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Tendências da demanda pelo ensino superior: estudo de caso da UFMG

Demand tendences for university education: UFMG's case study

Resumos

O artigo analisa a demanda pelo ensino de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - na década de 90, considerando os seguintes aspectos: perfil socioeconômico dos candidatos; fatores que influenciaram a demanda e as preferências por áreas e cursos; o papel da oferta dos cursos noturnos sobre a demanda e as diferenças existentes entre os cursos que oferecem, ou não, a habilitação licenciatura. A demanda cresceu exponencialmente a partir de 1995, crescimento este centrado em candidatos da escola pública e pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo. O aumento mais acentuado da procura ocorreu nos cursos de mais baixo prestígio social da área biológica e em todos os de licenciatura. Verificou-se, também, uma nítida seletividade social associada à escolha da carreira: alguns cursos, de elevado prestígio social, para os quais a aprovação exige notas elevadas, são preferidos pelos candidatos da classe média alta, enquanto os pertencentes aos estratos sociais menos favorecidos optam geralmente por outros nos quais a aprovação pode ser alcançada com desempenho mediano. A abertura de cursos noturnos caracteriza-se como um aspecto da democratização do acesso ao ensino superior.

ENSINO SUPERIOR; UFMG; ACESSO À EDUCAÇÃO; CONCURSO VESTIBULAR


This paper analyzes the demand for undergraduate courses in Federal University of Minas Gerais during the decade of 90, considering the following aspects: candidates' social and economic profile; factors which influenced the student's demand; the existing differences among courses that offer or not teaching licenses. The demand grew exponentially from 1995 on, having this growth been due to public school and lower income classes students' demand. The most pronounced increase in the demand occurred in the courses with lower social prestige of the biological area and in all those that offer teaching licenses. It also showed the presence of a clear social selectivity associated with the career choice: some of the courses, of high social prestige, to which the application test requires higher grades are preferred by the candidates from the high medium classes while the ones who belong to lower social and economic stratum generally choose others for which the approval can be achieved with medium results. The offer of evening courses shows as an aspect of democratic access to the university course.


Tendências da demanda pelo ensino superior: estudo de caso da UFMG* * Pesquisa financiada pelo Fundo de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig.

Demand tendences for university education: UFMG's case study

Mauro Mendes BragaI; Maria do Carmo L. PeixotoII; Tânia F. BogutchiIII

IInstituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais; braga@icex.ufmg.br

IIFaculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; mcarmo@fae.ufmg.br

IIIMestranda pelo Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais; bogutchi@uai.com.br

RESUMO

O artigo analisa a demanda pelo ensino de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – na década de 90, considerando os seguintes aspectos: perfil socioeconômico dos candidatos; fatores que influenciaram a demanda e as preferências por áreas e cursos; o papel da oferta dos cursos noturnos sobre a demanda e as diferenças existentes entre os cursos que oferecem, ou não, a habilitação licenciatura. A demanda cresceu exponencialmente a partir de 1995, crescimento este centrado em candidatos da escola pública e pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo. O aumento mais acentuado da procura ocorreu nos cursos de mais baixo prestígio social da área biológica e em todos os de licenciatura. Verificou-se, também, uma nítida seletividade social associada à escolha da carreira: alguns cursos, de elevado prestígio social, para os quais a aprovação exige notas elevadas, são preferidos pelos candidatos da classe média alta, enquanto os pertencentes aos estratos sociais menos favorecidos optam geralmente por outros nos quais a aprovação pode ser alcançada com desempenho mediano. A abertura de cursos noturnos caracteriza-se como um aspecto da democratização do acesso ao ensino superior.

ENSINO SUPERIOR – UFMG – ACESSO À EDUCAÇÃO – CONCURSO VESTIBULAR

ABSTRACT

This paper analyzes the demand for undergraduate courses in Federal University of Minas Gerais during the decade of 90, considering the following aspects: candidates' social and economic profile; factors which influenced the student's demand; the existing differences among courses that offer or not teaching licenses. The demand grew exponentially from 1995 on, having this growth been due to public school and lower income classes students' demand. The most pronounced increase in the demand occurred in the courses with lower social prestige of the biological area and in all those that offer teaching licenses. It also showed the presence of a clear social selectivity associated with the career choice: some of the courses, of high social prestige, to which the application test requires higher grades are preferred by the candidates from the high medium classes while the ones who belong to lower social and economic stratum generally choose others for which the approval can be achieved with medium results. The offer of evening courses shows as an aspect of democratic access to the university course.

INTRODUÇÃO

O acesso ao ensino superior permanece como uma questão atual da política educacional brasileira. No texto da Lei n. 5.540/68, que reformou o ensino superior no período militar, o vestibular unificado e classificatório tem sido a forma única de acesso, inserida dentro do conjunto de medidas destinadas a enfrentar o aumento da demanda que se verificou na década de 60, tornando-se, da maneira que está estabelecido, um mecanismo importante para solucionar o problema dos "excedentes", que o modelo anterior permitia.

A atual Lei de Diretrizes e Bases, que tem a flexibilidade como um de seus eixos (Cury, 1997), não estabelece um tipo único de seleção e permite experimentar novos modelos. Em decorrência disso, novas modalidades de seleção estão sendo propostas, debatidas e praticadas, paralelamente ao questionamento dos processos antigos ainda em vigor.

A demanda por vagas é, sem dúvida, uma questão crucial no que concerne ao acesso ao ensino superior, tendo recebido tratamento diferenciado no transcorrer da história mais recente. Na década de 60, a expansão da demanda e a escassez de vagas acarretaram o problema dos "excedentes", bem como a necessidade do estabelecimento de critérios para regular a necessária ampliação de vagas. No final da década de 70 e início dos anos 80, duas questões ganharam relevância: a retração da procura no setor privado e a existência de considerável número de vagas ociosas no setor público1 1 . Foi nesse contexto que o "crédito educativo" foi formulado, como mecanismo destinado a viabilizar o ensino privado, e que algumas universidades públicas vieram a adotar estratégias de ocupação das vagas ociosas. .

