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Docência do direito: fragmentação institucional, gênero e interseccionalidade

Law courses: institutional fragmentation, gender and intersectionality

Enseignement du Droit: fragmentation institutionnelle, genre et intersectionnalité

Docencia del derecho: fragmentación institucional, género e interseccionalidad

RESUMO

O texto aborda a docência do Direito e sua fragmentação institucional, relacionando-as aos hibridismos do profissionalismo. Olha a diversificação social de seus professores - com a incorporação das mulheres e da diferença racial - como embates, encontros de diferenças e negociações identitárias que geram hierarquizações e descentramentos. O objetivo do artigo é mostrar como esses processos globalmente difundidos descentram o perfil docente, ao mesmo tempo que engendram a estratificação que intersecciona gênero e raça com titulação, localização regional, tipos institucionais e regime de trabalho. Apresentam-se indicadores desse deslocamento, que não erradicam desigualdades e dominação nem se restringem à reprodução de um padrão hegemônico fixo. Baseia-se em dados secundários sobre os cursos de Direito, extraídos do Censo Nacional do Ensino Superior, de 2012, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep -, e a análise é ilustrada com material qualitativo.

Palavras chave:
Profissão; Trabalho Docente; Direito; Mulheres

Abstract

The text addresses the legal academy and its fragmentation, relating them to the hybridization of professionalism. It considers the social diversification of professors - with the incorporation of women and racial difference - as confrontations, encounters and negotiations of identity differences that generate hierarchies and decentralizations. The purpose of the article is to show how these globally widespread processes decentralize the teaching profile, while at the same time they engender the stratification that intersects gender and race with titling, regional location, institutional types and working conditions. Indicators of this displacement, which neither eradicate inequality and domination nor restrict the reproduction of a fixed hegemonic pattern, are presented. The article is based on secondary data on law courses, taken from the National Higher Education Census of 2012, Inep, and illustrates the analysis with qualitative material.

Keywords:
Profession; Teaching Practice; Law; Women

Résumé

Ce texte met en rapport l’enseignement du Droit et de sa fragmentation institutionnelle, avec les hybridismes propres à la profession. La diversification sociale des professeurs, avec l’incorporation des femmes et de la diversité raciale est perçue comme des enjeux, des rencontres entre differents et des négociations identitaires engendrant des hierarchisations et des décentrements. L´objectif de cet article est de montrer que ces processus provoquent un décentrement du profil enseignant et engendrent une stratification qui de, par son intersectionnalité, recoupe diverses questions telles que celles de genre, race, région, types de institution et régimes de travail. Plusieurs indicateurs de ce déplacement sont presentés ces indicateurs n´eradiquent ni les inegalités ni la domination sans pour autant se limiter a reproduire un modèle hégémonique fixe. L´analyse s´appuye sur des données sécondaires sur des cours de Droit, extraites du recensement National de l’Enseignement Supérieur de l’INEP, 2012, et est illustrée avec un aspect qualitatif.

Mots Clés:
Profession; Enseignement; Droit; Femmes

Resumen

El texto aborda la docencia del Derecho y su fragmentación institucional, relacionándolas a los hibridismos del profesionalismo. Considera la diversificación social de sus profesores -con la incorporación de las mujeres y de la diferencia racial- como embates, encuentros de diferencias y negociaciones de identidad que generan jerarquizaciones y descentramientos. El objetivo del artículo es mostrar cómo tales procesos globalmente difundidos descentran el perfil docente, mientras engendran la estratificación que ocasiona intersecciones entre género y raza con titulación, localización regional, tipos institucionales y régimen de trabajo. Se presentan indicadores de tal desplazamiento, que no erradican desigualdades y dominación ni tampoco se restringen a la reproducción de un patrón hegemónico fijo. El estudio se basa en datos secundarios sobre los cursos de Derecho, extraídos del Censo Nacional de la Educación Superior de 2012 de Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira -Inep-, el análisis es ilustrada con material cualitativo.

Palabras Clave:
Profesión; Trabajo Docente; Derecho; Mujeres

Várias pesquisas internacionais sobre as profissões jurídicas, nos países de direito civil ou de direito consuetudinário (ABEL; LEWIS, 1988ABEL, Richard L.; LEWIS, Philip S. (Ed.). Lawyers in society. Berkeley: The University of California Press, 1988. 2 v.), destacaram a persistência histórica do predomínio masculino nessas carreiras, além do fato de esses homens pertencerem a grupos étnicos-religiosos dominantes, em especial nas posições de poder e prestígio. O controle sobre as vias de ingresso na profissão e a produção de elites profissionais articuladas à esfera política garantiram a exclusão de grupos que se diferenciavam daquele que detinha a hegemonia das carreiras jurídicas nos países estudados. Até 1960, foi ínfima a participação das mulheres na advocacia (ABEL, 1989ABEL, Richard L. American lawyers. New York: Oxford University Press, 1989., p. 35). As minorias étnico-raciais encontravam-se ainda mais sub-representadas, em decorrência de discriminações estruturais, como os judeus na Alemanha (BLANKENBURG; SCHULTZ, 1988BLANKENBURG, Erhard; SCHULTZ, Ulrike. German advocates: a highly regulated profession. In: ABEL, Richard; LEWIS, Philip (Ed.). Lawyers in society: the civil law world. Berkeley: The University of California Press , 1988. p. 124-159.), além de segregadas em guetos profissionais, como os advogados negros nos empregos públicos e na assistência jurídica nos Estados Unidos (ABEL, 1989ABEL, Richard L. American lawyers. New York: Oxford University Press, 1989., p. 111).

O Brasil não se diferenciou desse padrão na composição do grupo profissional e dos laços entre as elites jurídicas e o poder político. Desde a criação dos cursos de Direito no país, no século XIX, até a última década do século XX (ADORNO, 1988ADORNO, Sergio. Os aprendizes do poder. São Paulo: Paz e Terra, 1988.; VENÂNCIO FILHO, 1977VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: cento e cinquenta anos de ensino jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1977.; FALCÃO, 1984FALCÃO, Joaquim. Os advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 1984.), as carreiras privadas e públicas foram preenchidas principalmente por homens brancos ou embranquecidos pela posição social, sendo que a docência do Direito manteve-se ajustada aos mesmos critérios de seleção e recrutamento.

Foi na década de 1990 que o número de cursos privados de Direito deu um salto, ampliando o mercado do ensino jurídico ao mesmo tempo que as mulheres vão expandindo sua participação como profissionais. Segundo Geller (2012GELLER, Rodolfo Hans. Apresentação. In: GELLER, Rodolfo Hans et al. OAB recomenda: indicador de educação jurídica de qualidade. 4. ed. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/Geral/Programa_OAB_Recomenda.pdf >. Acesso em: 10 out. 2015.
http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/Geral...
, p. 10), em 1991, existiam 165 cursos de Direito no Brasil; dez anos depois, em 2001, esse total havia subido para 380 cursos e, em 2004, chegou a 733.

A lógica empresarial tem predominado sobre a lógica profissional na multiplicação desses estabelecimentos de ensino superior, resultando num modelo híbrido e fragmentário. A maneira mais característica de organização do trabalho profissional articula a obtenção de uma formação universitária - para o domínio de uma área do saber por meio do conhecimento abstrato - com o controle de mercado pelos pares. Essa lógica é sustentada no ideário da prestação de serviços especializados com qualidade, além de autonomia da expertise em relação aos interesses do Estado, do mercado e do cliente. A lógica dos negócios que dá embasamento ao ensino superior privado se nutre do discurso da livre-concorrência, que é crítica ao fechamento e proteção de mercado - como no profissionalismo -, mas conta com apoio financeiro do Estado, sem vê-lo como intervenção no mercado. O Estado, por sua vez, opera em torno da lógica burocrática, que dá mais valor à eficiência e às relações verticalizadas de comando e execução do que às relações horizontais mais características aos pares profissionais. Se o avanço do conhecimento é o maior valor na expertise, a relação entre custo e benefício predomina na gestão gerencial das organizações e da burocracia.

A expansão da participação das mulheres no ensino do Direito decorre do deslocamento do modelo profissional dominante até então, que, ao construir monopólios de mercado, também fecha o espaço de atuação para quem ingressa mais tarde na atividade. A hibridização do profissionalismo com a lógica empresarial e organizacional, juntamente com o crescimento de posições disponíveis, diversificou o perfil social dos docentes nos cursos jurídicos.

Antes dessa expansão, embora houvesse alguma participação feminina no ensino jurídico, tal pioneirismo não teve desdobramento imediato na sua multiplicação. Esther de Figueiredo Ferraz tornouse professora do curso de Direito do Mackenzie em 1961, tendo sido reitora dessa universidade entre 1965 e 1971. Ada Pellegrini Grinover e Odete Medauar ingressaram na docência da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP -, nos primeiros anos da década de 1970, ambas chegando ao topo da carreira de professora titular. Ivette Senise Ferreira começou a lecionar Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - em 1969 e, vários anos depois, se tornou docente da USP e professora titular, sendo a única mulher a ocupar o cargo de diretora da Faculdade de Direito, entre 1998 e 2002. Maria Helena Diniz é professora titular de Direito Civil na PUC-SP desde 1981, tendo ingressado na carreira nessa instituição em 1972.

