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Rituais da Mística. A mística do MST e as aporias da ação coletiva1 1 Este artigo é uma sequência e dá continuidade a discussão realizada anteriormente (Chaves, 2021). Uma versão embrionária de ambos foi apresentada no simpósio Power, Politics, and Religion in Brazil. Ruptures, Continuities, and Crisis, em 2018, na Universidade de Edimburgo. Agradeço à Maya Mayblin pelo gentil convite que me motivou a dar corpo a este trabalho de sistematização longamente adiado, assim como aos participantes do Simpósio pelo estimulante debate.

RESUMO

Conceito com inequívoca origem religiosa, mística é uma categoria central nas concepções e práticas políticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra/ MST, presente em suas múltiplas esferas de ação e distintas atividades.Considerada“a alma do Movimento”, no presente artigo investigo alguns desdobramentos e implicações do uso dessa categoria religiosa como ferramenta organizativa e de ação política. Para tanto, valho-me de fragmentos etnográficos, temporalmente descontínuos, de cerimônias coletivas sem-terra também nomeadas mística. Os fragmentos selecionados subsidiam a apreciação de diferentes facetas do caleidoscópio de significados, práticas e fenômenos sociais acionados pela mística e continuamente recriados por seus rituais. Minha discussão analítica baliza-se numa interpretação histórico-etnográfica mais geral sobre o MST como fenômeno político e sobre o papel que a criação de eventos, entendidos como rituais, nele desempenha.

PALAVRAS CHAVE:
Mística; política; MST; rituais; ação coletiva

ABSTRACT

Of unequivocally religious origin, Mystique is a key category to the political practices and conceptions of Movement of Landless Rural Workers/MST. Considered “the soul of the Movement”, it can be found in the multiple and diverse activities conducted by the Movement. In this article, I propose to investigate both the unfolding and implications of the use of this religious category as an organizational and a political action tool. For this purpose, I shall take into account some ethnographic fragments, which are discontinuous in time, about landless collective ceremonies that are also called mystique. Those fragments seem to allow the consideration of different facets of a kaleidoscope of meanings, practices and social phenomena that are triggered by mystique itself and are continuously recreated by its rituals. The herein analytical discussion is based on a broader historical-ethnographic interpretation that regards the MST as a political phenomenon, and about the role that the creation of events, understood as rituals, plays in it.

KEYWORDS:
Mystique; politics; MST; rituals; collective action

INTRODUÇÃO

Com cidadelas precárias talhadas em lona preta ou com fervilhantes manifestações tingidas de vermelho por seus indefectíveis bonés e bandeiras, desde meados da década de 1980 os sem-terra povoam a cena pública e o imaginário político brasileiros. Como eles alcançaram tal relevância num país plenamente urbanizado? Eles formaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra nas franjas da sociedade brasileira e servem-se de ações coletivas transgressoras como ocupações de terras e órgãos públicos; ainda assim, a questão permanece e repõe-se com maior amplitude: como logram êxito em embates contra o imbrincamento de origem entre o Estado brasileiro e os setores terratenentes? Forjar um sujeito coletivo e uma identidade social com conteúdos simbólicos inconfundíveis, capaz de galvanizar distintas categorias de trabalhadores rurais e desempregados urbanos, além de inovar as formas de organização e ação política conferindo-lhes caráter ritualizado (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) são alguns de seus trunfos. Mas, diriam os sem-terra: o segredo está na mística, “a alma do Movimento”. Ao mesmo tempo categoria do pensamento e da prática política, a mística de fato perpassa múltiplas esferas de ação e distintas atividades no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.

Dado que o MST é um movimento que faz da mobilização coletiva e da ação direta a força dos “fracos”, coloca-se a questão: como organizar pessoas e mantê-las reunidas em condições de adversidade e incerteza, às vezes por anos, em contendas políticas passíveis de confronto violento com o aparato repressivo do Estado e as forças paralegais de proprietários? Ainda, como fazê-lo de forma a garantir o “apoio da sociedade”? Uma estrutura hierárquica conjugada com mobilizações coletivas e processos pedagógicos e de formação política continuada têm sido sua bem-sucedida fórmula, à qual se soma a mística.

Germinado da fermentação social dos fins dos anos 1970 e início dos anos 1980, a despeito de recentes mudanças (MST, 2005MST. 2005. Método de trabalho e organização popular. São Paulo, MST.: 88-103), o MST mantém uma estruturação vertical com distribuição de funções e responsabilidades, exigência de disciplina e distinção entre base social, militantes e líderes (MST, 2016MST. 2016. Normas gerais e princípios organizativos do mst. São Paulo, MST .). Territorial e hierarquicamente articuladas, suas diferentes instâncias políticas e organizativas estruturam-se de forma colegiada e atuam em consonância com diretivas de escopo nacional, embora mantenham relativa autonomia nos níveis local e estadual. Rejeitada por movimentos sociais mais recentes, como o Movimento Passe Livre, a estrutura centralizada e hierárquica do MST é vista por seus dirigentes como garantia de unidade e eficácia política, “organicidade”, concertação e agilidade nas ações concretas, conquanto não deixe de incidir, como veremos, na dinâmica política interna, nas ações coletivas e, dada a centralidade do seu papel organizativo, na mística.

Depois de haver rastreado conexões de sentido da mística sem-terra com a mística cristã via Teologia da Libertação, delineado seus contornos e neles reconhecido fronteiras borradas entre política e religião (Chaves, 2021), no presente artigo proponho-me a investigar o inusitado uso dessa categoria religiosa como ferramenta organizativa e de ação política. Face à complexidade do fenômeno que para os sem-terra é “realidade que mais se vive do que fala” (Peloso, 1994PELOSO, Roberto. 1994. A força que anima o militante. São Paulo, MST .:3), recorro analiticamente a fragmentos etnográficos de cerimônias coletivas nomeadas mística. Embora temporalmente descontínuos, eles revelam significados e práticas acionados pela categoria e continuamente recriados em seus rituais, iluminam algumas condições do dinamismo da organização política sem-terra e permitem entrever aporias da ação coletiva assim ensejada.

A MÍSTICA SEM-TERRA

No MST, mística refere algo intangível, é a qualidade de confiança, coragem e firmeza ante situações favoráveis ou adversas da luta pela terra. Mística é também o nome dado a cerimônias com características rituais realizadas precipuamente com intuito motivacional. Entretanto, longe de limitar-se ao encorajamento dos militantes, tais cerimônias desempenham importantes funções políticas e organizativas, com relevância atestada por serem atividades prescritivas, objeto de regulação e reflexão especializada. Embora tarefa de equipes rotativas, altamente valorizada, ela é considerada competência de militantes experientes, especialmente do setor de formação política. No MST mística é: a) uma qualidade ou valor; b) uma prática ritual; c) um “princípio organizativo” e c) um “método de trabalho de base”.2 2 Para uma discussão pormenorizada das características mencionadas, remeto a Chaves (2021). Em suas múltiplas dimensões, como veremos, a mística é veículo e expressão da cosmologia do MST, desempenhando papel político fulcral na articulação de suas instâncias organizativas e na propulsão da ação coletiva sem-terra.

Com alguma redundância e sem pretensão de esgotar a lista, é possível enlencar entre as tarefas políticas da mística: forjar a identidade social sem-terra e produzir um sujeito coletivo;3 3 No MST chama-se “organicidade” aos métodos a exemplo da mística que visam garantir a realização dos objetivos (MST, 2005). A categoria refere-se à comunicação e integração entre as diferentes instâncias da Organização e ao compromisso dos militantes com o alinhamento, agilidade e eficácia das ações na consecução de objetivos táticos e estratégicos pré-definidos. reforçar a “organicidade” do MST por meio da integração de seus setores e coletivos; garantir a unidade da Organização, especialmente entre base social e militância; contribuir para a formação política e coesão ideológica do Movimento; comunicar objetivos políticos contextuais; dar conteúdo emocional à sua plataforma política; expressar valores e sentidos para dentro e para fora do Movimento; atuar na “disputa de ideias” e valores, constituindo-se, portanto, numa política do sentido (Chaves, 2021).

Figura 1
VI Congresso Nacional do MST.

Sendo essencialmente uma mística da luta, a mística sem-terra e seus rituais buscam estimular a confiança na ação coletiva. Reiterativos, esses rituais trazem redundância na estruturação de personagens, ações, relações e sequências de atos; redundância que por sua vez cada performance busca compensar com condensações, alargamentos, diferenças de ênfase, acréscimos e supressões de conteúdos relacionados ao contexto. Segundo as circunstâncias, elas podem assumir caráter dramático, épico ou festivo, exibir conteúdos de alegria e celebração ou de revolta e indignação, frequentemente conjugando-os. O repertório estético e a estrutura narrativa das místicas sem-terra revelam um profundo nexo com as tradições festivas populares, veículo eminente de memória social, o que sublinha sua relevância na elaboração das experiências e memórias de luta, fruto criativo e renovador dado pela confluência dessa longa tradição com a Teologia da Libertação. Por outro lado, os mesmos elementos simbólicos projetam sonhos e ideais que constituíem prefigurações criativas, orientam a ação coletiva e tornam-nas vetor de transformação social (Chaves, 2021). Não sem motivo, portanto, os sem-terra consideram a mística a força e a alma do MST.

