavra significa a fase “crisálida” dos insetos que passam por metamorfoses completas em seu ciclo de vida. Denota ainda “ecdise”, a troca de exoesqueleto experimentada por outros insetos. Em suma: trata-se de um termo associado às transformações ligadas ao motivo da troca de pele (para o complexo do Jurupari, ver Karadimas, 2008KARADIMAS, Dimitri. 2008. La métamorphose de Yurupari: flûtes, trompes et reproduction rituelle dans le Nord-Ouest amazonien. Journal de la Société des Americaniste, vol. 94, n. 1: 127-169. DOI 10.4000/jsa.9253
    https://doi.org/10.4000/jsa.9253...
    , e, para uma abordagem mais ampla do tema, Belaunde, 2006BELAUNDE, Luisa Elvira. 2006. A força dos pensamentos, o fedor do sangue. Hematologia e gênero na Amazônia. Revista de Antropologia vol. 49, n. 1: 205-243. DOI 10.1590/S0034-77012006000100007
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
    ).
  • 12
    Hohodene é um clã baniwa cuja população é bastante numerosa, suas comunidades situam-se principalmente no rio Aiari. O seu animal epônimo é o inambu e, por isso, os Hohodene se consideram os “netos do inambu”.
  • 13
    Dzawinai é um clã cuja população vive hoje principalmente na Venezuela, tendo migrado da região do médio rio Içana e baixo rio Aiari. O seu animal epônimo é a onça e, por isso, consideramse os “netos da onça”.
  • 14
    Etnônimo que designa os clãs baniwa que vivem no alto rio Içana no Brasil, Colômbia e Venezuela.
  • 15
    Komada minanai é um clã baniwa cujas comunidades situam-se principalmente no Alto Rio Içana entre Brasil e Colômbia. O seu animal epônimo é o pato e, por isso, os Komada Minanani se consideram os “netos do pato”.
  • 16
    A literatura etnológica sobre os Baniwa convencionou chamar de fratria uma associação que varia entre 3 a 7 clãs (sibs) que se classificam mutuamente como sendo parentes (-kitsinape), isto é, clãs germanos. Convencionouse chamar a fratria pelo nome do clã irmão mais velho e, portanto, chefe. Esta associação de clãs parentes entre si tem o valor de uma unidade exógama, importante no cálculo dos casamentos. Os ancestrais dos clãs de uma fratria nasceram em Hipana segundo uma ordem de ascensão à terra que determina a senioridade entre germanos e, por consequência, a hierarquia dentro da fratria. Para uma complexificação desta categoria ver (Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.:157).
  • 17
    Esse é o resumo de uma versão foi fornecida a um dos autores em trabalho de campo por Afonso Fontes, do clã Hohodene, com a transcrição em baniwa e a tradução para o português realizadas por sua esposa Ilda Cardoso do clã Awadzoro. Awadzoro é um clã baniwa, sua população é pouco numerosa e encontra-se atualmente dispersa. O seu animal epônimo é a paca e, por isso, os Awadzoro se consideram os “netos da paca”.
  • 18
    -nai é um sufixo coletivizador, portanto, trata-se do coletivo das mulheres, Amaro e suas irmãs.
  • 19
    Para outras análises do mito em seus diferentes episódios, remetemos o leitor a outros trabalhos (Hill, 1993HILL, Jonathann. 1993. Keepers of Sacred Chants. The Poetics of Ritual Power in an Amazonian Society. Tucson, The University of Arizona Press., 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.; Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina., Wright, 2013WRIGHT, Robin. 2013. Mysteries of the jaguar shamans of the northwest Amazon. Lincoln, University of Nebraska Press.; 2017WRIGHT, Robin. 2017. As tradições sagradas de Kuwai entre os povos aruaque setentrionais: estruturas, movimentos e variações. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 23, n. 3: 609-652. DOI 10.1590/1678-49442017v23n3p609
    https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
    ).