A diversificação da composição do grupo de docentes do Direito tem uma história a ser contada tanto sobre a conquista de posições centrais na carreira por mulheres como a respeito das idas e vindas do longo processo de descentramento do corpo acadêmico “normásculo” (CHABAUD-RYCHTER et al., 2014CHABAUD-RYCHTER, Danielle; DESCOUTURES, Virgine; DEVREUX, Anne-Marie; VARIKAS, Eleni (Org.). O gênero nas ciências sociais. São Paulo: Unesp, 2014.), dando expressão às diferenças na docência jurídica. Para essas autoras, “normásculo” remete ao papel histórico dos discursos científicos dominantes em tornar invisíveis as questões de gênero na produção do conhecimento dos grandes expoentes do pensamento social ocidental. Elas apontam como os estudos feministas se constituíram nos últimos 40 anos, conquistando espaço nas disciplinas acadêmicas, ao enfrentar as abordagens canônicas

[...] e romper com as Ciências Sociais “normásculas” (ou malestream) e que pensam o masculino sem mesmo perceber; sem perceber e impregnando de masculinidade resultados ou teorias supostamente “objetivas”, uma neutralidade que é, de fato, marcada por sua indiferença em relação às desigualdades entre os homens e as mulheres, e mais profundamente ainda, por sua indiferença ao domínio das segundas pelos primeiros. (CHABAU D-RYCHTER et al., 2014CHABAUD-RYCHTER, Danielle; DESCOUTURES, Virgine; DEVREUX, Anne-Marie; VARIKAS, Eleni (Org.). O gênero nas ciências sociais. São Paulo: Unesp, 2014., p. 3)

Processo semelhante ocorreu nas faculdades de Direito, cujo ingresso feminino no corpo discente tornou-se maioria do alunado, mas não teve o mesmo resultado na composição do professorado. A inclusão das mulheres e da diferença na docência ganhou expressão recentemente, mas elas têm que lidar com a ideologia profissional dominante, apoiada no ideário da neutralidade do conhecimento, construído por homens, brancos, heterossexuais, dos grupos estabelecidos, a partir de perspectivas eurocêntricas. Enquanto a presença de profissionais com marcas sociais distintas do perfil predominante foi ínfima, elas e eles buscaram apagar as diferenças que os subalternizam aderindo à neutralidade inclusive na corporalidade. Nesse sentido, dar visibilidade à diferença dos corpos, dos cabelos, dos penteados, das faces maquiadas ou não, do caminhar, da voz, do vestir faz parte desse descentrar do masculino, das cores neutras dos terninhos, da “discrição” que apaga registros dissonantes, pluralizando a diversidade na aparência e atuando para que outras imagens sejam reconhecidas como profissionais.

Por outro lado, com o adensamento dos marcadores da diferença entre os docentes, a visibilidade do feminino e da diversidade passou a ser vocalizada por aqueles e aquelas que se identificavam não só com a profissão, mas também com sua condição de gênero, étnico-racial, de sexualidade e classe, descentrando a produção teórica concentrada nos modelos analíticos neutros e nos conceitos que sustentavam essas abordagens. Novas perspectivas elaboradas por homens e mulheres, brancos e não brancos, heterossexuais e homoafetivos, dos grupos privilegiados e de origem social desfavorecida, provenientes do norte ou do sul têm contribuído para deslocar a produção canônica de conhecimento (CONNELL, 2006CONNELL, Raewyn. Glass ceilings or gendered institutions? Mapping the gender regimes of public sector worksites. Public Administration Review, v. 66, n. 6, p. 847-849, Nov./Dec. 2006.).

Os indicadores quantitativos de alguns aspectos dessa mudança estão no Censo Nacional de Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep. O Observatório do Ensino do Direito, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo - FGV-SP -, analisou os resultados para 2012, constatando que as mulheres docentes somavam 15.683 profissionais, 38,4% dos 40.863 professores de Direito no Brasil. Quanto à cor e raça, havia informação para 27.022 docentes, dos quais 22,1% informaram não serem brancos. Nesse ano, existiam no país 1.156 cursos de Direito, sendo 183 no sistema público, 449 em instituições de ensino superior - IES - privadas com fins lucrativos e 524 em IES privadas sem fins lucrativos.

Embora tenham se ampliado os estudos sobre profissões jurídicas, gênero e diferenças, no caso da docência do Direito no Brasil, não foram objeto de análise sociológica a maneira como o feminino e o masculino se constroem e desconstroem e como a interseccionalidade se relaciona às negociações identitárias, aos hibridismos e às desigualdades.

O artigo apresenta a intersecção entre gênero e raça com o grau de titulação, localização regional, tipo de instituição e regime de trabalho. O objetivo é mostrar que a interseccionalidade contribui tanto para descentrar o ensino do Direito como para produzir a estratificação profissional, reordenando diferenças e desigualdades sem erradicá-las. Entende-se que a fragmentação dos modelos institucionais e a variação do perfil docente geram oportunidades e constrangimentos distintos, burilados pelos professores que constroem suas carreiras cotidianamente, com respostas que escapam aos padrões.

Este artigo aponta a ocorrência de descentramento na produção do conhecimento, no conteúdo do profissionalismo, na fragmentação institucional e no perfil docente. Na produção do conhecimento, as vertentes contra-hegemônicas, o pluralismo jurídico, os estudos feministas do Direito e os estudos jurídicos críticos exemplificam tal processo. Na perspectiva profissional, destaca-se a passagem do predomínio do profissionalismo ocupacional para a presença do profissionalismo organizacional. No primeiro, o grupo profissional valoriza a expertise, o conhecimento específico que dá identificação, e orienta a ação e as normas comuns da profissão. O segundo é acionado como uma ideologia pelos gestores, pelas corporações, para produzir comportamentos no grupo, disciplinando-o e controlando-o de cima para baixo. Os múltiplos usos do profissionalismo diluem as fronteiras que as profissões tradicionais construíram para preservar sua autonomia, diante dos negócios empresariais e da lógica administrativo-gerencial.

Na dimensão da fragmentação dos modelos institucionais, tais deslocamentos podem gerar mais oportunidades, diversidade e distanciamento do ensino jurídico estabelecido, em seu conteúdo e avaliação. Quando novos enfoques se distanciam dos conteúdos dominantes, isso se reflete nas disputas por legitimação desses saberes e na forma como se avalia negativa ou positivamente esse ensino. Toda inclusão ampla ou democratização do acesso leva a questionamentos sobre a perda da qualidade, refletindo as múltiplas percepções do descentrar, inclusive do ingresso. E, por fim, no perfil docente, os dados disponíveis no momento sobre sua composição social referem-se a gênero, cor/raça, faixa etária e grau de titulação dos professores. Essa base sustenta o argumento de que o modelo dominante de profissionalismo jurídico e o padrão tradicional do professor de Direito têm que lidar com as modificações no ideário empresarial e de controle administrativo, na pluralização das abordagens de mentores e mentoras e nas práticas de ensino dos docentes que são vistos à frente das disciplinas por seus alunos e alunas.

Os descentramentos também são identitários (HALL, 2005HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. ) e incorporam os deslocamentos da experiência à própria identificação, interseccionando a profissão, com o gênero, a cor/raça, a origem social, a sexualidade e a geração, na forma como compreendem sua trajetória profissional. Mesmo que as explicações sobre a diferença sejam naturalizadas ou essencializadas, elas são vivenciadas subjetivamente, gerando hibridismos.

Para além das disputas entre credencialismo profissional, empresários do ensino do Direito, Ministério da Educação, docentes e discentes, há a incorporação de novos sujeitos na docência em um contexto de diluição das posições fixas no centro do mundo acadêmico. A visibilidade das mulheres e de minorias expande a diversidade na profissão e os referenciais para o corpo discente, construindo novos exemplos por meio de orientações e mentorias. Com a enorme expansão do sistema de ensino superior, acompanhada da variação nos modelos organizacionais, da interiorização e da diversificação regional, novos espaços foram preenchidos tornando as fronteiras mais fluidas e dando visibilidade a mudanças não lineares no mundo do Direito, em particular na sua atribuição formadora de advogadas, advogados e demais profissionais da área.

A pesquisa registra a expansão dessa diversidade e dos deslocamentos que a acompanham, entendendo que os descentramentos analíticos observados não resultam da essencialização dessa produção, reduzida aos autores e autoras que portam as marcas de um gênero, uma cor/raça, uma sexualidade não hegemônica. Ao contrário, entende- se que é da hibridação, do encontro e do embate das diferenças que surgem as abordagens dissonantes que descentram o saber canônico. Elas podem ser produzidas por mulheres e homens, por negros e brancos, por heterossexuais ou homoafetivos, que partilham conhecimentos elaborados em relações distintas daquelas que marcaram as concepções hegemônicas, com sua perspectiva colonial eurocêntrica.