RITUAIS DA MÍSTICA. A MÍSTICA COMO CELEBRAÇÃO DA LUTA

Voltemos a fevereiro de 2014, dia de festa para os sem-terra reunidos em Brasília no VI Congresso Nacional do MST. Os números são superlativos: 15 mil delegados vindos de 23 estados, além de cerca de 250 integrantes de 80 delegações estrangeiras e representantes de outros movimentos populares. O Ginásio Nilson Nelson, com capacidade para 16.000 pessoas, preparado para a celebração dos 30 anos de existência do Movimento, tem o ambiente adornado de faixas e paineis com imagens coloridas e frases de efeito. As arquibancadas paulatinamente são pintadas do vermelho que tinge bonés, camisetas e bandeiras sem-terra. Não demora para o espaço ser tomado por delegações de cantos próximos e distantes do país. No tablado, os músicos ensaiam acordes.

Acima do palco destaca-se um painel de grandes dimensões em que se descortinam cenas diversas pintadas coletivamente pelos artistas do MST. Sugestivamente, as imagens de um indígena, uma mulher branca e um negro dominam o centro da composição enquanto fitam o observador com olhar incisivo. O trio evoca o mito brasileiro de origem das três raças ao mesmo tempo que, com gestos enérgicos, mostra a face dos socialmente marginalizados, revelando a condição comum dos principais protagonistas das cenas circundantes. Pintadas sobre fundo vermelho, elas giram em torno e definem-se a partir desse centro simbólico. Do canto superior esquerdo da tela e à direita de quem olha, emergem vultos de bandeiras, entre as quais se distinguem a do MST junto com os estandartes brasileiro, cubano e wiphala, sugerindo a comunidade dos povos latino-americanos. Dos pavilhões sobrevêm silhuetas humanas que emergem na forma de duas multidões, uma acima, outra à esquerda do trio central, ambas formadas por trabalhadores portando chapéus, bonés, capacetes e ferramentas, em realce à ideia de protagonismo popular. Detalhes articulam o dinamismo das multidões às cenas adjacentes.

Figura 2
Mística de abertura do VI Congresso Nacional do MST.

Os vultos amorfos do agrupamento que ocupa a margem superior do quadro ganham nitidez à medida que se afastam do mar de bandeiras. Essas dão lugar a homens e mulheres em união de esforços para aproximar de si o pêdulo da Justiça, cuja representação estilizada, abaixo da multidão e à direita do trio central, ladeia um gordo homem de chapéu. Ele cobre os olhos vendados da Justiça com uma mão, enquanto com a outra empunha uma serra elétrica e corta o livro da Constituição brasileira, sob a qual vemos árvores esmagadas. Nomes de agroindústrias multinacionais estampam sua camisa. A imagem condensa símbolos ao representar os antagonistas do MST, perante quem se curva a Justiça: na displicente figura do fazendeiro fundem-se as insígnias de grandes corporações internacionais. A figura masculina funde a imagem do latifundiário, histórico oponente da reforma agrária, com a de proprietários e acionistas anônimos de empresas do “agronegócio”, considerado o real inimigo do MST, hoje. A dilaceração da Constituição, súmula dos direitos e do pacto político, acompanha-se, em ato único, da destruição da natureza. Um pelotão militar protege o casal com armas apontadas em direção ao trio humano no centro do quadro e à multidão em marcha que domina a esquerda do painel, igualmente formada a partir do mar de bandeiras.

Enquanto as cenas anteriores parecem retratar a configuração atual da luta de classes segundo o ideário do MST, as seguintes sugerem modos de ação organizada dos trabalhadores, assim como suas conquistas. Emergindo do infinito, silhuetas humanas criam os contornos de outra manifestação ou marcha, cujas figuras paulatinamente ganham nitidez. À dianteira da multidão distintivamente trabalhadora avistam-se mulheres, crianças e homens, alguns erguendo facões como na bandeira do MST, em composição dramática evocativa da famosa pintura de Delacroix, “a liberdade conduz o povo”. Enquanto as duas multidões em marcha junto com o trio central insinuam o dinamismo da ação coletiva, em contraste com o vermelho, os tons frios e a relativa estabilidade das cenas seguintes sugerem conquistas e realizações.

Figura 3
Mística de abertura do VI Congresso Nacional do MST.

Destacada na dianteira da marcha, uma mulher semeia. Seu corpo medeia a cena da multidão das demais que compõem a parte inferior do painel. Toda a massa humana parece dirigir-se ao campo de semeadura, delineado em plantações verdejantes, pomar, horta e árvores, em meio ao qual se avista ao longe o estandarte do MST junto a um acampamento de lonas pretas. Uma luminosidade primaveril incide nos corpos à frente da multidão e no campo de cultivo, dando acento às cores das vestes, folhagens e barracos e compondo uma estética semelhante à figuração do paraíso encontrada em certos livretos religiosos.

A evocação (a)temporal na imagem da multidão em marcha transmuta-se ao desaguar na cena campestre e desdobrar-se no espaço como acampamento sem-terra, organização política que frutifica em campos cultivados, alusão à territorialização promovida pelos assentamentos rurais do MST. Deitado esplendidamente no campo, vemos um recém-nascido como que desabrochado da semeadura. Uma planta dele germinada se enrama em direção ao canto inferior direito do painel e ali enlaça um imenso violão cuja extensão alcança a lavoura. Duas cenas justapõem-se acima do instrumento: na primeira, um casal estuda debruçado sobre um livro ou caderno; na segunda, vemos um grupo de pessoas em reunião. Outras faces da organização política dos trabalhadores valorizadas no MST, o conhecimento e o debate, assim como a alegria da mística celebrada nas canções, parecem assim anunciar o homem e a mulher novos, figurados no recém-nascido germinado dos campos de semeadura da luta, retratada no painel como um todo.

A integração de conteúdos diversos em cenas sucessivas e a condensação espaço-temporal do painel exibem a qualidade síntética da arte mural do MST. Seus artistas reproduziram no quadro um conjunto de ideias e valores reafirmados cotidianamente em reuniões, assembleias, salas de aula, mobilizações, e também nas místicas que pedagogicamente pontuam cada uma dessas atividades. A organização coletiva dos trabalhadores e sua luta4 4 Núcleo catalisador de sentidos, a categoria luta emoldura tanto o projeto de transformação social como rotinas do dia-a-dia; reúne sujeitos com diferentes orientações - “militantes” e “massa” - e unifica a gama de ações concretas do MST (Chaves, 2000; Comerford, 1999). são apresentadas como caminho transformador da experiência de exploração, opressão e violência, tornando possível uma nova condição social manifesta sob luz idílica na imagem do acampamento/ assentamento. Essa nova condição social é entendida como realização concreta da luta, sendo alcançável no presente com a conquista da terra e também projetada no futuro como sociedade renovada, ambas retratadas na mesma imagem-síntese. No plano subjetivo, organização coletiva e luta operam a transformação/renascimento dos sujeitos ao promover sua remodelação em termos de novos padrões socioculturais e sociopsíquicos. A luta é de todos os povos, dos trabalhadores do campo e da cidade, de homens e mulheres, negros, brancos, indígenas. Ela é imemorial e une mulher e homem trabalhadores, opondo-os aos detentores do capital, que dominam os recursos materiais, simbólicos e do poder, solapam a lei, dobram a Justiça e colocam igualmente a seu serviço o aparato repressivo do Estado. Eis a súmula das ideias norteadoras da luta sem-terra.

Servindo de moldura para as principais atividades públicas internas do VI Congresso, o mural era simultaneamente parte constituinte e manifestação sucinta da mística que o evento como um todo configurava enquanto celebração do Movimento Sem-Terra. Cenário permanente dos quatro dias do evento, o conjunto de imagens, valores e ideias nele veiculados descortinava uma síntese da cosmologia do MST e dos princípios de sua mística, que embora feita para nutrir a disposição de cada sem-terra é sempre expressão e veículo da luta como realização cooperativa e coletiva. Nele descortinava-se uma mística da ação ou mística da luta (Chaves, 2021) comunicada nos semblantes, atitudes, gestos, atos retratados, por sua vez concentrados em diferentes núcleos de ação e tipos de atividade enquanto representação condensada da luta.

Entrementes, o cenário mais amplo do ginásio povoou-se do movimento, cor e ruído das pessoas que terminavam de ocupar as arquibancadas naquele dia de fevereiro. Um frenesi no ar reverbera expectativa e emoção. Para atrair a atenção ao centro do ginásio, os músicos dedilham acordes, enquanto o mestre de cerimônia introduz algumas palavras de boas-vindas. Em seguida, ele inicia um diálogo que coordena corpos e vozes dos sem-terra. Agrupados nas arquibancadas conforme a procedência, sob seu comando os membros de cada delegação estadual erguem-se e bradam lemas do Movimento, exibindo presença coletiva no Congresso. Em seguida, o mestre de cerimônia unifica a audiência com o mote: “Pátria livre!”, ao que todos respondem: “Venceremos!”. O diálogo repete-se até que o mestre de cerimônia alterne: “MST”, “Na luta até o fim!”, responde a multidão em uníssono. Isso feito, com transição marcada apenas por instrumentação musical, inicia-se a parte dramática da mística.

Sem prévio aviso, uma procissão simultaneamente solene e festiva adentra o ginásio ao som de uma viola. É quase como se a cena da multidão em marcha saísse do painel e se materializasse na arena. Através dos ornamentos e adereços identificam-se indígenas, quilombolas, trabalhadores do campo, da cidade, soldados e, inclusive, membros de ordens religiosas. A procissão imemorial atravessa a quadra do ginásio em silêncio, acompanhada apenas por instrumentação musical. A massa humana passa; o tempo parece suspenso. Contudo, a multidão retornará, fervilhante, diversas vezes, em encenações dramáticas variadas: atos de ocupação, formação de acampamentos, enfrentamentos de forças repressivas, marchas de vitória, conquistas da terra e semeadura de campos. O tempo passa, a massa humana retorna. Mudança e repetição conjugam-se nas formas exibidas de ação coletiva .