Na década de 90, o aumento expressivo de estudantes que concluem o ensino médio e os novos desafios da educação no contexto de economias globalizadas trazem para o debate a perspectiva de expansão da cobertura do sistema de ensino superior. O objetivo das autoridades é fazer com que o país saia do modesto patamar de 12% de jovens entre 18 e 24 anos que se encontram matriculados nesse nível de ensino, ampliando-o para além dos 30%, em curto prazo. Assim, vista como "sintoma de desajuste do nosso sistema de ensino" para atender à necessidade de profissionais qualificados nas décadas de 60 e 70 (Franco, 1985, p. 16), a demanda pelo ensino superior converteu-se, na segunda metade da década de 90, em componente do projeto educacional do governo, no qual se inclui a reforma da educação superior (Ministério da Educação e do Desporto – MEC, 1996).

Os autores deste artigo desenvolveram pesquisa relativa à evasão na UFMG e, nessa ocasião, foram consideradas as características socioeconômicas dos candidatos ao vestibular. Os resultados obtidos nessa pesquisa estimularam a realização de um estudo específico, abordando a demanda pelo ensino superior nessa universidade, uma das maiores do país, e que está diante da perspectiva de, a curto prazo, ter uma procura de cem mil candidatos. Uma reflexão sobre o comportamento dessa demanda na última década torna-se importante, não só para avaliar e reformular seu processo de seleção, mas também como contribuição ao debate nacional do tema, buscando encontrar mecanismos que, centrados no exame de mérito dos candidatos, tenham qualidade técnica e não acentuem as desigualdades sociais.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Consideram-se os concursos vestibulares da década de 90. As informações necessárias ao estudo foram obtidas na Comissão Permanente de Vestibular. Os dados socioeconômicos resultam de questionários preenchidos pelos candidatos, à época em que se inscreveram para o concurso e só estão disponíveis para o período 92/99.

Para descrever o perfil socioeconômico dos candidatos, construiu-se uma escala de fator socioeconômico – FSE. Essa escala considera os seguintes itens, aos quais se atribuíram os valores zero, um ou dois, na ordem apresentada: tipo de escola média freqüentada (pública ou privada), tipo de curso médio freqüentado (profissionalizante ou colegial), turno no qual estudou na escola média (noturno ou diurno), situação de trabalho ao inscrever-se no vestibular (trabalhava ou não), renda familiar (inferior a 10 salários mínimos – SM –, entre 10 e 20 SM ou maior do que 20 SM), nível de instrução dos pais (nenhum deles com formação superior, um deles com formação superior ou ambos com formação superior); e tipo de profissão do responsável (típica de classe média baixa/proletariado, típica de classe média ou típica de classe média alta/burguesia). A escala varia de zero a dez e é discreta para cada estudante em particular, sendo tanto melhor a situação socioeconômica quanto maior o valor de FSE. Os valores médios calculados para grupos de estudantes, no entanto, foram tomados com variação contínua2 2 . Por exemplo, para um estudante específico o valor de FSE é 4 ou 5, mas para um grupo de estudantes pode ser 4,3. Para maiores detalhes, ver Peixoto, Braga e Bogutchi, 2000. . A necessidade de se definir uma escala específica para mensurar o perfil socioeconômico, ao invés de utilizar modelos já disponíveis, decorre do fato de não se dispor, para todo o período do estudo, do conjunto completo de informações necessárias para o emprego de tais modelos. No entanto, os autores verificaram, utilizando dados referentes ao ano de 1997, que a escala FSE é diretamente proporcional a outra escala socioeconômica, construída por Soares e Fonseca (1998), usando o sistema de classificação da Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas de Mercado, com correlação superior a 0,97. Acredita-se, portanto, que a escala FSE reproduza, comparativamente, padrões socioeconômicos tecnicamente aceitáveis.

Tendo em vista as diferenças expressivas observadas entre os perfis dos candidatos para um mesmo curso, quando ofertado nos turnos diurno e noturno, utilizaram-se os conceitos de carreiras e cursos. Carreira corresponde a uma determinada área do conhecimento que leva a um diploma de graduação, enquanto a denominação de curso identifica o turno de oferecimento, sendo que, quando funcionam em um único turno, curso e carreira se confundem. Assim, por exemplo, a UFMG oferece a carreira de Administração com dois cursos, o diurno e o noturno, e oferece a carreira ou curso de Medicina.

Todos os cursos de Engenharia (Controle e Automação; Civil; Elétrica; Mecânica; Metalúrgica; Minas e Química), foram englobados em uma única carreira, denominada "Engenharias". A razão para isso é que existem grandes similaridades no perfil dos candidatos e na variação da demanda para esses cursos, independentemente de essa demanda ser mais alta ou mais baixa, para esse ou aquele curso de Engenharia. As diferenças mais significativas observadas foram as seguintes: o valor médio do FSE para os concorrentes de Engenharia de Minas e Engenharia Metalúrgica é menor do que para as demais Engenharias; a demanda para Engenharia Química é equilibrada, em termos de sexo dos candidatos, enquanto nos demais cursos ela é flagrantemente masculina; a concorrência para Engenharia de Minas oscila bastante, de ano para ano, sem qualquer regularidade, ao contrário do observado nos demais cursos da área, para os quais se observa uma regularidade bem definida na variação da demanda.

