Acessibilidade / Reportar erro

Informação estatística: política, regulação, coordenação

Statistical information: policy, regulation, coordination

Resumos

Tendo como foco a informação estatística, procura-se destacar as polêmicas que vicejam no entorno de suas dimensões sociopolíticas, que define a demanda, e técnico-científica, que define a oferta, fazendo-o através de uma evolução histórica. Procura-se mostrar que a definição e a harmonia entre ambas, a demanda e a oferta da informação estatística, não passa pelo livre jogo das forças de mercado, locus natural da espontânea coordenação econômica, de modo que se faz vital haver uma coordenação especializada, apropriada e adequadamente institucionalizada em alguma esfera oficial de governo (em se tratando de um bem que se quer público). Assim, a algum agente público caberá o exercício dessa coordenação institucional, fazendo-o nos limites do mandato que se queira ou se possa atribuir-lhe, dessa forma praticando-se uma cuidadosa regulação de todo o processo, cognitivo e social, a partir dos princípios integrantes de uma política de informação. Dessa forma, associa-se a política de informação, como parece correto, ao equacionar das polêmicas que impedem ou dificultam um certo bem (no caso a informação estatística) de se tornar público, fazendo-o no contexto de alguma agência de poder (no caso uma coordenação especializada), assentando-se um conjunto de seis pilares (utilidade, pertinência, validade, visibilidade, continuidade, integridade), capazes de a substanciar e a sustentar.

Política de informação; Informação estatística; Demanda da dimensão sociopolítica; Oferta técnico-científica


Focusing on the statistical information, this article aims at remarking the polemics that grow around its social-political dimension which defines the demand, and technical-scientifical dimension which defines the suplly, through a historical evolution. It aims at showing that the definition and harmony between both, the demand and the suplly of statistical information, are not fixed by the market free game, natural locus of the spontaneous economical coordination, so, being absolutely necessary to have a specialized, proper and adequately institutionalized coordination in some official government level (because it comes to an output wanted as public). Therefore this institutional coordination should be up to some public agent which would act to the limits of its attributions, cosequently practicing a careful regulation of the whole social and cognitive process, based on the principles of a policy of information. In this way, the policy of information is related to the settling of polemics that may obstruct or make it difficult to turn public a certain output (in this case the statistical information), relating it in the context of some power agency (in this case a specialized coordination), establishing a six-pillar set (utility, properly, validity, visibility, continuity, integrity), able to sustain and support it.

Information policy; Statistical information; Demand of sociopolitical dimension; Tecnico-scientific supply


Informação estatística: política, regulação, coordenação* * As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo.

Nelson de Castro Senra

Resumo

Tendo como foco a informação estatística, procura-se destacar as polêmicas que vicejam no entorno de suas dimensões sociopolíticas, que define a demanda, e técnico-científica, que define a oferta, fazendo-o através de uma evolução histórica. Procura-se mostrar que a definição e a harmonia entre ambas, a demanda e a oferta da informação estatística, não passa pelo livre jogo das forças de mercado, locus natural da espontânea coordenação econômica, de modo que se faz vital haver uma coordenação especializada, apropriada e adequadamente institucionalizada em alguma esfera oficial de governo (em se tratando de um bem que se quer público). Assim, a algum agente público caberá o exercício dessa coordenação institucional, fazendo-o nos limites do mandato que se queira ou se possa atribuir-lhe, dessa forma praticando-se uma cuidadosa regulação de todo o processo, cognitivo e social, a partir dos princípios integrantes de uma política de informação. Dessa forma, associa-se a política de informação, como parece correto, ao equacionar das polêmicas que impedem ou dificultam um certo bem (no caso a informação estatística) de se tornar público, fazendo-o no contexto de alguma agência de poder (no caso uma coordenação especializada), assentando-se um conjunto de seis pilares (utilidade, pertinência, validade, visibilidade, continuidade, integridade), capazes de a substanciar e a sustentar.

Palavras-chave

Política de informação; Informação estatística; Demanda da dimensão sociopolítica; Oferta técnico-científica.

INTRODUÇÃO

A informação sempre foi importante, promovendo, em diferentes tempos e espaços, expressivas aberturas de mundo. Entretanto, no limiar do terceiro milênio, em que o marcante movimento de globalização agita, para o bem e/ou para o mal, o nosso viver, sua importância se apresenta ainda mais intensa e potente. De fato, em um mundo que concorre, a informação que engendra conhecimento se faz o recurso básico da produção, levando a uma intensa renovação organizacional. Mas, seria errado associar-se a importância da informação apenas ao viver e ao conviver no espaço global, ignorando-se sua importância ao viver e ao conviver nos espaços locais, nas cidades. Pois estas, quando bem informadas e bem conhecidas, se oferecem como uma espécie de âncora social a nos proteger da excessiva padronização cultural que nos vem no rastro da globalização. Dessa forma, a informação resulta dever ser um bem público da maior relevância a atrair a atenção, seja dos atores e agentes voltados ao espaço global, mais afeitos aos problemas econômicos e financeiros, seja dos atores e agentes voltados ao espaço local, mais afeitos aos problemas sociais.

