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Estudo das condições de saúde das crianças do Município de São Paulo, SP, (Brasil), 1984-1985: II- Antropometria nutricional

A study of children's health in S.Paulo city (Brazil), 1984-1985: II. Nutritional anthropometry

Resumos

Como parte de amplo estudo epidemiológico sobre condições de saúde na infância, avaliou-se através de exame antropométrico o estado nutricional de urna amostra representativa das crianças menores de cinco anos residentes no Município de São Paulo, SP, Brasil (n = 1.013). Utilizando os critérios diagnósticos da classificação de Gomez, a prevalência da desnutrição no Município foi estimada em 25,9%, sendo de 2,9% a prevalência de formas moderadas e nula a de formas severas. Através da comparação com estudo realizado há cerca de 10 anos, não se evidencia atenuação nos índices de desnutrição no Município, o que contrasta com a pronunciada queda observada nos coeficientes de mortalidade infantil e pré-escolar. A distribuição etária da desnutrição denota clara proteção do primeiro ano e concentração de casos na faixa etária subseqüente, fatos importantes que devem ser levados em conta tanto na investigação dos determinantes da desnutrição quanto na formulação de programas de controle. A distribuição do estado nutricional pelos diferentes estratos populacionais, além de confirmar a inconteste determinação sócio-econômica da desnutrição, evidencia que, no Município de São Paulo, a clientela potencial para os programas de prevenção e controle da desnutrição somaria pelo menos 400.000 crianças.

Saúde da criança; Inquéritos epidemiológicos; Estado nutricional; Antropometria


As part of a large epidemiological study focusing on child health in the City of S.Paulo (Brazil) a representative sample of under fives (n = 1013) was evaluated anthropometrically with a view to appraising their nutritional status. Prevalence of malnutrition in S.Paulo by Gomez criteria was estimated to be of 25.9%. Moderate malnutrition reached 2.9% and prevalence of severe forms was nill. In contrast to the dramatic fall experienced in infant and child mortality, no evidence of malnutrition amelioration was noticed when results were compared with those obtained by another study performed ten years before. Age distribution of malnutrition shows that children under one year are fairly well-protected and that incidence is concentrated in the second year of life. These are considered relevant facts which ought to be borne in mind both in research into the determinants of malnutrition and in the formulation of programs for its control. Besides conforming the unquestionable socieconomic determination of malnutrition, analyses of different population strata identified about 400,000 children as being the potential target group for the prevention and control of malnutrition in the city.

Child health; Health surveys; Nutritional status; Anthropometry


ARTIGO ORIGINAL

Estudo das condições de saúde das crianças do Município de São Paulo, SP, (Brasil), 1984-1985. II- Antropometria nutricional

A study of children's health in S.Paulo city (Brazil), 1984-1985. II. Nutritional anthropometry

Carlos Augusto MonteiroI; Maria Helena D'Aquino BenícioI; Hilda Paulina Pino ZuñigaII; Sophia Cornbluth SzarfarcI

IDo Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - Av. Dr. Arnaldo 715 - 01255 - São Paulo, SP - Brasil

IIDo Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco - Cidade Universitária - 50000- Recife, PE - Brasil

RESUMO

Como parte de amplo estudo epidemiológico sobre condições de saúde na infância, avaliou-se através de exame antropométrico o estado nutricional de urna amostra representativa das crianças menores de cinco anos residentes no Município de São Paulo, SP, Brasil (n = 1.013). Utilizando os critérios diagnósticos da classificação de Gomez, a prevalência da desnutrição no Município foi estimada em 25,9%, sendo de 2,9% a prevalência de formas moderadas e nula a de formas severas. Através da comparação com estudo realizado há cerca de 10 anos, não se evidencia atenuação nos índices de desnutrição no Município, o que contrasta com a pronunciada queda observada nos coeficientes de mortalidade infantil e pré-escolar. A distribuição etária da desnutrição denota clara proteção do primeiro ano e concentração de casos na faixa etária subseqüente, fatos importantes que devem ser levados em conta tanto na investigação dos determinantes da desnutrição quanto na formulação de programas de controle. A distribuição do estado nutricional pelos diferentes estratos populacionais, além de confirmar a inconteste determinação sócio-econômica da desnutrição, evidencia que, no Município de São Paulo, a clientela potencial para os programas de prevenção e controle da desnutrição somaria pelo menos 400.000 crianças.

