Acessibilidade / Reportar erro

Disfunção Microvascular Coronariana: Isso Realmente Importa na Doença de Chagas?

Doença de Chagas/fisiopatologia; Microcirculação; Fatores de Risco; Inflamação; Aterosclerose; Isquemia Miocárdica

Há um crescente reconhecimento de que os distúrbios que afetam a estrutura e a função da microcirculação coronariana podem agir como mediadores-chave dos sintomas e prognóstico dos pacientes.11. Taqueti VR, Di Carli MF. Coronary microvascular disease pathogenic mechanisms and therapeutic options: Jacc state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2018;72(21):2625-41 O subconjunto de distúrbios que afetam a microcirculação é denominado disfunção microvascular coronariana (DMC), que é expressa como a incapacidade das artérias coronárias de se dilatarem de forma adequada para atender à demanda de oxigênio do miocárdio e/ou como a redução abrupta no fluxo sanguíneo coronário relacionado ao espasmo coronário.22. Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880.

Nas últimas 2 décadas, a DMC tem sido investigada ativamente em várias condições cardíacas em um amplo espectro de fatores de risco cardiovascular.22. Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880. , 33. Crea F, Camici PG, Bairey Merz CN. Coronary microvascular dysfunction: An update. Eur Heart J. 2013;35(17):1101-11. Eur Heart J. 2013;35(17):1101-11. A disfunção microvascular é desencadeada por inflamação sistêmica de baixo grau induzida por fatores de risco cardiovascular convencionais, incluindo hipertensão, diabetes, obesidade, dislipidemia e idade avançada.11. Taqueti VR, Di Carli MF. Coronary microvascular disease pathogenic mechanisms and therapeutic options: Jacc state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2018;72(21):2625-41 , 44. Camici PG, d’Amati G, Rimoldi O. Coronary microvascular dysfunction: Mechanisms and functional assessment. Nat Rev Cardiol . 2015;12(1):48-62. Esse espectro de anormalidades provavelmente pode ser ampliado pela presença de aterosclerose epicárdica.

Apesar de extensas investigações, os mecanismos subjacentes à DMC não são totalmente compreendidos.11. Taqueti VR, Di Carli MF. Coronary microvascular disease pathogenic mechanisms and therapeutic options: Jacc state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2018;72(21):2625-41 Vários mecanismos funcionando isoladamente ou em combinação foram propostos para explicar a patogênese desse distúrbio. Há evidências crescentes demonstrando que as anormalidades funcionais, incluindo disfunção endotelial e das células musculares lisas, têm papel fundamental na regulação do fluxo sanguíneo coronariano em resposta às necessidades cardíacas de oxigênio.22. Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880. Além disso, a aterosclerose difusa nas artérias coronárias epicárdicas também desempenha um papel ao afetar a função da microvasculatura. De fato, as evidências contemporâneas apoiam a coexistência da DMC com aterosclerose coronariana obstrutiva na maioria dos pacientes afetados.11. Taqueti VR, Di Carli MF. Coronary microvascular disease pathogenic mechanisms and therapeutic options: Jacc state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2018;72(21):2625-41

Embora não haja uma definição universalmente aceita para a DMC,55. Kothawade K, Bairey Merz CN. Microvascular coronary dysfunction in women: Pathophysiology, diagnosis, and management. Curr Probl Cardiol. 2011;36(8):291-318. ela geralmente é definida como a síndrome clínica da angina, evidência de isquemia miocárdica na ausência de doença arterial coronariana obstrutiva.66. Ong P, Camici PG, Beltrame JF, Crea F, Shimokawa H, Sechtem U, et al. International standardization of diagnostic criteria for microvascular angina. Int J cardiol. 2018;250:16-20 Como a microcirculação coronária está além da resolução da angiografia coronariana, o diagnóstico de DMC é baseado na avaliação funcional das artérias coronárias, que pode ser realizada por métodos invasivos e não-invasivos. A angiografia coronária invasiva com testes de função da artéria coronária é a abordagem preferencial para avaliar pacientes com DMC. Uma avaliação abrangente da função microvascular inclui o teste dos dois principais mecanismos de disfunção microvascular. A vasodilatação microvascular do endotélio deficiente é medida pela reserva de fluxo coronariano (RFC) e pelo índice de resistência microcirculatória (IRM) e disfunção dependente do endotélio deficiente, que avalia a indução de espasmo epicárdico ou microvascular após uma injeção intracoronária de acetilcolina.22. Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880. O teste não-invasivo pode avaliar apenas marcadores substitutos da função coronária.