A música instrumental cede lugar à canção sem-terra cuja letra celebra: “fazemos a uma nova história, um novo homem e uma nova mulher…”, enquanto figurantes vestidos com as cores da bandeira do Movimento encenam várias coreografias de dança e ginástica artística, incluindo formações humanas de imagens-símbolos, como a sigla e a insígnia do MST. A música ganha letra e vira canção, os movimentos coreografados tornam-se dança: com as cores do Movimento eles anunciam um mundo novo.

Figura 4
Mística de abertura do VI Congresso nacional do MST.

Em sua forma e conteúdo, assim como no conjunto de elementos simbólicos trazidos à cena, a celebração foi uma apresentação condensada dos traços constitutivos e recorrentes da mística sem-terra. Insígnia e sigla reapareceriam mais de uma vez em variações coreográficas. Do mesmo modo, adereços simbólicos como bandeiras, instrumentos de trabalho, lona preta, chapéus de palha, frutos e cereais repetiam-se, rearranjados, e núcleos de atividades retornavam, remodelados. Figurantes dramatizaram a histórica luta pela terra no Brasil e a criação do MST; fizeram marchas; formaram acampamentos; viveram enfrentamentos de forças repressivas estatais e para-estatais; sofreram perdas, testemunharam mortes e protagonizaram renascimentos: feições diversas da luta foram encenadas em representações dramáticas, danças e mímicas, sendo sublinhadas por músicas, canções, poesia e prosa. A mística era uma metáfora da “História”. Ao lado do palco um “livro” era dela signo e tinha as páginas mudadas pelo corpo de bailarinos a cada novo ato. Em pouco menos de duas horas, 1.500 sem-terra encenaram a mística da luta e fizeram, como prescrito para toda atividade coletiva do MST, a mística de abertura do Congresso.

Figura 5
Mística de abertura do VI Congresso Nacional do MST.

Toda a cerimônia foi uma mística aos olhos sem-terra. À saída do ginásio, Terezinha, assentada há 10 anos, resumiu seu impacto: “A mística é muito emocionante, ela comove, é a própria vida!”. Definida como “a força secreta que anima o militante”, “uma realidade mais vivida do que falada” (Peloso, 1994PELOSO, Roberto. 1994. A força que anima o militante. São Paulo, MST .: 3), muitos são os atributos com que os sem-terra a descrevem, como entusiasmo, convicção, paixão, otimismo, inspiração, competência, espírito, motivação, indignação ética. Descrita por eles como emoção, sentimento, crença e vivência, a mística motiva a luta e impulsiona a ação. Maleável, ela pode manifestar-se como esperança, alegria e confiança ou como tristeza, indignação e revolta. Embora “difícil de definir”, ela faz com que os sem-terra sintam-se fortes e capazes, pois “transforma o sonho em realidade”: com a mística, eles podem mais - estamos no território de Durkheim. Ademais, como o mana descrito por Mauss (2003), sugere-se que a mística reúne pensamento, emoção e ação, sendo ao mesmo tempo finalidade e caminho (Peloso, 1994PELOSO, Roberto. 1994. A força que anima o militante. São Paulo, MST .).

Para além dessas qualidades intangíveis, também se nomeiam mística cerimônias com características rituais semelhantes à celebração de abertura do VI Congresso Nacional. O reconhecimento precoce da eficácia dessas celebrações em sustentar a disposição de luta mesmo em situações adversas como as das ocupações pioneiras, sob o regime militar, estimulou a inserção reflexiva da mística já nas primeiras publicações do Movimento, seja como prática específica (MST, 1986MST. 1986. Construindo o caminho. São paulo, MST.), seja como parte do “método de trabalho popular” (MST, 1997MST. 1997. Método de trabalho popular. Caderno de formação n. 24. São paulo, MST/CONCRAB.). Sujeita a regramentos e objeto de reflexão especializada (Stédile e Mançano, 1999STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. 1999. Brava gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no brasil. São Paulo, Perseu Abramo.; Bogo, 2002BOGO, Ademar. 2002. O vigor da mística. São Paulo: MST/Caderno de Cultura; 2003BOGO, Ademar. 2003. Arquiteto de sonhos. São Paulo: Expressão Popular.), mais que atividade programada em manuais, a mística faz parte do cotidiano sem-terra. Ela está presente no início de todas as atividades coletivas do Movimento, às vezes também as encerra, quando não as engloba. Sua redudância simbólica e sequência padronizada de ações não impedem a evocação e reafirmação de valores, crenças, símbolos, princípios e ideais que configuram, como vimos, verdadeira cosmologia. Entretanto, como todo ritual, as místicas estão sujeitas à rotinização, de que os sem-terra são conscientes e buscam evitar.

Também classificadas como “princípio organizativo”, místicas são explicitamente empregadas como ferramenta da organização política. Nesse aspecto em particular cumprem muitas atribuições, entre as quais o relevante papel de renovação e reafirmação da identidade sem-terra, fundamental à construção de um “nós”, sentimento de pertença ao coletivo. Além disso, a mística galvaniza a meta imediata de conquistar a terra, que agrega a base sem-terra, e integra-a ao objetivo mais amplo de mudança social, que guia os militantes. Ela o faz fundamentalmente ao consistir numa linguagem partilhada e constituir um universo simbólico comum para sujeitos com distintas experiências e expectativas sociais. Por outro lado, aspectos contextuais e de circunstância presentes na escolha de símbolos ou em variações narrativas permitem veicular objetivos políticos específicos que, comungados, orientam e dão eficiência às ações coletivas momentaneamente definidas pela direção política do MST. Dessa maneira, a mística garante a comunicação de significados, objetivos e propósitos “estratégicos” e “táticos”, contribuindo para a “organicidade” do MST, isto é, a boa relação entre seus diferentes setores e níveis organizativos ou a coalescência de suas partes. Linguagem partilhada referida à cosmologia, sedimenta-a em compromisso emocional com o coletivo, contribuindo para a coesão de propósitos de militantes em diversos níveis de formação política e para a unidade moral e política do MST.

Figura 6
Arquibancadas com militantes do MST no VI Congresso Nacional do MST.

Assim, a mística tem múltiplas valências: refere à sensação afetiva e valor, categoria do pensamento, momento ritual, princípio organizativo. Todas elas ativadas no espaço-tempo ritual das cerimônias em que se reafirma a força coletiva e o protagonismo popular, revigora-se o compromisso com a luta pela reforma agrária e o MST. Os sem-terra dizem-no textualmente aos brados, neste e em outros lemas: “Lutar! Construir reforma agrária popular!”. Feita por sem-terra e fundamentalmente para eles, as místicas reforçam a identificação emulativa entre público e atores. Nessas celebrações, experiências de opressão e violência ordinariamente vividas de modo individualizado ganham dimensão épica e, enquanto narrativas vitoriosas da luta, convertem-se em força coletiva do MST. Sua consistência reside na verossimilhança entre as situações e experiências vividas na luta pela terra e as ações representadas: dramatizadas; cenas vistas, ouvidas, cantadas e às vezes vividas misturam-se e reforçam-se mutuamente. Através da mimese que une atores e público, cena e experiência, as narrativas dramatizadas ganham plausibilidade e estimulam confiança. Os sem-terra participam dos rituais da mística simultaneamente como atores e testemunhas, e pela repetição em crescendo de temas narrados - como numa fuga musical - exprimem e experimentam sua potência enquanto grupo.

Ainda que sumária e fragmentada, a descrição da cerimônia de abertura do VI Congresso Nacional permite inferir alguns pressupostos e indicações do ecletismo das fontes de inspiração da mística sem-terra. Nas metáforas cênicas vislumbra-se a repetição do mitema marxista do protagonismo emancipatório da classe trabalhadora em sua capacidade de moldar conscientemente a história, uma reinvenção da premissa iluminista de que “o homem pode e deve criar livremente o seu destino, construir o seu próprio futuro” (Cassirer, 1994CASSIRER, Ernst. 1994. A filosofia do iluminismo. Campinas, Editora Unicamp., p.288). Desponta igualmente a conjugação de noções utópicas e messiânicas do alvorecer de um novo mundo, numa mistura de ideias, ideais e teleologias socialistas e cristãs. Ao lado do conceito marxista de luta de classes, reconhecem-se traços do romantismo e do arcabouço conceitual e ético da Teologia da Libertação expresso em fórmulas simbólicas e rituais herdadas das místicas da Comissão Pastoral da Terra, que ao lado das festividades populares constituem a genealogia da mística sem-terra (Chaves, 2021).

Sendo uma mística da ação que se valida a partir do fundo sempre renovado de cultura bíblica popular (Velho, 1995VELHO, otávio. 1995. Besta-fera: recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará .), o uso de símbolos, práticas, analogias bíblicas e recursos discursivos inicialmente da Teologia da Libertação, mais recentemente do repertório “evangélico”, termina por conferir uma sacralização da “luta”. Herdado pela Teologia da Libertação do Concílio Vaticano II, o conceito de “Povo de Deus” nela ganha o sentido de sujeito coletivo da história em luta contra estruturas sociais injustas, entendidas como pecado. O livro do Êxodo serve de inspiração e modelo: nele o povo de Deus participa da libertação e da realização da promessa divina de uma nova terra. A saga do povo que sofre e luta converteu-se em mitema, uma estrutura simbólica onipresente nas cerimônias místicas das pastorais sociais da Igreja, como dos círculos bíblicos, das CEBs, da CPT e, posteriormente, do MST. Enquanto na Teologia da Libertação a saga israelita é tomada como revelação da presença de Deus na história e arquétipo da libertação do seu povo do cativeiro, da opressão e da pobreza segundo a vontade divina, a mística sem-terra ancora-se na confiança na força da vontade humana coletiva guiada por um propósito maior, porque comum. Deslocamentos de sentido dão-se pela agregação de conteúdos e transposição de significações à estrutura narrativa imemorial, que é mantida, e cuja potência simbólica assim se renova. Da “terra prometida” por Deus à promessa de terra trazida pela luta, passando pela reiteração da necessidade da esperança e do sacrifício, pela valorização da fé e da disciplina, trafega-se por símbolos religiosos e políticos cujos significados facilmente deslizam, sobrepõem-se, somam-se em benefício da sacralização da luta.