ANÁLISE DOS DADOS

O comportamento da demanda

A demanda para os cursos de graduação na UFMG dobrou na década de 90, conforme ilustra a figura 1. O aumento foi gradual, embora tenha ocorrido em alguns anos uma estabilização e, até mesmo, uma retração da procura. No período de 90 a 93, a demanda oscilou em torno de 30 mil candidatos, patamar já alcançado no início da década anterior3 3 .No período entre 81 a 85 e no ano de 87, a procura superou 30 mil concorrentes, embora jamais tenha chegado a 35 mil candidatos, ao longo da década. Por sua vez, o número de vagas não se alterou na década. . Só a partir de meados dos anos 90 a tendência de crescimento consolidou-se.


O crescimento da procura reflete, em parte, o aumento no número de concluintes do ensino médio em Minas Gerais, que, segundo dados fornecidos pelo Inep, passou de cerca de 50 mil, em 1990, para quase 150 mil, em 1997. Quase todo esse crescimento ocorreu na rede pública, que formava 25 mil estudantes em 1990 e passou a formar quase 120 mil em 1997. Na rede privada, nesse mesmo período, o número de concluintes passou de 25 mil para 33 mil, em valores aproximados. Essa característica do crescimento de ensino médio, como será discutido mais adiante, acarretou uma alteração significativa no perfil da demanda por vagas na UFMG. Considerando-se as políticas implementadas pelo estado de Minas4 4 . Na gestão do Governador Azeredo, por exemplo, implementaram-se várias medidas, visando à redução do tempo de permanência dos alunos no ensino básico, entre eles o programa Acertando o Passo. e a ênfase da União na busca por maior eficiência no ensino fundamental, as tendências de crescimento da rede pública e de estabilização da rede privada deverão se acentuar mais ainda nos próximos anos5 5 . Em 1996, estavam matriculados no ensino médio, em Minas Gerais, cerca de 470 mil alunos na rede pública e 110 mil na rede privada. Em 1998, esses números foram alterados para, respectivamente, 620 mil e 109 mil, conforme dados obtidos no Inep. .

Embora o aumento da demanda decorra do crescimento do número de concluintes do ensino médio, não há proporcionalidade direta entre essas variáveis. Em geral, a procura cresce a uma taxa bem menor do que o número de estudantes que conclui o ensino médio. Em alguns anos, observa-se até uma queda no número de candidatos, mesmo tendo ocorrido acréscimo naquele número de concluintes.

Medidas no âmbito da universidade também se refletem na demanda. A criação de cursos e o aumento de vagas e de facilidades para a inscrição ou para a realização das provas estimularam a procura. Em 1994, por exemplo, o número de concluintes do ensino médio cresceu 14%, enquanto a demanda aumentou quase 20% em relação ao ano anterior, em decorrência da abertura de cursos noturnos de licenciatura. Nos dois anos anteriores e subseqüentes a 1994, ainda que o número de concluintes do ensino médio tenha crescido em percentuais não inferiores a 14%, a demanda por vagas decresceu ou registrou crescimento muito inferior aos 20% daquele ano.

Demanda versus oferta de vagas

O crescimento da procura não foi acompanhado por aumento correspondente da oferta, conforme mostra a tabela 1. Em conseqüência, a relação candidato/vaga cresceu em média de 9 em 1990, para mais de 15 em 1999 (Tab. 2). Além disso, a maior oferta de vagas nem sempre ocorreu nas áreas onde o crescimento da procura foi mais significativo. Acentuou-se o desequilíbrio entre demanda e oferta na área biológica, enquanto na área de exatas a oferta e a demanda cresceram em proporções mais equilibradas. Em conseqüência, a relação média candidato/vaga, na primeira área, aumentou mais de 100%, passando de menos de 11 para mais de 23, e na segunda esse aumento foi bem menor, de cerca de 7,5 para 10.

O aumento do interesse pela área de ciências biológicas e o contraponto da perda de prestígio da área de ciências exatas parecem ser fenômenos universais. Em entrevista ao Jornal do Brasil (Lagôa, 1999) o Professor Jacob Pallis, talvez o matemático de maior prestígio científico do Brasil, apontou a Biologia como a ciência do próximo século, prognosticando que ela viria a ocupar a posição central que a Física ocupa há 150 anos.

Além disso, estudos realizados em várias universidades dos Estados Unidos indicavam, já em 1995, a rejeição de boa parte dos jovens americanos, sobretudo os do sexo feminino, para as carreiras da área de exatas (Seymour, 1995). Também na Europa há perda de prestígio das carreiras dessa área e bolsistas de graduação brasileiros, da área de Engenharia, estão recebendo convites para permanecerem na Alemanha, após a conclusão do programa de intercâmbio.

Na área de artes, por outro lado, houve um acentuado aumento percentual da procura, mas este fato deve ser visto com cautela, uma vez que a demanda por esta área ainda é muito baixa: apenas 1% dos candidatos procuraram seus cursos em 1999. Por sua vez, a área de ciências humanas acompanhou as mudanças observadas na universidade como um todo, seja em termos da demanda ou da oferta de vagas e cursos. A relação média candidato/vaga para esta área, assim como para a universidade, passou de 9 para 15.

A variação da demanda por carreira

Analisando-se apenas as carreiras que ofereceram vagas em toda a década (Fig. 2) observa-se, no que se refere à variação da demanda, a presença de três grupos distintos. O primeiro é composto pelas carreiras cuja procura encontra-se em declínio ou vem aumentando em proporção bem inferior à média; o segundo, por aquelas cujo comportamento tende a reproduzir o padrão mediano observado para a UFMG; e o terceiro, pelas carreiras cuja demanda cresceu bem acima do padrão médio6 6 . Assim classificadas aquelas cuja variação de demanda superou a 200%. .