Nota metodológica

A pesquisa em seu conjunto propõe recursos metodológicos distintos, como estudo de casos, entrevistas qualitativas, análise documental e histórica e dados quantitativos secundários, para dar conta de suas dimensões micro, meso e macro. Este artigo focaliza os dados docentes do Censo Nacional do Ensino Superior, do Inep, para 2012, desagregados para os cursos de Direito. As semelhanças e contrastes com outros estudos internacionais sobre as mulheres na docência do Direito auxiliam a compreender a experiência brasileira na sua padronização e especificidade. Nessa direção, algumas evidências do processo de descentramento são introduzidas e exemplificadas com material qualitativo, já que essa é outra etapa do trabalho de campo.

Mundo acadêmico do direito, profissionalismo e gerencialismo

Thornton (2014THORNTON, Margaret. The changing gender regime in the neoliberal legal academy. Canberra: Australian National University, 2014 (ANU College of Law Research Paper, n. 14-35). Disponível em: <Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2482926 >. Acesso em: 10 nov. 2015.
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) analisou a articulação entre o regime de gênero (CONNELL, 2006CONNELL, Raewyn. Glass ceilings or gendered institutions? Mapping the gender regimes of public sector worksites. Public Administration Review, v. 66, n. 6, p. 847-849, Nov./Dec. 2006.) e o neoliberalismo no mundo acadêmico do Direito, na Austrália. Segundo a autora, o pilar desse regime é a ideologia do mérito; sua suposta neutralidade obscurece a preferência pela masculinidade que acompanha o modelo da “melhor pessoa para o trabalho”. A virada neoliberal nas universidades, orientada pela lógica gerencial das corporações e dos negócios, teria dado novo ânimo aos critérios normásculos que guiam o ensino, a pesquisa, a extensão, a gestão e as demais atividades acadêmicas, reconfigurando o regime de gênero, em um contexto no qual as mulheres já representavam 56% da docência do Direito.

Ela entende que, nos anos 1980 e 1990, o ideário da justiça social encontrava-se em ascensão e as universidades estavam mais abertas às políticas de inclusão, observando-se agora o retrocesso desse cenário, apoiado na ideologia do mérito e da “escolha” das mulheres pela dedicação às crianças em detrimento do avanço profissional. Para Thornton (2014THORNTON, Margaret. The changing gender regime in the neoliberal legal academy. Canberra: Australian National University, 2014 (ANU College of Law Research Paper, n. 14-35). Disponível em: <Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2482926 >. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?a...
), o mito da objetividade do mérito esconde elementos inegáveis de “reprodução homossocial”, sustentado na dimensão subjetiva do processo de seleção sobre quem se “encaixa” ou não na cultura do ambiente do trabalho. Tanto a construção do mérito como o regime de gênero não são estáticos e se ajustam a contextos distintos. Com o predomínio da lógica gerencial e de negócio nas universidades, os professores foram perdendo força enquanto grupo, e o ensino foi ficando mais feminizado. No modelo universitário neoliberal, as funções de gestão e avaliação acadêmica ganharam poder e prestígio, masculinizando-se ao serem ocupadas pelos docentes que conseguiam viabilizar suas ambições de carreira.

Sommerlad (2015SOMMERLAD, Hilary. The “social magic” of merit: diversity, equity, and inclusion in the English and welsh legal profession. Fordham Law Review, v. 83, n. 5, p. 2325-2347, Sep./Oct. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol83/iss5/7 >. Acesso em: 10 set. 2015.
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) analisa como o mérito, sendo fluido, contingente e instrumental, foi construído como neutro e objetivo, por meio de uma “mágica social” que reflete as relações sociais dominantes e o poder das elites das profissões jurídicas na Inglaterra e no País de Gales, atribuindo à excelência profissional os padrões masculinos e ao mérito as práticas informais racializadas. Dessa forma, reproduz-se a hegemonia dos homens brancos de classe média alta na profissão, como resultado legítimo e justamente merecido de seus privilégios sistemáticos, com a inclusão subalternizada da diversidade.

Pensando o conceito do profissionalismo diante do predomínio da lógica das organizações que se globalizam e do gerencialismo que acompanha esse padrão, Evetts (2012EVETTS, Julia. Professionalism: value and ideology. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.isasociology.org/publ/sociopeda-isa >. Acesso em: 5 mar. 2014.
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) procurou diferenciar a forma como o profissionalismo foi construído enquanto valor normativo partilhado pelo grupo ocupacional (profissionalismo ocupacional), do tipo de visão de mundo organizacional, que ressignifica esse ideário por meio de discursos para controlar o trabalho e os corpos nas empresas (profissionalismo organizacional).

Segundo a autora, essas duas formas de organização do trabalho baseadas em conhecimento podem ser sistematizadas em:

  • profissionalismo ocupacional, que se relaciona ao discurso construído dentro do grupo profissional, à autoridade colegiada, à discricionaridade e controle ocupacional do trabalho, à confiança no praticante por parte de clientes e empregadores, aos praticantes que operacionalizam os controles e à ética profissional monitorada por instituições e associações, localizando-se no modelo durkheimiano de comunidades morais;

  • profissionalismo organizacional, que diz respeito ao discurso de controle cada vez mais usado pelos administradores nas organizações de trabalho, às formas e autoridade racional-legal, aos procedimentos padronizados, às estruturas hierárquicas de autoridade e decisão, ao gerencialismo, à prestação de contas e à obtenção de formas externas de regulação, estabelecimento de metas e supervisão de desempenho, ligando-se ao modelo weberiano de organização (EVETTS, 2012EVETTS, Julia. Professionalism: value and ideology. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.isasociology.org/publ/sociopeda-isa >. Acesso em: 5 mar. 2014.
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    , p. 7).

McClelland (1990), estudando a advocacia, relacionou o caso anglo- americano à profissionalização vinda de dentro do grupo profissional e o caso alemão, como “profissionalização vinda de cima”, do Estado. Evetts (2012EVETTS, Julia. Professionalism: value and ideology. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.isasociology.org/publ/sociopeda-isa >. Acesso em: 5 mar. 2014.
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) incorpora essa abordagem e a amplia, entendendo que a iniciativa de cima também pode vir de corporações, como ocorre hoje nas empresas, partindo de grupos poderosos articulando discursos do profissionalismo, sem a base institucional. Por outro lado, o profissionalismo enquanto discurso disciplinador, bem como seu desdobramento no profissionalismo organizacional, desempenha principalmente o papel oposto do profissionalismo como valor normativo: não unifica o grupo, fragilizando-o diante dos segmentos de elite que articulam visões críticas a tal ideário, na perspectiva de gerar práticas sujeitas ao controle das cúpulas das organizações privadas e dos órgãos públicos. A força do profissionalismo organizacional vem de cima e de fora do campo das profissões e seu poder origina-se no âmbito da política ou da esfera econômica e social. Trata-se de uma ressignificação discursiva que, partindo do antiprofissionalismo proveniente do gerencialismo e da lógica da livre concorrência no mercado, se difunde na sociedade e influencia os profissionais e a área de estudo das profissões em que também ganha novos sentidos. Apesar dessa característica, os profissionais em organizações burilam o profissionalismo organizacional de forma a conquistar novos campos de atuação, numa interação que não se reduz à subordinação intencionada pela corporação (MUZIO; KIRKPATRICK, 2011MUZIO, Daniel; KIRKPATRICK, Ian. Introduction: professions and organizations: a conceptual framework. Current Sociology , v. 59, n. 4, p. 389-405, Jul. 2011.).

Assim, o tipo profissionalismo, conceituado por Freidson (2001FREIDSON, Eliot. Professionalism: the third logic. Cambridge: Polity, 2001.) em contraste com o tipo burocrático ou o tipo do livre mercado, se hibridiza na concepção de Evetts (2012EVETTS, Julia. Professionalism: value and ideology. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.isasociology.org/publ/sociopeda-isa >. Acesso em: 5 mar. 2014.
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), sendo usado não só pelos profissionais, mas também pelos gestores e pelas corporações. É em consonância com a tipologia proposta por essa autora que articula a possibilidade de um profissionalismo como sentimento comum interno ao grupo e um profissionalismo que vem de cima para baixo, como discurso de controle, que o presente estudo investiga a profissionalização da carreira docente nos cursos de Direito.

Gênero, diferenças e mundo do direito

Em um levantamento sobre o estado da arte das pesquisas sobre as mulheres nas profissões jurídicas, Kay e Gorman (2008KAY, Fiona; GORMAN, Elizabeth. Women in the legal profession. Annual Review of Law and Social Sciences, v. 4, p. 299-332, 2008.) reuniram estudos que encontraram um padrão assimétrico na distribuição da carga de ensino nos cursos de Direito segundo o gênero, nos Estados Unidos, entre os docentes na carreira para obter estabilidade (tenure-track). As professoras apresentavam menor participação nas disciplinas mais valorizadas, como Direito Constitucional, e maior presença naquelas de menor prestígio, como redação jurídica, prática de julgamento e questões concernentes à família. Tal como nas sociedades de advogados, a representação feminina no topo da carreira acadêmica é bem menor do que a masculina.