O processo de autonomização organizativa frente à Igreja e à Comissão Pastoral da Terra também implicou, nos primóridos do MST, numa modulação e minimização dos símbolos e práticas religiosas fundantes da ‘mística da terra’ daquela pastoral e na elaboração de nova síntese na mística sem-terra (Chaves, 2021). Nesse sentido, a introdução de certo ethos protestante, trazido mais recentemente pela crescente presença de fieis de diversas denominações evangélicas nas fileiras do MST, não afeta a articulação entre estrutura simbólica, conteúdo político e sentido sacralizador que configuram a especificidade da mística sem-terra. É possível mesmo dizer que ele renova a matriz de significação primeira representada pela Teologia da Libertação ao mesmo tempo que mostra sua fecundidade e capacidade englobadora. Impulsionado por lideranças locais femininas, cuja influência merece melhor atenção de pesquisa, o atual influxo evangélico destaca-se pelo recurso a símbolos e atitudes específicos desse ethos, como a reintrodução de preces e cânticos religiosos em reuniões e encontros locais, a ratificação de decisões coletivas em assembleias com a interjeição “amém”, e a escolha de referências bíblicas para nominar acampamentos e assentamentos, a exemplo de “El Shadai”, “Terra Prometida”, “Nova Jerusalém”.

Ao arcabouço de conteúdos simbólicos mais ou menos explicitamente religiosos, soma-se na mística sem-terra a sacralização da memória das lutas sociais e do heroísmo de figuras históricas do passado remoto e próximo. Eventos como a Guerra do Contestado, a Balaiada, a Independência, datas representativas como 17 de abril, dia do massacre de Eldorado de Carajás, e mesmo expressões de luta como “Resistência Camponesa” são homenageados nos nomes de acampamentos e assentamentos do MST. Celebração que também recebem personagens históricas e lutadores do campo popular como Zumbi dos Palmares, Ho Chi Minh, Fidel Castro, igualmente lembrados em cerimônias, poesias, canções e divisas como: “Chê, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta por justiça nós somos companheiros”. Personalidades significativas da luta pela terra, como D. Tomás Balduíno, ou reconhecidas por atividades sociais, a exemplo de Zilda Arns, juntamente com vítimas mais recentes da luta pela terra, como Padre Josimo, Margarida Alves, Irmã Dorothy Stang e menos conhecidas como o “Companheiro Sétimo Garibaldi”, assassinado por ação de milícias de fazendeiros em Paranavaí/PR, têm sua bravura e nomes para sempre lembrados nas designações dos territórios de luta e conquista do MST, e toda sorte de coletivos que o Movimento abriga. Tomados como modelo de vida pelo devotamento à coletividade, eles dão rosto humano exemplar à luta, como os santos e mártires do cosmos religioso. À diferença do Exército de Libertação Nacional, estudado por Pérez(2012), no MST a morte e o martírio não são necessariamente vistos como fonte de sentido, mas também cabe aos sem-terra honrar os seus mortos e dar-lhes nova vida na luta.Tidos como figuras modelares, esses lutadores alcançam transcendência na memória:

Mas tremeu o inimigo com a dignidade do menino Inda quase adolescente, pele morena, franzino Sob coices de coturno, de carabina e fuzil Gritou amor ao Brasil, num viva ao seu movimento, E morreu! Morreu pra quem não percebe Tanto broto renascendo Debaixo das lonas pretas, nos cursos de formação Ou já nos assentamentos, quando se canta uma canção, ou num instante de silêncio Oziel está presente porque a gente até sente pulsar o seu coração.

O fragmento5 5 https://mstmaratonando.wordpress.com/2016/04/25/oziel-esta-presente-porquea-gente-ate-sente-pulsar-oseu-coracao/, em 19/01/2020 às 9h50. é parte de texto declamado, cantado e representado em peças repetidas vezes em homenagem a Oziel Alves Pereira,“um ser místico silenciado pela repressão do Estado e do latifúndio”,6 6 https://mst.org.br/2020/04/17/o-jovem-queousou-doar-a-vida-por-umacausa-coletiva-oziel-alvespereira/, em 15/02/2021, às 15:08. no Acampamento da Juventude, evento que marcou os 20 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás. Em semelhantes homenagens, são louvados o compromisso, a disciplina, os grandes como os pequenos sacrifícios diários desses lutadores tornados exemplares. Sendo o “personalismo” visto como “vício”, em contraposição à exaltação de líderes, é neles que se projeta a face humana da luta coletiva.

Portanto, as místicas encenam constantemente as variadas formas de luta que o MST enceta no presente e são veículo de enaltecimento das lutas do passado. Mas não se limitam a isso: por prefiguração, elas também antecipam simbolicamente o prazer da realização da “utopia”, tornando-a verossímil. Como no painel, a antecipação retratada é um misto de visão idealizada da “nova sociedade” e do “novo homem e nova mulher”, mas também tornada tangível como realização imediata do sonho da terra em assentamentos do MST. Entre os núcleos significativos principais das místicas do MST pode-se, portanto, elencar: o valor e o sentido emancipador da luta coletiva; a fé na construção consciente da história; a celebração épica das lutas do presente e do passado; a prefiguração da utopia de uma nova sociedade; a valorização da solidariedade, da disciplina e do sacrifício - palavras frequentementes ouvidas e estampadas nas cerimônias. As místicas mais elaboradas reúnem esses significados centrais e realizam uma espécie de condensação do tempo: validam o passado e o futuro por meio do presente. Além do enebriamento emocional das celebrações, grande parte do seu êxito simbólico deve-se a essa presentificação dramática da memória da luta e prefiguração do “sonho”.

Figura 7
Mística no VI Congresso Nacional do MST.

As místicas são um tipo de celebração que visa fazer da “luta” uma ocasião festiva. Nesse sentido, carregam a força motivadora que as festas populares e os eventos coletivos como marchas, desfiles militares, procissões e festas religiosas criam ao constituir multidões. Nesses eventos coletivos permeados de estímulos enaltecidos pela presença de cada participante em sua densidade corporal, uma pleiade de sensações, afetos e símbolos são compartilhados. Assim como a maioria dessas festividades, as místicas do MST reeditam narrativas redesenhando-as a partir de um repertório consagrado de símbolos e formas de ação. Nelas, condensação simbólica e densidade emocional combinam-se guiadas por um telos que imprime significado à ação. Como rituais que são, elas agregam diferentes recursos expressivos em presença do grupo, mobilizam cognição, emoção e adicionam imaginação à razão prática que articula as ações políticas. Assim, as místicas operam como ativadoras de energias coletivas dormentes, dando-lhe feição e propósito, o que delas faz uma política do sentido.

Além de “força secreta” que anima as ações de luta, a mística é também um anteparo seguro para as vicissitudes de seus resultados: bons ou ruinosos, eles são celebrados com intuito motivacional - como veremos a seguir.

A MÍSTICA EM CONDIÇÕES DE INFORTÚNIO

A despeito do enaltecimento pelos sem-terra e de indubitáveis qualidades organizativas, as cerimônias da mística estão sujeitas às vicissitudes de felicidade ou infelicidade ritual (Austin, 1990AUSTIN. John langslaw. 1990. Quando dizer é fazer. Porto alegre, artes médicas.), ou seja, podem ser eficazes ou fracassarem em produzir o “vigor da mística”. Além disso, seu uso como ferramenta política tende a ferir a delicadeza de que é feita sua vitalidade;7 7 Na CPT, Pastoral-mãe do MST, um arrefecimento da mística é identificado desde meados da década de 1990 (Almeida, 2005). embora mandatórias e reiterativas, elas devem, afinal, ter “espírito” e frescor. Acrescente-se que as cerimônias da mística incluem tanto o sagrado fasto quanto o nefasto, processos de comunhão como de expiação. Em sua polivalência, elas também mobilizam intenso e variado espectro emocional, tanto alegria e entusiasmo como pesar, indignação e fúria, os quais, sem solução de continuidade, podem mesclar-se e transformar-se uns nos outros.

Sendo impossível e indevido tratar de maneira isolada essas múltiplas cintilações - às vezes sombrias - do espectro cromático da mística, seguirei servindo-me do caleidoscópio de suas manifestações formais no intuito de apresentar sua conformação complexa. Ao excerto etnográfico da mística de abertura do VI Congresso Nacional, uma celebração feliz - no sentido festivo e de êxito ritual -, acrescento a seguir três breves referências a outras expressões rituais da mística e do seu oposto: um evento de celebração funesta, uma cerimônia infeliz e um ritual expiatório, todas relativas a assembléias na Marcha Nacional (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.). Alerto o leitor de que as inserções etnográficas fazem parte de um processo social e ritual mais amplo, cuja tessitura e nuances é impossível tratar aqui, mas cuja riqueza ímpar dada por sua longa duração permanece fértil para o pensamento. Minha intenção ao destacá-las é ressaltar a complexidade e as aporias da mística, depois de haver buscado evidenciar sua importância na organização política dos sem-terra.