Unitermos: Saúde da criança. Inquéritos epidemiológicos. Estado nutricional. Antropometria.

ABSTRACT

As part of a large epidemiological study focusing on child health in the City of S.Paulo (Brazil) a representative sample of under fives (n = 1013) was evaluated anthropometrically with a view to appraising their nutritional status. Prevalence of malnutrition in S.Paulo by Gomez criteria was estimated to be of 25.9%. Moderate malnutrition reached 2.9% and prevalence of severe forms was nill. In contrast to the dramatic fall experienced in infant and child mortality, no evidence of malnutrition amelioration was noticed when results were compared with those obtained by another study performed ten years before. Age distribution of malnutrition shows that children under one year are fairly well-protected and that incidence is concentrated in the second year of life. These are considered relevant facts which ought to be borne in mind both in research into the determinants of malnutrition and in the formulation of programs for its control. Besides conforming the unquestionable socieconomic determination of malnutrition, analyses of different population strata identified about 400,000 children as being the potential target group for the prevention and control of malnutrition in the city.

Uniterms: Child health. Health surveys. Nutritional status. Anthropometry.

O emprego do exame antropométrico na avaliação do estado nutricional de indivíduos ("antropometria nutricional") se fundamenta na evidência de que o crescimento e a manutenção das dimensões corporais exigem a presença de condições nutricionais ótimas, sobretudo quanto a ingestão e utilização biológica de calorias e proteínas. Tal evidência indica que indicadores antropométricos possam detectar com grande sensibilidade casos de desnutrição18,19.

Outro fator de sustentação do exame antropométrico na avaliação nutricional é o fato de que os distúrbios não nutricionais do crescimento tendem a ser bem menos freqüentes na população do que os distúrbios de natureza nutricional, ocorrência que se acentua em populações onde é alta a prevalência de déficits de crescimento. Tal situação indica que indicadores antropométricos possam também alcançar grande especificidade no diagnóstico da desnutrição18,19.

No caso específico dos primeiros anos de vida, o exame antropométrico, além de aferir o estado nutricional infantil, constitui-se importante preditor das chances de sobrevivência da criança7,14.

Em face das propriedades mencionadas e da factibilidade e baixo custo de sua operação em campo, o exame antropométrico é altamente recomendável em inquéritos que objetivam avaliar o estado nutricional de populações13,27.

No Brasil, o último (e, de fato, único) inquérito antropométrico-nutricional de caráter nacional foi realizado em 1974/758. Ainda que não completamente analisados, os dados do referido inquérito apontam alta prevalência de desnutrição nos Estados da região Nordeste, onde cerca de dois terços das crianças de um a quatro anos apresentavam pesos iguais ou inferiores a 90% dos valores esperados25. Nas regiões correspondentes aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, as prevalências encontradas foram algo menores, com cerca de 40% das crianças apresentando peso insuficiente25.

Especificamente em relação ao Município de São Paulo, o último inquérito antropométrico-nutricional ali realizado data igualmente de mais de dez anos (1973/74), quando constatou-se que cerca de um terço das crianças de um a quatro anos apresentava insuficiência ponderal2.

Recentemente foi concluída ampla pesquisa no Município de São Paulo com o objetivo de estabelecer as condições de saúde e nutrição de sua população de menores de cinco anos20. Em trabalho anterior21 foi publicada a metodologia completa da pesquisa e a descrição das características sócio-econômicas e ambientais da amostra estudada. No presente artigo serão apresentados e discutidos os resultados do inquérito antropométrico da pesquisa.

METODOLOGIA

A amostra estudada corresponde a 1.016 crianças residentes no Município de São Paulo com idade entre 0 e 59 meses. Chegou-se à referida amostra a partir de sorteio aleatório de 3.378 domicílios espalhados pelos 56 sub-distritos e distritos que compõem o Município. A quota de domicílios sorteada para cada sub-distrito e distrito foi função do número total de domicílios ali existentes e do número de crianças esperadas por domicílio. O processo completo da amostragem do estudo, descrito em artigo anterior21, evidencia o caráter probabilístico da amostra examinada e a representatividade dos achados com relação ao universo das crianças do Município.

