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Rastros, ruínas e decadência: contribuições para uma antropologia dos arquivos 1 1 Este ensaio é baseado em um dos capítulos de minha tese de doutorado, realizada com auxílio da FAPESP (processo 2014/25152-0). Agradeço aos/às pareceristas anônimos/as pelos comentários e sugestões.

TRACES, RUINS, AND DECAY: EPISTEMOLOGICAL CONTRIBUTIONS TO AN ANTHROPOLOGY OF THE ARCHIVES

RESUMO

Neste ensaio, proponho pensar o arquivo como cidade e a cidade como arquivo. As análises formuladas ao longo desse itinerário de mão-dupla, que permeiam documentos e ruas, embasam-se em três imagens conceituais: rastro, ruína e decadência. A partir de Maputo, capital moçambicana, problematizo meu trabalho de campo mostrando como esse exercício afetivo e epistemológico de “caminhar-pesquisar” envolve um olhar duplicado sobre o arquivo e a cidade. Esse olhar me levou, de um lado, a analisar os meios de controle e de silenciamento que cercam histórias e memórias presentes em ambos os espaços; de outro, a escavar outros sentidos que ameaçam esses mecanismos. Meu argumento é que o arquivo, como a cidade, é um espaço vivo, repleto de tensões, hiatos e ambiguidades. Por isso, é preciso testar os limites de se pensar, conjunta e comparativamente, o arquivo institucional e o arquivo urbano. Com esse olhar duplicado, problematizo os rastros das histórias oficiais e como elas são negociadas e disputadas - em imagens guardadas pelo Estado ou em monumentos escondidos.

PALAVRAS CHAVE:
Arquivos; Maputo; memória; fotografia; ruínas

ABSTRACT

In this essay, I try to think the archive as a city and the city as an archive. The analysis formulated around this two-way itinerary, which permeate both documents and streets, are based on three conceptual images: traces, debris, and decay. From Maputo, capital of Mozambique, I discuss my fieldwork by showing how this affective and epistemological activity of “walking-researching” involves a duplicate gaze over the archive and the city. On the one hand, this gaze has led me to analyze the mechanisms of control and silencing that surround stories and memories in both spaces; on the other hand, to excavate other senses that threaten these mechanisms. My argument is that the archive, like the city, is a living space, full of tensions, gaps, and ambiguities. Therefore, it is necessary to test the limits of thinking, together and comparatively, of the institutional archive and the urban archive. With this duplicated gaze, I problematize the traces of official history and how they are negotiated and disputed - in images kept by the State or in hidden monuments.

KEYWORDS:
Archives; Maputo; memory; photography; ruins

INTRODUÇÃO

Seria assim tão simples? Escolher, do passado, o que pretendia convocar e deixar o resto dentro de caixas à espera de vez?

João Paulo Borges Coelho, 2013bBORGES COELHO, João Paulo. 2013b. Rainhas da Noite. Maputo, Ndajira.: 361.

Entrar em um arquivo é como adentrar uma cidade; percorrer as estantes, tal qual uma estrangeira caminha pelas ruas. Procurar, observar, encontrar: as pessoas, os movimentos, os ruídos, os restos, as ruínas. Cheguei a Maputo, pela primeira vez, em 2015 [Foto 1]. Minha primeira percepção foi a de estar em uma cidade que pulsava sob diferentes ritmos, muitas vezes em desencontro e descompasso. Se, naquela época, eu não tinha uma imagem pressuposta do que seria Maputo, no sentido de que sabia pouco da cidade, eu levava comigo, no entanto, expectativas de como seriam seus arquivos. Uma incongruência de minha parte: aberta aos imponderáveis da cidade, fechada aos dos arquivos.

Figura 1
Maputo. José Cabral, Maputo, sem data.

Nesse caminhar - por vezes errático, mas sempre (trans)formador, na medida em que modula novas formas de conhecer, investigar e escrever -, a ideia de testar os limites de se pensar, conjunta e comparativamente, o arquivo institucional e o arquivo urbano se consolidou na execução da pesquisa (Triana, 2020TRIANA, Bruna. 2020. Ensaios em preto e branco: arquivo, memória e cidade nas fotografias de Ricardo Rangel. São Paulo, Tese de doutorado, FFLCH/USP.). Este ensaio é uma tentativa de construir uma reflexão mais elaborada sobre essa experiência de caminhar-pesquisar em Moçambique, abordando Maputo e seus arquivos, simultaneamente. Os itinerários que tracei pela cidade, junto àqueles que construí com as fotografias e os registros documentais encontrados nos arquivos, constituem a base deste ensaio. Meu objetivo não é tanto completar lacunas- da história ou da memória de Moçambique-, de modo a analisar “o passado tal como ele foi”, mas estabelecer uma correlação entre arquivo institucional e arquivo urbano, a partir de uma experiência investigativa sobre rastros coloniais2 2 Vale atentar, contudo, que arquivo não é sinônimo de memória, ainda que possamos fazer uma relação entre história (política, coletiva, institucional, oficial) e arquivos (institucionais, pessoais, comerciais, urbanos). .

Antes, porém, vale dizer que, como pesquisadora, mulher, jovem, branca e estrangeira vivendo em Moçambique, tive acessos facilitados em alguns desses locais. O fato de ser brasileira foi relevante, tanto em razão de uma certa simpatia que as pessoas guardavam em relação ao Brasil, quanto pelo distanciamento que a “estrangeirice” me proporcionava - em um contexto em que relações afetivas e políticas definem oportunidades e acessos. Essas posições e localizações específicas influem diretamente, em termos metodológicos e epistemológicos, na pesquisa e têm papel constitutivo no processo de construção do conhecimento (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó.: 58).

Mas é preciso dizer, também, que não escrevo das “antigas metrópoles”, mas de uma outra margem, de um entre lugar (Santiago, 1978SANTIAGO, Silviano. 1978. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo, Perspectiva, pp. 11-28.), que coloca outras relações de poder em jogo. Esses marcadores definiram, portanto, minha entrada, minha permanência e minhas interações em campo, mas também minha própria escrita. Assinalar esses aspectos não é buscar uma saída individual do tipo “eu falo apenas por mim mesma”, o que leva a uma recusa por análises mais gerais e a uma isenção das nossas responsabilidades éticas e políticas no que tange às nossas pesquisas; trata-se de indicar posicionamentos e relações que afetam e marcam o trabalho de campo e de escrita.

Neste ensaio, quero apresentar reflexões sobre um itinerário de mão-dupla, tecidas a partir de documentos e ruas, e que encontram embasamento em algumas imagens conceituais que atravessaram a pesquisa: o “rastro”, a “ruína” e a “decadência”. Na primeira parte do texto, problematizo meu trabalho de campo em Maputo, mostrando como esse exercício afetivo e epistemológico de “caminhar-pesquisar” envolveu um olhar duplicado sobre o arquivo e a cidade. Em um segundo momento, analiso os meios de controle e de silenciamento que cercam histórias e memórias presentes em ambos os espaços, atentando para outros sentidos que disputam e ameaçam esses mecanismos.

ITINERÁRIOS PELA CIDADE E PELO ARQUIVO: UM OLHAR DUPLICADO

Aquele que procura se aproximar do passado enterrado deve proceder como quem cava. [...] Ele não deve ter medo de voltar uma e outra vez à mesma matéria; espalhá-la como se espalha a terra, revolvê-la como se revolve o solo. Pois a matéria em si é somente um depósito, um estrato, que apenas pelo exame mais meticuloso produz o que constitui o verdadeiro tesouro escondido dentro da terra: as imagens, separadas de todas as associações anteriores, que se destacam - como preciosos fragmentos ou torsos na galeria do colecionador - nas salas prosaicas da nossa compreensão posterior. De fato, para escavações bem-sucedidas um plano é necessário. Porém, não menos necessária é a cautelosa sondagem que a pá opera na terra escura; e é para enganar a si mesmo da mais rica das recompensas que se preserva como registro apenas o inventário das próprias descobertas, e não a alegria sombria do lugar da descoberta em si. A busca infrutífera é tão parte disso como o sucesso; consequentemente, a lembrança não deve proceder como a narrativa, menos ainda como relato, mas deve, de maneira estritamente épica e rapsódica, testar sua pá em lugares sempre novos e, nos antigos, mergulhar em camadas cada vez mais profundas.

Walter Benjamin, 1978BENJAMIN, Walter. 1978. A Berlim Chronicle. Nova York, Schocken Books.: 26.