O primeiro grupo é constituído basicamente por carreiras da área de exatas, em particular os cursos de Engenharia, e por aquelas das "ciências gerenciais" (Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas). Os cursos de Odontologia e Filosofia são exceções nesse conjunto. O segundo grupo engloba, geralmente, carreiras tradicionais e/ou de elevado prestígio social. O último grupo é constituído por carreiras que podem ser englobadas em duas categorias ou mesmo que pertencem a ambas as categorias: aquelas vinculadas a cursos da área biológica de baixo prestígio social e aquelas que se destinam, pelo menos em parte, a formar profissionais para a educação básica. A exceção é a carreira de Biblioteconomia, que não se encaixa nem em uma nem em outra dessas categorias.

As carreiras que registraram grande aumento de procura não foram aquelas de alta relação candidato/vaga, conforme mostra a figura 2. Para todas as carreiras cuja procura superou duas vezes a média da UFMG, a relação candidato/vaga foi inferior, e geralmente bem inferior, à média da universidade.

As carreiras para as quais a relação candidato/vaga se aproxima ou supera a média da UFMG, geralmente, registraram crescimento de demanda próximo à média da universidade. Para duas delas, Administração e Odontologia, a procura foi numericamente estável ao longo da década, o que resultou em acentuado decréscimo relativo da demanda; para uma terceira, Fisioterapia, o aumento da procura foi cerca de duas vezes maior do que a média. No caso das carreiras de Direito, Comunicação, Computação e Medicina, a demanda aumentou em taxas similares à da UFMG.

A variação da demanda nos cursos que oferecem licenciatura

A tabela 2 compara a evolução do número de cursos, de vagas e da procura das carreiras que formam professores para o ensino médio com aquela referente às que não formam estes profissionais. Observa-se a prioridade que vem sendo dada pela universidade à licenciatura: 2/3 dos novos cursos e mais de 1/3 das novas vagas foram destinadas à essa área. A procura de vagas nessas carreiras, por sua vez, cresceu 2,5 vezes mais do que nas outras. A relação candidato/vaga média nas carreiras que oferecem licenciatura passou de menos de 4 para mais de 9, enquanto nas outras evoluiu de pouco mais de 12 para cerca de 18,5. Embora o crescimento da procura tenha sido superior, e na maioria dos casos muito superior, à média da UFMG, para todas as carreiras que oferecem a habilitação licenciatura, a relação candidato/vaga correspondente não aumentou na mesma proporção, uma vez que foi exatamente nessa área que a oferta de cursos e vagas mais cresceu.

O crescimento da procura pela licenciatura está associado a diversos fatores. Por um lado, o país atravessa uma crise econômica, com aumento das taxas de desemprego, enquanto a rede pública de ensino tem-se expandido, oferecendo empregos para professores, ainda que com salários relativamente baixos. Por outro, a própria política educacional enfatiza o papel do professor no atual contexto, quer seja por meio dos princípios fixados na Lei de Diretrizes e Bases – LDB –, com relação às novas exigências de titulação docente para o exercício do magistério, quer seja pelos mecanismos de financiamento, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef. Além desses componentes, específicos do Brasil, o crescimento da demanda pela área de formação de professores para a escola média parece também resultar de uma tendência mundial, conforme observou o Professor Antônio Nóvoa, da Universidade de Lisboa, em recente entrevista ao jornal O Estado de Minas (Arce, 2000).

Demanda e perfil socioeconômico

Parte dessa mudança de perfil na procura por vagas pode ser explicada quando se consideram as características socioeconômicas dos candidatos ao vestibular, sintetizadas na escala FSE. Julga-se também conveniente realçar nesta análise uma das variáveis utilizadas para a construção desta escala: o percentual de candidatos que concluíram o ensino médio em escola pública.

A tabela 3 coteja, por carreira, a procura por vagas na UFMG nos anos de 1992 e 19997 7 . Nesse caso, a comparação tem que ser feita com o ano de 1992, uma vez que esse é o primeiro ano para o qual os dados socioeconômicos estão disponíveis. , em relação a estes aspectos. Verifica-se que, para a UFMG, o valor médio de FSE não se alterou, enquanto o percentual de concorrentes de escolas públicas cresceu cerca de 10%. O fato de o valor médio de FSE praticamente não ter se alterado, no entanto, não indica que a proporção dos candidatos pertencentes à classe média baixa tenha sido aproximadamente constante no período. O que está ocorrendo é que a condição socioeconômica dos candidatos mais privilegiados está melhorando, compensando, no valor médio de FSE, o aparecimento de uma maior fração de candidatos oriundos dos estratos inferiores da classe média, como pode ser observado na figura 3.


A variação da concorrência relativa mostra alguma associação com a da escala FSE. Em geral, o aumento expressivo da concorrência está associado a um de créscimo no valor médio de FSE, levando a crer numa democratização da procura. O inverso, entretanto, não é observado e uma significativa diminuição da concorrência pode estar associada tanto a um decréscimo como a um aumento de FSE. No caso das carreiras ligadas às "ciências gerenciais" e das Engenharias, o decréscimo de procura está geralmente associado a uma diminuição do valor médio de FSE, ou seja, essas carreiras estão deixando de ser procuradas preferencialmente pelos concorrentes de melhor perfil socioeconômico. Já para Direito, Odontologia e Veterinária observa-se o inverso: elas estão deixando de ser procuradas pelos candidatos menos favorecidos socioeconomicamente8 8 .O percentual de candidatos com FSE entre zero e cinco, para o conjunto dessas três carreiras, em média não ponderada, passou de 54% em 92 para 47% em 99. .

Situação similar é observada quando a variação da concorrência relativa é cotejada com o percentual de candidatos oriundos da escola pública. Aumentos expressivos de demanda associam-se a maior proporção de concorrentes da escola pública. É o que ocorre, por exemplo, nas carreiras de Biblioteconomia, Ciências Biológicas e Enfermagem. Entretanto, uma diminuição da concorrência relativa tanto pode se associar a um aumento quanto a um decréscimo no percentual de candidatos de escola pública. Para Administração, Ciências Contábeis, Ciências Econômicas e Engenharias, carreiras em que a concorrência relativa sofreu pronunciado decréscimo, observou-se aumento significativo da fração de candidatos oriundos da escola pública; em Odontologia e Veterinária, carreiras para as quais a concorrência também decresceu, verificou-se o inverso.