Figura 8
Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça.

No percurso de mais de mil quilômetros que cada uma das três colunas da “Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça” trilhou em 1997 durante dois meses, foram muitas as ocasiões para místicas. Às vezes mais, outras menos elaboradas, elas eram realizadas no início da jornada do dia, outras vezes durante atos públicos, outras ainda em assembléias - em alguns casos, estas foram a mística. Esporádicas, as poucas assembleias foram motivadas por situações graves, uma na primeira semana, as outras duas nos derradeiros dias da caminhada. Essas últimas foram verdadeiros eventos críticos que evidenciaram as aporias postas no processo social e ritual da ação coletiva pelo malogro da conjunção de dois princípios valorativos contraditórios e igualmente caros ao universo social desses trabalhadores: por um lado, participação e igualdade, por outro, ordem e hierarquia (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Comerford 1999COMERFORD, John c. 1999. “Lutando. Os diferentes usos da palavra luta entre os trabalhadores rurais”. Fazendo a luta. Rio de janeiro, Relume-Dumará.).

ASSEMBLEIA COMO RITO PIACULAR

Apesar da criminalização das ações do MST e do contexto político adverso que motivaram a realização da Marcha Nacional, no período de seu transcurso ostensivamente pacífico os sem-terra continuaram a promover ocupações de terras. Com oito feridos em Sandovalina/SP, o desfecho sangrento de uma delas reverberou em emocionada assembléia convocada de improviso no primeiro dia de descanso da caminhada (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 128-139). Apinhados no início da noite sob teto emprestado, os marchantes ouviram um consternado relato dos acontecimentos infaustos daquele domingo. As palavras do líder geraram comoção no recinto lotado como se sensivelmente ressoassem nos corpos. Afinal, por seu intermédio cenas tantas vezes repetidas em canções e representações da mística retornavam como fato. Embora desconhecidas, as vítimas eram companheiros que haviam sofrido agressões e violências que constituem risco partilhado por todo sem-terra. O atordoamento e o choque que se seguiram à notícia foi superado apenas quando um padre tomou a palavra para execrar a violência, reafirmar a justeza da luta, conjurar o medo e convocar a firmeza dos sem-terra convidando-os, por fim, à oração. De mãos dadas, todos rezaram em voz alta um emocionado Pai Nosso. Finda a prece, estrondaram palavras de ordem e a assembleia foi encerrada pelo líder com a expectativa de novas notícias.

Dando sequência à programação daquele domingo que para os marchantes começara festivo, com churrasco ofertado pela prefeitura de Hortolândia, a banda da cidade concluía sua apresentação musical. Ao som de“O Funeral de Um Lavrador”, as crianças e o mímico Duda repetiam encenação feita nos atos públicos em diferentes cidades ao longo daquela semana. A mímica dramatizava a vida de exploração de certo trabalhador rural; que se somava a companheiros reunidos; com grandes gestos, eles deliberavam; depois, o grupo promovia uma ocupação; em seguida, um plantio coletivo; ações coletivas sucedidas pelo confronto com pistoleiros; confronto encerrado com a morte do trabalhador. No final da mímica o hino do Movimento era tocado e o morto reerguia-se levantando a bandeira do MST que o cobria. Ali, a representação foi valorizada pelo acompanhamento da banda da cidade. Finda a peça, os atores iniciaram apresentações cômicas, enquanto os marchantes dispersavam-se em diferentes afazeres e formavam rodas de conversa e chimarrão.

Tudo parecia acomodar-se quando outra assembleia foi chamada às pressas para novas informações, que traziam a notícia do falecimento de uma vítima. Uma onda de consternada emoção abateu-se sobre todos. Desta feita, o mal-estar foi interrompido pelo chamamento do líder: “vamos cantar o hino do Movimento, que nos acompanha nas alegrias e nas tristezas”. Seguindo seu comando, os sem-terra entoaram-no abraçados ombro a ombro, formando uma cerrada corrente humana. Findo o hino, eles foram convidados a abraçarem-se pronunciando as palavras: “na luta até o fim”. O abraço fazia passagem entre a compacta formação humana inicial e o progressivo afastamento dos corpos, que no entanto deu-se acompanhado por troca de palavras em que cada sem-terra ecoava o mesmo lema. Numa mímese da peça, os símbolos do MST ajudavam os marchantes a reanimarem-se ante o infortúnio: encenação e vida confundiam-se na mística não programada da assembleia. Afinal, condensada na mímica, a sequência narrativa das místicas sem-terra reproduz um padrão de acontecimentos que constituem a experiência histórica de luta pela terra no Brasil.

Na assembleia, o improviso ressaltou os traços essenciais da mística sem-terra e a importância decisiva da experiência de fortaleza acionada por palavras e gestos simbólicos cadenciados em movimento e ritmo sincrônicos, e enaltecidos pela copresença dos participantes - em evocação à “efervescência” durkheimiana. Uma celebração funesta, a mística conjurou os aspectos infaustos da luta, com seu difuso fardo de temor e incerteza, tornou-os conscientes e por meio de diferentes recursos simbólicos converteu-os em fortaleza e unidade de propósito. Sentimentos como medo, tristeza e cólera ante o relato da violência sofrida por outros sem-terra foram enaltecidos pela solidariedade de experiência, mas também transformados pela proximidade corpórea e gestos de união, assim como pelo movimento rítmico das palavras pronunciadas em coro. Na prece, no canto e no grito feito lema, as palavras ditas em sincronia conformavam em distintas cadências pulsações sentidas em comum. A força das palavras era enaltecida por sua ênfase no coro das vozes, de modo a sublinhar a invocação implícita na prece, no hino e nas consignas. Cada um desses ritos orais dava expressão pública a sentimentos latentes em cada sem-terra; manifestos coletivamente, simultaneamente constituíam-nos como grupo, momentaneamente partícipes de uma comunidade de sentido e destino.

Potencialmente imobilizadora, a perplexidade ante o relato da letalidade da ação danosa foi conjurada com gestos suplementares à oração, ao canto e ao brado. Os sem-terra formaram um corpo simbólico único na oração entoada, de mãos dadas, a uma só voz, no hino cantado por todos em um abraço cerrado, no coro das palavras de ordem, no lema ouvido e repetido a cada novo abraço. Em linguagem partilhada e repleta de múltiplas referências, os sem-terra reafirmavam o valor moral da luta dos pequenos e fracos contra os potentados e sua violência. Todo um universo de sentido era assim trazido à consciência e transposto em ato por gestos simples e palavras convencionais, mas dotadas da força ritual presente na súplica e invocação protetora da prece, no sentido de justiça e vigor coletivo acionados pelo hino e na afirmação de propósito comum da consigna final. A partir daquela celebração funesta uma cruz passaria a ocupar a dianteira da caminhada, secundada pela bandeira nacional e a do próprio Movimento. Ante o desafio sacrificial da luta, os sem-terra contam sempre com a força de sua união: “a mística é o que une”, ensinou-me certa vez um deles.

NOVAS ASSEMBLEIAS: UM RITUAL INFELIZ E UM RITO SACRIFICIAL

O mundo divide-se em “amigos”, “aliados” e “inimigos” na dinâmica agonística da luta pela terra. Na citada assembleia em Hortolândia/SP, o inimigo era claramente identificado ao “latifundiário” e seus prepostos milicianos. Na caminhada do dia seguinte a retórica amplificou-o para abarcar o governo federal e sua política econômica neoliberal - num caso pessoas desconhecidas para os marchantes, noutro entes abstratos distintivamente situados fora do MST, uma justaposição já notada no mural do VI Congresso. As assembleias a seguir descritas denotam um paulatino deslocamento do inimigo para dentro da Marcha, em gradual assunção de uma face conhecida e próxima.

O decurso dos dias de caminhada trouxera um acúmulo de dificuldades de infra-estrutura, insubordinações, insatisfações geradoras de atrito e descontentamentos vários endereçados à equipe de direção. Se por um lado problemas e conflitos evidenciavam-se, por outro a atenção pública e midiática crescia à medida que a marcha aproximava-se de seu destino, Brasília, impondo urgente necessidade de solução. O objetivo de pressionar politicamente o governo e expressar com êxito o clamor por “reforma agrária, emprego e justiça”, que intitulava a caminhada, encontrava-se ameaçado.

A insatisfação atingiria o auge no domingo de Páscoa, intensificada pelo infortunado acontecimento de uma refeição estragada servida aos marchantes. As assembleias por estado convocadas, às pressas, pelos líderes como recurso pacificador tiveram o efeito contrário de salientar a tensão e o conflito reinantes.8 8 Para relato circunstanciado do evento, ver Chaves (2000: 236-252). Os sem-terra reclamavam a realização do ideal igualitário que a Marcha ostensivamente manifestava e que dia a dia nutria seus passos, como mostra o poema escrito por um marchante naquela mesma semana:

Cada passo, um início/ Cada passo, um desejo/ Cada passo, uma esperança/ Cada passo são as marcas de um povo carente/ Cada passo representa um trabalhador/ Cada passo o povo exige seus direitos/ Cada passo representa mais alimento na mesa do trabalhador/ Cada passo representa mais emprego/ Cada passo, mais justiça no país/ Cada passo, mais dignidade/ Cada passo, mais educação/ Cada passo representa reforma agrária/ Cada passo representa as prisões/Cada passo representa as mortes no campo/ Cada passo representa as injustiças/Cada passo, o nosso sonho/ Cada passo, uma esperança/ Cada passo, queremos a divisão/ Cada passo é a nossa história/ Cada passo sou eu/ Cada passo é você amigo irmão (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 234).

