Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

Não é de hoje que a formação de professores tem sido interpelada, a começar pela própria área, a responder mais enfaticamente às exigências relativas ao trabalho docente. Diante de contextos sociais e culturais diversificados, professores em formação e em atuação são instados ao cumprimento de sua responsabilidade profissional à frente de processos de formação humana, habilitando os seus alunos à compreensão do mundo e ao agir social. Tal demanda se dá em um cenário social, cultural e educacional diverso, porém desigual e instável, e, por isso, exigente de intervenções pedagógicas favorecedoras de aprendizagens efetivas tanto cognitivas quanto socioafetivas.

Essa conjuntura conduz o olhar da formação docente para uma preparação profissional, com forte presença da universidade, como também da escola, conformando um espaço/tempo próprio e específico de aprendizagem da docência. Nesse sentido, o reconhecimento da cultura da profissão e do conhecimento que lhe é próprio emerge como uma condição imprescindível para a formação, a valorização e o desenvolvimento de professores, bem como a afirmação da sua profissão.

Desse modo, a didática, cujo foco epistêmico reside em concepções, fundamentos e práticas de ensino, constitui um dos conhecimentos profissionais decisivos para o exercício da função docente e, portanto, para a sua distinção profissional no âmbito da escola que se vive hoje. Porque se organiza no cerne do ensino, isto é, no desenrolar do processo de mediação entre o conhecimento a ser ensinado, o aprendente e a finalidade curricular, assume dimensão central na formação e na prática profissional docente.

Assim, o seu ensino nos cursos de licenciatura no Brasil, responsáveis pela formação inicial de docentes para atuarem na educação básica, ocupa posição estratégica para favorecer a ligação entre formação acadêmica, práticas de ensino e cotidiano escolar. Espera-se dos componentes curriculares referentes à didática uma abordagem voltada para o processo de ensino e o desenvolvimento da aprendizagem devidamente ancorada em aspectos filosóficos, psicológicos, sociais, políticos e metodológicos.

Nessa direção, a relação com a escola e o trabalho docente se impõe com força cada vez maior, no sentido de fixar a formação no campo de atuação profissional. A imersão na escola com observação e análise de práticas de ensino efetivas, levando em conta a sua complexidade, bem como as suas dimensões epistemológica, pragmática e relacional, aliada à atuação assistida pelos pares já iniciados, concorrem para favorecer o desenvolvimento profissional docente, com força na reflexão e na pesquisa.

Certamente, esse movimento reverberará no processo de inserção profissional docente, favorecendo que professores iniciantes enfrentem de modo mais seguro a complexidade da docência, da escola e do seu trabalho. Experimentar a inserção assistida por meio da indução profissional é ainda raro entre nós, colocando-se cada vez mais fortemente na pauta dos estudos, políticas e programas de formação de professores. A tendência de acompanhamento sistemático do professor iniciante por um mentor e/ou uma comunidade de pares interliga-se às iniciativas que buscam um caminho novo para a formação de professores, ancoradas na perspectiva profissional.

Essa compreensão norteia a abordagem deste Tema em Destaque, resultante de um movimento do LEPED - Laboratório de Estudos e Pesquisas em Didática e Formação de Professores, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - FE/UFRJ -, que vem desenvolvendo uma série de atividades de ensino, pesquisa e extensão com o propósito de contribuir para a formulação de marcos teóricos e metodológicos que ancorem a prática docente em uma perspectiva crítica e situada. Na esteira de suas realizações, inscreve-se o Simpósio sobre Ensino de Didática, que em maio de 2016 teve a sua terceira edição na Escola de Altos Estudos da UFRJ. Das ideias, debates e reflexões circulantes na ocasião resultou o livro Ensino de didática: entre ressignificações e possibilidades, publicado pela Editora CRV, em 2017, sob nossa organização em parceria com as colegas pesquisadoras Ana Teresa de Oliveira e Maria das Graças Nascimento.