No ano acadêmico de 1999-2000, as mulheres constituíam 69% dos auxiliares de ensino (instructors e lectures), 48% dos professores assistentes, 46% dos professores associados (posição que normalmente ainda não tem estabilidade nas escolas de Direito), e 22% dos professores com tenure (Neumann, 2000NEUMANN, Richard K. Women in legal education: what the statistics show. Journal of Legal Education , n. 50, p. 313-357, Sep. 2000.). No caso do corpo docente na carreira para obter estabilidade, isso representa uma melhoria em relação a 1986-1987, quando as mulheres constituíam 34% entre os elegíveis e 11% entre os professores com tenure. (Chused, 1988CHUSED, Richard. The hiring and retention of minorities and women on american law school faculties. University of Pennsylvania Law Review, n. 137, p. 537-569, Mar./Apr. 1988.). (KAY ; GORMAN, 2008KAY, Fiona; GORMAN, Elizabeth. Women in the legal profession. Annual Review of Law and Social Sciences, v. 4, p. 299-332, 2008., p. 308, tradução nossa)

A maioria das análises internacionais sobre a expansão da participação das mulheres na docência do Direito enfatiza a dimensão estrutural das práticas de gênero, destacando a segregação, a incorporação das mulheres em posições subalternas do meio acadêmico e a reprodução, na carreira, dos estereótipos de gênero da vida privada, com a concentração das professoras em disciplinas identificadas como femininas. McGinley (2009MCGINLEY, Ann C. Reproducing gender on law schools faculties. Brigham Young University Law Review, n. 1, p. 99-155, 2009.), ao comparar estatísticas de 1998-1999 e de 2007-2008 da Associação Americana de Faculdades de Direito, observa que as mulheres fizeram progressos nesse período, mas se concentram nas posições com baixa remuneração e nos empregos de baixo prestígio. Para a autora, existe uma divisão de gênero que reproduz estruturas genderizadas em vez de neutralidade, com o predomínio de masculinidades que causam danos às mulheres. Segundo ela, oportunidades iguais só serão possíveis se as explicações naturalizadas dessas disparidades, como a que atribui as diferenças à escolha feminina, forem desafiadas, tornando visíveis essas práticas de gênero entre os docentes do Direito.

Um survey realizado nas escolas de Direito no Reino Unido, em 1997 (MCGLYNN, 1999MCGLYNN, Clare. Women, representation and the legal academy. Legal Studies, n. 19, v. 1, p. 68-92, 1999.), apontou que, embora as mulheres seguissem sub-representadas nas posições seniores, registravam-se aspectos positivos de progressão. Elas eram 14% dos “professores”, o topo da carreira, e tinham ampliado para 22% sua atuação em cargos de direção de faculdade e chefia de departamentos. No total do grupo acadêmico, as mulheres correspondiam a 40% dos docentes, mas, considerando-se o fato de a escola ser tradicional ou de criação mais recente, a variação obtida era de 45% delas nos estabelecimentos novos e 35% nos antigos. Segundo a autora, a posição na carreira também reflete as desigualdades na remuneração, o preconceito e a marginalização, com a difusão de valores na cultura jurídica acadêmica que relacionam a autoridade e o profissionalismo à masculinidade. Ela argumenta que as mudanças na composição das escolas de Direito quanto a gênero, raça, classe, nacionalidade, religião e outros fatores terão impacto na natureza da disciplina, já que a modificação nos gatekeepers, os controladores do ingresso, se reflete no sentido e no caráter do campo de estudo.

Merrit e Reskin (2003MERRIT, Debora Jones; RESKIN, Barbara. New directions for women in legal academy. Journal of Legal Education, v. 53, n. 4, p. 489-495, Dec. 2003.) acompanharam por vários anos as carreiras de homens e mulheres no mundo acadêmico do Direito nos Estados Unidos, analisando também o fator racial nesse percurso. O foco da pesquisa foi a trajetória de mais de mil docentes que começaram a atuação no final dos anos 1980 e 1990. Apesar de encontrados resultados positivos, como a presença de quatro mulheres de origem afro-americana e uma mulher branca entre os dez docentes mais citados na lista de 1998, os aspectos negativos são evidentes, como a maior presença feminina branca e negra nas posições que não concorrem à estabilidade (tenure-track), a contratação delas para as posições inferiores do tenure-track e a designação das disciplinas prestigiadas para os homens, como Direito Constitucional, e daquelas práticas para as mulheres. Quanto ao abandono da atividade, as maiores porcentagens foram encontradas para mulheres negras e brancas e homens negros, revelando as dificuldades de seguirem na carreira, enquanto os homens brancos progrediam com mais facilidade. Com base nesses resultados, as autoras propuseram cinco passos para contratação e apoio a esses e essas docentes, visando a enfrentar as disparidades: fortalecimento das ações afirmativas; continuidade dessas ações depois do recrutamento, decidindo sobre que cargo ocuparão, que disciplinas oferecerão, em que sala trabalharão; enfrentamento das questões de retenção e promoção, alterando a concentração do período de avaliação da estabilidade reduzido a apenas seis anos, entre os 28 e 34 anos; expansão da inclusão das diferenças de raça, sexualidade, religião, habilidades físicas para constituir um grupo acadêmico mais diverso; e reconhecimento do potencial das mulheres para a liderança não só na gestão, mas também na excelência intelectual, na dimensão social e entre os pares.

Apesar de as pesquisas e propostas de ação elaboradas nos últimos 20 anos terem tido resultados positivos, estudos mais recentes vêm sinalizando para a retomada das desigualdades, decorrentes da lógica de negócios predominante na educação de nível superior na atualidade. Thornton (2014THORNTON, Margaret. The changing gender regime in the neoliberal legal academy. Canberra: Australian National University, 2014 (ANU College of Law Research Paper, n. 14-35). Disponível em: <Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2482926 >. Acesso em: 10 nov. 2015.
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) identifica o retrocesso nas políticas por igualdade de oportunidades na docência do Direito na Austrália, associando tal recuo à privatização neoliberal das universidades que reforçou a estratificação genderizada. Sua abordagem relaciona-se aos estudos da teoria feminista do Direito, que focam as desigualdades de gênero como decorrentes da dominação masculina.

Em um levantamento nas páginas on-line das faculdades de Direito, em 2013, a autora encontrou 41,1% de mulheres docentes distribuídas em uma hierarquia que aumenta a participação delas conforme diminui a posição na carreira, havendo 57,1% na base, como associate lecturer, e 34,6% no topo, como professor (THORNTON, 2014THORNTON, Margaret. The changing gender regime in the neoliberal legal academy. Canberra: Australian National University, 2014 (ANU College of Law Research Paper, n. 14-35). Disponível em: <Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2482926 >. Acesso em: 10 nov. 2015.
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). Na Austrália, nos últimos 25 anos, o ensino jurídico ampliou-se de 12 para 36 universidades, com a força dos estabelecimentos privados, da mercantilização, do gerencialismo e das corporações, gerando congruência dessas práticas com a hipermasculinidade da competição, do poder e do controle, em vez da masculinidade da paternidade (THORNTON, 2014THORNTON, Margaret. The changing gender regime in the neoliberal legal academy. Canberra: Australian National University, 2014 (ANU College of Law Research Paper, n. 14-35). Disponível em: <Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2482926 >. Acesso em: 10 nov. 2015.
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, p. 7). A “melhor pessoa para o trabalho” espelha essa imagem e, no contexto de ampliação da presença feminina, o poder que os professores detinham nas universidades foi transferido para os executivos das corporações de ensino, com a ida de homens para essa atividade.

Analisando as carreiras de professoras seniores nas universidades do Reino Unido, Wells (2003WELLS, Celia. The remains of the day: the women law professors project. In: SCHULTZ, Ulrike; SHAW, Gisela (Ed.). Women in the world’s legal professions. Oxford: Hart, 2003. p. 225-246.) encontra barreiras semelhantes, com uma porcentagem bastante limitada da participação feminina nessa posição, se comparada com o total de mulheres na hierarquia acadêmica do ensino do Direito. Segundo a autora, os docentes do Direito são majoritariamente homens, numa proporção de 60% para eles e 40% para elas. Na posição de senior lectures são 70% e 30%, respectivamente. No topo da docência, como professors, em que se chega a partir dos 40 e poucos anos, a participação masculina é de 83% e a feminina de 17%. Em 2000, havia 55 mulheres nesse degrau em todo o Reino Unido, sendo que 60% dessas universidades nunca haviam tido uma mulher professora sênior no curso de Direito. Aquelas que alcançaram essa ascensão partilhavam perfil social homogêneo em termos de classe (classe média alta), formação educacional (em escola de ranking elevado), origem étnico-racial (branca), mas tinham uma diversidade de percepções individuais sobre os efeitos do gênero e dos significados das culturas organizacionais nisso. Algumas consideravam que exerciam no departamento funções que demandavam mais tempo de acompanhamento dos alunos, e que isso tinha impacto negativo na progressão na carreira. Aquelas que ocuparam posições de gestão consideravam esse período de muito estresse e sobrecarga de trabalho, além de relações difíceis no departamento e/ou universidade. Segundo Wells (2003), não foi incomum encontrar pessoas que reconheciam as desigualdades de gênero na vida dos outros, mas falhavam em perceber que elas também estavam inseridas em culturas masculinistas. Viam preconceito em outras organizações, mas não naquela onde atuavam. Para a autora, é dessa diversidade de situações que resultam as formas como os sujeitos negociam ou transcendem o gênero na atuação na carreira, em um ambiente profissional de dominação masculina.