Ao caminhar por Maputo, as ruas logo me afetaram- como os documentos descobertos por uma investigadora em sua primeira consulta. Seus nomes, movimentos e contornos, suas histórias e gentes, seus edifícios e calçadas. Salvador Allende, Julius Nyerere, Emília Daússe, Kim Il Sung, Agostinho Neto, Friedrich Engels: andar por Maputo era como percorrer e aprender sobre a história moçambicana, de outros países africanos e latino-americanos, sobre eventos e datas comemorativas, sobre a trajetória de mártires e teóricos da esquerda global. O escritor João Paulo Borges Coelho (2009BORGES COELHO, João Paulo. 2009. Crónica da rua 513.2. Maputo, Ndjira.: 15), em sua obra Crónica da Rua 513.2, diz que, após a independência do país, em 1975, a revolução socialista que se seguiu erigiu como objetivo “destruir o passado para inventar o novo futuro”, apagando as inscrições coloniais e rebatizando a cidade com nomes sonantes, que dessem feição à nova nação, esquecendo-se de outros3 3 Assim, como aponta Borges Coelho (2009), é necessário notar a quase ausência de mulheres nomeadas nos logradouros da cidade, sejam elas heroínas da luta de libertação ou teóricas e líderes revolucionárias do mundo. Essa discrepância e desigualdade não é exceção de Maputo. Em São Paulo, por exemplo, o projeto São Paulas, de 2016, pesquisou e procurou refletir sobre os “nada banais nomes das ruas. De acordo com a pesquisa, cerca de 5.000 logradouros da cidade têm nomes de mulheres. De um total de quase 70 mil logradouros, quase 27.500 têm nomes de homens. [...] O título mais comum para nomes femininos é ‘santa’, enquanto que para masculinos é ‘doutor’. Se avenidas ou se ruelas também é um fator determinante do gênero dos topônimos” (Marquez, 2017). .

Trabalhando diariamente com fotografias e reportagens de jornais das décadas de 1950 a 1970 de Maputo (naquela época, ainda Lourenço Marques), e conversando com diversas pessoas sobre o período colonial, foi impossível não ser surpreendida por um olhar duplicado ao ver e ao caminhar pela cidade. Penso, por exemplo, na divisão entre centro e periferia, ou cimento e caniço4 4 No tempo colonial, Lourenço Marques era dividida entre a “cidade de cimento”, central, asfaltada, branca, e a “cidade de caniço”, periférica, precária, negra e mista. Tal divisão era marcada pela Estrada da Circunvalação (também conhecida como Avenida Caldas Xavier e, de 1976 até os dias de hoje, Avenida Marien Ngouabi). Hoje, Maputo incorporou muitos dos então bairros de caniço, e o centro da cidade se expandiu para além da antiga Estrada da Circunvalação. Sobre essa urbanização dual e sua atualidade, cf.: Baia (2009) e Maloa (2016). , com seus novos e velhos sentidos [Foto 2]; ou na Baixa da cidade, com seus cafés e restaurantes que ainda permanecem por ali, com o mesmo nome inclusive, e tantos outros lugares que desapareceram [Foto 3]; ou nas construções abandonadas do período colonial, que convivem com as novíssimas edificações, muitas delas de empreiteiras chinesas; ou ainda na Ponte Maputo-Katembe5 5 A construção da ponte exigiu a desapropriação e reassentamento da população de bairros como Malanga e Luís Cabral. O processo envolveu várias disputas e controvérsias entre a população e a empresa construtora, especialmente em relação a informação, indenizações e locais de reassentamento. Cf.: CTV (2016). , inaugurada em 2018, enquanto as tampas dos bueiros ainda dizem “L. Marques”.

Figura 2
Cenário da minha infância. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), 1960.

Figura 3
Vista parcial da Pastelaria Continental. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), anos 1960.

O trabalho nos arquivos, especialmente com as imagens do fotojornalista moçambicano Ricardo Rangel (1924-2009)6 6 Ricardo Rangel foi um fotógrafo moçambicano, considerado o “pai do fotojornalismo” do país. Seu trabalho é inovador, principalmente em razão de sua postura e de sua prática na abordagem do universo colonial. Em minha tese (Triana, 2020), além do arquivo e das fotografias, analiso a trajetória de Rangel, seu campo de atuação artística e política, o contexto de produção de suas imagens e seus engajamentos socioculturais como aspectos que formaram e informaram o seu olhar. , revelava as geografias e paisagens dessa cidade, a antiga Lourenço Marques, capital colonial, que ainda se faz presente em Maputo. Contudo, a “Maputo pós-colonial” não é só o resto do que um dia foi Lourenço Marques. A cidade expandiu e modificou a velha cidade de cimento e caniço; alterou não apenas os nomes das ruas, mas a sua própria dinâmica: os moradores, o transporte, o comércio. Esse trabalho de olhar duplamente para o passado no presente, para a cidade e para os arquivos, teceu em mim uma percepção também duplicada dessas geografias e paisagens que envolvem edifícios e nomes de ruas que, após a revolução, foram remodeladas. Essas geografias e paisagens também envolvem as persistentes divisões raciais e sexuais do trabalho, a contínua desigualdade social e econômica, as manifestações de poderio militar de ontem e de hoje, as relações e situações cotidianas da cidade colonial e da cidade atual, etc.

Dessa forma, percebi que, para além desses contatos imediatos, caminhar por Maputo, para chegar ao arquivo, à biblioteca ou a algum outro lugar, assemelhava-se ao ato de caminhar pelo arquivo, notando variações e nuances. Pouco a pouco, essa experiência passou a constituir um exercício de procurar e perceber detalhes e resquícios, descobrir e se demorar em documentos ou lugares desconhecidos, questionar outros tantos, montar quebra-cabeças com informações e histórias, anotar narrativas contadas sobre fotos, ruas, prédios.

Na cidade, tal como no arquivo, não se trata simplesmente de “entrar” nos locais, andar pelas ruas ou abrir pastas de documentos empoeirados: é preciso observar vestígios que ali perduram, reconhecer e compreender seus movimentos, afetos e desejos, permanecer sempre atenta aos ruídos que a “história oficial” tentou abafar, mas que são despertados pelo trabalho de arquivo e de memória. Ao escrever sobre a Maputo que conheci, caminhei e vivi, voltei-me, inicialmente, para Ítalo Calvino: talvez Maputo tenha sido, para mim, algo semelhante a Zaíra, a cidade que não conta seu passado, porque o contém (Calvino, 1990CALVINO, Ítalo. 1990. As cidades invisíveis. São Paulo, Cia das Letras.).

Foi interessante voltar à Maputo a cada dois anos desde a minha primeira visita. Isso me fez reencontrar a cidade, as pessoas e os arquivos. Ao mesmo tempo em que reconhecia lugares, sabia aonde ir e como circular, a cada viagem, pude percorrer novos caminhos, retomar ou mudar abordagens, empreender novas descobertas e relações (na cidade e nos arquivos). Entretanto, se em minhas três viagens à campo Maputo me fazia refletir sobre e com acidade, minhas experiências em seus arquivos, sobretudo em 2015, eram ainda difíceis. Inicialmente, quando pensava em arquivos institucionais, imaginava um ambiente com estantes de ferro cinza, caixas e pastas amarelas e pretas, mesas também acinzentadas, paredes e luzes brancas; pensava em temperatura, cores, corpos e papeis devidamente controlados. Imagem limitada (colonizada) e, mesmo, impossível. A essa idealização, contrapunha-se a compreensão de que sempre há falhas, hiatos, distorções, pois os problemas e as dificuldades de funcionamento e manutenção são corriqueiros nesses espaços7 7 Sobre a produção, as falhas e disputas dos arquivos, especialmente (pós)coloniais, cf.: Buckley (2005), Cunha (2021), Harris (2002), Stoler (2002),Triana (2017), entre outros. .

As falhas constituem os espaços arquivísticos, mesmo os mais controlados. Nesse sentido, as brechas nos arquivos, mais que produtivas, são cruciais a qualquer investigação, na medida em que revelam o que falta e o que sobra. São as resistências, subjetivas e institucionais, do e ao arquivo, que devemos buscar para produzir narrativas contra-hegemônicas sobre o “monumento passado” - que é sempre um passado muito específico e recortado, vale lembrar.

Mesmo ciente de que as imperfeições são constitutivas dos arquivos, no início, eu carregava expectativas idealizadas de funcionamento e pesquisa. Essas expectativas foram confrontadas com espaços concretos que, como todo arquivo, tinham seus próprios problemas de manutenção, organização e acesso. Nos primeiros dias em Maputo, entrei em contato com o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) e com o Centro de Documentação e Formação Fotográfica (CDFF). Em ambos os espaços, minha entrada foi autorizada. Contudo, de minha parte, havia ainda uma falta de foco e a tentativa pretensiosa de “dar conta de tudo” - atitudes que atrapalhavam o trabalho de campo. Na ânsia de querer ver todo o material possível, dividia meus dias entre os dois arquivos, requerendo documentos e coleções, sem dar conta de olhar, ler e analisar todos eles, de maneira a acumular cada vez mais material para os dias seguintes. Após quase três semanas de investigação exploratória, percebi que me afundava em pilhas de fotos, negativos, jornais, manuscritos e atas que não ofereciam nada de “concreto” para que eu pudesse me agarrar em meio ao naufrágio nesse mar de papeis e rastros8 8 Na tese, busco descrever e analisar tanto as trajetórias e contextos histórico-políticos dos arquivos moçambicanos, quanto os métodos, as táticas de investigação e a experiência material do trabalho de campo em arquivos (Triana, 2020). .