A cobertura do exame antropométrico na amostra foi praticamente universal, alcançando 1.013 das 1.016 crianças estudadas. O exame foi realizado por médicos pediatras nos próprios domicílios das crianças e compreendeu tomada de peso e altura (comprimento até 24 meses e estatura a partir desta idade) e tomada de perímetro braquial e dobra cutânea tricipital (dados não abordados neste artigo). O treinamento dos médicos foi revisto previamente, familiarizando-se os mesmos com o uso do equipamento antropométrico da pesquisa: balança ITAC Model 800 com capacidade para 25 kg e divisão de 100 g.1 1 Balança portátil tipo "SALTER" que pode ser fixada através de um pequeno artefato de metal no topo de uma porta e que pesa a criança suspensa por uma fralda ou calção que se dependura na extremidade inferior da balança. Pormenores sobre o funcionamento das balanças tipo "SALTER" podem ser encontrados em publicação da "American Public Health Association" 1. , antropômetro e esquadro de madeira, fita métrica e medidor de dobra cutânea. A padronização do treinamento seguiu as recomendações propostas pela "American Public Health Association"1 sobre monitorização do crescimento.

O padrão de referência utilizado na avaliação das medidas de peso e altura das crianças foi o padrão construído pelo "National Center for Health Statistics" (NCHS), que é o padrão para uso internacional recomendado pela Organização Mundial da Saúde2 2 Todas as evidências atualmente disponíveis confirmam a hipótese de que o padrão de crescimento inscrito no padrão NCHS e perfeitamente atingível por populações como a brasileira, desde que, evidentemente, estas desfrutem adequadas condições de saúde e nutrição 10,22. 11,23. Especificamente para o caso da avaliação ponderal, fez-se uso do critério classificatório de Gomez e col.9 que indica formas leves de desnutrição (l.° grau) quando o peso da criança representar 76 a 90% do peso mediano esperado para idade e sexo, e formas moderadas (2.° grau) e severas (3.° grau) quando o peso representar, respectivamente, 60 a 75% e menos do que 60% do peso esperado. As crianças examinadas foram igualmente classificadas segundo a posição específica ocupada pelo seu peso e altura ao longo da distribuição dos valores normais do padrão de referência, objetivando obter-se não mais a prevalência de déficits antropométricos, mas o comportamento do perfil global de crescimento da amostra.

Na descrição da distribuição dos achados antropométricos foram consideradas as variáveis faixa etária e estrato sócio-econômico familiar, este identificado através do nível máximo de escolaridade obtido pelo chefe da família da criança (a escolha do nível de escolaridade como marcador do estrato sócio-econômico é discutida em publicação anterior21).

RESULTADOS

Prevalência da Desnutrição

Na Tabela 1 são apresentados os resultados obtidos com a aplicação da já referida Classificação de Gomez. Para o total da amostra, a prevalência global da desnutrição foi de 25,9%, correspondendo, a grande maioria dos casos, a formas leves de desnutrição (l.° grau). A prevalência de formas moderadas (2.° grau) chegou a 2,9%, não tendo sido observadas na amostra, formas severas da desnutrição (3.° grau). A prevalência global da desnutrição tendeu a aumentar com a idade da criança, sendo particularmente expressivo o salto do primeiro para o segundo ano de idade. Tal comportamento reflete sobretudo àquele observado quanto às formas leves de desnutrição, cuja freqüência quase dobra do primeiro para o segundo ano. O comportamento das formas moderadas, ao longo das idades, não é muito claro, registrando-se pequena subida do primeiro para o segundo ano, redução nos anos seguintes e novo aumento do quarto para o quinto ano.

Na Tabela 2 apresenta-se a distribuição sócio-econômica da prevalência da desnutrição, utilizando-se como indicador do estrato sócio-econômico familiar o nível da escolaridade do chefe da família a que pertencia a criança. A prevalência global da desnutrição apresenta nítida tendência de elevação à medida que se inferioriza o estrato sócio-econômico familiar. Do primeiro estrato, que corresponde a chefes de família com curso superior completo, ao sexto e último estrato, que corresponde a chefes de família sem nenhuma escolarização, a prevalência de desnutrição mais do que triplica. Ainda que de modo não linear, a prevalência das formas moderadas (2.° grau) também tende a subir com a piora do nível sócio-econômico, observando-se um aumento de cerca de duas e meia vezes entre o primeiro e o último estrato sócio-econômico.