As observações dos últimos parágrafos sinalizam a existência de uma seletividade social associada à escolha da carreira. Essa suposição é reforçada ao se compararem os valores médios de FSE para as diversas carreiras, apresentados na tabela 3. As carreiras de elevado prestígio social registram médias que se aproximam de seis, enquanto nas de baixo prestígio social, em particular aquelas que oferecem a habilitação licenciatura, a média chega a ser inferior a três. Essa seletividade social aguçou-se ao longo da década: em geral as carreiras com maiores médias de FSE, em 1992, apresentaram aumento desta média em 1999, enquanto para aquelas com menores valores de FSE observou-se o contrário. Nove das dez carreiras de maiores médias de FSE em 1992 permaneceram assim em 1999, o mesmo ocorrendo com as dez carreiras de menores médias de FSE.

Na mesma direção observa-se também que, em muitas carreiras, a demanda é essencialmente das escolas públicas, enquanto em outras ocorre o inverso. Em apenas cinco carreiras – Medicina, Odontologia, Veterinária, Fisioterapia e Comunicação Social9 9 . Para três outras carreiras, Belas-Artes, Música e, sobretudo, Direito, o aumento da fração de candidatos da escola pública foi bem inferior ao observado para o conjunto das carreiras. – verificou-se um decréscimo do percentual de candidatos oriundos da escola pública. Em todas elas, a fração de concorrentes da escola pública já era pequena em 1992, confirmando que a seletividade social na escolha da carreira está se tornando mais intensa.

Convém realçar que não estamos falando da seletividade social associada ao sucesso no vestibular, um tema que abordaremos em outro trabalho. Estamos tratando aqui de processo seletivo intrínseco a estudantes que reconhecem não ter condições de concorrência em cursos de maior prestígio social. Aqueles que desconhecem essa realidade pagam um custo elevado pela falta de informação. A título de exemplo, mencionamos que, para o período 1992/1999, no curso de Direito, de cada oito candidatos com FSE maior do que 7, um foi aprovado, enquanto entre os candidatos com FSE menor do que 3, apenas um em cada cem foi bem-sucedido. Já no curso de Enfermagem, esses dois grupos de estudantes têm chances de aprovação similares e a cada treze concorrentes um foi aprovado.

Ainda como exemplo, é interessante cotejar o que ocorre, em relação a tal aspecto, com as carreiras de Direito e Medicina, que apresentam, ambas, médias elevadas de FSE. Entre os candidatos, a diferença do FSE médio alcança quase 20%, enquanto para os aprovados ela não chega a 3%. O que ocorre é que o percentual de candidatos de Medicina com FSE menor do que 3 é de apenas 10%, enquanto para Direito é de 20%. No entanto, em ambas as carreiras, as chances de sucesso desses candidatos são muito pequenas: cerca de 1% para Direito e de 1,4% para Medicina; já para os candidatos com FSE maior do que sete, esses percentuais são, respectivamente, 13% e 8,5%. Ou seja, os jovens das classes menos favorecidas cada vez mais compreendem o grau de dificuldade que têm para lograr aprovação no curso de Medicina e dirigem sua demanda para outros cursos da área biológica, em especial Enfermagem e Ciências Biológicas, nos quais a sua chance de sucesso é bem maior; em ambos os cursos, a possibilidade de êxito dos concorrentes com FSE menor do que três é de cerca de 7%. Já em relação ao curso de Direito, parte desses estudantes ainda mantém a esperança de estudar na UFMG. Como vimos, para 99% deles essa esperança não passa de uma ilusão.

A seletividade social associada à escolha de carreira é também ilustrada na figura 4, na qual são comparados os histogramas de FSE para as carreiras de Direito, Medicina, Matemática e Pedagogia. O quartil 1 corresponde aos candidatos cujas famílias pertencem aos estratos sociais menos favorecidos. Os dados apresentados não deixam dúvidas quanto a essa seletividade.


Em síntese, a alteração do perfil da demanda na década parece estar associada a três fatores principais. O primeiro deles é o aumento da proporção de candidatos da classe média baixa. Esses estudantes parecem estar conscientes de que a sua chance de êxito é pequena, caso escolham carreiras mais tradicionais ou mais bem-conceituadas quanto às perspectivas de ganhos financeiros. Sendo assim, optam por carreiras de menor prestígio, como aquelas que oferecem a habilitação licenciatura, para as quais concorrem com razoável probabilidade de sucesso. Talvez eles avaliem que essas carreiras tornarão possível consolidar um processo de mobilidade social em relação às suas famílias, hipótese que se mostrou verdadeira em estudo anteriormente realizado com os graduados em Química pela UFMG (Peixoto, Carvalho, Braga, 1999).

O segundo desses fatores refere-se à perda relativa de prestígio de algumas carreiras, em especial as Engenharias e aquelas associadas às "ciências gerenciais", que parecem ser rejeitadas exatamente pelos candidatos de melhor perfil socioeconômico. Finalmente, no caso das carreiras ou de grande prestígio social ou que projetam a imagem de possibilitar elevados rendimentos, verifica-se uma diminuição da fração dos candidatos de situação socioeconômica menos favorecida. Para as carreiras de Medicina, Fisioterapia, Direito e Comunicação Social, tal fato é compensado por uma concorrência cada vez maior dos estudantes pertencentes às famílias de maior poder aquisitivo, de tal forma que elas mantêm um aumento de procura próximo à média da UFMG. Já no caso de Veterinária e, sobretudo, Odontologia, essa compensação é apenas parcial, e a melhoria do perfil socioeconômico dos candidatos é acompanhada por um expressivo decréscimo da demanda relativa.