Ao passar os dias nos arquivos, olhando para fotos e reportagens, percebia a mim mesma caminhando por Maputo com esse olhar duplicado: a cidade arquivada em tensão com a cidade atual. Confrontava, por exemplo, uma reportagem na revista Tempo, de 1971, sobre um escândalo na construção dos prédios conhecidos como PHs9 9 “Escândalo na Coop”. Revista Tempo, n. 17, 10 de janeiro de 1971. Coleção Tempo, AHM. , enfileirados na Av. Vladimir Lenine, com os atuais vendedores de crédito de celular, frutas e verduras que ficam nas calçadas. O Café Continental, por sua vez, parecia praticamente o mesmo das fotos dos anos 1960, mas com a esplanada sobre um deque na calçada e com pessoas negras e brancas a tomar seus cafés [Foto 3]. Logo em frente ao Continental, há outro café antigo, o Scala, com a sala de cinema de mesmo nome ao lado, em estilo Art Déco, enquanto que, na outra esquina, encontram-se os escombros do que é conhecido como Prédio Pott, destruído em um incêndio em 1991, atualmente abrigando duas pequenas lojas, um movimentado comércio ambulante nas calçadas e pessoas em situação de rua que vivem por ali [Foto 4].

Figura 4
Prédio Pott. Jorge Almeida, Maputo, sem data.

O Prédio Pott10 10 Erguido em 1905, a construção pertencia ao holandês Gerard Pott, pai de Karel Pott (1904-1953), advogado que teve um importante papel na vida pública de Lourenço Marques. Karel Pott trabalhou com João e José Albasini, fundadores da associação Grêmio Africano e os importantes jornais O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974). O prédio abrigava lojas de comércio e o escritório de Karel, até a sua morte, em 1953. me chamava a atenção. Se Maputo havia mudado entre 2015, 2017 e 2019 (minhas três viagens a campo), com novas edificações- como a ponte para Katembe, cuja construção praticamente acompanhei ao longo dos anos-,o prédio destruído permanecia lá. O Prédio Pott, com seus antigos e novos ocupantes, contrastava e compunha as histórias presentes em jornais e fotografias do AHM e do CDFF. Esses escombros, então, articulavam em mim diversas inquietações que me conduziram a algumas imagens conceituais.

A primeira delas foi a imagem do “rastro”, presente não só no arquivo, mas na própria arquitetura da cidade. Essa imagem me permitiu pensar os destroços da cidade colonial como legados insistentes dos passados de Maputo/Lourenço Marques. Como explica Jeanne-Marie Gagnebin (2006GAGNEBIN, Jeanne Marie. 2006. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo, Ed. 34.), o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais enquanto tal, correndo o risco de desaparecer completamente. A imagem do rastro me pareceu importante, à medida que ela se conecta a algumas reflexões sobre memória, que, por sua vez, também expressa a tensão entre presença e ausência: “presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (Gagnebin, 2006GAGNEBIN, Jeanne Marie. 2006. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo, Ed. 34.: 44).

A ideia de rastro me levou ao projeto Usakos, photographs beyond ruins, dos curadores Lorena Rizzo, Paul Grendon, Giorgio Miescher e Tina Smith (2015RIZZO, Lorena; SMITH, Tina; GRENDON, Paul; MIESCHER, Giorgio. 2015. Usakos, photographs beyond ruins. Suíça, Basler Afrika Bibliographien.). Ao visitarem Usakos, na Namíbia, com a pretensão de pesquisar a linha férrea construída na cidade e a implementação da segregação espacial e do planejamento urbano do Apartheid, entre 1920 e 1960, eles encontraram quatro mulheres negras da comunidade que partilharam suas coleções fotográficas e seus arquivos pessoais com os curadores. Problematizando os arquivos nacionais da Namíbia, que seguiriam marcados por parâmetros impostos por repositórios convencionais ocidentalizados11 11 A utilização do termo “ocidental” remete a instituições internacionais específicas de regulamentação, padronização e legitimação de arquivos, como o ICA (International Concil on Archives), instituição baseada na França, responsável por desenvolver parâmetros, regulamentações e projetos para a constituição e preservação de documentos em arquivos, com filiais globais regionais. A adequação dos arquivos nacionais aos padrões da ICA pode assegurar verbas e financiamentos. Paralelamente, podemos pensar no termo “ocidental” para referir às ideias da constituição e institucionalização do conhecimento científico de uma parte do mundo, o chamado Norte Global por alguns autores, e a consequente desconsideração de outras formas de saberes, tidas como inferiores ou menores. Para tanto, cf.: Carneiro (2005), Mignolo (2006) e Said (1989). , a coleção dessas quatro mulheres constitui um arquivo alternativo, contra pontual, não só em termos do “conteúdo” das imagens em relação ao Apartheid, mas, sobretudo, no que as coleções, em sua materialidade, logram falar sobre práticas fotográficas.

Os rastros também me levaram à ideia da ruína. Se Walter Benjamin postulava que as ruínas eram resquícios da força da destruição do passado, Ann Stoler (2008STOLER, Ann Laura. 2008. Imperial debris: reflections on ruins and ruination. Cultural Anthropology , v. 23, n. 2: 191-219. https://www.jstor.org/stable/20484502
https://www.jstor.org/stable/20484502...
: 194), ao refletir sobre legados imperiais em cidades pós-coloniais, pondera:

[...] as ruínas são também lugares que condensam sentidos alternativos da história. A ruína é um processo corrosivo que pesa no futuro e molda o presente [...]. A questão é [...]: como as formações imperiais persistem em seus escombros materiais, em paisagens arruinadas e através da ruína social da vida das pessoas?

As ruínas deixadas pelo colonialismo, pelo Apartheid, pelas ditaduras, pelas guerras de libertação e pelos mais diversos conflitos civis são tanto materiais quanto imateriais. O Prédio Pott, como ruína, figurava, para mim, como um lugar de memória das coisas, pessoas, vozes, relações e dos arquivos passados, mortos, às vezes silenciados, que não cabem mais na Maputo de hoje.

É possível pensar em outras ruínas da cidade, para além do Prédio Pott, como a Vila Algarve [Fotos 5 e 6], local de prisão, sevícias e morte da PIDE/DSG12 12 Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), polícia política e principal órgão repressivo do regime autoritário e colonial, tanto em Portugal quanto nas colônias - onde passou a atuar oficialmente a partir de 1954. Em 1969, passou a se chamar Direção Geral de Segurança (DGS). No entanto, a alteração não implicou uma mudança nas funções e estratégias de repressão. Apesar da alteração, as pessoas seguiram se referindo à polícia política pela sigla PIDE, uma vez que se referem à mesma instituição, que funcionou até 1974. . Seus escombros seguem evocando rastros de dor e de violência. Enquanto ex-prisioneiros políticos narram os suplícios ali vivenciados (Mateus, 2012MATEUS, Dalila. 2012. Memórias do Colonialismo e da Guerra. Lisboa, Edições ASA.), alguns amigos, jovens de vinte e poucos anos, contavam que a casa era assombrada- ainda que não soubessem me explicar quem assombrava o edifício e porquê. De qualquer maneira, alguma memória se mantém conservada no imaginário da cidade sobre aquele local, mesmo que difusa, sem os nomes dos mortos, apenas com os ecos de suas vozes.

Figura 5
Vila Algarve. Moisés Mucelo, Maputo, 2017.

Figura 6
Vila Algarve. Bruna Triana, Maputo, 2017TRIANA, Bruna. 2017. Arquivos E Imagens (Pós) Coloniais: Contribuições Analíticas Sobre Duas Coleções Fotográficas. GIS - Gesto, Imagem e Som, v. 2, n. 1: 37-60. https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2017.129127.
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.

Essas ruínas constituem “ausências presentes” que persistem, no centro da cidade, como rastros de uma Lourenço Marques do passado colonial que eu visitava em fotografias e documentos do arquivo institucional. O olhar duplicado, entre arquivo e cidade, me permitiu colher pistas, seguir rastros em meio a ruínas e perceber em ambos as presenças, tangíveis ou não, que conformam uma cidade outra, virtual - embaralhada entre passado e presente.

CIDADES E ARQUIVOS EM DISPUTA: A DECADÊNCIA COMO PRÁTICA

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro.

Walter Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. 1987. Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense.: 73.

A comparação entre cidade e arquivo, a princípio, poderia dificultar a reflexão sobre as transformações urbanas - afinal, uma cidade “obrigada a permanecer imóvel e imutável”, como Zora, “definhou, desfez-se e sumiu” (Calvino, 1990CALVINO, Ítalo. 1990. As cidades invisíveis. São Paulo, Cia das Letras.: 20). Porém, os arquivos também mudam, assim como as cidades, não apenas em decorrência de transições institucionais e políticas, de alterações em suas lógicas de funcionamento, do acúmulo permanente de materiais, mas, sobretudo, em razão dos usos políticos que são feitos dele. Nesse sentido, é possível pensar que a cidade e o arquivo se deslocam ao longo e através de diferentes contextos. São mudanças e disputas, em ruas e estantes, que conferem outra forma e outro contorno a novos e velhos locais, a atas e documentos, a memórias e imaginários.