Os estudos feministas no Direito deram contribuições relevantes para a compreensão das relações de gênero no mundo jurídico. Thomas e Boisseau (2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011.) sistematizam essa trajetória, datando tal movimento intelectual nos anos 1970, com o ingresso significativo das mulheres no meio acadêmico.

Dentro desse guarda-chuva mais amplo da teoria feminista do Direito, as pesquisadoras do Direito têm identificado mais comumente quatro escolas de pensamento: liberal, diferença, dominação e pós-moderna. (THOMAS ; BOISSEAU , 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 18-19, tradução nossa)

A primeira escola, do feminismo liberal ou da igualdade, dá relevância ao que há de comum entre homens e mulheres, não reconhecendo diferenças jurídicas significativas entre eles. Tal vertente busca remover as barreiras e as leis que tratam homens e mulheres de formas distintas e reivindica acesso igual aos direitos públicos e privados (THOMAS; BOISSEAU, 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 19).

A segunda escola ressalta as diferenças culturais entre mulheres e homens, discordando da perspectiva que foca as semelhanças sem conseguir dar conta de como a construção social do gênero diferencia elas e eles. São reconhecidas as diferenças entre as mulheres, em especial quanto à raça, e a dimensão genderizada das instituições sociais e jurídicas. Como decorrência, apoiam-se leis que aliviam a sobrecarga que as expectativas de gênero colocam sobre as pessoas, inclusive aquelas de violência contra as mulheres (THOMAS; BOISSEAU, 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 19-20).

A terceira escola desloca o foco sobre a mulher e a forma como a lei a trata, para olhar como o sistema jurídico se configura em um mecanismo de perpetuação da dominação masculina e subordinação feminina nas noções de poder historicamente embutidas na lei. Em vez de propor uma ou outra lei que contemplem as mulheres, advoga-se pela reforma do sistema legal como um todo, demonstrando a ausência de objetividade das leis e seu viés masculinista (THOMAS; BOISSEAU, 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 21).

A quarta escola, da teoria feminista pós-moderna, questiona a classificação binária de gênero e de sexo, desconstruindo a naturalização do sexo biológico, homem e mulher, além do gênero cultural masculino e feminino. Apoiando-se nas contribuições de Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), essa perspectiva deixa de focalizar as experiências das mulheres em si, passando a abordar o amplo leque de possibilidades de como o gênero é performado e corporizado (THOMAS; BOISSEAU, 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 23).

Segundo as autoras, desde sua origem, o pensamento jurídico feminista é marcado pelo pragmatismo e pela diversidade de concepções, com o objetivo de persuadir os tribunais e os formuladores de políticas sobre o mérito dos pleitos. Tal é a característica do feminismo pragmático que elas endossam, no qual a variedade de abordagens torna-se um conjunto de instrumentos a ser usado quando for apropriado, mostrando como as teorias feministas do Direito são mais holísticas e integradas do que compartimentalizadas, constituindo um corpo teórico mais nuançado e complexo que outros (THOMAS; BOISSEAU, 2011THOMAS, Tracy A.; BOISSEAU, Tracey J. Feminist legal history. New York: New York University Press, 2011., p. 26).

A trajetória das teorias feministas do Direito estão relacionadas aos estudos sobre gênero e ao conhecimento que acumularam borrando as fronteiras disciplinares, em especial nas Ciências Humanas. Este artigo segue caminho semelhante se apoiando na bibliografia sobre profissões jurídicas, teoria feminista do Direito, gênero e diferenças. A perspectiva é de articular concepções que dão ênfase à reflexividade e às negociações identitárias pelas quais as pessoas se distanciam, por processos subjetivos, das situações em que estão envolvidas, refletindo sobre elas, manuseando-as, burilando-as e modificando-as criativamente. Embora em vários dos trabalhos mencionados as estruturas de gênero sejam abordadas como regimes que se reproduzem apesar das tentativas de superação das desigualdades, a perspectiva desta pesquisa é a de considerar as ambivalências do poder e da autonomia individual e coletiva para integrar a resistência e emancipação aos olhares que enfatizam a dominação e a produção das disparidades.

Para viabilizar esse recorte, a pesquisa partilha da visão de Billingsley (2015BILLINGSLEY, Amy. Hope in a vice: Carole Pateman, Judith Butler and suspicious hore. Hypatia, v. 30, n. 3, p. 597-612, 2015.), que propõe uma articulação das abordagens que debatem criticamente as visões da esperança no empoderamento das mulheres com aquelas que destacam a suspeita sobre as formas ocultas como a dominação masculina falseia a sujeição. A autora parte da concepção de Sedgwick (2003SEDGWICK, Eve K. Paranoid reading and reparative reading: or you’re so paranoid you probably think this essay is about you. Touching fellings: affect, pedagogy, performativity. Durham, N.C.: Duke University Press, 2003. p. 123-152.) sobre a pluralidade de afetos, a mudança, a contingência e a positividade com referência à esperança, integrando-a à perspectiva da desconfiança em Pateman (1988 apud BILLINGSLEY, 2015BILLINGSLEY, Amy. Hope in a vice: Carole Pateman, Judith Butler and suspicious hore. Hypatia, v. 30, n. 3, p. 597-612, 2015.) e Butler (1995 apud BILLINGSLEY, 2015BILLINGSLEY, Amy. Hope in a vice: Carole Pateman, Judith Butler and suspicious hore. Hypatia, v. 30, n. 3, p. 597-612, 2015.). Essas últimas autoras recorrem a técnicas de suspeita que iluminam os aspectos inerentemente arriscados e frágeis do projeto da esperança, argumentando que voltar-se a ela como afeto político requer cautela em função das qualidades ilusórias da dominação. A perspectiva totalizante das metodologias paranoicas inviabiliza a esperança. Billingsley (2015BILLINGSLEY, Amy. Hope in a vice: Carole Pateman, Judith Butler and suspicious hore. Hypatia, v. 30, n. 3, p. 597-612, 2015.) combina as duas perspectivas na “esperança desconfiada”, incluindo a concepção de poder em Allen, que sustenta tal compatibilidade.

Através da manutenção de uma posição desconfiada quando praticando a teoria política feminista, nós podemos lutar por um tipo particular de esperança que tenta evitar o mais possível formas disfarçadas de subjugação, mantendo a vigilância quando navegando dificuldades da esperança, aberturas frágeis. Dessa maneira, a desconfiança pode coexistir com o chamado de Sedgwick para o pluralismo de comportamentos afetivos (Sedgwick, 2003SEDGWICK, Eve K. Paranoid reading and reparative reading: or you’re so paranoid you probably think this essay is about you. Touching fellings: affect, pedagogy, performativity. Durham, N.C.: Duke University Press, 2003. p. 123-152., 141) enquanto reconhecendo sua ênfase na fragilidade da esperança. Em resumo, esperança é um afeto de abertura em direção a novas possibilidades que Sedwick contrasta com o afeto restrito da paranoia. Ambas, Pateman e Butler utilizam métodos de desconfiança em suas filosofias que arriscam fechar as possibilidades para a esperança na filosofia política feminista. A descrição pluralista de poder em Allen mostra que ainda podemos derivar esperança da filosofia feminista desconfiada. Abordagens feministas desconfiadas afirmam a importância de uma efetiva abertura para as possibilidades de decepção porque isso irá nos ajudar a evitar depositar nossas esperanças em ilusões que as disfarçam como emancipadoras apesar de voltar-se para subjugação e exclusão. (BILLINGSLEY, 2015BILLINGSLEY, Amy. Hope in a vice: Carole Pateman, Judith Butler and suspicious hore. Hypatia, v. 30, n. 3, p. 597-612, 2015., p. 611, tradução nossa)