É também no contexto das intervenções realizadas no simpósio que se organiza este número especial. Os seis textos que o compõem são de alguns dos pesquisadores que participaram como conferencistas - António Nóvoa, Maria do Céu Roldão, Bernardete A. Gatti e Giseli Barreto da Cruz - e de outros - Marguerite Altet, Carlos Marcelo e Denise Vaillant -, cujas pesquisas vêm contribuindo para aproximar formação, didática e trabalho do professor pela via de dispositivos centrados na escola e voltados para a aprendizagem da docência e a indução profissional.

A presença do professor António Nóvoa como visitante na UFRJ em alguns meses dos anos de 2016 e 2017 permitiu um virtuoso e vigoroso diálogo sobre um desenho outro para a formação de professores. A proposta de uma “casa comum” da formação e da profissão sugere um outro lugar institucional como referência de produção e de afirmação do desenvolvimento docente, com ancoragem na universidade e vínculo entre distintas realidades da profissão, como as escolas, as redes de ensino, os sistemas educacionais e as políticas públicas em educação. Essa concepção definiu a sua conferência no Simpósio e o seu texto neste número. Como construir programas de formação de professores que nos permitam superar a distância entre as nossas ambições teóricas e a realidade concreta das escolas e dos professores, recuperando essa ligação tão enfraquecida nas últimas décadas, sem deixar de valorizar a dimensão universitária, intelectual e investigativa é a questão que conduz a sua argumentação. Elaborada com partes e entre partes, sua leitura nos conduz na primeira delas à compreensão acerca da necessidade urgente de transformação no campo da formação de professores, evocando a dimensão profissional e sugerindo um novo lugar de formação e afirmação profissional. Entre partes, recorre ao conceito de posição para defender na segunda cinco posições para a formação profissional dos professores. O texto nos desafia a pensar na construção de um campo estimulante e inovador que promova uma autêntica formação profissional dos professores.

Na sequência, a professora Maria do Céu Roldão desenvolve a sua intervenção em torno de seis aspectos referentes ao conhecimento profissional docente como condição de distinção profissional. Tendo como ponto de partida a tensão entre perda e afirmação da profissão, discute a natureza e especificidade profissional docente chamando-nos atenção para a posição da didática como núcleo central. Porque a ação de ensinar envolve a mediação entre o conhecimento do conteúdo a ser ensinado, o conhecimento do aluno na sua singularidade e o conhecimento do currículo e suas finalidades; a didática, enquanto campo epistemológico sobre o ensino, assume a responsabilidade nuclear de sua interação. Para Roldão, “configura-se assim um olhar sobre a Didáctica não só como um campo de saber especializado inerente à profissão de ensinar, mas também como um locus de interação nuclear na constituição da complexidade do conhecimento profissional docente, artífice da mediação entre as suas diversas dimensões, que convoca a mediação epistemológica entre os diferentes componentes do conhecimento profissional do professor [...]”.

A professora Bernardete A. Gatti, uma das principais referências no cenário brasileiro quando o assunto é formação de professores, contribui para o debate evocando a importância estratégica da didática na formação inicial docente na perspectiva dos documentos oficiais, notadamente do Plano Nacional de Educação - PNE -, do Parecer CNE/CP n. 2/2015 e da Resolução n. 2/2015 do Conselho Nacional de Educação. Considera que os referidos textos curriculares reconhecem o papel atribuído à didática, sendo necessário, entretanto, a emergência de novas posturas no campo da formação de professores frente às tensões e aos desafios impostos pela prática pedagógica escolar. No dizer de Gatti, “para se ter nas instituições que formam professores a instauração de novo modo de pensar e fazer a formação de docentes para a educação básica, e definir melhor o valor e o papel da didática e da aprendizagem das práticas educacionais nessa formação, há que haver alguma ação coletiva que permita trazer à tona contribuições dos fundamentos da didática como campo de conhecimento, e, também suas contribuições a cada uma das áreas de conhecimento que são objeto da formação de docentes para a educação básica em seus diferentes níveis”.

Desse modo, acredita-se que as práticas educativas terão melhores condições de sair da trivialidade com que são implementadas, recebendo atenção mais acurada do ponto de vista teórico-metodológico.