  • 20
    O mito se divide basicamente em três episódios bem definidos, coincidindo com o que propôs, primeiro, Saake (1976 [1956])SAAKE, Wilhelm G. 1976. “O mito do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana”. In SCHADEN, Egon. (org.), Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional. pp. 277-285..
  • 21
    Sobre a relação destes meninos com Ñapirikoli, Wright comentou “Their relationship to Nhiaperikuli is as ‘younger brother’s children’ or some say ‘grandchildren’ or ‘his children’ (2013: 252)”. Estes meninos são chamados de Kanheekanai e são os descendentes de Ñapirikoli e os ascendentes dos Baniwa atuais. Em outra versão do mito o narrador observa “[...] nós [os Baniwa] surgimos através daqueles Kanheekanai” (EIBCCPDEK, 2012, v.1). Isso talvez sugira uma inflexão oblíqua na terminologia baniwa de caráter dravidiano, referente ao casamento inaugural entre Ñapirikoli e sua tia Amaro.
  • 22
    Nota-se aqui o aspecto afim na relação entre primos paralelos matrilaterais entre os Baniwa, para ver mais sobre esse motivo (Vianna, 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os Nascidos: a mitopoese do parentesco Baniwa. Florianópolis, Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.; 2020VIANNA, João. 2020. A coafinidade baniwa: descrições e modelos no Noroeste Amazônico. Maloca. Revista de Estudos Indígenas, vol. 3, n. 1: e020009. DOI 10.20396/maloca.v3i.13502
    https://doi.org/10.20396/maloca.v3i.1350...
    ).
  • 23
    Walipere ou Walipere dakenai é um clã baniwa cuja população é bastante numerosa, suas comunidades situam-se principalmente no médio rio Içana. O seu animal epônimo é a anta e, por isso, consideramse os “netos da anta”.
  • 24
    Filintro Antonio Rojas é um autor curripaco do clã Walipere que elaborou uma compilação a partir do registro em gravações de áudio, transcrição e tradução para o castelhano de narrativas de diferentes narradores de clãs baniwa que vivem principalmente na Colômbia.
  • 25
    Não temos espaço aqui para explorar o motivo mítico da orfandade, para tanto remetemos o leitor a mitos já publicados que registram as razões de Ñapirikoli e seus irmãos serem órfãos (Cornelio, 1999CORNELIO, José; FONTES, Ricardo; SILVA, Manuel. 1999. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. São Gabriel da Cachoeira, FOIRN.; Cardoso, s/dCARDOSO, Júlio. [s/d]. Novo Milênio: as histórias e a vida de Júlio Cardoso Awadzoro. São Gabriel da Cachoeira, [s/e]. (mimeo); Garnelo et al, 2005GARNELO, Luiza; ALBUQUERQUE, Gabriel; SAMPAIO, Suelly; BRANDÃO, Luiz Carlos. (Orgs.) (2005). Cultura, escola, tradição: mitoteca na escola Baniwa. Manaus, RASI/UFAM.; Hill, 2009HILL, Jonathann. 2009. Made from Bone. Trickster Myths, Music, and History from the Amazon. Urbana/Chiacago, University of Illinois Press.; Rojas, 1997ROJAS, Filintro. 1997. Ciencias naturales em la mitología Curripaco. Guainia, Fundación Etnollano.).
  • 26
    Essa análise se aproxima de uma elaborada por Chernela (1988)CHERNELA, Janet. 1988. “Rethinking history in the Northwest Amazon. Myth, structure, and history in an Arapaço narrative”. In.: HILL, Jonathan D. (éd.), Rethinking History and Myth. Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana, University of Iillinois Press, pp. 35-49. para o mito da cobra Onoratu entre os Arapaço, povo de língua tukano.
  • FINANCIAMENTO: Agradecemos o apoio da FAPESP (Linha regular de Auxílio à Pesquisa, processo 2016/05996-5) e o apoio do INCT Brasil Plural (processo 57.3716/2008-0).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2020
  • Aceito
    17 Jun 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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