Diante das mudanças e das disputas em torno do arquivo e da cidade, uma questão se colocava: o que fazer com o passado dos vencedores- do pretérito, mas também do presente? O que fazer com essas ruínas, com esse legado insistente? Como e para que guardá-lo?

Durante meu trabalho de pesquisa com as fotografias de Ricardo Rangel, os processos de decupagem, de associação entre imagens do passado e permanências no presente, bem como as conversas e histórias que ouvi foram construindo afinidades e tensões entre as imagens e os documentos arquivados, que, por sua vez, passaram a problematizar a cidade e sua memória (oficializada, monumentalizada). Assim, no arquivo institucional, nacional e público, passei a refletir sobre a construção da história oficial nesses locais e como eles desempenham um papel de seletividade política. A elaboração de um arquivo é um dos mecanismos privilegiados do poder político para controlar o passado de uma nação, seja gerindo aquilo que será mantido na memória oficial e material, seja determinando quem terá acesso a essa memória arquivada (Harris, 2002HARRIS, Verne. 2002. The Archival Sliver: Power, Memory, and Archives in South Africa. Archival Science, v. 2: 63-86. https://doi.org/10.1007/BF02435631
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; Garramuño, 2011GARRAMUÑO, Florencia. 2011. “Da memória à presença: práticas de arquivo na cultura contemporânea”. In: SOUZA, Eneida Ma. de; MIRANDA, Wander M. (Orgs). Crítica e Coleção. Belo Horizonte, UFMG , pp. 204-217.; Mbembe, 2002MBEMBE, Achille. 2002. “The Power of the Archive and its Limits”. In: HAMILTON, Carolyn (Org.). Refiguring the Archive. Cape Town, Kluwer Academic Publishers, pp.19-26.). Nesse sentido, como são preservados esses restos materiais do passado, quem os preserva e quem, posteriormente, faz com que eles desapareçam constituem aspectos importantes da relação entre poder, autoridade e narrativa da história. Para Achille Mbembe (2002MBEMBE, Achille. 2002. “The Power of the Archive and its Limits”. In: HAMILTON, Carolyn (Org.). Refiguring the Archive. Cape Town, Kluwer Academic Publishers, pp.19-26.), não há Estado sem arquivo, não há poder político sem a institucionalização de certo passado. Por sua vez, a própria existência do arquivo é uma ameaça constante ao Estado.

Maria Paula Meneses (2015MENESES, Maria Paula. 2015. Xiconhoca, o inimigo: Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais , 106: 9-52. https://doi.org/10.4000/rccs.5869
https://doi.org/10.4000/rccs.5869...
), ao refletir sobre o passado moçambicano, afirma que os aspectos do passado que são lembrados e os que são esquecidos ou silenciados refletem agendas políticas do presente. No caso de Moçambique, se há uma “limpeza” nas narrativas oficiais e políticas sobre o colonialismo, ou sobre a guerra de libertação, há, também, como salienta Omar Thomaz (2009THOMAZ, Omar R. 2009. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação - Não vamos esquecer. Via Atlântica, 16: 267-273. https://doi.org/10.11606/va.v0i16.50481
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), outras memórias sendo colocadas em jogo, cotidianamente. De fato, há uma relação de poder entre essas memórias: as primeiras elevadas a nível político, reiteradas e escritas nos círculos oficiais; as segundas circulando entre as pessoas, narradas em conversas e encontros cotidianos, dispersas pela cidade.

Se, por um lado, é possível analisar como a construção do arquivo está conectada com a transmissão de determinadas histórias e a construção de silêncios, de forma inversa, partindo desse mesmo arquivo, é possível chegar à transmissão de histórias outras e refletir em torno das disputas entre memória e esquecimento13 13 A relação e os caminhos cruzados da história, memória e esquecimento, indicadas aqui a partir de algumas provocações, é parte de um vasto campo de estudos. Sobre o assunto, cf., entre outros/as: Assmann (2011), Lambek (1996), Pollak (1992). . É por isso que o trabalho sobre o arquivo ameaça histórias e memórias oficiais (Borges Coelho, 2013aBORGES COELHO, João Paulo. 2013a. Politics and Contemporary History in Mozambique: A Set of Epistemological Notes. Kronos, v. 39, n. 1: 20-31. http://www.scielo.org.za/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0259- 01902013000100002&lng=en&nrm=iso
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; 2015BORGES COELHO, João Paulo. 2015. Abrir a fábula: questões da política do passado em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106: 153-166. https://doi.org/10.4000/rccs.5926
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). Como lembra Florencia Garramuño (2011GARRAMUÑO, Florencia. 2011. “Da memória à presença: práticas de arquivo na cultura contemporânea”. In: SOUZA, Eneida Ma. de; MIRANDA, Wander M. (Orgs). Crítica e Coleção. Belo Horizonte, UFMG , pp. 204-217.), o arquivo pode possibilitar a memória justamente porque pode comprová-la, assim como pode, ao mesmo tempo, atentar contra memórias já instituídas, histórias já contadas; afinal, no fundo de suas estantes e caixas pode morar, esquecido, um documento que contradiga ou acrescente detalhes indesejáveis14 14 É interessante pensar o caso da Polônia, em que o governo ultranacionalista levou à Justiça e condenou historiadores que publicaram artigos sobre a participação de poloneses no Holocausto. Cf: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-02-11/governo-ultranacionalista-da-polonia-aperta-o-cerco-contra-os-historiadores-do-holocausto.html. Acesso em: 12/02/2021. . Nessa relação entre arquivo, Estado e produção de saberes, Okwui Enwezor (2007ENWEZOR, Okwui. 2007. Archive Fever: Uses of the Document in Contemporary Art. Nova York, International Center of Photography.) aponta a utilização do arquivo e dos documentos, segundo prerrogativas oficiais, está ligada ao desejo e princípio fundamental de formação imperial dos arquivos enquanto repositório para aquisição, controle e monopólio de informação.

Nesse sentido, caberia a pesquisadores e ao público em geral fazer do arquivo um espaço de contestação e de crítica permanente, de forma a perceber o que falta e o que sobra dos arquivos; caberia a nós construir uma história e uma memória heterotópica dos processos de conservação e produção de memórias oficiais: uma história tecida a partir dos restos, reescrita a contrapelo. O trabalho em arquivos ecoa a questão colocada por Olívia Maria Gomes da Cunha: até que ponto registros sobre/de outrem, transformados pelos múltiplos regimes e efeitos de verdade próprios dos arquivos, “poderiam ‘fazer sentido’ e incitar novas narrativas, não só sobre o passado convertido em ‘documento’, mas, também, sobre o presente tornado relevante e sujeito a novas leituras e encontros?” (Cunha, 2005CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 2005. Do ponto de vista de quem? Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 36: 7-32. https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2242
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: 17).

Tomemos como exemplo uma imagem da série de fotografias de Rangel que captura derrubada da estátua do colonizador e herói português Mouzinho de Albuquerque, em 1975 [Foto 7].Hoje, no mesmo local, em frente à Câmara Municipal, se encontra a estátua de Samora Machel, primeiro presidente do país após a independência [Foto 8]. Mouzinho e outros despojos coloniais passaram por diversos locais desde a independência e podem ser encontrados, atualmente, tanto sob os muros da Fortaleza da cidade, localizada no fim da Avenida Samora Machel com a Rua Ngungunhane, ou ainda na entrada lateral da Biblioteca Nacional, onde há uma estátua de Oliveira Salazar, virada para a parede - como que de castigo [Foto 9].

Figura 7
O outro destino dos heróis. Ricardo Rangel, Maputo, 1975.

Figura 8
Samora Machel. Bruna Triana, Maputo, 2015.

Figura 9
Salazar de castigo na Biblioteca Nacional. Bruna Triana, Maputo, 2015.

Refletir em torno da foto de Rangel, mas também dos outros despojos coloniais espalhados pela cidade e da estátua de Samora Machel condensa uma grande densidade temporal. Escondidos pelos muros, esses despojos permanecem como rastros, como escombros não reivindicados, mas que estão ali - como ausências presentes. Frantz Fanon (2005FANON, Franz. 2005. Os condenados da terra. Juiz de Fora, UFJF.: 287), em Os Condenados da Terra, atentou para a decadência que o imperialismo e o colonialismo deixaram, tanto nas mentes e nos corpos quanto nas relações sociais, políticas e econômicas - e também nas infraestruturas e paisagens urbanas. A questão que se coloca, então, é sobre quais efeitos que essa decadência provoca no presente, em como essas ruínas e rastros perturbam (e criam) histórias.