As questões de gênero

A figura 1 mostra que as mulheres, maioria entre os concorrentes em 1990, consolidaram essa prevalência ao longo da década, aumentando a sua proporção entre os candidatos de 55% para 59%. Em média, o percentual de estudantes do sexo feminino que no período considerado se inscreveram para o vestibular da UFMG foi de 58%.

As mulheres concentram a procura nas carreiras das áreas biológicas e de humanas, sendo geralmente pequeno o seu interesse pela área de exatas. Em todas as nove carreiras da primeira área (ver tabela 3), a percentagem de candidatos do sexo feminino ultrapassa 50%, sendo que em seis delas é maior do que 58%. Na área de humanas, que envolve 13 carreiras, a concorrência feminina supera a masculina em oito delas, sendo que em seis supera também o percentual médio de mulheres no conjunto da universidade. Nas ciências exatas, do total de dez carreiras, em três a proporção de mulheres é maior do que a de homens, sendo que somente em uma10 10 . Arquitetura, aqui classificada como da área de ciências exatas em razão do sistema Conselhos Federal e Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Confea/Creas. essa proporção ultrapassa 58%.

Ao longo da década, o interesse de homens e mulheres por cursos da área biológica aumentou, como mostra a figura 5. Em 1999, quase a metade das mulheres optaram por carreiras dessa área, enquanto mais de 40% escolheram carreiras de humanas, reduzindo-se ainda mais o já pequeno interesse observado em 1990 pela área de exatas. No caso dos homens, a procura foi, em todo período, mais ou menos equilibrada entre as três áreas, equilíbrio que se tornou mais nítido no final da década.


As questões de turno

Dentre os fatores que contribuíram para o aumento da demanda destaca-se a abertura de cursos noturnos. Em 1990, a UFMG ofertava apenas três cursos no período da noite, tendo criado outros oito ao longo da década, contra quatro no diurno11 11 . Constam da figura apenas dez e não onze cursos, em razão de o curso de Ciências Contábeis ser ofertado apenas no noturno. . O mesmo ocorreu em relação à oferta de vagas: mais de 2/3 do total criado foi ofertado à noite. Seria, portanto, natural que a universidade passasse a ser procurada em maior proporção por aqueles estudantes que não podem freqüentar aulas durante o dia. Sobretudo, levando-se em consideração que o aumento do número de concluintes do ensino médio ocorreu principalmente na rede pública e, muitas vezes, em cursos noturnos. Isso de fato é o que se constata, e enquanto a procura pelos cursos diurnos cresceu 95%, a dos noturnos aumentou 177%.

A concorrência para os cursos oferecidos no turno da noite, quando comparada àquela dos cursos diurnos correspondentes, apresenta perfil socioeconômico de estratos menos favorecidos, conforme pode ser verificado nas figuras 6 e 7, nas quais a comparação é feitaexclusivamente no intervalo de tempo em que as carreiras foram oferecidas em ambos os turnos, estando o período discriminado após o nome das carreiras. As diferenças são expressivas, podendo-se afirmar, mesmo sem conhecer a informação correspondente para o conjunto dos candidatos aprovados12 12 . Esta hipótese se confirma, quando se determinam os valores médios de FSE para os candidatos aprovados. , que, pelo menos no caso da UFMG, a abertura de cursos noturnos está contribuindo para democratizar o acesso ao ensino superior público.



A carreira de Administração é o melhor exemplo disto. A média de FSE para o curso diurno supera inclusive aquela observada para Arquitetura e Medicina. Quando se consideram cursos e não carreiras, o de Administração diurno é o que apresenta o maior valor médio de FSE. No entanto, se os cursos diurno e noturno de Administração são tomados em conjunto, o valor de FSE para a carreira cai expressivamente – de 6,3 para 4,7 – de tal forma que esta média, em ordem decrescente, é agora apenas a 14a do conjunto das carreiras.

Da mesma forma, o percentual de candidatos de escolas públicas no noturno supera a média da universidade, que foi de 47%, enquanto no diurno ele é inferior ao observado para Medicina.

Quando se compara a concorrência, no início e no final da década, das carreiras que oferecem cursos noturnos, há duas situações diversas. No caso das "ciências gerenciais", os cursos noturnos já eram ofertados na década passada e a sua procura, em termos numéricos, praticamente não se alterou em dez anos. Resulta daí uma queda da concorrência relativa, conforme já observado. Nesse caso, talvez o fator determinante para essa variação da demanda tenha sido a perda de prestígio dessas carreiras, ainda que a de Administração mantenha-se como uma das que apresentam maior relação candidato/vaga, registrando, em 1990, a segunda maior relação candidato/vaga, baixando para a sétima, em 1999; a carreira de Ciências Contábeis, só oferecida à noite, era a sexta e passou a ser a 21ª.

As outras carreiras que oferecem cursos à noite são vinculadas à licenciatura13 13 . Na prática, a UFMG oferece também Direito no período noturno, mas esta oferta é informal, não havendo inscrição de candidatos por turno. e, salvo História e Pedagogia, o curso noturno só passou a ser ofertado na década de 90. Aqui, observou-se grande crescimento na procura, o que parece ter sido, em parte, conseqüência da abertura do turno da noite, uma vez que a iniciativa ofereceu novas opções para o estudante que trabalha, em uma área cujo prestígio, pelas razões expostas, vem aumentando. Resulta daí que, no caso de cursos oferecidos nos dois turnos, a concorrência à noite geralmente supera a do dia.

CONCLUSÕES

Durante a década, ocorreram expressivas alterações na demanda pelos cursos de graduação da UFMG. É possível que essas mudanças, em suas linhas gerais, apresentem componentes que não sejam específicos dessa universidade ou do Estado de Minas Gerais. Acreditamos que esse processo de mudança forneça subsídios importantes para as políticas de ensino superior no país, em especial no que se refere à oferta de vagas e às formas de ingresso.