Desprestigiada, nas intempestivas assembleias a direção apelou para a “organicidade”, em invocação ao princípio hierárquico da preeminência do coletivo sobre o indivíduo que viabilizava o empreendimento da longa caminhada. Sem respostas, às críticas a direção limitou-se a contrapor o reconhecimento público já então alcançado pela Marcha Nacional, acrescido do diagnóstico de que “a nossa unidade interna é o ponto fraco” como eventual impedimento ao seu êxito final. Os problemas veementemente vocalizados pelos marchates permaneceram sem resolução, assim como a crise de autoridade dos líderes. O mal estar geral seria agravado nos dias subsequentes e visibilizado no desbaratamento das fileiras da Marcha, evidenciando o fracasso político das assembléias. Numa palavra, elas foram o avesso da mística, ou a anti-mística.

Cerca de vinte dias depois, a Marcha Nacional teve uma entrada triunfante em Brasília, recepcionada pela população e por manifestantes vindos em caravanas de vários recantos do país.A multidão fez dela a “Marcha dos Cem Mil”, numa consagração do feito dos sem-terra e amplificação da sua consigna “por um Brasil para todos os brasileiros”.9 9 Para um ensaio fotográfico e resumo-homenagem do evento, cf. Chaves, 2017. Correspondentes internacionais e jornalistas brasileiros assediavam os sem-terra diuturnamente, alargando o alcance e êxito da jornada - “o Brasil inteiro está de olho em nós”, anotou um marchante em seu diário. Dias antes desse desfecho bem-sucedido a atenção pública crescente já se fazia notar, mas o sucesso da Marcha ainda era discutível. A conjugação dos holofotes da mídia e das dificuldades internas não solucionadas davam fundamento aos receios pelo pior, que alcançaram a Direção Nacional do MST. O contraponto mais notório às críticas e problemas elencados pelos marchantes na crise da Páscoa foi o envio de um de seus membros, alçado à posição de “Coordenador da Disciplina”. Desde aquele paroxismo de descontentamento, entretanto, a separação entre “massa” e “liderança” acentuara-se e dava margem a diferentes manifestações de insatisfação, invariavelmente avaliadas como indisciplina pela direção da Marcha.

Entrementes, apesar de tudo cada sem-terra estava comprometido com o objetivo de levar a Marcha Nacional a termo e conquistar seus propósitos políticos repetidamente proclamados ao longo dos dois meses de caminhada. A aproximação de Brasília trouxera também uma acolhida cada vez mais calorosa nas cidades por onde passava. O entusiasmo dessa receptividade e a clareza da importância da Marcha, mais do que alterações e reforço das regras de disciplina debalde implementadas pela direção, foram decisivos para o desenlace bem sucedido. No decurso final da caminhada, porém, tudo parecia incerto. As insubordinações avolumavam-se e arriscavam evidenciar aos olhos do mundo, voltados para a Marcha como observara o sem-terra, fragilidades facilmente exploráveis e manchar a imagem positiva do MST e de sua causa, a tanto custo alcançada. As demandas dos marchantes vocalizadas na assembleia da Páscoa continuaram sem resposta e a ameaça de dissolução exposta na ocasião por um deles permanecia: “tem companheiros que preferem deixar a marcha e continuar até Brasília de forma independente”.

No fim, as insatisfações e manifestações críticas mais exaltadas foram caladas.10 10 Para uma interpretação desse silêncio e dos desafios éticos de seus deslindamento pela antropológa cf. Chaves (2006). Era, porém, um silêncio pontuado de desconfiança e medo disseminados pela suspeita da presença de “infiltrados” levantada pela direção desde a eclosão da crise na Páscoa. Vocalizar crítica tornou-se arriscado, pois a suspeita generalizou o controle. Sendo sem-terra ou “amigo do MST”, a lealdade estava à prova. Naturalmente, uns mais que outros eram alvo de dúvida, mas todos eram dela passíveis. Já perto de Brasília, uma série de incidentes prestou-se a sensíveis deslizamentos significativos: o inimigo externo metamorfoseou-se em “estranhos” ou “perdidos” que se juntaram à caminhada e supostamente semeavam dissensão,11 11 Alguns, como eu, logo no início da jornada, outros ao longo do caminho, a Marcha incorporou “amigos” e simpatizantes que não eram sem-terra. Todos os “infiltrados” faziam parte dessa categoria de pessoa. estranhos logo convertidos em suspeitos, suspeitos não, P2, agentes da polícia nela infiltrados para promover dissensão e distúrbios.

Na antevéspera da vitoriosa chegada à capital do país, a segunda assembléia geral da Marcha foi convocada12 12 A primeira assembleia geral da Marcha aconteceu em Hortolândia/SP, sendo acima descrita; as demais agregaram os sem-terra por estado de origem. . Perante todos, numa rápida sequência de atos e falas, os suspeitos foram desmascarados e expulsos como “infiltrados”, tão mais odiosos porque até então disfarçados de amigos.13 13 Sendo impossível sumariar sequência tão decisiva, remeto a Chaves (2000: 320-333). Um bilhete encontrado nos pertences de um deles servia como suposta prova da acusação, que levou à condenação sem defesa. Atos e falas transcorreram em extrema condensação no centro da arena do ginásio, aos quais a audiência correspondeu com indignada intensidade emocional. “A assembleia foi breve. Nenhuma música, nenhuma encenação serviram-lhe de mística. A mística foi a assembléia. Apenas gritos de ordem marcaram-lhe o início. Apenas insultos e vitupérios marcaram-lhe o final” (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 328, grifo no original). Enaltecido pela crise de autoridade, todo o clamor contido nos dias precedentes foi canalizado ao novo alvo. Em conhecido mecanismo, a cerimônia operou uma substituição sacrificial da tensão conflitiva presente no grupo desviando-a para as vítimas (Girard, 1990GIRARD, rené. 1990. A violência e o sagrado. São paulo, unesp.). O grupo foi purificado pelo expurgo do pretenso inimigo dissensor e os marchantes viveram a ira justa ante a traição de sua causa, que ameaçara arruinar seus sacrifícios diários ao longo da extenuante jornada.

Confrontados com a fragilidade da prova apresentada na assembleia, os líderes da Marcha invocaram como álibe o princípio da decisão coletiva, numa reveladora legitimação da violência pelo recurso à transcendência da unidade coletiva, de fato restaurada pelo mecanismo ritual. A posteri, por atos e falas, as vítimas sacrificiais também eludiriam a violência sofrida, silenciosamente transformando-a num sacrifício-dom (Chaves, 2006CHAVES, Christine Alencar. 2006. “Os limites do consentido”. In: FONSECA, Claudia; BRITES, Jurema (orgs). Etnografias da participação. Santa cruz do sul, edunisc, 36-58.). Estavam todos, afinal, igualmente empenhados na conclusão feliz do grande rito de sacrifício que foi a Marcha Nacional. Passo a passo ao longo de dois meses eles haviam promovido a dessacralização do poder constituído e da ordem legal que sustentam e legitimam a partição dos bens e riquezas, materiais e imateriais, da sociedade brasileira com a denúncia da sua injustiça e, em última instância, da sua violência. A força da mística gerada pela multidão em marcha revelava, por breve momento, a violência consagrada pela transcendência da lei. Todos, afinal, dispuseram-se ao sacrifício a fim de visibilizar a violência dessa sacralidade inquestionada.

MÍSTICA, RELIGIÃO E POLÍTICA

Nos fragmentos assinalados, a mística do MST evidencia-se menos como busca do Uno que como produção da “unidade”. Produção realizada mediante a fabricação de um corpo social dotado de identidade, guiado por propósitos prefigurados e capaz de ação orientada. Nesse sentido, apresenta similitudes e discrepâncias com sua congênere cristã medieval estudada por Michel de Certeau, para quem a mística é testemunho da perda e busca do Uno figurado nos sucessivos deslocamentos simbólicos de um corpo ausente (2015: 2) e, ao mesmo tempo, premida pela tarefa essencial de produção desse corpus mysticum (2015: 120).Com o desaparecimento do Verbo encarnado, o Espírito passou a ser o emissário capaz de vivificar o corpo místico, primeiro compreendido como corpo sacramental, depois como corpo da Igreja.

Não é incidental que doutrina teológica do corpus mysticum da Igreja Católica tenha servido aos juristas medievais como fundamentação da doutrina dos dois corpos do rei, uma “teologia da realeza” que corporificou o Estado e legitimou a autoridade real no processo de unificação nacional e luta contra a aristocracia feudal (Kantorowicz, 1998). Numa cultura crescentemente nominalista, coube àquela doutrina figurar o todo social e político antes representado pela Cristandade, então em ruína. Se a Revolução Francesa terminou por dispensar a encarnação do todo no rei, hoje o impulso solvente da Modernidade endereça-se ao conceito de Estado e à idealização da coisa pública que ele encarna, como à própria noção de todo social figurado no conceito de sociedade, ambos renegados como fantasmagorias tão arcaicas como os corpus mysticum anteriores.