Perfil do Crescimento

Objetivando obter o perfil de crescimento do conjunto das crianças examinadas, cada criança foi previamente classificada conforme seu peso e sua altura se situassem em relação a dez intervalos da distribuição de valores normais esperados por idade e sexo, correspondendo estes intervalos aos decis do padrão antropométrico de referência. A partir desta classificação, pôde-se apurar a freqüência de crianças presentes em cada intervalo ou decil do padrão. Dada a natureza da classificação efetuada, se o perfil do crescimento da população examinada acompanhar o padrão de referência, em cada intervalo (ou decil do padrão) serão encontradas proporções uniformes de crianças, ao redor de 10%. É evidente que se aquele perfil de crescimento não alcançar o padrão, freqüências superiores a 10% deverão ser encontradas nos primeiros intervalos e freqüências inferiores a 10% ocorrerão nos últimos intervalos. Tal desproporção tenderá a aumentar à medida que mais intensos e mais freqüentes forem os déficits de crescimento da população examinada.

Na Figura 1 pode-se observar a distribuição das crianças estudadas nos dez intervalos correspondentes ao decis do padrão de referência para peso e para altura. Com exceção do primeiro ano de vida, nas demais idades as distribuições encontradas, tanto para peso quanto para altura, são francamente desviadas para a esquerda, com excesso relativo de crianças nos primeiros decis e escassez das mesmas nos últimos decis. Tais distribuições evidenciam que, após o primeiro ano, o padrão de crescimento das crianças do Município, em seu conjunto, é inferior ao padrão esperado para crianças normais gozando de bom estado nutricional. No primeiro ano de vida, as distribuições de peso e de altura não apresentam desvio à esquerda, registrando-se, ao contrário, no caso da distribuição de peso, excesso relativo de crianças no último decil. Desta forma, pode-se dizer que no primeiro ano de vida o crescimento do conjunto das crianças do Município se faz a contento e, se ocorre alguma anormalidade antropométrica nesta idade, ela se deve à existência de um dado percentual de sobrepesos, ocasionados possivelmente por casos de obesidade na população.


A observação da seqüência dos perfis das distribuições de peso e altura ao longo das idades revela que o desvio à esquerda que aparece no segundo ano de vida não se amplifica consideravelmente nas idades seguintes. Dado o caráter potencialmente cumulativo que os déficits de peso e altura apresentam, tal fato aponta o segundo ano de vida como o período de maior vulnerabilidade para o crescimento e a nutrição da criança que vive em São Paulo. Também é interessante observar que os desvios à esquerda registrados nas distribuições do peso e da altura guardam certo paralelismo em todas as idades até os cinco anos. Tal fenômeno, na medida em que indica ser relativamente harmônico o comprometimento do crescimento, sugere o predomínio na população de formas crônicas de desnutrição, as quais atuam retardando a velocidade de crescimento do indivíduo sem determinar maior grau de expoliação de tecidos já formados.

Na Figura 2, as mesmas distribuições de peso e de altura são apresentadas, individualizando-se, neste caso, os perfis encontrados para os seis estratos sócio-econômicos em que se dividiu a população. O desvio à esquerda na distribuição de pesos surge de forma nítida a partir do estrato IV (correspondendo à instrução primária 3 3 Em relação à terminologia atualmente utilizada, os cursos primário, ginasial e colegial correspondem, respectivamente, as quatro primeiras séries do primeiro grau, às quatro últimas séries do primeiro grau e às três séries do segundo grau. do chefe de família) e se acentua nos estratos V e VI (correspondentes à instrução primária incompleta e à ausência de escolaridade). Nos estratos I, II e III (correspondentes às instruções superior, colegial3 3 Em relação à terminologia atualmente utilizada, os cursos primário, ginasial e colegial correspondem, respectivamente, as quatro primeiras séries do primeiro grau, às quatro últimas séries do primeiro grau e às três séries do segundo grau. e ginasial3 3 Em relação à terminologia atualmente utilizada, os cursos primário, ginasial e colegial correspondem, respectivamente, as quatro primeiras séries do primeiro grau, às quatro últimas séries do primeiro grau e às três séries do segundo grau. ) o perfil da distribuição de pesos não evidencia desvio à esquerda, ocorrendo, pelo contrário, certa tendência a excesso de crianças no último decil do padrão (sobretudo no estrato I), o que poderia sugerir a ocorrência nestes estratos de um determinado percentual de crianças obesas. Para as distribuições de altura, o quadro encontrado é o mesmo, com a exceção de que o desvio à esquerda parece se iniciar já no estrato III. Levando em conta a participação relativa de cada um dos estratos sócio-econômicos na composição da população do Município20, poder-se-ia dizer que um terço das crianças de São Paulo (estratos V e VI) é altamente vulnerável a agravos nutricionais, outro terço (estrato IV) apresenta vulnerabilidade intermediária e o terço seguinte (estratos I, II e III) é pouco ou nada vulnerável.