Mas como refletir sobre as ruínas do passado colonial nas relações sociais contemporâneas de Maputo? Ao conversar com diversas pessoas, passei a notar que esses vestígios estavam presentes, por exemplo, nos discursos difusos que ouvia sobre “os velhos tempos”, em que “a cidade era muito mais bonita” (uma retórica nostálgica e branca que omite a exploração, o racismo e a divisão racial do trabalho que existia sob o domínio português), nas relações de trabalho (entre patrões e empregadas, que conservam traços servis e lembram, em parte, essas mesmas relações no Brasil), na presença da religião (antes, católica, e hoje, sobretudo, neopentecostal - muitas de igrejas de proveniência brasileira)15 15 Sobre a persistência das “ruínas imateriais”, cf.: Castel-Branco (2013), Feijó (2017), Ribeiro (2012), Thomaz (2006, 2009). .

A relação entre o passado colonial e o presente das relações políticas, econômicas e sociais é complexo, porquanto não há ligações ou conexões fáceis e diretas. Conforme aponta Omar Ribeiro Thomaz (2009THOMAZ, Omar R. 2009. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação - Não vamos esquecer. Via Atlântica, 16: 267-273. https://doi.org/10.11606/va.v0i16.50481
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: 268-270):

No “mato”, mas também longe dele, no “caniço” ou no “cimento”, são cotidianas as histórias sobre o “tempo colonial”. Trata-se de um longo período, entrecortado por matizes de toda a ordem. [...] De um pré-colonial que se adivinha aqui e ali e se anuncia numa possível interpretação da guerra civil recente; de um colonial que se respira na divisão urbana da cidade capital, nas relações entre patrões e empregados nos dias atuais, nos comportamentos assumidos por brancos que chegam em Moçambique ou retornam a este país, e por negros que ascenderam; de um pós-colonial que se prometeu e se promete nas histórias dos heróis.

Ora, a convivência dos resquícios coloniais com os resquícios do tempo revolucionário (somados aos da guerra civil) encontra-se tanto nos arquivos quanto nas ruas e nos prédios, provocando choques e ambiguidades. Os rastros do passado se fazem presentes em diversos aspectos da vida social moçambicana, nas construções prediais e nas interações, nos discursos, nas moralidades, nos imaginários; estão na imbricação e na movimentação temporal que permeia o arquivo, os discursos, as fotografias e as ruas. Mexer com o arquivo é, em alguma medida, mexer com o tempo, ou com as temporalidades que esses rastros e ruínas movimentam.

Isso me levou a uma terceira imagem conceitual ao refletir sobre os arquivos institucionais e urbanos de Maputo: a “decadência”. A situação e o estado de conservação e organização dos arquivos, bem como a ruína do Prédio Pott e da Vila Algarve, fazem pensar em como sinais de decadência mobilizam discursos muitas vezes morais sobre o que e como devem ser preservadas certos materiais, sobretudo do passado colonial. Liam Buckley (2005BUCKLEY, Liam. 2005. Objects of Love and Decay: Colonial Photographs in a Postcolonial Archive. Cultural Anthropology, v. 20, n. 2: 249-270. https:// doi.org/10.1525/can.2005.20.2.249
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: 250), discutindo a decadência do arquivo colonial, associa o discurso acadêmico sobre preservação com um ideal desenvolvimentista próprio do Norte Global, em que alcançar os padrões normativos de arquivamento e manutenção seria sinal do desenvolvimento do Estado pós-colonial, desde a sua história e de sua experiência colonial: “a decadência [do arquivo pós-colonial] causa controvérsia porque ela nos lembra de nossos sentimentos e de nossa intimidade com a cultura colonial, e demanda que imaginemos maneiras de, finalmente, nos livrarmos dela” .

Nessa medida, a decadência colonial e suas ruínas, nos arquivos e nas cidades, inspiram “o exercício pós-colonial de desmantelar maneiras coloniais de conhecer o mundo” (Buckley 2005BUCKLEY, Liam. 2005. Objects of Love and Decay: Colonial Photographs in a Postcolonial Archive. Cultural Anthropology, v. 20, n. 2: 249-270. https:// doi.org/10.1525/can.2005.20.2.249
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: 257). Um dos muitos pontos a serem pensados com essa frase é em relação a nossas próprias colonialidades epistemológicas, isso é, aos nossos pressupostos de pesquisa e aos nossos apegos a tais ruínas, ainda que estejamos conscientes de nossas posições e dispostos a ler o arquivo a contrapelo. Nos discursos de preservação, desenvolvimento e modernização que acabam abarcando esses locais, está presente nosso desejo de manutenção desses rastros. Tais discursos são, inclusive, mobilizados pelas próprias instituições, por diretores e funcionários, e até mesmo pelo Estado, que juntos buscam explicações para a decadência dos seus arquivos.

A decadência é uma imagem que nos provoca epistemologicamente. Ela nos faz pensar, por exemplo, sobre como a narrativa da libertação não se consolidou de fato em Moçambique, ou como categoriais coloniais continuam a operar e moldar relações sociais contemporâneas no país; ou, ainda, como o direito e a autoridade de salvaguardar tais materiais (ou de desapropriar locais para construir grandes obras, como a ponte Maputo-Katembe) envolve o direito de controlar seu desaparecimento. A decadência emerge, então, não como imagem exclusiva de estados africanos “pós-coloniais”, ou um sinal estereotipado de negligência e ineficiência desses mesmos estados; mas como um atributo fundamental para a própria atividade de arquivamento, uma característica da transformação de antigas colônias em nações modernas e pós-coloniais (Buckley, 2005BUCKLEY, Liam. 2005. Objects of Love and Decay: Colonial Photographs in a Postcolonial Archive. Cultural Anthropology, v. 20, n. 2: 249-270. https:// doi.org/10.1525/can.2005.20.2.249
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).

O arquivo colonial era um repositório do império, fonte de informação e conhecimento da metrópole. Por isso, os movimentos nacionalistas tiveram que lutar, também, para narrar histórias alternativas, tanto com os documentos coloniais quanto a partir de novas fontes de saberes sobre o próprio passado. Buscar novas formas de imaginação histórica é uma tentativa de enfrentar as ruínas, de olhar para os processos de recomposição e decadência que, nesse caso, permeiam o Estado pós-colonial, as relações sociais, as histórias oficiais, o arquivo, a cidade e suas ruas. Verne Harris(2002HARRIS, Verne. 2002. The Archival Sliver: Power, Memory, and Archives in South Africa. Archival Science, v. 2: 63-86. https://doi.org/10.1007/BF02435631
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) e Olívia Maria Gomes da Cunha (2004CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 2004. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo. MANA, v. 10, n. 2: 287-322. https://doi. org/10.1590/S0104-93132004000200003
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) argumentam, nesse sentido, que os arquivos pós-coloniais são territórios nos quais a história não é apenas desvendada, mas onde ela é contestada, negociada, ressignificada, uma vez que os arquivos constituem, eles próprios, espaços nos quais outras historicidades são silenciadas.

Cada vez que tentamos construir uma interpretação histórica [...] devemos ter cuidado de não identificar o arquivo do qual dispomos, por muito proliferante que seja, com os feitos e gestos de um mundo do qual não nos entrega mais que alguns vestígios. O próprio do arquivo é a lacuna, sua natureza é lacunar. Mas, frequentemente, as lacunas são resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé.

O arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu, onde temos a experiência [...] de uma barbárie documentada em cada documento da cultura (Didi-Huberman, 2012DIDI-HUBERMAN, George. 2012. Quando as imagens tocam o real. Pós, v. 2, n. 4: 206-219. https://periodicos.ufmg.br/index. php/revistapos/article/view/15454
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: 210-211).

Tomemos dois exemplos dessas disputas. Depois da independência moçambicana, as fotos do tempo colonial, que outrora tinham sido censuradas, vieram à tona e foram finalmente publicadas pelos meios de comunicação do país, como a fotografia de Rangel do prédio da Repartição dos Serviços Cartográficos e Cadastrais [Foto 10]. Já na cidade, a separação caniço/cimento foi enfrentada pelo regime socialista com a nacionalização das habitações, em 197616 16 Seguindo a política de nacionalização de outras áreas, como Saúde e Educação, em 1976, o Governo revolucionário da FRELIMO promoveu um decreto de estatização das habitações de rendimento (aluguel) e dos imóveis abandonados, uma tentativa de aumentar o acesso da população negra e pobre à cidade que, no período colonial, lhes havia sido negada, bem como de “eliminar a especulação no mercado imobiliário e controlar a ocupação das habitações abandonadas pelos portugueses” (Baia, 2009: 38). . Tanto na cidade quanto no arquivo, esses exemplos constituem eventos que sugerem histórias sobre uma sociedade outra que se desejava construir a partir da memória de seu próprio passado e da transformação das condições do presente.

Figura 10
“Onde o negro só podia ser servente e só o branco era homem”. Repartição dos Serviços Cartográficos e Cadastrais de Lourenço Marques (nos anos 1960). O racismo se conjugava de diversas maneiras. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), anos 1960.