Herdeiro da tradição romântica e do catolicismo, o MST convalida a mística na construção de seu corpo político, afinal, com sua liturgia ela continuamente recria o corpo coletivo que é o movimento social. Para tanto, a mística figura a experiência da luta atribuindo-lhe, como aos sacrifícios cotidianos dos sem-terra, sentido heróico e transpessoal. Simultaneamente, ela reveste de sentido, valor e plausibilidade um mundo comum projetado com tintas utópicas, sem deixar de antecipar o sonho de uma vida melhor, cujo contorno palpável, a terra, dá-se em horizonte temporal próximo, nos assentamentos da reforma agrária. Ao constituir essa espécie de transcendência mundana, a mística confere significado às ações coletivas passadas e presentes, exitosas ou não, além de prefigurar suas almejadas conquistas - com isso cumprindo decisivo papel pragmático como moto de novas ações coletivas.

A mística do MST é, portanto, uma política do sentido e adquire consistência à medida que configura uma cosmologia em diálogo com valores e ideais com origem religiosa, mas que assumiram significação política: igualdade, dignidade, esperança e também disciplina, sacrifício e hierarquia. Uma vez mais, há consonâncias e dissonâncias frente à mística medieval enquanto expressão, mas também veículo de uma relação entre o visível e o invisível capaz de dar lugar a uma verdade concebida e oferecer um corpo ao espírito (Chaves, 2021). De todo modo, a configuração caleidoscópica contemporânea chamada mística continua guiada pela centralidade desse corpo permanentemente recriado.

Figura 9
Mística da bandeira no VI Congresso Nacional.

No momento da consagração da mística do VI Congresso Nacional, anteriormente descrita, na arena do ginásio os figurantes sem-terra desenharam com seus corpos a bandeira do MST. Um grupo de dançarinos compôs o fundo vermelho do estandarte, enquanto outro formou em verde o mapa do país; um casal ocupou seu centro, o homem brandindo o facão, a mulher segurando uma criança. Em formação corpórea, a bandeira simbolicamente representava o MST como coletivo humano, além de também incluir figurativamente cada sem-terra. Formado o emblema, os músicos tocaram os primeiros acordes do hino do Movimento. Imeditatamente, como um corpo, os presentes levantaram-se das arquibancadas do ginásio e a multidão começou a cantar. Como sempre acontece quando cantam seu hino, ao entoarem o refrão os sem-terra ergueram o punho esquerdo ritmamente, em gesto de força e luta. O ritual sempre impressiona: corpos tesos, movimentos sincronizados, vozes em uníssono ante o emblema. O hino pareceu transformar-se em juramento coletivo prestado à bandeira do MST, naquele momento também representada como coletivo humano.

Vem, lutemos punho erguido Nossa força nos faz edificar Nossa pátria livre e forte construída pelo poder popular (…) Nossa força resgatada pela chama da esperança no triunfo que virá forjaremos desta luta com certeza pátria livre operária e camponesa nossa estrela enfim triunfará!

A cenografia da bandeira replicava em imagem o que a canção do hino dizia em palavras; com gestos e voz, atores e público selavam seu compromisso com a luta, a “pátria livre” e a unidade do Movimento.14 14 É importante sublinhar que as místicas também ensejam confrontos internos. Uma das místicas do VI Congresso expressou ácida apreciação dos compromissos neoliberais do Partido dos Trabalhadores, com o qual o MST tem afinidades de origem que redundaram em apoio tácito e escassa crítica quando o partido esteve à frente do executivo nacional. Embora relevante, esse aspecto não pode ser aqui tratado.

Figura 10
Entoando o hino no VI Congresso Nacional do MST.

A mística do MST opera fundamentalmente a criação desse corpo social unificado em torno da identidade coletiva forjada pela e para a luta pela terra e por transformação social. Trata-se de operação simultaneamente religiosa e política ao constituir um horizonte comum em torno da comunhão de ideais. Em ambos os sentidos conserva a marca escatológica cristã, orientação para um futuro redimido, neste caso edificado pelo “poder popular”. Portanto, a mística do MST compõe a longa tradição utópica que aponta para os inúmeros futuros possíveis guardados como latências no presente e para as potencialidades encerradas pela ação humana, especialmente coletiva. Porém, como corpo místico, o movimento social e sua identidade coletiva precisam ser constantemente recriados, como vimos, por meio de liturgias, cantos, encenações, celebrações festivas e fúnebres, rituais de comunhão e de expiação. Trata-se estritamente de uma eclésia, a um só tempo congregação religiosa, corpo social e máquina política presentificados em assembleia, pois a transitividade de papeis nos rituais da mística dilui a separação palco/audiência. Daí sua afinidade essencial com a multidão, corpo público por excelência, mas também corpo que dá expressão ao indiferenciado, lugar paradoxal de todos e qualquer um.

O esquema de uma mística recente realizada não em evento nacional da importância do Congresso, mas num simples acampamento no Distrito Federal é revelador de congruência e repetição:

Mística [Nomes de onze integrantes] Animação [Nomes para voz e violão] “Floriô” “Só sai reforma agrária” “Sem medo de ser mulher” [Títulos de canções Sem-Terra] Silêncio Entra casal com ferramentas para trabalhar o chão [levam uma bandeira]. Chegam [nomes do casal] com uma criança. Vão chamando mais gente do povo que está na plenária, a mística é no meio da roda. Juntam os casais, já preparados. São quatro casais e quatro crianças. Abaixam e criam [levantam] a bandeira com o mastro. Declamam e vão convocando o povo a cada estrofe [para formar] círculo, Até toda a plenária rodar junto Cantando Depois, no centro, alguém sobe nas costas [de outrem] e declama o poema de Bertold Brecht, “Elogio do Aprendizado” [segue o poema]. Assim que se encerra a mística, todos ficam na posição de trabalhador e cantam o hino. Depois há orações da companheirada. Pai Nosso Orações espontâneas. 15 15 Descrição gentilmente cedida por Rafael Bastos.

À parte as preces, recentemente reintroduzidas em atenção à base evangélica do MST, nota-se recorrência de elementos simbólicos e de significados acionados pelo ritual da mística. Como no VI Congresso, a mística da bandeira realizada em assembleia de um acampamento qualquer busca promover um sentido de integração moral permeado de conteúdos emocionais. Com a suplementação de sentidos através de movimentos corporais, canções, poesia e oração, os símbolos do MST são enaltecidos em gestos e palavras. Todos os participantes da assembleia são integrados à roda que gira em torno da bandeira do MST, um eixo formado por corpos que se fazem mastro. Do mesmo modo, os sem-terra se unem nas palavras, secundadas pelo gesto simbólico de força, que entoam juntos ao cantar o hino. Poucos elementos são suficientes para fazer a mística: corpos, música, silêncio, movimento, palavras. Com esses recursos a mística fabrica um corpo social, dota-o de significação e valor, constitui-no e orienta-o como sujeito coletivo municiado de propósito e capaz de realizar ação coletiva, ou seja, a luta.

PALAVRAS FINAIS

Ao se constituir como movimento social e político de massas (Stédile e Sérgio, 1993STÉDILE, João Pedro; SÉRGIO, Frei. 1993. A luta pela terra no Brasil. São Paulo, Scritta.) o MST enfrenta o problema crucial: como arregimentar “massas” - a multidão do ponto de vista do núcleo dirigente - e delas fazer um ator político relevante? Desde um de seus momentos fundadores na ocupação da Encruzilhada Natalino, em 1981, a experiência social dos acampamentos foi potencializada pela incorporação de aspectos da organização religiosa da Igreja, pela legitimação de ideias-valores de fundo cristão - como a destinação universal dos bens da natureza, a começar pela terra -, bem como pela centralidade litúrgica da mística. Transformada em ferramenta política, prática organizacional com regramentos e subordinação a fins, a mística do MST converte a massa em corpo social e político com identidade definida. Por meio de símbolos e atos rituais, ela atualiza os princípios organizativos do MST, “anima a militância”, municia-a com interpretações políticas contextuais e orientações de circunstância para a ação coletiva, ao mesmo tempo que mobiliza e redefine os significados morais socialmente assentes que demarcam deveres e direitos, bem como a legitimidade ou ilegitimidade das normas legais e dos parâmetros de demarcação da violência. Na mesma medida em que o realiza satisfatoriamente, também reforça o sistema de posições e autoridade do MST.

Como explicar sua eficácia? Como vimos, a força da mística é a força do ritual. Seguindo os passos de Mauss para explicar a eficácia mágica, Stanley Tambiah (1985TAMBIAH, Stanley J. 1985. “A Performative approach to ritual”. Culture, thought, and social action. An anthropological perspective. Cambridge, Harvard University Press.) conectou postulados estruturais e ideias etnográficas ao grande esquema das cosmologias. Nessa formulação, a cosmologia corresponde a concepções sociais sacrossantas, não questionadas, base para atitudes que preservam a ordem social. Encarnando-a, os ritos atualizam a força das convenções, decisivas na eficácia mágica como de todo ritual. Assim, Tambiah leva adiante o projeto maussiano, em seu estudo da magia, de ampliar a noção de sagrado para além da religião (Tarot, 2008TAROT, Camille. 2008. Le symbolique et le sacré. Paris, Éditions la Découverte.). Como a mística do MST, a definição ampliada de sagrado feita por Tambiah apaga as fronteiras entre religião e política, borrando-as na mesma cosmologia e nos mesmos atos. No entanto, por meio de sua mística os sem-terra revelam como a cosmologia pode ser ativada para promover a mudança, trazendo à tona as contradições entre ideais e ordem social - a exemplo da noção da igualdade de direitos, que fundamenta o pacto político moderno - de maneira a produzir novos horizontes em termos de ideias e práticas. Eles mostram como a cosmologia pode ser renovada e transformada de maneira a permitir à imaginação conceber e tornar críveis novos mundos sociais.