Os dados obtidos neste estudo parecem indicar que se estão delineando, de forma nítida, as seguintes tendências na procura pelo ensino superior público:

1. Crescimento exponencial da demanda, centrada em candidatos oriundos da rede pública do ensino médio e pertencentes a famílias com baixo poder aquisitivo.

2. Aumento da fração de candidatos provenientes de famílias com elevado poder aquisitivo, o que resulta, naturalmente, numa menor percentagem de candidatos pertencentes a famílias com situação socioeconômica mediana.

3. Aumento mais acentuado da procura está localizado nos cursos da área biológica, naqueles que oferecem a habilitação licenciatura e nos que funcionam à noite.

4. Perda progressiva de interesse pela área de exatas, excetuados os cursos de licenciatura, e pelas carreiras da "área gerencial".

5. Concentração dos candidatos de alto poder aquisitivo em cursos de elevado prestígio social, para os quais só conseguirão ser selecionados os que obtiverem excelente rendimento nas provas; preferência dos concorrentes da classe média baixa por cursos de baixo prestígio social, nos quais pode-se obter a vaga com desempenho mediano14 14 . Para ilustrar este aspecto menciona-se que, em 2000, a UFMG ofereceu vagas em 51 cursos. Para dois deles, Medicina e Fisioterapia, o mínimo necessário para aprovação foi igual ou superior a 70%; para seis (Engenharia de Minas, Engenharia Metalúrgica, Pedagogia Noturno, Estatística, Geologia e Biblioteconomia Noturno), foi inferior a 40%. .

6. Abertura de cursos noturnos, observada sobretudo a partir de 1994 e nas áreas de licenciatura, acarretou maior democratização no acesso ao ensino superior público.

O cenário enseja algumas reflexões sobre o acesso ao ensino superior público. O vestibular tem sido visto como um filtro social em si mesmo. Não é raro atribuir-se a este exame a culpa pela alto grau de seletividade social que, inegavelmente, associa-se à admissão de estudantes para o ensino superior público. O que vimos neste trabalho foi que essa seletividade atua, sobretudo, no momento da escolha da carreira. São poucos os candidatos que desafiam a hierarquia não escrita dos cursos e carreiras.

Alternativas têm sido propostas para minimizar essa seletividade social e algumas delas podem ter efeito contrário ao desejado, potencializando a sua ação. Isto é certamente o que pode ocorrer com o vestibular por áreas, caso a escolha das áreas não respeite a hierarquia não escrita das carreiras. O vestibular da UFMG de 2000 pode ser tomado como exemplo. Se os cursos de Direito e de Biblioteconomia estivessem agrupados em uma mesma área, para efeito de seleção, não seria aprovado sequer um dos candidatos que optaram por Biblioteconomia, cujo perfil socioeconômico, ao contrário dos inscritos para Direito, é de classe média baixa. Situação similar ocorreria com diversos outros cursos, em especial os cursos noturnos e os que oferecem a habilitação licenciatura, exatamente aqueles que admitem, em maior proporção, candidatos oriundos da escola pública.

Pode-se argumentar que o modelo de seleção atualmente adotado pela UFMG reserva para os candidatos pertencentes às famílias de pior estrato social as vagas dos cursos que são rejeitados pela classe média alta. É verdade. No entanto, essa situação é melhor do que a de anos atrás, quando esses estudantes sequer chegavam a bater às portas da universidade. Isto é também socialmente menos injusto do que recusar candidatos que desejam cursar Biblioteconomia, admitindo em seu lugar outros que, em larga escala, usarão a Biblioteconomia apenas como um "cursinho", para facilitar o seu ingresso em Direito. Assim, correr-se-ia o risco de, além de elitizar ainda mais o acesso ao ensino superior público, diminuir a sua eficiência, aumentando o custo por aluno formado.

A alternativa de seleção que está sendo cogitada e praticada é a avaliação seriada, que requer entre três e seis baterias de provas. Para os candidatos de menor poder aquisitivo, trata-se de uma verdadeira corrida de obstáculos, sobretudo quando necessitam deslocar-se para outra cidade. Esse modelo aumenta as chances dos que podem se preparar em "cursinhos"15 15 . Registre-se a existência, nos colégios de elite de Belo Horizonte, de "cursinhos" destinados a preparar, desde o primeiro ano da escola média, os candidatos que desejarem prestar o exame seriado da Universidade de Brasília – UnB. . Reservar uma fração das vagas para quem pode submeter-se à avaliação seriada talvez seja uma decisão que aguce mais a seletividade social.

O desafio de tornar socialmente mais justo o acesso ao ensino superior público requer medidas de lenta maturação e de significado mais profundo do que alterações cosméticas aplicadas no processo de seleção. Um pedaço deste caminho vem sendo percorrido. O substancial aumento de vagas ocorrido no ensino médio público está contribuindo para minorar a dívida. A abertura de cursos noturnos e o aumento de vagas nas licenciaturas também. A manutenção de programas adequados de apoio aos estudantes carentes no ensino superior, para evitar que, após vencer a barreira do acesso, eles venham a sucumbir às dificuldades da permanência é outra medida importante. Uma alternativa ainda pouco explorada e que merece ser levada em conta é a organização de bons cursos pré-vestibulares para candidatos de baixa renda ou que provêm de minorias da sociedade, uma vez que existem fortes indícios de que a freqüência a tais cursos aumenta as chances de sucesso do estudante16 16 . Conforme indicam resultados preliminares de pesquisa realizada sobre o tema pelos autores e ainda não publicada. . Essa iniciativa evidentemente não poderia ser das universidades, mas poderia ser por elas estimuladas (Amaral, 2000).