Explorar o arquivo e seus rastros na cidade tem como foco não os restos por si mesmos, isoladamente examinados, mas suas reconfigurações, suas presenças e co-presenças como ruínas do presente. Escavar o arquivo e a cidade, buscar contra leituras por detrás do que já foi oficializado e é sempre reiterado, perceber essas memórias outras junto à memória instituída, são tentativas de escavar esse passado não em razão de uma nostalgia difusa (branca, colonial, equívoca), mas para atualizá-lo e dar sentido às lutas de hoje (CEA, 1983CEA. 1983. Boletim Não Vamos Esquecer. Centro de Estudos Africanos/UEM, 2/3.).

Isso nos leva a inquirir quais políticas de Estado existem na decadência, e, a partir disso, explorar essas políticas como parte da prática arquivística e de produção dos espaços de memória. Isso não significa eximir o Estado de crítica quanto a manipulações e controles do arquivo, tampouco de suas tentativas de silenciamento em relação a elementos subversivos da memória - ou de sua responsabilidade em relação ao direito à cidade (Mbembe, 2002MBEMBE, Achille. 2002. “The Power of the Archive and its Limits”. In: HAMILTON, Carolyn (Org.). Refiguring the Archive. Cape Town, Kluwer Academic Publishers, pp.19-26.).

Ricardo Rangel capturou a derrubada de Mouzinho, mas também capturou os restos de estátuas jogados em um terreno aparentemente baldio, visitados por uma família que encarava aquelas estátuas atoladas e abandonadas com atenção e curiosidade [Foto 11]. A família não seria ela própria um rastro colonial? As mulheres da fotografia certamente viveram, pelo menos, os anos finais do colonialismo, e deviam ser jovens no ano da independência. Sofreram, portanto, o racismo, a violência e a exploração do colonialismo. Porém, é preciso lembrar que a revolução não cumpriu as suas promessas. E como poderia, sendo atacada por todos os lados, pelos colonos que saíam do país, pelos países vizinhos (como África do Sul e a antiga Rodésia), pelo contexto da Guerra Fria (Bragança & Depelchin, 1986BRAGANÇA, Aquino de; DEPELCHIN, Jacques. 1986. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6: 29-52.; Cabaço, 2009CABAÇO, José L. 2009. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo, Unesp.; Cahen, 2002CAHEN, Michel. 2002. Les bandits: un historien au Mozambique. Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian.)? Por outro lado, essas promessas se mostraram paradoxais: o fim da exploração do trabalho, uma economia baseada na distribuição equânime das riquezas e educação igualitária; mas, também, o fim da “tribo” (todos são moçambicanos, e não macondes, macuas, chopes, shanganas, rongas, etc.), das religiões e medicinas tradicionais (taxadas como “obscurantismos”), o controle dos corpos e desejos, o trabalho como elemento moralizante17 17 Sobre a moralidade do trabalho e a moralidade sexual no período revolucionário, cf.: Machava (2018). . Em nome do “socialismo”, da construção do “homem novo”, muita coisa foi desprezada, sufocada e silenciada.

Figura 11
Estátuas Coloniais. Ricardo Rangel, Maputo, 1981.

Poderíamos remontar a uma conhecida equação de Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. 1994. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense.: 225), para quem “nunca houve um documento de cultura que não fosse também um documento de barbárie”. Articulam-se, aqui, olhares, fotografias, arquivos, cidades (do passado e do presente, da colônia e da metrópole). Em um momento pós-colonial, a questão que fica é: como elaborar um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, mais um documento de barbárie?

João Paulo Borges Coelho (2007BORGES COELHO, João Paulo. 2007. Memória das Guerras Moçambicanas. Conferência, Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia, 5 de Julho de 2007.) afirma que a memória da guerra de independência em Moçambique - assim como a memória da guerra civil que se seguiu - foi feita de silenciamentos e esquecimentos seletivos - forçados ou implícitos, sempre segundo as circunstâncias políticas. Anne-Christine Taylor (1997TAYLOR, Anne-Christine. 1997. L’oubli des morts et la mémoire des meurtres. Expériences de l’histoire chez les Jivaro. Terrain, 29. https://doi.org/10.4000/terrain.3234
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: s.p.), por sua vez, reflete sobre a “memória histórica seletiva por definição”, o que nos leva a examinar, para além do que se construiu como memória política, os “lugares do esquecimento e [as] maneiras pelas quais ele é posto em operação ou, dito de outro modo, a análise das práticas e das representações submetidas ao esquecimento, e aquela das técnicas de não-transmissão ou de apagamento da memória desenvolvidas com esse fim”. Em um país cujos conflitos políticos nunca cessaram de fato, as manifestações da memória despontam, muitas vezes, como vestígios frágeis por entre as ruas e os documentos, mas que devem ser seguidos e retomados a todo instante. Seja no arquivo ou na cidade, histórias são omitidas para darem lugar a narrativas legitimadas, simples porque oficiais, que não provocam questionamentos. Percorrer estantes e ruas, buscar restos do passado esquecidos em caixas, questionar as ruínas dos prédios e aquelas que perduram nas relações sociais cotidianas, são formas que encontrei, ao longo de minha pesquisa, de construir versões outras de histórias moçambicanas, onde mortos e lembranças pudessem habitar, mas consciente de que “os vestígios com os quais trabalho, para além de não serem uniformemente repartidos, não foram inocentemente preservados e/ou esquecidos” (Cruz e Silva, 2015CRUZ e SILVA, Teresa. 2015. Memória, história e narrativa: Os desafios da escrita biográfica no contexto da luta nacionalista em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais , 106: 133-152. https://doi.org/10.4000/rccs.5916
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: 144).

E, aqui, gostaria de fazer menção às fotografias de Rangel, de 1974, que contam do intempestivo que se aproximava naquele momento: a independência era evento iminente. Em uma caixa grande de madeira, rabiscado à mão, lê-se: “Não leves mais, já chega o que roubaste” [Foto 12]. No porto, caixas se amontam com nomes pintados à mão [Foto 13]. Em outra foto, os logradouros reescritos: “Rua dos vários fugitivos” ou “Rua dos desertores” [Foto 14]. Não há indicação de quais ruas eram aquelas e a revolução apagou nomes como aqueles, espontâneos, juntamente com os logradouros coloniais, para inscrever na cidade os novos heróis da nação.

Figura 12
Não leves mais. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), 1974.

Figura 13
Porto de Lourenço Marques. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), 1974.

Figura 14
Rua dos desertores. Ricardo Rangel, Lourenço Marques (Maputo), 1974.

As caixas de pertences dos “retornados”, amontoadas nos portos de Lourenço Marques, chegariam a Lisboa, e são contrapostas com o “Padrão dos Descobrimentos”, no bairro de Belém, um monumento dedicado às “grandes navegações” e às “descobertas” portuguesas, erguido em 1940 - ano da Exposição do Mundo Português [Foto 15]. Nesse monumento, às margens do Rio Tejo, em uma caravela, apertam-se as estátuas das figuras “heroicas” portuguesas que se empenharam e participaram, de alguma forma, na construção desse “passado glorioso” - colonial- de Portugal, que, como celebra o hino do país até os dias de hoje, “deu novos mundos ao Mundo”. É significativo ver as caixas dos retornados das colônias ali amontoadas, justamente nessa paisagem que comemora os impérios e as glórias passadas. Enquanto isso, os muros de Maputo- não mais Lourenço Marques - exclamariam: “Viva Marx e Engels”. Outra história começava a ser escrita nas ruas, nos monumentos e nos arquivos da cidade de Maputo- ao passo que Lisboa teria que lidar com esse passado-presente retornado.

Figura 15
Messy Colonialism; Wild Decolonization. Ângela Ferreira, instalação “A Story Within a Story”, Gotemburgo/2015.

Contudo, “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó.). Seja em Moçambique ou em Portugal, esse passado inevitavelmente retorna, ainda que oficialmente esse retorno do passado tenda a ser ignorado, silenciado ou apagado. Os rastros, as ruínas e a decadência, para além de imagens conceituais, rondam arquivos e cidades(pós) coloniais, perpassando tempos e conflitos, presentes em estantes, caixas e documentos, nos muros, logradouros e monumentos urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu creio que a memória tem força de gravidade, sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente. Os que não têm, não vivem em nenhuma parte.

Patrício Guzmán, Nostalgía de la luz, 2010.

Meu argumento neste texto é que se, por um lado, entrar em um arquivo é como entrar em uma cidade, por outro, a própria cidade pode ser pensada enquanto arquivo. Com essa ideia, foi possível retomar a imagem conceitual do rastro, que evidencia uma tensão entre presença e ausência, entre memória e esquecimento. Não se trata de dois lados opostos e excludentes, mas correlacionados, que se manifestam mediante uma tensão dialética. Afinal, o que lembramos e o que silenciamos do passado? O que mantemos e o que destruímos nos arquivos e nas cidades? Prédios, monumentos, ruas, papeis: guardar ou destruir documentos, alterar logradouros, substituir estátuas faz parte de um projeto de inscrição (e oficialização) da memória na cidade e nos arquivos, e isso compõe um projeto político levado a cabo por diferentes instâncias e instituições. Esse projeto diz respeito tanto ao registro quanto à disputa por narrativas. A cidade não é neutra; a cidade é um arquivo, e seu “museu é a rua” - como dizia uma frase pixada em um muro de Salvador, na Bahia.