Assim como os recursos emprestados da linguística por Tambiah para sua teoria do ritual são úteis no enfrentamento da perene questão da eficácia das ideias e crenças, as formulações de Mauss sobre a magia permanecem, depois de um século, inspiradoras para a compreensão da mística. As aproximações semânticas do conceito maussiano de mana, “uma força por excelência, a verdadeira eficácia das coisas”, e a definição etnográfica sem-terra da mística como “força secreta” assim o sugerem.16 16 Apesar das críticas etnográficas à substantivização da noção de mana realizada por Codrington, fonte de Mauss, a pesquisa de Kessing (1984) corrobora a associação significativa da palavra com as noções de eficácia, potência e força. Mauss não apenas toma a categoria mana como eixo explicativo da eficácia mágica e da força do rito, como afirma: “ele tem a mesma natureza do rito”. Como na mística do MST, é o enquadramento do mana no rito que define sua eficácia. Tal qual o mana, a mística do MST realiza-se dentro de dinâmicas sociais ritualizadas permeadas de ideias e ideais carregados de emoção, ativados por imagens, gestos e ritmos comungados. Assim, a potência analítica da teoria maussiana da força ritual advém da capacidade de conectar simbolismo e valor ao reino da ação, indexicamente unidos no rito em sínteses sempre contextuais.

Dada essas aproximações, talvez seja útil seguir um pouco mais os passos de Mauss e colocá-lo em diálogo com os teólogos da libertação, fonte da mística do MST (Chaves, 2021). No delicado problema da relação do mana com o sagrado, Mauss cuidadosamente se distancia de Durkheim, e sintetiza: “a noção de mana é da mesma ordem que a noção de sagrado”. Tratando da mística sob outra acepção, espírito, os teólogos Casaldáliga e Vigil (1993CASALDÁLIGA, Pedro; VIGIL, José María. 1996. Espiritualidade da libertação. Petrópolis, vozes.) asseveram que ao contrário do dualismo grego, no contexto bíblico espírito não se opõe à matéria, ao corpo, ou à destruição e à maldade e sim à carne, à morte e à lei enquanto sinônimas de opressão. O espírito “habita a matéria, o corpo, a realidade e lhes dá vida(…) enche-os de força, move-os e os impele”(1993:22). Nessa acepção, a mística possui dupla valência, como o sagrado é fasta e nefasta, comporta negatividade e não está imune ao uso destrutivo. As faces festiva e terrível da mística do MST parecem corroborar essas múltiplas valências. Mas além da face estabilizadora, sacral, a mística pode assumir, como o mana, características dinâmicas: é força, ação, vigor, motivação.

À luz da mística sem-terra, antes de equacionar-se a uma violência essencial, como quer Girard (1990GIRARD, rené. 1990. A violência e o sagrado. São paulo, unesp.), sagrado transparece como remissão dos fundamentos da ordem social à transcendência - a exemplo da “lei” e da “organicidade” - tornando-os assim ocultos e impensados. Porém, condizente com a “paixão pelo que é”, típica dos místicos medievais, e com a “honradez com o real”, de que falam os teólogos da libertação, a mística sem-terra guarda também a potencialidade de desnudamento desses fundamentos simbólicos, possibilitada pelo olhar dos que ocupam as margens, como a idiota e o louco das histórias místicas (De Certeau, 2015DE CERTEAU, Michel. 2015. A fábula mística. Os séculos xvi e xvii. Rio de janeiro, Gen/Forense universitária.). Mas a relação existencial que os místicos estabeleceram com o Real enquanto Mistério e Desconhecido que ultrapassa qualquer expressão conceitual é quase impossível num movimento social - quase, reforço, basta lembrar a equação entre mística e vida, feita por Terezinha algumas páginas atrás ou, à maneira do sacerdócio, a justificativa de um militante para sua capacidade de suportar todas as dificuldades: “casei-me com a luta”. Em sua disposição desmistificadora, a mística do MST busca dar forma e direcionar a força das massas - o que, contrariando Mauss e parte substantiva da antropologia que se lhe seguiu, resgata a “efervescência” durkheimiana - através da exposição ritual das promessas malogradas do pacto político democrático, periodicamente enuncidadas nas eleições, fundamento do sistema social liberal e da autoridade política fundada na representação.

Como ponte entre o visível e o invisível, no jogo dinâmico de imagens, ideias e emoções do ritual, o fenômeno da mística impulsiona a potência transformadora da ação ao revelar a qualidade arbitrária e, em última instância, violenta - uma violência invisibilizada e naturalizada em sacralidade da ordem social. Assim, remete aos limites do sistema simbólico ao problematizar a relação entre fato e sentido, entre o visível e o que é invisibilizado, mas também ao apontar e ao mesmo tempo exorcisar o indistinto ou indiferenciado. Daí sua afinidade tensa com o indeterminado da multidão, “abismo onde as diferenças se apagam”, espaço potencial de dissolução da ordem, fonte da força e do perigo sentido por todo e qualquer sistema de autoridade, e que é, no entanto, exorcizado pela forma ritual, tão ciosamente regulada e cumprida no MST. Enquanto corpo público, lugar de todos e qualquer um, a multidão remete ao indiferenciado e à igualdade; no limite, representa a qualidade dinâmica do sagrado, como mística ou mana, força de desordem e do contínuo indistinto, para além do símbolo, mas também fonte e condição de renovação da sua potência simbólica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • VELHO, otávio. 1995. Besta-fera: recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará .
  • 1
    Este artigo é uma sequência e dá continuidade a discussão realizada anteriormente (Chaves, 2021). Uma versão embrionária de ambos foi apresentada no simpósio Power, Politics, and Religion in Brazil. Ruptures, Continuities, and Crisis, em 2018, na Universidade de Edimburgo. Agradeço à Maya Mayblin pelo gentil convite que me motivou a dar corpo a este trabalho de sistematização longamente adiado, assim como aos participantes do Simpósio pelo estimulante debate.
  • 2
    Para uma discussão pormenorizada das características mencionadas, remeto a Chaves (2021).
  • 3
    No MST chama-se “organicidade” aos métodos a exemplo da mística que visam garantir a realização dos objetivos (MST, 2005MST. 2005. Método de trabalho e organização popular. São Paulo, MST.). A categoria refere-se à comunicação e integração entre as diferentes instâncias da Organização e ao compromisso dos militantes com o alinhamento, agilidade e eficácia das ações na consecução de objetivos táticos e estratégicos pré-definidos.
  • 4
    Núcleo catalisador de sentidos, a categoria luta emoldura tanto o projeto de transformação social como rotinas do dia-a-dia; reúne sujeitos com diferentes orientações - “militantes” e “massa” - e unifica a gama de ações concretas do MST (Chaves, 2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Comerford, 1999COMERFORD, John c. 1999. “Lutando. Os diferentes usos da palavra luta entre os trabalhadores rurais”. Fazendo a luta. Rio de janeiro, Relume-Dumará.).
  • 5
  • 6
  • 7
    Na CPT, Pastoral-mãe do MST, um arrefecimento da mística é identificado desde meados da década de 1990 (Almeida, 2005ALMEIDA, Antônio Alves. 2005. “A mística na luta pela terra”. Revista Nera, vol. 8, n. 7: 22-34.).
  • 8
    Para relato circunstanciado do evento, ver Chaves (2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 236-252).
  • 9
    Para um ensaio fotográfico e resumo-homenagem do evento, cf. Chaves, 2017CHAVES, Christine Alencar. 2017. “Um Brasil para todos os brasileiros: vinte anos da marcha nacional dos sem-terra”. Revista Campos 17: 150-159. DOI https://www.doi.org/10.5380/cra.v17i1.55476
    https://www.doi.org/10.5380/cra.v17i1.55...
    .
  • 10
    Para uma interpretação desse silêncio e dos desafios éticos de seus deslindamento pela antropológa cf. Chaves (2006CHAVES, Christine Alencar. 2006. “Os limites do consentido”. In: FONSECA, Claudia; BRITES, Jurema (orgs). Etnografias da participação. Santa cruz do sul, edunisc, 36-58.).
  • 11
    Alguns, como eu, logo no início da jornada, outros ao longo do caminho, a Marcha incorporou “amigos” e simpatizantes que não eram sem-terra. Todos os “infiltrados” faziam parte dessa categoria de pessoa.
  • 12
    A primeira assembleia geral da Marcha aconteceu em Hortolândia/SP, sendo acima descrita; as demais agregaram os sem-terra por estado de origem.
  • 13
    Sendo impossível sumariar sequência tão decisiva, remeto a Chaves (2000CHAVES, Christine Alencar. 2000. A Marcha nacional dos sem-terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 320-333).
  • 14
    É importante sublinhar que as místicas também ensejam confrontos internos. Uma das místicas do VI Congresso expressou ácida apreciação dos compromissos neoliberais do Partido dos Trabalhadores, com o qual o MST tem afinidades de origem que redundaram em apoio tácito e escassa crítica quando o partido esteve à frente do executivo nacional. Embora relevante, esse aspecto não pode ser aqui tratado.
  • 15
    Descrição gentilmente cedida por Rafael Bastos.
  • 16
    Apesar das críticas etnográficas à substantivização da noção de mana realizada por Codrington, fonte de Mauss, a pesquisa de Kessing (1984KEESING, Roger 1984. “Rethinking ‘mana’”. Journal of Anthropological Research, Vol. 40, n. 1: 137-156. DOI https://www.doi.org/10.1086/jar.40.1.362969
    https://www.doi.org/10.1086/jar.40.1.362...
    ) corrobora a associação significativa da palavra com as noções de eficácia, potência e força.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2021
  • Aceito
    03 Set 2021
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