No Brasil, as pesquisadoras e os pesquisadores do gênero e das diferenças nas profissões jurídicas vêm construindo esse conhecimento e combatendo as discriminações. Sobre as mulheres nas carreiras jurídicas no país há uma significativa produção, que ganha mais visibilidade a partir da década de 1990. Predominam as análises sobre as mulheres na advocacia e na magistratura. Os estudos pioneiros foram os de Elias (1989ELIAS, Roseli. Mulher e advocacia: elementos de ideologia e trabalho. 1989. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989.) e Junqueira (1998JUNQUEIRA, Eliane B. A mulher juíza e a juíza mulher. In: BRUSCHINI, C.; HOLANDA, H. B. Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; 34, 1998. p. 135-162., 1999JUNQUEIRA, Eliane B. A profissionalização da mulher na advocacia: relatório de pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas , 1999.), seguidos das contribuições de Sadek (2006SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2006.), Bonelli et al. (2008BONELLI, Maria da Gloria; CUNHA, Luciana G.; OLIVEIRA, Fabiana L.; SILVEIRA, Maria Natália B. Profissionalização por gênero em escritórios paulistas de advocacia. Tempo Social, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 265-290, jun. 2008.), Barbalho (2008BARBALHO, Renne M. A feminização das carreiras jurídicas e seus reflexos no profissionalismo. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008.), Marques Jr. (2014MARQUES JR. Gessé. Espaço, profissões e gênero: mobilidade e carreira entre juízes e juízas no Estado de São Paulo. Cadernos Pagu , Campinas, n. 43, p. 265-297, 2014.), Fragale Filho, Moreira e Sciammarella (2015FRAGALE FILHO, Roberto; MOREIRA, Rafaela; SCIAMMARELLA, Ana Paula. When seniority breaks up the glass ceiling: women judges as court administrators in Brazil. In: LAW AND SOCIETY ASSOCIATION MEETING. Seattle, 2015. Annals… Salt Lake City, UT: LSA, 2015.), Campos (2015CAMPOS, Veridiana P. P. A fala das meritíssimas: um estudo sobre as relações entre agência individual, ocupação feminina de um espaço de poder e mudança social. 2015. 274 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.) e Oliveira e Ramos (2016OLIVEIRA, Fabiana L.; RAMOS, Luciana. Os diretores jurídicos e os advogados corporativos: carreiras em ascensão no mundo profissional do Direito. In: BONELLI, M. G.; SIQUEIRA, W. L. Profissões republicanas: experiências brasileiras no profissionalismo. São Carlos: EdUFSCar , 2016. p. 107-144.). Além dessas duas carreiras, Bonelli (2013BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EdUFSCar, 2013.) aborda as relações de gênero e a diferença entre promotores e promotoras de justiça, os defensores e defensoras públicas e os procuradores e procuradoras do Estado de São Paulo. Silveira (2009SILVEIRA, Maria Natália B. da. As delegadas de polícia em São Paulo: profissão e gênero. 2003. 134 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2009., 2014SILVEIRA, Maria Natália B. da. Delegados da Polícia Federal: profissionalismo e diferenças. 2014. 190 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.), no primeiro trabalho, analisa as delegadas de Polícia Civil e, no segundo, investiga a Polícia Federal focalizando o gênero e as masculinidades entre delegados e delegadas, estas últimas também pesquisadas por Sadek e Almeida (2015SADEK, Maria T.; ALMEIDA, Tatiane da C. Retratos das delegadas da polícia federal. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://blogdodelegado.wordpress.com/2015/09/26/adpf-apresenta-resultadosda-pesquisa-retratos-das-delegadas-de-policia-federal >. Acesso em: 6 nov. 2015.
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).

Ao deslocar identificações fixas e posições estáticas na produção e reprodução de saberes, gênero e diferença no mundo acadêmico do Direito, buscam-se as negociações de significados que ocorrem entre os sujeitos que experimentam a vida profissional em contextos fragmentários. Como em outros campos do conhecimento, os processos globalizantes no ensino jurídico engendram formas de homogeneização na profissão, mas estas apresentam espaço suficiente para uma fragmentação articulada do mundo, reordenando diferenças e desigualdades sem erradicá-las (GARCÍA CANCLINI, 2014GARCÍA CANCLINI, Néstor. Imagined globalization. Durhan: Duke University Press, 2014.).

O gênero é abordado como uma construção cultural e social, uma categoria analítica que questiona a naturalização da dualidade sexual como constitutiva da essência fixa e imutável do ser, reconhecendo que a ênfase nas diferenças anatômicas foram essencializadas em contextos históricos e culturais específicos. Tal concepção apoia-se em Scott (1990SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.), que critica a essência atribuída à diferença física entre homens e mulheres, que universaliza a dominação masculina no tempo e no espaço, destacando a dimensão relacional da categoria de gênero, focalizando a mulher nas relações sociais e culturais com outros homens e mulheres. O gênero como categoria analítica desconstruiu a concepção biologizada, mostrando como a diferença sexual é socialmente construída, em vez de ser a base da subordinação feminina. A autora evidenciou também como a segregação no mercado de trabalho é parte do processo de construção binária do gênero e das relações de poder que engendravam.

Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) critica a associação obrigatória linear entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais prescrita na matriz heterossexual. Segundo a autora, o gênero que o corpo expressa é resultado de atos e gestos performáticos que fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas da norma social e histórica da feminilidade, da masculinidade. Sua articulação analítica supera a naturalização e o essencialismo no uso de conceitos como sexo, gênero, desejo, mulher, compreendendo-os como cultural e discursivamente constituídos, sem um sentido fixo, mas contextuais e inconstantes. A significação cultural que se inscreve no corpo muda no tempo e no espaço, não se reduzindo a oposições binárias simples. Sexo e gênero não constituem características descritivas da experiência, uma “identidade”, mas sim práticas reguladoras que os constroem normativamente: “não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performaticamente constituída, pelas ‘expressões’ tidas como seus resultado” (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 48).

Quanto à diferença, a pesquisa utiliza a conceituação proposta por Brah (2006BRAH, Avthar. Diferença, diversidade e diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006.). Para ela, gênero e raça não são fixos e nem experimentados da mesma forma pelos sujeitos, as marcas sociais não denotam sempre o sentido excludente da diferença. Assim, o diferente é negociado, ganhando novos contornos, como a diversidade, e seu sentido de inclusão.

O conceito de diferença, então, refere-se à variedade de maneiras como discursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados. Algumas construções da diferença, como o racismo, postulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como relacional, contingente e variável. Ou seja, a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão, ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política (BRAH, 2006BRAH, Avthar. Diferença, diversidade e diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006., p. 374).

No enfoque das relações profissionais em uma sociedade racialmente estruturada (HALL, 1980HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. apud SILVÉRIO, 2013SILVÉRIO, Valter R. Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira. In: BONELLI, M. G.; LANDA, M. D.V. Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina. São Carlos: Compacta, 2013. p. 33-60.), é relevante olhar para as formas como as marcas raciais são produzidas, negociadas e apagadas pelos discursos da expertise e pelas experiências de atuação na docência do Direito. Para tanto, o estudo recorre ao conceito de racialização assim sintetizado:

A ideia contemporânea de “racialização” ou “formação de raça” se baseia no argumento de que a raça é uma construção social e categoria não universal ou essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político. O conceito de racialização refere-se aos casos em que as relações sociais entre as pessoas foram estruturadas pela significação de características biológicas humanas, de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas. (SILVÉRIO, 2013SILVÉRIO, Valter R. Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira. In: BONELLI, M. G.; LANDA, M. D.V. Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina. São Carlos: Compacta, 2013. p. 33-60., p. 34-35)

Aborda-se também o ideário do branqueamento como construção ideológica (HOFBAUER, 2003HOFBAUER, Andreas. Conceito de “raça” e o ideário do “branqueamento” no século XIX. Teoria & Pesquisa, n. 42/43, p. 63-110, 2003.), que, articulado aos discursos do profissionalismo e da neutralidade do mérito, atua sobre os processos de inclusão e exclusão no grupo, revelando as complexidades do fenômeno social do racismo no Brasil refletidas no mundo do Direito.

Embora as diferenças venham sendo estudadas nas organizações, a interseccionalidade entre gênero, raça e classe conjuntamente é pouco abordada (ACKER, 2012ACKER, Joan. Gendered organizations and interseccionality: problems and possibilities. Equality, Diversity and Inclusion: An International Journal, v. 31, n. 3, p. 214-224, 2012.). O foco na intersecção permite compreender como ela atua para reproduzir ou mudar os regimes de desigualdades, dando visibilidade ao que pode parecer imperceptível, como a distinção entre o que está em processo daquilo que já está estruturado. Na concepção da interseccionalidade, a pesquisa articula o olhar analítico que combina constrangimentos e oportunidades, seja nas marcas sociais transformadas em disparidades, em sua dimensão estruturada, seja nas formas como as pessoas atuam sobre elas por meio da reflexividade e das negociações identitárias (BAGGULEY; HUSSEIN, 2016BAGGULEY, Paul; HUSSEIN, Yasmin. Negotiating mobility: South Asian women and higher education. Sociology, v. 50, n. 1, p. 43-59, 2016.).

Padronização , hibridismos e descentramentos na fragmentação e diversificação da docência do direito

A fragmentação dos modelos institucionais no Brasil tem mais semelhança com os processos de massificação ocorridos em sociedades periféricas, embora tenha as características neoliberais apontadas nas análises sobre a Austrália, os Estados Unidos e o Reino Unido. Nesses países, a expansão das faculdades é significativa, mas o total de cursos é bem menor do que o brasileiro. Os Estados Unidos possuem 205 escolas de Direito credenciadas pela American Bar Association, num total aproximado de 250 cursos. O survey realizado por McGlynn em 1997 (1999) refere-se a 81 universidades oferecendo cursos de Direito no Reino Unido. No Brasil, a OAB recomenda apenas 90 cursos dos mais de mil existentes.