Podemos pensar, de um lado, nas ruínas da Vila Algarve, cuja memória de terror e dos mortos que pereceram ali é um eco que assombra vizinhos e transeuntes. De outro lado, podemos pensar na estátua gigantesca de Samora que foi colocada no local emblemático da antiga estátua do colonizador Mouzinho de Albuquerque - relegado aos muros da Fortaleza. Prédios abandonados e estátuas que vão e voltam, que são derrubadas, esquecidas, e que, depois, retornam à cidade, às escondidas e sem alarde, mas que dão tanto a pensar porque condensam tempos e histórias. As inscrições na cidade que poderíamos tomar como arquivísticas seguem diversos caminhos. A mudança dos nomes das ruas, as ruínas dos prédios, os restos de casas: cada cidade dá uma forma ao seu arquivo, e cada arquivo sintetiza o que foi, o que é e o que potencialmente pode ser uma cidade.

O arquivo é uma cidade - e a cidade é, afinal, “a realização do antigo sonho humano do labirinto”, nos lembra Walter Benjamin (2000BENJAMIN, Walter. 2000. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense .: 203). Seus labirintos de estantes, tal como as ruas que se entrecruzam, suas caixas e pastas, como casas e edifícios, convidam-nos a entrar e se perder. Em ambos, há interstícios, margens, entrelugares, brechas e becos sem saída. Nesses meandros, afloram tensões não resolvidas, que por sua vez conformam alegorias que carregam múltiplas possibilidades de sentidos. Como um labirinto, o arquivo, depois que adentramos o seu espaço, não tem começo nem fim; e talvez o que busquemos nele seja algo parecido com aquilo que costumamos procurar em uma cidade: “não suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que ela dá às nossas perguntas” (Calvino, 1990CALVINO, Ítalo. 1990. As cidades invisíveis. São Paulo, Cia das Letras.: 44).

Seguir trilhas, juntar novamente restos e sobras, remontando o remanescente, é estar implicado num ritual que resulta na ressurreição da vida, em trazer os mortos de volta à vida e reintegrá-los no ciclo do tempo de maneira que eles encontrem, num texto, num artefato ou num monumento, um lugar para habitar, onde possam continuar se expressando (Mbembe, 2002MBEMBE, Achille. 2002. “The Power of the Archive and its Limits”. In: HAMILTON, Carolyn (Org.). Refiguring the Archive. Cape Town, Kluwer Academic Publishers, pp.19-26.: 25).

Por isso, arquivo é também alegoria. Marcado pela fragmentação, pelas lacunas, ele não permite uma análise de sua totalidade - sempre impossível e enganosa. Sem pretensão de verdade ou totalização, “o objeto atingido pela intenção alegórica é segregado das correlações da vida: ele é, ao mesmo tempo, quebrado em pedaços e conservado. A alegoria agarra-se às ruínas” (Benjamin, 2009BENJAMIN, Walter. 2009. Passagens. Belo Horizonte, UFMG.: 374). A alegoria benjaminiana, como postura epistemológica e crítica, nos ajuda a rejeitar toda totalidade e equilíbrio enquanto pretensão metodológica no trabalho de campo em arquivos. Pensar o arquivo como alegoria permite ver nele o germe de destruição de toda e qualquer fachada narrativa que busca legitimidade mediante uma totalidade harmoniosa: “a alegoria, precisamente em seu furor destrutivo, visa a aniquilação da aparência baseada na ‘ordem estabelecida’ seja da arte, seja da vida - a aparência de uma totalidade ou de um mundo orgânico que transfigura essa ordem, para torna-la suportável” (Benjamin, 2009BENJAMIN, Walter. 2009. Passagens. Belo Horizonte, UFMG.: 377).

Para finalizar, podemos refletir sobre quais passados são selecionados para seguir habitando e transformando a cidade; quais passados estão inscritos nas ruas; e quais passados apagamos e demolimos - da paisagem urbana, mas também dos arquivos. Quais passados não somos capazes de queimar e, então, escondemos nos calabouços da cidade, dentro dos muros dos arquivos ou das fortalezas? Quais passados nos restam? Não quero aludir, aqui, a um simples dever de memória, tal qual uma obrigação ética. Interessa perceber como o passado molda o presente em que vivemos: a cidade, as relações, as práticas, as instituições. Não se trata tampouco de entender “o passado tal como ele de fato ocorreu”, pois isso sugeriria uma totalidade ilusória. Assim como o próprio arquivo, “a história é uma série de fabulações sem as quais não podemos passar. É uma prática inventiva, mas não serve a qualquer invenção. Pois é o futuro, e não o passado, que está em jogo na disputa sobre quais memórias sobreviverão” (McClintock, 2010McCLINTOCK, Anne. 2010. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Ed. da Unicamp .: 477).

Ao refletir em torno das ruínas da cidade, de suas ruas e de seus caminhos, bem como dos trajetos descobertos e trilhados nos restos e nos rastros arquivos, em seus movimentos e ritmos, ficam esses questionamentos sobre o futuro - do arquivo e da cidade. Mais que isso, a partir desse itinerário de mão-dupla pelo labirinto do arquivo e da cidade, outras histórias e memórias podem despertar e colocar em xeque histórias já sedimentadas sobre o passado, tanto sobre o colonialismo português em Moçambique, quanto sobre o processo de descolonização e a situação pós-colonial, questionando presentes e presenças, a fim de que as memórias, os arquivos e as ruas da cidade sejam disputadas e transformadas continuamente.