DISCUSSÃO

Uma discussão abrangente acerca da problemática nutricional da cidade de São Paulo, incluindo determinantes e conseqüências da situação encontrada, requer a consideração de outros resultados da pesquisa que não apenas aqueles procedentes do inquérito antropométrico. Tais resultados e a referida discussão serão motivo de publicações futuras. Os comentários que se seguem apenas pretendem salientar os achados principais da pesquisa quanto à magnitude e distribuição dos déficts antropométrico-nutricionais.

Utilizando os critérios diagnósticos da Classificação de Gómez, a prevalência da desnutrição no Município foi estimada em 25,9%, sendo 2,9% a prevalência de formas moderadas de desnutrição e nula a prevalência de formas severas. Tal quadro situa a cidade de São Paulo em posição privilegiada em relação ao conjunto de populações do Terceiro Mundo, onde se estima que a desnutrição atinja cerca de 70% das crianças, sendo de quase 30% apenas a prevalência de formas moderadas e severas5. Igualmente em relação ao Brasil, a situação de São Paulo pode ser considerada privilegiada: em cidades como Recife, João Pessoa e São Luiz estima-se em 50 a 70% a prevalência da desnutrição, ficando entre 10 e 25% a prevalência de formas moderadas e severas3. Entretanto, qualquer intento de otimismo excessivo cai por terra quando se considera que a cidade de São Paulo é o centro dinâmico de um Estado do Brasil cujos indicadores econômicos há muito se distanciaram daqueles observados em sociedades não desenvolvidas64 4 A renda per capita do Estado de São Paulo em 1983 foi de US$ 3,140.00, segundo informações da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE). .

Outra forma interessante de se abordar a questão da magnitude da desnutrição na cidade de São Paulo é considerar a evolução de sua prevalência ao longo do tempo. A realização em 1973/74 da pesquisa "Estado Nutricional das crianças de 6 a 60 meses no Município de São Paulo"12 oferece elementos para se estabelecer com relativa segurança a evolução observada nos últimos dez anos. Objetivando tal fim, foram refeitos os cálculos da prevalência da desnutrição em 1984/85, eliminando-se a faixa etária de menores de seis meses (não incluídos na amostra de 1973/74) e adotando-se o mesmo padrão antropométrico utilizado em 1973/74 (padrão Santo André Classe IV5 5 O padrão Santo André IV é um padrão antropométrico local construído a partir de crianças de alto nível sócio-econômico residentes em um município próximo à cidade de São Paulo. )16. Os resultados da comparação entre os dois estudos são apresentados na Tabela 3. Tais resultados não evidenciam nenhuma atenuação da prevalência da desnutrição no Município, seja quando considerado o conjunto dos casos, seja quando consideradas apenas as formas moderadas e severas da desnutrição. Há mesmo sugestão de um ligeiro acréscimo nas proporções de crianças desnutridas, o qual não chega, entretanto, a apresentar significância estatística.