A diversificação começa pelo tipo de mantenedora (pública ou privada), passa pela categoria administrativa das IES (privada sem fins lucrativos, com fins lucrativos, federal, estadual, municipal, especial), pela organização acadêmica (faculdade, centro, universidade), pela localização regional (macrorregiões), pela divisão territorial e administrativa (capital, interior) e pelo regime de trabalho (dedicação exclusiva, tempo integral, tempo parcial, horista), chegando ao perfil docente, com a diferenciação segundo sexo (mulher e homem), cor/raça (branca, parda, preta, amarela, indígena) e faixa etária (até 29 anos, 30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos, 60 anos ou mais).

As 880 IES são geridas por 96 mantenedoras públicas e 624 privadas. Grupos educacionais com fins lucrativos controlam várias dessas mantenedoras privadas, como o Grupo Anhanguera (cinco mantenedoras, 25 IES e 36 cursos).

Entre os 1.156 cursos de Direito predomina como organização acadêmica a faculdade, com 52,9%; as universidades são 35,4% e os centros acadêmicos correspondem a 11,6%. O regime de trabalho nas IES é de tempo parcial para 35,5% dos docentes, os horistas são 32,9%, aqueles com tempo integral sem dedicação exclusiva somam 25,7% e com dedicação exclusiva são 5,9%. Os estabelecimentos nas capitais representam 41%, mas já se mostram mais dispersos pelas demais cidades brasileiras aqui classificadas de interior, com 59% dos cursos.

Quanto à cor/raça dos docentes atuantes nos cursos de Direito, não há informação para 31% deles. Entre os demais, têm-se 53,8% brancos, 13,8% pardos, 1,2% pretos, 0,4% amarelos e 0,1% indígenas. Os professores com alguma deficiência (cegueira, baixa visão, auditiva, surdez, física, múltipla) perfazem 2,8%.

Segundo a faixa etária, os docentes distribuem-se em 7,3% até 29 anos, 40,8% entre 30 e 39 anos, 29,8% de 40 a 49 anos, 14,8% de 50 a 59 anos e 7,3% com 60 anos ou mais. Sobre o grau de titulação, 1,7% dos professores são graduados, 31,9% possuem especialização, 45,7% mestrado e 20,6% doutorado. Desses docentes, 3,6% possuíam bolsa de pesquisa. Observa-se boa renovação do grupo, com quase 50% de professores relativamente jovens para essa carreira, o que remete à possibilidade de expansão do grau de titulação mais alto, bem como para as diferenças geracionais na forma de vivenciar as intersecções entre gênero e raça na prática docente.

A variação das categorias administrativas das IES tem baixo impacto sobre a presença feminina na docência do Direito. A maior incidência de mulheres encontra-se nas instituições com fins lucrativos, com 41,2%. A menor porcentagem está nas instituições federais, com 36,5%, mas a distância entre as IES quanto à visibilidade das mulheres ministrando aulas nos cursos presenciais varia pouco. Já para a presença dos docentes negros, a categoria administrativa revela maior variabilidade como também a ausência dessa marca da diferença em muitos cursos. Somando os professores pardos e pretos, verifica-se que são as IES estaduais que mais colaboram com essa participação, chegando a 30,3%. Um fator a explicar esse resultado é que 56% das IES estaduais estão na região Nordeste, onde é maior a representação dos negros.

O Nordeste é a área onde os professores negros estão mais presentes na docência, com média de 35,3%. Em contraste, eles estão quase ausentes no Sul (2,3%) e no Sudeste (8,2%). Já a presença das docentes mulheres pelas macrorregiões brasileiras apresenta variação menor do que a dos negro, mas é mais favorável a elas no Sul, chegando, em média, a 42,4% de participação. Já o Sudeste revelou-se a região mais masculina nessa composição, com 62,2% de homens, mesmo sendo a área que conta com maior presença feminina no país. Considerando a composição racial e de gênero do Brasil, o Sudeste se destaca na produção “normáscula” da docência do Direito.

Para além das hierarquias profissionais que os bastiões masculinos produzem nas carreiras acadêmicas, que coloca o Sudeste no referencial masculino e branco, há evidências que apontam para esses deslocamentos no cânone do ensino jurídico. Isso pode ser observado nos depoimentos de várias docentes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, USP, no vídeo “Mulheres e carreiras - Docência em foco”, produzido pelo Movimento Resgate Arcada. O vídeo apresenta dados coletados na Faculdade de Direito da USP sobre a participação das mulheres no quadro docente composto de 170 professores, sendo 29 professoras e uma delas negra; entre 2007 e 2013, a proporção de mulheres inscritas nos concursos realizados pela faculdade foi de cerca de 230 mulheres para 1.000 candidatos e a composição das bancas avaliadoras foi formada em média por uma professora para quatro professores. Nesse trabalho, 16 mulheres compartilham as formas subjetivas como viveram o gênero na carreira docente jurídica, destacando sua intersecção com a profissão, dando visibilidade às diferenças inclusive ao racismo, no caso de uma professora negra. Os depoimentos falam da experiência de gênero, do não aceitar o lugar que havia sido reservado para as mulheres inicialmente na vida privada e posteriormente nos guetos profissionais ou nas posições menos valorizadas da carreira. Elas iluminam a postura de batalhar pelo reconhecimento, pelo sucesso e progressão, nos espaços públicos não discretos dos notáveis do Direito, assumindo os marcadores sociais que antes precisaram ser apagados.

Dois depoimentos transcritos desse vídeo relatam os processos reflexivos tanto de tomada de consciência das discriminações, como das desigualdades decorrentes da diferença de gênero e da compreensão de suas dimensões sociais. Em ambas as experiências na docência, as identificações de gênero vão se suturando às profissionais, descentrando-as.

Eu passei no concurso, tomei posse e engravidei sem planejar. Já era casada, mas não pensava em engravidar, não estava nos meus planos. Vocês não podem imaginar meu sentimento de culpa. Eu ficava pensando o que meu orientador ia pensar, o que meus colegas iam pensar, eu pedi uma audiência com o professor..., fui no escritório dele, eu precisava falar com ele sobre uma coisa muito importante. Hoje, olhando para trás, eu acho um absurdo o que eu fiz: eu fui pedir desculpas por ter engravidado. A reação dele foi super, assim... Você pergunta se ele teve alguma reação negativa. Pelo contrário, foi uma tranquilidade. A reação dele foi de não compreensão da minha atitude, mas eu fui pedir desculpas por ter engravidado [...]

Se existiu, se existe uma certa igualdade de ingresso na carreira, isso não ocorre na ascensão. Em muitas oportunidades, eu tive um sentimento que pode ser apenas reflexo de meus complexos de que: Que mais ela quer? É como se houvesse essa frase: que mais ela quer? Ela já é professora, já é advogada, já é doutora. Que mais ela quer? Esse clima foi muito palpável quando eu prestei o concurso para livre-docente. Era como se eu tivesse já chegado aonde era para eu chegar. Eu tive essa sensação. Tinha alguns comentários, a falta de apoio de muitas pessoas, entendeu? Outras apoiaram? Apoiaram, mas a demora para marcar meu concurso. Hoje com 40 anos, eu posso dizer com toda a convicção: para uma mulher brilhar na carreira acadêmica, ela tem que se dedicar no mínimo três vezes que qualquer homem. Ela tem que estudar três vezes mais, abrir mão de mais coisas na sua vida pessoal, lazer e tudo mais, para ela poder ter uma ascensão equivalente à do homem. (Professora associada, USP) (Movimento Resgate Arcada, 2015MOVIMENTO RESGATE ARCADAS. Mulheres e carreira: docência em foco. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?feature=youtu.be&v=NWTmsOVvBYA&app=desktop >. Acesso em: 18 nov. 2015.
https://www.youtube.com/watch?feature=yo...
)

Se olharmos o número de doutorandos e doutores, ele é praticamente igual ao número de doutorandas e doutoras, mas seguindo na carreira acadêmica com a participação de professoras esse número já se reduz para 30%, e se olharmos para o número de professoras titulares, percebemos que a porcentagem vai de 11% a 18%. Então existe uma dificuldade seja de ingresso seja de ascensão no mundo acadêmico como um todo [...] A atividade docente seria o terceiro turno do trabalho da mulher: ela trabalha na casa, trabalha no escritório e ela vem à faculdade. Não posso falar da minha experiência pessoal, mas é o que percebo aqui. A dificuldade é devida à estrutura social na qual a nossa Faculdade de Direito se insere. Isso cria sim dificuldades adicionais à mulher, mas como eu disse, isso não é uma realidade só da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco nem só no Brasil. Existem estudos de outras instituições acadêmicas que demonstram que existem menos mulheres nos cargos mais altos da docência, por exemplo. (Professora doutora, USP) (Movimento Resgate Arcada, 2015)

Outro indício do deslocamento do modelo estabelecido no ensino jurídico na cidade de São Paulo é a proposta do curso de Direito da Universidade Zumbi dos Palmares, que se coloca por missão a inclusão do negro na educação superior. Embora os conteúdos dos cursos acabem balizados pelas expectativas discentes de aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, registram-se iniciativas que se distinguem da memorização de manuais e apostilas, como atestam as publicações, eventos e congressos da Associação Brasileira do Ensino do Direito.