Todas essas medidas podem reduzir, e estão reduzindo, a interferência dos fatores socioeconômicos na seleção para o ensino superior público. O seu alcance, entretanto, é limitado e pode se tornar nulo pela adoção de processos seletivos equivocados. Enquanto persistirem as enormes desigualdades sociais no nosso país; enquanto o sistema de ensino acentuar essas desigualdades, oferecendo ensino de qualidade diferenciada para distintos estratos sociais; enquanto a sociedade estabelecer um sistema estratificado de profissões, que projeta perspectivas desiguais de ganhos na profissão para, por exemplo, médicos e advogados de um lado, e para bibliotecários e professores, de outro, serão muito poucos os filhos de famílias humildes que conseguirão tornar-se médicos ou advogados.

  • AMARAL, M. Cursinho para pobres. Caros Amigos, n. 35, p. 13-5, fev. 2000.
  • ARCE, T. Magistério em alta. O Estado de Minas Caderno Campus, p. 8, 18 abr. 2000.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Política Educacional. Uma nova política para o ensino superior brasileiro, subsídios para discussão (Trabalho apresentado no Seminário Nacional sobre Ensino Superior, Brasília, 16 e 17 de dezembro de 1996)
  • CURY, C. R. J. A Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: uma reforma educacional? In: CURY, C. R. J. et al. Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB e PNE. São Paulo: Ed. do Brasil, 1997. p. 91-135.
  • FRANCO, M. A. C. Acesso à universidade: uma questão política e um problema ideológico. Educação e Seleção, n. 12, p. 5-8, jul./dez. 1985.
  • LAGÔA, A. Cada vez mais matemática. Jornal do Brasil Caderno Empregos, p. 51, 1º ago. 1999.
  • PEIXOTO, M. C. L.; BRAGA, M. M.; BOGUTCHI, T. F. A Evasão no ciclo básico da UFMG Belo Horizonte: PROGRAD/UFMG, 2000. (Cadernos de Avaliação 3)
  • PEIXOTO, M. C. L.; CARVALHO, M. G. M.; BRAGA, M. M. Perfil dos formandos do curso de Química da UFMG na década de 90. Avaliação/Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, v. 4, n.2, jun. 1999.
  • SEYMOUR, E. The Loss of women from science, mathematics and engeneering undergraduated majors: na explanatory account. Science Education, v. 79, n. 4, p. 437-73, 1995.
  • SOARES, J. F.; FONSECA, A. J. Fatores socioeconômicos e desempenho no vestibular da UFMG-97. Belo Horizonte: UFMG, 1998. (Relatório Técnico do Departamento de Estatística)
  • *
    Pesquisa financiada pelo Fundo de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – e pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig.
  • 1
    . Foi nesse contexto que o "crédito educativo" foi formulado, como mecanismo destinado a viabilizar o ensino privado, e que algumas universidades públicas vieram a adotar estratégias de ocupação das vagas ociosas.
  • 2
    . Por exemplo, para um estudante específico o valor de FSE é 4 ou 5, mas para um grupo de estudantes pode ser 4,3. Para maiores detalhes, ver Peixoto, Braga e Bogutchi, 2000.
  • 3
    .No período entre 81 a 85 e no ano de 87, a procura superou 30 mil concorrentes, embora jamais tenha chegado a 35 mil candidatos, ao longo da década. Por sua vez, o número de vagas não se alterou na década.
  • 4
    . Na gestão do Governador Azeredo, por exemplo, implementaram-se várias medidas, visando à redução do tempo de permanência dos alunos no ensino básico, entre eles o programa Acertando o Passo.
  • 5
    . Em 1996, estavam matriculados no ensino médio, em Minas Gerais, cerca de 470 mil alunos na rede pública e 110 mil na rede privada. Em 1998, esses números foram alterados para, respectivamente, 620 mil e 109 mil, conforme dados obtidos no Inep.
  • 6
    . Assim classificadas aquelas cuja variação de demanda superou a 200%.
  • 7
    . Nesse caso, a comparação tem que ser feita com o ano de 1992, uma vez que esse é o primeiro ano para o qual os dados socioeconômicos estão disponíveis.
  • 8
    .O percentual de candidatos com FSE entre zero e cinco, para o conjunto dessas três carreiras, em média não ponderada, passou de 54% em 92 para 47% em 99.
  • 9
    . Para três outras carreiras, Belas-Artes, Música e, sobretudo, Direito, o aumento da fração de candidatos da escola pública foi bem inferior ao observado para o conjunto das carreiras.
  • 10
    . Arquitetura, aqui classificada como da área de ciências exatas em razão do sistema Conselhos Federal e Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Confea/Creas.
  • 11
    . Constam da figura apenas dez e não onze cursos, em razão de o curso de Ciências Contábeis ser ofertado apenas no noturno.
  • 12
    . Esta hipótese se confirma, quando se determinam os valores médios de FSE para os candidatos aprovados.
  • 13
    . Na prática, a UFMG oferece também Direito no período noturno, mas esta oferta é informal, não havendo inscrição de candidatos por turno.
  • 14
    . Para ilustrar este aspecto menciona-se que, em 2000, a UFMG ofereceu vagas em 51 cursos. Para dois deles, Medicina e Fisioterapia, o mínimo necessário para aprovação foi igual ou superior a 70%; para seis (Engenharia de Minas, Engenharia Metalúrgica, Pedagogia Noturno, Estatística, Geologia e Biblioteconomia Noturno), foi inferior a 40%.
  • 15
    . Registre-se a existência, nos colégios de elite de Belo Horizonte, de "cursinhos" destinados a preparar, desde o primeiro ano da escola média, os candidatos que desejarem prestar o exame seriado da Universidade de Brasília – UnB.
  • 16
    . Conforme indicam resultados preliminares de pesquisa realizada sobre o tema pelos autores e ainda não publicada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2001
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