Em contraste com a doença arterial coronariana obstrutiva em que as anormalidades da perfusão têm distribuição regional, o comprometimento miocárdico na DMC pode ser um processo generalizado, resultando em anormalidades difusas da perfusão miocárdica.22. Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) é o padrão de referência para avaliação não-invasiva do fluxo sanguíneo miocárdico.

Na doença de Chagas, estudos experimentais e clínicos sustentam a hipótese de que a DMC pode estar implicada na patogênese do dano miocárdico.77. Rossi MA. Microvascular changes as a cause of chronic cardiomyopathy in chagas’ disease. Am Heart J . 1990;120(1):233-6.

8. Marin-Neto JA, Cunha-Neto E, Maciel BC, Simoes MV. Pathogenesis of chronic chagas heart disease. Circulation . 2007;115(9):1109-23.

9. Rossi MA, Tanowitz HB, Malvestio LM, Celes MR, Campos EC, Blefari V, et al. Coronary microvascular disease in chronic chagas cardiomyopathy including an overview on history, pathology, and other proposed pathogenic mechanisms. PLoS Negl trop Dis. 2010;4(8):2674.
- 1010. Rabelo DR, Rocha MO, de Barros MV, Silva JL, Tan TC, Nunes MC. Impaired coronary flow reserve in patients with indeterminate form of chagas’ disease. Echocardiography . 2014;31(1):67-73 A infecção por T. cruzi pode levar a anormalidades microvasculares funcionais e estruturais, que contribuem para a isquemia miocárdica e sintomas. Semelhante à doença arterial coronariana, a cardiomiopatia chagásica pode afetar o miocárdio de maneira regional com anormalidades segmentares da contratilidade. Entretanto, apesar desses achados sugerirem isquemia miocárdica, a angiografia coronariana invariavelmente demonstra ausência de aterosclerose obstrutiva afetando as artérias coronárias epicárdicas.88. Marin-Neto JA, Cunha-Neto E, Maciel BC, Simoes MV. Pathogenesis of chronic chagas heart disease. Circulation . 2007;115(9):1109-23. Além disso, o comprometimento da vasodilatação coronariana dependente do endotélio em resposta à acetilcolina foi relatado em pacientes com cardiomiopatia chagásica.1111. Torres FW, Acquatella H, Condado JA, Dinsmore R, Palacios IF. Coronary vascular reactivity is abnormal in patients with chagas’ heart disease. Am Heart J. 1995;129(5):995-1001. Ademais, estudos anteriores mostraram anormalidades de perfusão miocárdica em pacientes com artérias coronárias epicárdicas normais, reforçando o conceito de regulação anormal do fluxo miocárdico em nível microvascular.88. Marin-Neto JA, Cunha-Neto E, Maciel BC, Simoes MV. Pathogenesis of chronic chagas heart disease. Circulation . 2007;115(9):1109-23. , 99. Rossi MA, Tanowitz HB, Malvestio LM, Celes MR, Campos EC, Blefari V, et al. Coronary microvascular disease in chronic chagas cardiomyopathy including an overview on history, pathology, and other proposed pathogenic mechanisms. PLoS Negl trop Dis. 2010;4(8):2674.