Os processos de descentramentos identitários incluem as intersecções na identificação dos sujeitos, deslocando a profissão de uma posição fixa no self, que as abordagens tradicionais sobre identidade profissional deixaram estáticas no núcleo do ser. Por meio de processos reflexivos, de conversações interiores, o sujeito sutura classe, gênero, raça, sexualidade à profissão, deslocando a ideologia da neutralidade de seu panteão. Isso ocorre mesmo quando ele ou ela recorre aos símbolos dominantes de prestígio e poder profissional na busca por reconhecimento.

O relato a seguir, de um advogado professor de Direito, foi extraído da dissertação de mestrado de Araújo (2016ARAÚJO, Dafne. Identidade e diferença: o exercício da advocacia por profissionais negros(as) na cidade de São Paulo. 2016. 97 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.). A passagem ilustra essas intersecções, bem como a resistência e reflexividade do entrevistado sobre os estereótipos e as desigualdades que enfrenta na vida profissional em São Paulo.

Na advocacia não é fácil. Os clientes não estão acostumados com advogado negro. Há um estranhamento. É muito comum, antes acontecia mais agora menos por conta da minha posição assertiva, acredito que os títulos acadêmicos, é muito comum você chegar numa reunião o sujeito ficar te testando para ver se você sabe o que está falando, para saber se tem experiência. Isso acaba te estressando. Como professor é a mesma coisa, os alunos te testam, querem saber, cria-se muita curiosidade. Tem um negro dando aula ali, eles querem saber o que esse cara faz, isso te estressa. E a advocacia é uma profissão que você só se afirma diante de um resultado favorável para o cliente. Então o sujeito te contrata ele precisa confiar em você, precisa ver em você e ver mesmo, a possibilidade de resolver o problema dele. Então você precisa sinalizar para ele, por meio de retórica, geração por meio de sinais de riqueza que você tem condições de cuidar do caso dele. Então o terno tem que ser impecável, o terno, o sapato, a gravata, o relógio, o carro, e eu senti muita dificuldade com isso. Não com roupa, mas com o carro. E você vai aprendendo que essas coisas fazem parte da própria constituição da advocacia. E quando você é negro é muito mais forte, é muito mais agudo você precisa realmente estar impecável, mostrar que você é diferenciado. Isso é até uma vantagem em certos momentos porque as pessoas falam “bom, se esse negro conseguiu chegar até aí é porque esse cara deve ser bom”. Mas não é sempre não. É sempre um desafio. E isso a gente sempre quis deixar claro no escritório, essa é a marca do escritório. Um escritório que tem dois sócios negros. Fazemos questão de contratar. Eu sei da minha condição. Eu não sou um professor igual aos outros. E não é porque eu sou melhor que os outros, é porque eu sou um professor negro. É duro porque eu tenho insistido nisso e tem me causado alguns conflitos [...]

Eu sou um intelectual negro, mas também sou um negro intelectual. O que isso significa? Significa que por mais que eu fale de assuntos gerais, a minha condição de negro aparece também. Quando eu falo de assuntos relacionados a questão racial, a minha condição intelectual também aparece. É de tal sorte que isso me dá vantagem e desvantagem. A desvantagem é que as pessoas têm a expectativa de que tudo que você fale se refira a questão racial, isso provoca um problema muito sério porque a concepção que eu tenho da questão racial é a concepção de integrar reflexão racial as grandes questões do mundo, da economia, da política. Eu não concebo a possibilidade de pensar o racismo como um problema de negro. O racismo é um processo, o racismo é formado de práticas materiais, e as práticas materiais estão dentro de lógica de funcionamento do mundo. Você não tem o racismo enquanto processo, se você não tem mecanismos políticos e econômicos atuando para que o racismo se reproduza. Então eu acho que toda pessoa que estuda a questão racial tem que estudar economia, tem que estudar política, porque senão não pode entender de racismo. E tem que estudar também antropologia, sociologia. Quem estuda só economia e política no Brasil tem o dever intelectual de estudar o racismo. Não é uma curiosidade acadêmica, é um problema de pesquisa. Eu cheguei a recusar alguns convites para falar, sabe? Ah vai ter uma mesa sobre cotas, sobre economia, sobre política no Brasil. Aí me chama para falar de cotas, eu não vou. Porque não me chama para falar de economia? Aí porque na mesa de economia eu vou falar de racismo. Não de política. (Professor doutor, setor privado sem fins lucrativos, 39 anos quando concedeu a entrevista) (ARAÚJO, 2016ARAÚJO, Dafne. Identidade e diferença: o exercício da advocacia por profissionais negros(as) na cidade de São Paulo. 2016. 97 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016., p. 66, 82-83)

Por fim, o grau mais elevado de titulação docente e o regime de trabalho são aspectos decisivos nos processos de estratificação profissional, que, combinados aos marcadores sociais e às formas como os docentes os manuseiam, produzem mais ou menos exclusão, inclusão, desigualdade e deslocamento do modelo tradicional. As universidades federais apresentam maior proporção de docentes em regime de dedicação exclusiva, com média de 49,7%, e reúnem a maior média de professores com titulação de doutorado, com 39,8%. Também trabalham nessas instituições os docentes que mais recebem bolsas de pesquisa, com 3,9%. Em contraste, as IES com fins lucrativos apresentam percentual de 39,6% de horistas, que é o regime que concentra os professores nesta categoria administrativa, sendo a posição mais desfavorável. As estaduais destacam-se no regime de tempo integral sem dedicação exclusiva, com 39,2% de seus docentes. As municipais reúnem em média 44,7% de professores em tempo parcial e titulação mais baixa, com 50,6% tendo especialização. Excluindo as universidades federais que têm maior titulação e as municipais que possuem a menor, nas demais IES privadas e públicas, a titulação de mestrado é predominante.

Considerações finais

O trabalho elaborou teoricamente as possibilidades de descentrar a docência do Direito no mesmo processo fragmentário que produz as formas de homogeneização do ensino jurídico. A padronização costuma acompanhar os diagnósticos da massificação desses cursos, e os dados aqui reunidos procuram dar visibilidade também ao que escapa ao enquadramento da reprodução. Para tanto, relacionam-se a dispersão territorial e regional dos cursos, as mudanças nos formatos administrativos e organizacionais das IES, o regime de trabalho e o grau de formação dos docentes com os novos discursos do profissionalismo e do gerencialismo no mundo do Direito. Lógicas hibridizadas de organização do trabalho se refletem na expansão do profissionalismo organizacional em luta concorrencial com o profissionalismo ocupacional, deslocando a profissão de sua posição fixa e central nas experiências e identificações de parte de seus membros.

A interseccionalidade e os encontros da diferença no meio acadêmico do Direito têm produzido perspectivas analíticas que criticam as abordagens canônicas, resultantes das contribuições não essencializadas da reflexividade. A diversificação do corpo docente, com a ampliação da participação feminina e de outros marcadores das diferenças no grupo profissional, como a cor/raça, soma-se a esse processo, combinando limites e possibilidades, esperança de emancipação e cautela desconfiada da falácia da dominação.

Os estudos sobre as mulheres nas carreiras jurídicas enfatizaram como a participação profissional foi genderizada, inclusão excluída pela segregação ou marcada pelo trabalho no cuidado da família, estratificando a profissão segundo o gênero. Procurando apagar esse estereótipo visto como desqualificado, várias mulheres profissionais orientaram-se pelo discurso hegemônico do profissionalismo. Este baseia-se na ideologia da neutralidade e do apagamento das diferenças que afastam da corporalidade e das práticas “normásculas”, tendo por referência a postura profissional masculina. É em relação a este cenário que a desconfiança é fundamental.

Há, entretanto, o outro lado da moeda, da ambivalência dessas relações, que se evidenciam pelo deslocamento, pelas formas como as subjetividades ressignificam a dominação por meio da resistência, da solidariedade, das complexas negociações consigo mesmo, com os pares, os gestores, os alunos, os clientes. Os depoimentos inseridos no texto ilustram como as novas identificações demandam reconhecimento e combinam as interseccionalidades criativamente. Elas contribuem para o descentramento identitário mesmo quando a carreira nucleia o sentimento de pertencimento de muitos profissionais. A convivência das gerações e das diferenças na docência influencia a todos, mesmo que seus membros sejam posicionados em espaços opostos no jogo de força, o encontro e o embate de corpos marcados pelas diferenças modificam as formas de agir e pensar nos grupos estabelecidos e nos que ingressaram depois nas carreiras. A positividade dessa contingência sustenta a esperança desconfiada na emancipação, com a ideia de que emancipadas, tais diferenças possam se tornar imperceptíveis em vez de invisíveis (COLEBROOK; WEINSTEIN, 2008COLEBROOK, Claire; WEINSTEIN, Jami (Ed.). Deleuze and gender. Deleuze Studies, Edinburgh, v. 2, Dec. 2008. Supplement.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Nov 2015
  • Aceito
    Set 2016
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