A comprovada estagnação da prevalência da desnutrição nos últimos dez anos descarta de vez qualquer otimismo em relação à problemática nutricional enfrentada pela população de São Paulo e reclama firmes e urgentes medidas dos órgãos governamentais. Outra importante implicação política da estagnação da prevalência da desnutrição é o ingrediente novo que ela acrescenta ao quadro da evolução recente dos indicadores de saúde da cidade, os quais, até então, pareciam indicar situação excepcionalmente favorável: entre 1973 e 1983 o coeficiente de mortalidade infantil do Município caiu de 87,2%o, para 42,0%o, e o coeficiente de mortalidade pré-escolar de 3,45%o, para 0,99%o.6 6 Comunicação pessoal do SEADE.

Com relação à distribuição etária da prevalência da desnutrição, detectou-se um fato efetivamente auspicioso em São Paulo, qual seja a relativa proteção da faixa de idade correspondente ao primeiro ano de vida da criança. Tal proteção fica sobretudo clara quando se examinam os perfis de peso e altura da população, os quais indicam que a velocidade do crescimento estaria bastante bem preservada no primeiro ano. O caráter auspicioso da proteção do primeiro ano é evidente e decorre da relação inversa existente entre idade da criança e gravidade das conseqüências acarretadas pela desnutrição4. Diversas hipóteses poderiam ser cogitadas para explicar a menor vulnerabilidade do primeiro ano de vida à desnutrição: presença do aleitamento materno, maior cobertura do acompanhamento médico, recebimento de suplementação alimentar, menor incidência de diarréias, além de outras. A averiguação criteriosa das referidas hipóteses se apresenta, desde logo, como estimulante tarefa a ser empreendida a partir do conjunto das informações geradas pela pesquisa.

Ainda com relação à idade da criança, outro achado relevante foi a delimitação do segundo ano de vida como o período onde seriam mais freqüentes e intensos os agravos nutricionais ao crescimento. Entre outras implicações, tal ocorrência recomenda a oportunidade de se estender até pelo menos 24 meses de idade o acompanhamento médico sistemático da criança, o qual alcança grande cobertura apenas no primeiro ano de vida20.

A decisiva influência exercida pela condição sócio-econômica da família sobre o crescimento e o estado nutricional da criança foi amplamante demonstrada na investigação, confirmando diversos estudos anteriores realizados em São Paulo e em outras localidades brasileiras2,15,17,24,26. De importância particular e possível, graças ao emprego de técnica de avaliação de perfis de crescimento, foi a determinação de estratos sócio-econômicos da população submetidos a graus de risco claramente diferenciados. Tal determinação, além de proporcionar às atividades de assistência um prático indicador preditivo do estado nutricional infantil, antecipa a dimensão que os programas de prevenção e controle da desnutrição deveriam possuir na cidade de São Paulo: apenas considerando os estratos populacionais altamente vulneráveis (estratos V e VI), e tendo em conta sua participação na população do Município, a clientela potencial daqueles programas somaria cerca de 400 mil crianças.

Recebido para publicação em 18/07/1986

Aprovado para publicação em 09/09/1986

Realizado com auxílio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP (Convênio 4/1/83/0698/00) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP (Proc. 84/2463-3)

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  • 1
    Balança portátil tipo "SALTER" que pode ser fixada através de um pequeno artefato de metal no topo de uma porta e que pesa a criança suspensa por uma fralda ou calção que se dependura na extremidade inferior da balança. Pormenores sobre o funcionamento das balanças tipo "SALTER" podem ser encontrados em publicação da "American Public Health Association"
    1.
  • 2
    Todas as evidências atualmente disponíveis confirmam a hipótese de que o padrão de crescimento inscrito no padrão NCHS e perfeitamente atingível por populações como a brasileira, desde que, evidentemente, estas desfrutem adequadas condições de saúde e nutrição
    10,22.
  • 3
    Em relação à terminologia atualmente utilizada, os cursos primário, ginasial e colegial correspondem, respectivamente, as quatro primeiras séries do primeiro grau, às quatro últimas séries do primeiro grau e às três séries do segundo grau.
  • 4
    A renda per capita do Estado de São Paulo em 1983 foi de US$ 3,140.00, segundo informações da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE).
  • 5
    O padrão Santo André IV é um padrão antropométrico local construído a partir de crianças de alto nível sócio-econômico residentes em um município próximo à cidade de São Paulo.
  • 6
    Comunicação pessoal do SEADE.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1986

    Histórico

    • Revisado
      09 Set 1986
    • Recebido
      18 Jul 1986
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