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Poranduba: roda de histórias indígenas

RESENHAS

Poranduba: roda de histórias indígenas

Narcimária Correia do Patrocínio LuzI

I Professora titular plena do Departamento de Educação Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, coordenadora do Programa Descolonização e Educação e membro da Rede Mundial de Artistas em Aliança pelo Reencantamento do Mundo.narciomi@terra.com.br

Poranduba: histórias, notícias e perguntas que vêm do coração da floresta

RUTE CASOY (ORG.) RIO DE JANEIRO: NAU, 2009, 64 P.

Na dinâmica das comunalidades africano-brasileiras, quando nos deparamos com algo importante para fortalecer os laços comunitários, costumamos usar a expressão "odara". O termo, que significa simultaneamente bom e bonito, constitui a infinitude do repertório técnico e estético de linguagens, que estruturam modos e formas de comunicação de comunidades tradicionais africano-brasileiras. Esses modos de comunicação são atravessados por um universo simbólico singular, que dá forma às narrativas de elaboração de mundo, promovendo a participação direta, pessoal, ou intergrupal, constituindo hierarquias, instituições, repertório de mitos, contos, cantigas, códigos de cores, música polirrítmica, vestuário, códigos de gestos, compondo danças e dramatizações, culinária, estruturação de territorialidades etc.

Por meio da ética da coexistência, vimos nas Américas um intercâmbio profícuo de valores de civilização entre os povos indígenas e africanos, a exemplo do Quilombo dos Palmares; das comunidades que reverenciam o caboclo considerado ancestral, fundador da terra, da participação de indígenas e africanos/as na independência da Bahia, e que até hoje são celebrados pela simbologia do caboclo e da cabocla sempre no dia 2 de julho.

Desse modo, quando nos aproximamos do acervo organizado por Rute Casoy, intitulado Poranduba..., reagimos com alegria, dizendo odara!

Rute Casoy, que para este trabalho contou com o apoio do Ministério da Cultura e do Programa Petrobrás Cultural, é socióloga pela École Pratique de Hautes Études en Sciences Sociales Paris VII e, nesse âmbito, produziu o estudo Pensamento mítico, sob a coordenação do professor Marc Augé, e trabalhou como arte-educadora na Cartoucherie de Vincennes no Atelier du Chaudron; é também autora de diversos textos para teatro com premiações na França e no Brasil e fundadora do Grupo Roda de Histórias Indígenas, no qual atua como contadora de histórias do universo mítíco indígena.

"Poranduba", que na língua tupi quer dizer história, notícia ou pergunta (p.12), é uma obra que aborda a simbologia milenar dos povos da floresta, suas elaborações ético-estéticas, de modo especial as recriações de linguagens e valores que imantam as comunalidades indígenas brasileiras. A obra legitima valores milenares que, mna maioria das vezes, chegam até nós, educadores/as, confinados a visões do mundo urbano-industrial. A estrutura, forma e conteúdo do livro provocam o leitor/a, utilizando texturas, cores, dobras, ilustrações, poesias, narrativas, músicas, que envolvem simbologias características do imaginário de distintos povos. Acervo singular que reúne narrativas sobre os princípios fundadores das comunidades indígenas: a transcendência da vida, a importância do corpo comunitário, as estratégias de transmissão da tradição - herança dos antepassados. As narrativas transmitem conhecimento e emoção, criando uma atmosfera de magnetismo.

Rute Casoy compartilha a obra com lideranças "indígenas" como Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé, Cristino Wapixana, Álvaro Tukano, Fabiano Kaxinawá, Pajé Kaba Biboy Munduruku e Naná Vasconcelos. Daniel Munduruku comenta:

O projeto Poranduba é desafio de beleza. Por meio dele o caminho é sempre meio - se chega à essência da cultura indígena brasileira. Digo isso porque sei que o que dá sentido ao ser indígena é a ancestralidade presente nas narrativas tradicionais de nossa gente. É ela - a ancestralidade - que lembra o tempo todo do nosso pertencimento aos eventos que movem o cosmos em direção ao seu criador... É pelas narrativas ancestrais que sabemos quem somos e para onde vamos e isso nos torna gratos e festivos, motivando-nos a pintar o corpo e a criar canções e passos de danças que permitem unir-nos à obra da criação divina. Ouvir essa narrativas é, portanto, ser partícipe; é estar integrado com palavras sábias que vêm de muito longe atravessando o tempo como a nos lembrar que somos fagulhas na grande fogueira cósmica. É trazer a força do mundo para dentro de cada ouvinte como uma música a ser deliciada. (p.10)

As histórias, notícias e perguntas que vêm do coração da floresta são apresentadas através de alguns povos, a saber: bororo, desana, guarani, kaiapó, kaingang, karajá, kamaiurá, kaxinawá, krenak, kuikuro, macuxi, mawé, munduruku, nambikwara, taulipang, tikuna, tukano, waijãpi, wapixana e xavante. Rute Casoy reconhece a existência de centenas de povos indígenas, mas teve o cuidado de dedicar-se a aprofundar aspectos do universo mítico simbólico de alguns deles, evitando a superfície que folcloriza e apequena o patrimônio milenar dessas civilizações.

O livro é acompanhado de quatro CDs que trazem histórias e músicas dramatizadas destinadas a comunicar aspectos relacionados a temas como: "criação e amor"; "metamorfose e magia"; "fogo, água, céu e terra"; "plantas e animais". Trilhas sonoras, que dão vida às narrativas contidas nos CDs, foram criadas especialmente para os contextos de cada tema/história por Pedro Bernardes e Thiago Queiroz.

Rute Casoy teve o cuidado de apresentar no final do livro aspectos metodológicos importantes e desdobramentos da sua trajetória na Roda de Histórias Indígenas:

...um coletivo aberto que existe desde 1995. Tem como missão ressignificar a brasilidade, alimentar o imaginário, provocar reflexão, diálogo intercultural e solidariedade, através da narração de histórias e seus desdobramentos, em vivências lúdicas e criativas. (p.12)

Cumpre chamar a atenção do leitor para a transcendência da abordagem contida em Poranduba..., que recusa o recalque das metanarrativas etnocêntricas-evolucionistas, as quais insistem em uma relação fixada nos conceitos finitos, a saber: "redescobrimento", "deslumbramento diante do outro", "identidades híbridas e sem fronteiras" etc.

Para os educadores/as que acreditam na linguagem lúdico-estética como um canal para transmitir conhecimentos e afirmar o direito à alteridade civilizatória dos povos indígenas, a obra é uma contribuição inestimável, uma vez que a Lei n.11.645/08, de 27 de março de 2008, institui a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura dos povos indígenas.

Poranduba... constituiu um legado importante, uma vez que permite o conhecimento da história que caracteriza o que somos, nossas origens, nossos/as ancestrais e, principalmente, a base de uma ética de futuro, para que a existência do planeta, e todas as formas de vida, se expanda, deixando florescer o direito à alteridade das civilizações.

NARCIMÁRIA CORREIA DO PATROCÍNIO LUZ narciomi@terra.com.br

Professora titular plena do Departamento de Educação Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, coordenadora do Programa Descolonização e Educação e membro da Rede Mundial de Artistas em Aliança pelo Reencantamento do Mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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