O quarto texto deste Tema em Destaque é de nossa autoria e se ocupa com a apresentação de uma pesquisa desenvolvida com estudantes de cursos de licenciatura em âmbito universitário, com o propósito de analisar o estado atual do ensino de didática e sua contribuição para o processo de constituição profissional docente. Após análise da relação dos estudantes com o ofício docente, discute o que prevalece no ensino de didática no que toca aos conteúdos trabalhados; à aula e suas formas de mediação entre o conteúdo, os alunos e o currículo; e à atuação do professor formador. Finaliza, esboçando perspectivas para o ensino de didática na formação docente atual, defendendo que se reconheça e assuma a escola pública, a educação básica e o trabalho docente como eixos balizadores da formação inicial de professores, “transformando as aulas em espaço/tempo de problematização, análise e síntese de teorias e métodos de ensino e de aprendizagem, tendo como suporte a ação pedagógica do formador, aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar e, por isso, forma professores”.

As relações com a escola, a educação básica e o trabalho docente permanecem acompanhando o leitor no texto seguinte, porém com um enfoque voltado para a observação de práticas efetivas como estratégia de formação. Trata-se de uma pesquisa coordenada pela professora Marguerite Altet no âmbito do projeto OPERA - Observação das Práticas de Ensino em suas Relações com a Aprendizagem - desenvolvida de 2013 a 2016 em Burquina Faso, na África subsaariana, que objetiva entender o funcionamento das práticas de ensino a partir de um modelo dos processos interativos contextualizados de ensino-aprendizagem. O texto descreve o percurso da pesquisa que culminou com a proposição de ferramentas conceituais de análise do processo ensino-aprendizagem por parte de professores em contexto real de ensino. O que Altet nos propõe é “levar em conta as características da prática de ensino através dos processos organizadores (tipos de interação, dimensão temporal, tipos de tarefas, configuração da sala de aula, tipo de questionamento, de orientação, de regulação, etc.) para mostrar como um professor atua, alcança seus objetivos de aprendizagem, conduz a aula em direção a seu objetivo, leva os alunos - todos em eles, em uma dada situação - a progredir e ter êxito”. Trata-se, pois, de uma contribuição singular para pensar a didática e a formação de professores, na perspectiva que no nosso entender melhor as caracteriza: na relação entre professor, aluno e conhecimento em um contexto situado.

Da ideia de “casa comum” da formação e da profissão à indução profissional é o caminho que trilhamos neste Tema em Destaque. Se inicialmente voltamo-nos para transformações fecundas e necessárias à formação inicial, no último texto, com os professores Carlos Marcelo e Denise Vaillant, nos fixaremos na inserção profissional docente em diálogo com a formação continuada, assumindo a indução como uma estratégia cada vez mais necessária junto ao professor iniciante. O artigo nos possibilita compreender os significados atribuídos à indução na investigação internacional, nos programas existentes e na figura do mentor. Tendo como foco a análise de cinco casos de políticas e programas na América Latina - Brasil, Chile, México, Peru e República Dominicana -, deixa ao leitor a possibilidade de um esboço de paralelismo entre esses países, no que se refere à institucionalidade do programa, sua duração, seus componentes e a relação com a carreira docente. A indução profissional tem se revelado como uma iniciativa potente para reter novos professores e favorecer o seu desenvolvimento profissional em um período marcado por muitas tensões, dúvidas e hesitações. Como nos alertam os autores, “décadas atrás se consideraba como algo accesorio. Hoy se entiende como un elemento central en el proceso de retención del docente principiante y de mejora de la calidad de su enseñanza. Ahora resulta generalmente aceptado como un componente fundamental de un enfoque comprehensivo del desarrollo del docente”.

Sem dúvida, não se pode falar de formação, posição, afirmação, distinção, indução, especificidade e função docente sem conhecimento profissional. Nessa direção, a didática, porque se ocupa das mediações presentes no processo de ensino-aprendizagem, constitui um dos conhecimentos estratégicos ao exercício profissional. Desse modo, que os textos apresentados contribuam para o debate sempre atual e exigente referente aos campos da didática e da formação de professores, acendendo a luz dos desafios que a escola e os seus sujeitos nos colocam a todo momento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br