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  • TRIANA, Bruna. 2017. Arquivos E Imagens (Pós) Coloniais: Contribuições Analíticas Sobre Duas Coleções Fotográficas. GIS - Gesto, Imagem e Som, v. 2, n. 1: 37-60. https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2017.129127
    » https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2017.129127
  • TRIANA, Bruna. 2020. Ensaios em preto e branco: arquivo, memória e cidade nas fotografias de Ricardo Rangel São Paulo, Tese de doutorado, FFLCH/USP.
  • 1
    Este ensaio é baseado em um dos capítulos de minha tese de doutorado, realizada com auxílio da FAPESP (processo 2014/25152-0). Agradeço aos/às pareceristas anônimos/as pelos comentários e sugestões.
  • 2
    Vale atentar, contudo, que arquivo não é sinônimo de memória, ainda que possamos fazer uma relação entre história (política, coletiva, institucional, oficial) e arquivos (institucionais, pessoais, comerciais, urbanos).
  • 3
    Assim, como aponta Borges Coelho (2009BORGES COELHO, João Paulo. 2009. Crónica da rua 513.2. Maputo, Ndjira.), é necessário notar a quase ausência de mulheres nomeadas nos logradouros da cidade, sejam elas heroínas da luta de libertação ou teóricas e líderes revolucionárias do mundo. Essa discrepância e desigualdade não é exceção de Maputo. Em São Paulo, por exemplo, o projeto São Paulas, de 2016, pesquisou e procurou refletir sobre os “nada banais nomes das ruas. De acordo com a pesquisa, cerca de 5.000 logradouros da cidade têm nomes de mulheres. De um total de quase 70 mil logradouros, quase 27.500 têm nomes de homens. [...] O título mais comum para nomes femininos é ‘santa’, enquanto que para masculinos é ‘doutor’. Se avenidas ou se ruelas também é um fator determinante do gênero dos topônimos” (Marquez, 2017MARQUEZ, Renata. 2017. Davi no museu. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, 11. https:// piseagrama.org/davi-no-museu/.
    https:// piseagrama.org/davi-no-museu/...
    ).
  • 4
    No tempo colonial, Lourenço Marques era dividida entre a “cidade de cimento”, central, asfaltada, branca, e a “cidade de caniço”, periférica, precária, negra e mista. Tal divisão era marcada pela Estrada da Circunvalação (também conhecida como Avenida Caldas Xavier e, de 1976 até os dias de hoje, Avenida Marien Ngouabi). Hoje, Maputo incorporou muitos dos então bairros de caniço, e o centro da cidade se expandiu para além da antiga Estrada da Circunvalação. Sobre essa urbanização dual e sua atualidade, cf.: Baia (2009BAIA, Alexandre H. 2009. Os conteúdos da urbanização em Moçambique: considerações a partir da expansão da cidade de Nampula. São Paulo, Tese de Doutorado, FFLCH/USP.) e Maloa (2016MALOA, Joaquim. 2016. A urbanização moçambicana: uma proposta de interpretação. São Paulo, Tese de doutorado, FFLCH/USP.).
  • 5
    A construção da ponte exigiu a desapropriação e reassentamento da população de bairros como Malanga e Luís Cabral. O processo envolveu várias disputas e controvérsias entre a população e a empresa construtora, especialmente em relação a informação, indenizações e locais de reassentamento. Cf.: CTV (2016CTV. 2016. Análise jurídica do processo de reassentamento - Ponte Maputo Katembe. Maputo: Centro Terra Viva - Estudos e Advocacia Ambiental.).
  • 6
    Ricardo Rangel foi um fotógrafo moçambicano, considerado o “pai do fotojornalismo” do país. Seu trabalho é inovador, principalmente em razão de sua postura e de sua prática na abordagem do universo colonial. Em minha tese (Triana, 2020TRIANA, Bruna. 2017. Arquivos E Imagens (Pós) Coloniais: Contribuições Analíticas Sobre Duas Coleções Fotográficas. GIS - Gesto, Imagem e Som, v. 2, n. 1: 37-60. https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2017.129127.
    https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123....
    ), além do arquivo e das fotografias, analiso a trajetória de Rangel, seu campo de atuação artística e política, o contexto de produção de suas imagens e seus engajamentos socioculturais como aspectos que formaram e informaram o seu olhar.
  • 7
    Sobre a produção, as falhas e disputas dos arquivos, especialmente (pós)coloniais, cf.: Buckley (2005BUCKLEY, Liam. 2005. Objects of Love and Decay: Colonial Photographs in a Postcolonial Archive. Cultural Anthropology, v. 20, n. 2: 249-270. https:// doi.org/10.1525/can.2005.20.2.249
    https:// doi.org/10.1525/can.2005.20.2.2...
    ), Cunha (2021CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 2021. Are the things really burnt? HAU, v. 11, n. 1: 291-298. https://doi.org/10.1086/713900
    https://doi.org/10.1086/713900...
    ), Harris (2002HARRIS, Verne. 2002. The Archival Sliver: Power, Memory, and Archives in South Africa. Archival Science, v. 2: 63-86. https://doi.org/10.1007/BF02435631
    https://doi.org/10.1007/BF02435631...
    ), Stoler (2002STOLER, Ann Laura. 2002. Colonial archives and the arts of governance. Archival Science , 2: 87-109. https://doi.org/10.1007/BF02435632
    https://doi.org/10.1007/BF02435632...
    ),Triana (2017TRIANA, Bruna. 2017. Arquivos E Imagens (Pós) Coloniais: Contribuições Analíticas Sobre Duas Coleções Fotográficas. GIS - Gesto, Imagem e Som, v. 2, n. 1: 37-60. https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2017.129127.
    https://doi.org/10.11606/issn.2525-3123....
    ), entre outros.
  • 8
    Na tese, busco descrever e analisar tanto as trajetórias e contextos histórico-políticos dos arquivos moçambicanos, quanto os métodos, as táticas de investigação e a experiência material do trabalho de campo em arquivos (Triana, 2020TRIANA, Bruna. 2020. Ensaios em preto e branco: arquivo, memória e cidade nas fotografias de Ricardo Rangel. São Paulo, Tese de doutorado, FFLCH/USP.).
  • 9
    “Escândalo na Coop”. Revista Tempo, n. 17, 10 de janeiro de 1971. Coleção Tempo, AHM.
  • 10
    Erguido em 1905, a construção pertencia ao holandês Gerard Pott, pai de Karel Pott (1904-1953), advogado que teve um importante papel na vida pública de Lourenço Marques. Karel Pott trabalhou com João e José Albasini, fundadores da associação Grêmio Africano e os importantes jornais O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974). O prédio abrigava lojas de comércio e o escritório de Karel, até a sua morte, em 1953.
  • 11
    A utilização do termo “ocidental” remete a instituições internacionais específicas de regulamentação, padronização e legitimação de arquivos, como o ICA (International Concil on Archives), instituição baseada na França, responsável por desenvolver parâmetros, regulamentações e projetos para a constituição e preservação de documentos em arquivos, com filiais globais regionais. A adequação dos arquivos nacionais aos padrões da ICA pode assegurar verbas e financiamentos. Paralelamente, podemos pensar no termo “ocidental” para referir às ideias da constituição e institucionalização do conhecimento científico de uma parte do mundo, o chamado Norte Global por alguns autores, e a consequente desconsideração de outras formas de saberes, tidas como inferiores ou menores. Para tanto, cf.: Carneiro (2005CARNEIRO, Sueli. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do Ser. São Paulo, Tese de Doutorado, FE/USP.), Mignolo (2006MIGNOLO, Walter. 2006. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo, Cortez, pp. 667-707.) e Said (1989SAID, Edward. 1989. Representing the Colonized: Anthropology’s Interlocutors. Critical Inquiry, v. 15, n. 2: 205-225. https://www.jstor.org/stable/1343582
    https://www.jstor.org/stable/1343582...
    ).
  • 12
    Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), polícia política e principal órgão repressivo do regime autoritário e colonial, tanto em Portugal quanto nas colônias - onde passou a atuar oficialmente a partir de 1954. Em 1969, passou a se chamar Direção Geral de Segurança (DGS). No entanto, a alteração não implicou uma mudança nas funções e estratégias de repressão. Apesar da alteração, as pessoas seguiram se referindo à polícia política pela sigla PIDE, uma vez que se referem à mesma instituição, que funcionou até 1974.
  • 13
    A relação e os caminhos cruzados da história, memória e esquecimento, indicadas aqui a partir de algumas provocações, é parte de um vasto campo de estudos. Sobre o assunto, cf., entre outros/as: Assmann (2011ASSMANN, Aleida. 2011. Espaços da Recordação. Campinas, Ed. da Unicamp.), Lambek (1996LAMBEK, Michael. 1996. “The Past Imperfect: Remembering as Moral Practice”. In: ANTZE, P.; LAMBEK, M. (Eds.). Tense Past: Cultural Essays in Trauma and Memory. Routledge, London, pp. 235-254.), Pollak (1992POLLAK, Michael. 1992. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos , 5 (10): 200-215. https://bibliotecadigital.fgv.br/ ojs/index.php/reh/article/view/1941
    https://bibliotecadigital.fgv.br/ ojs/in...
    ).
  • 14
    É interessante pensar o caso da Polônia, em que o governo ultranacionalista levou à Justiça e condenou historiadores que publicaram artigos sobre a participação de poloneses no Holocausto. Cf: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-02-11/governo-ultranacionalista-da-polonia-aperta-o-cerco-contra-os-historiadores-do-holocausto.html. Acesso em: 12/02/2021.
  • 15
    Sobre a persistência das “ruínas imateriais”, cf.: Castel-Branco (2013CASTEL BRANCO, Ruth K. 2013. “A formalização do trabalho doméstico na cidade de Maputo: desafios para o estado e organizações laborais”. In: BRITO, Luís de; CASTEL BRANCO, Carlos N.; CHICHAVA, Sérgio; FRANCISCO, António (Orgs.). Desafios para Moçambique. Maputo, IESE, pp. 307-330.), Feijó (2017FEIJÓ, João. 2017. “Mudam-se os tempos, mudam-se os modos de pensar? (Des) continuidades nas reflexões sobre o trabalho em Moçambique”. In: ALI, Rosimina; CASTEL BRANCO, Carlos N.; MUIANGA, Carlos (Orgs.). Emprego e transformação económica e social em Moçambique. Maputo, IESE , pp. 327-353.), Ribeiro (2012RIBEIRO, Gabriel M. 2012. “É Pena Seres Mulato!”: Ensaio sobre relações raciais. Cadernos de Estudos Africanos, 23: 22-51. https://revistas.rcaap.pt/cea/article/view/8037
    https://revistas.rcaap.pt/cea/article/vi...
    ), Thomaz (2006THOMAZ, Omar R. 2006. “Raça”, nação e status: histórias de guerra e “relações raciais” em Moçambique. Revista USP, 68: 252-268. https://doi.org/10.11606/ issn.2316-9036.v0i68p252-268.
    https://doi.org/10.11606/ issn.2316-9036...
    , 2009THOMAZ, Omar R. 2009. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação - Não vamos esquecer. Via Atlântica, 16: 267-273. https://doi.org/10.11606/va.v0i16.50481
    https://doi.org/10.11606/va.v0i16.50481...
    ).
  • 16
    Seguindo a política de nacionalização de outras áreas, como Saúde e Educação, em 1976, o Governo revolucionário da FRELIMO promoveu um decreto de estatização das habitações de rendimento (aluguel) e dos imóveis abandonados, uma tentativa de aumentar o acesso da população negra e pobre à cidade que, no período colonial, lhes havia sido negada, bem como de “eliminar a especulação no mercado imobiliário e controlar a ocupação das habitações abandonadas pelos portugueses” (Baia, 2009BAIA, Alexandre H. 2009. Os conteúdos da urbanização em Moçambique: considerações a partir da expansão da cidade de Nampula. São Paulo, Tese de Doutorado, FFLCH/USP.: 38).
  • 17
    Sobre a moralidade do trabalho e a moralidade sexual no período revolucionário, cf.: Machava (2018MACHAVA, Benedito. 2018. The Morality of Revolution: Urban Cleanup Campaigns, Reeducation Camps, and Citizenship in Socialist Mozambique (1974-1988). Ann Arbor, Tese de doutorado, Universidade de Michigan.).
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Este artigo é resultado das reflexões relativas à pesquisa de doutorado financiada com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2014/25152-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2021
  • Aceito
    26 Nov 2021
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