Com essa revisão em mente, é interessante ler o artigo de Campos et al.,1212. Campos FA, Magalhães ML, Moreira HT, Pavão RB, Lima-Filho MO, Lago IM, et al. Estudo Comparativo da Doença Coronariana Microvascular Causada por Doença de Chagas e por Outras Etiologias. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(6):1094-1101. nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Neste estudo, os investigadores avaliaram pacientes encaminhados para angiografia coronária invasiva apresentando angina e suspeita de isquemia miocárdica. Entre os 1.292 pacientes submetidos à angiografia coronária, 247 apresentavam doença arterial coronariana epicárdica não-significativa, 101 pacientes preencheram os critérios de inclusão e foram incluídos no estudo. Posteriormente, esses pacientes com suspeita de DMC foram estratificados em dois grupos de acordo com o diagnóstico de doença de Chagas, sendo 15 pacientes com doença de Chagas e 86 com doença não-Chagas. Os pacientes com doença de Chagas apresentaram maior prevalência de anormalidades regionais da contratilidade miocárdica e menor fração de ejeção do ventrículo esquerdo em comparação com aqueles que tinham suspeita de DMC relacionada aos outros fatores de risco cardiovascular. Este estudo destacou a importância da doença de Chagas como potencial etiologia para DMC, independentemente dos fatores de risco convencionais para esse distúrbio.

No presente estudo, o diagnóstico de DMC foi baseado na ausência de doença coronariana epicárdica obstrutiva. No entanto, a DMC é definida pela presença da reserva de fluxo coronariano limitado e /ou disfunção endotelial coronariana associada à tríade clássica de dor torácica persistente, ausência de doença arterial coronariana obstrutiva e evidência objetiva de isquemia miocárdica induzida por testes de estresse. De fato, a perfusão miocárdica avaliada pela cintilografia (SPECT) foi realizada apenas em um subgrupo de 19 pacientes (18,8%), o que foi uma limitação do estudo. Portanto, mais estudos sobre DMC no contexto da cardiomiopatia chagásica são necessários para avançar nosso entendimento nesta área.

Referências

  • 1
    Taqueti VR, Di Carli MF. Coronary microvascular disease pathogenic mechanisms and therapeutic options: Jacc state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2018;72(21):2625-41
  • 2
    Vancheri F, Longo G, Vancheri S, Henein M. Coronary microvascular dysfunction. J Clin Med. 2020;9(9):2880.
  • 3
    Crea F, Camici PG, Bairey Merz CN. Coronary microvascular dysfunction: An update. Eur Heart J. 2013;35(17):1101-11. Eur Heart J. 2013;35(17):1101-11.
  • 4
    Camici PG, d’Amati G, Rimoldi O. Coronary microvascular dysfunction: Mechanisms and functional assessment. Nat Rev Cardiol . 2015;12(1):48-62.
  • 5
    Kothawade K, Bairey Merz CN. Microvascular coronary dysfunction in women: Pathophysiology, diagnosis, and management. Curr Probl Cardiol. 2011;36(8):291-318.
  • 6
    Ong P, Camici PG, Beltrame JF, Crea F, Shimokawa H, Sechtem U, et al. International standardization of diagnostic criteria for microvascular angina. Int J cardiol. 2018;250:16-20
  • 7
    Rossi MA. Microvascular changes as a cause of chronic cardiomyopathy in chagas’ disease. Am Heart J . 1990;120(1):233-6.
  • 8
    Marin-Neto JA, Cunha-Neto E, Maciel BC, Simoes MV. Pathogenesis of chronic chagas heart disease. Circulation . 2007;115(9):1109-23.
  • 9
    Rossi MA, Tanowitz HB, Malvestio LM, Celes MR, Campos EC, Blefari V, et al. Coronary microvascular disease in chronic chagas cardiomyopathy including an overview on history, pathology, and other proposed pathogenic mechanisms. PLoS Negl trop Dis. 2010;4(8):2674.
  • 10
    Rabelo DR, Rocha MO, de Barros MV, Silva JL, Tan TC, Nunes MC. Impaired coronary flow reserve in patients with indeterminate form of chagas’ disease. Echocardiography . 2014;31(1):67-73
  • 11
    Torres FW, Acquatella H, Condado JA, Dinsmore R, Palacios IF. Coronary vascular reactivity is abnormal in patients with chagas’ heart disease. Am Heart J. 1995;129(5):995-1001.
  • 12
    Campos FA, Magalhães ML, Moreira HT, Pavão RB, Lima-Filho MO, Lago IM, et al. Estudo Comparativo da Doença Coronariana Microvascular Causada por Doença de Chagas e por Outras Etiologias. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(6):1094-1101.
  • Minieditorial referente ao artigo: Estudo Comparativo da Doença Coronariana Microvascular Causada por Doença de Chagas e por Outras Etiologias

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br