Destarte, serão muitas as polêmicas no entorno da informação, mormente da informação estatística: primeiro, ao tempo da demanda – expressão de desejos e de necessidades diversos e dispersos, no tempo e no espaço –, quando do afirmar os domínios de governo a serem informados; segundo, ao tempo da oferta, quando do estabelecer as fundações conceituais e processuais das informações a serem geradas, referidas aos domínios de governo selecionados. De fato, as informações e mesmo as informações estatísticas não se fazem apenas no plano da determinação, mas também no plano da argumentação, donde o seu caráter polêmico, o que torna o desenhar e o encontrar da demanda e da oferta uma questão política. Assim, a realização harmoniosa da informação estatística como bem público dependerá da existência de uma política de informação, entendida como a necessária regulação de todo o processo de trabalho, dirimindo polêmicas no âmbito de uma coordenação especializada.

Entendemos que uma política de informação deverá atuar em todo o processo de geração das informações, partindo da sua idealização, passando por sua realização e chegando à sua utilização, claro, cuidando-se atentamente de seu arquivamento, de sua documentação, de sua disseminação. Enfim, estará materializada, desdobrada, em um conjunto de leis, diretrizes, regulamentos e interpretações, emanados das autoridades competentes, orientando-se todo o processo de geração das informações. Tudo isso, a se praticar sem os excessos de legalismo (a exagerada crença na onipresença das leis com o arriscado desprezo pela realidade) e de formalismo (o perigoso ignorar das condições de aplicação das leis, caindo-se no paradoxo de haver leis que não se aplicam).

Isso não é nada simples, havendo dois fatores que, em especial, dificultam a concepção, a formulação e a aplicação de uma política de informação: 1º) os contextos culturais, sociais, políticos que ditam os limites das ações ideais; 2º) o perpassar da informação pelas diferentes esferas públicas, cada qual procurando estabelecer suas influências particulares, tentando fazer predominar seus interesses. Dessa forma, dificilmente uma política de informação será capaz de promover um equilíbrio estável e durável entre os vários atores ou agentes envolvidos, inevitavelmente, devendo ser flexível, dinâmica e adaptável a circunstâncias cambiantes. Ou seja, uma política de informação, expressão de grandes princípios, deverá ser capaz de dirimir as polêmicas presentes em um certo instante, bem assim deverá ser capaz de se ajustar ao nascer de novas e ao renascer de velhas polêmicas.

Enfim, o interesse cada vez maior por uma política de informação, em especial, por uma política de informação estatística de âmbito nacional, passagem natural às esferas global e local, resulta de duas apreensões: 1ª) o ter-se percebido que a necessária regulação da oferta de informação estatística, cada vez mais intensa e dispersa, ainda não foi resolvida a contento; 2ª) o ter-se percebido que essa regulação precisa acontecer em harmonia com a demanda de informações, que também deverá ser objeto de regulação, ainda que se o deva fazer de modo discreto. Isso posto, antes de chegarmos à enunciação dos seis pilares capazes de substanciar, por meio de uma coordenação especializada, uma política de informação estatística, passemos por uma evolução histórica das suas dimensões sociopolítica e técnico-científica, e mais: da coordenação vista como o caminho essencial ao encontro entre ambas as dimensões, harmonizando o desejável expresso na demanda e o possível expresso na oferta.

A DIMENSÃO SOCIOPOLÍTICA DA INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA, O LADO DA DEMANDA

A expressão estatística vem do alemão statistik e foi fixada pelo professor Gottfried Achenwall (1719-72), na cidade de Göttingen, em 1749. Era, a essa época, considerada como a ciência do Estado ou como a ciência que se referia ao Estado

O tempo histórico subjacente é o da forte expansão comercial, ao longo dos séculos XVI a XVII, caracterizado pela desintegração do feudalismo e pela formação dos Estados Nacionais. Mais exatamente, trata-se do tempo em que se toma consciência da necessidade e sobretudo da possibilidade de se manobrar o conjunto da economia de um país, promovendo-se a emergência de um mercado nacional. No dizer de Fernand Braudel, "essa emergência corresponde forçosamente a uma aceleração da circulação, a um aumento das produções agrícola e não agrícola, bem como a uma dilatação da demanda geral", começando-se a desejar estatísticas numéricas, de modo a se caracterizar em uma linguagem comum a potência dos estados emergentesIV * As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo. . Natural que assim fosse. O Mercantilismo pautava-se em práticas econômicas desenvolvidas por administradores e por comerciantes com objetivos não só econômicos, mas também políticos, em uma palavra, estratégicos. Em síntese, submetia-se a atividade econômica aos interesses do Estado; de fato, não se tinha por objetivo aumentar o nível de vida da população, mas antes aumentar o poder do Estado. Assim, de modo a orientar as decisões públicas, fortemente centralizadas, é natural que o Estado promovesse a produção das estatísticas, fazendo-o, contudo, por meio de estruturas organizacionais muito frágeis, situação essa que ainda perduraria por muito tempo. Como seja, as estatísticas produzidas, como quer que o fossem, eram consideradas segredos de Estado, sendo tidas como sigilosas, pois, ao mesmo tempo em que revelavam suas potencialidades, também mostravam suas limitações, fragilizando-o perante seus inimigos ou seus rivais

"As nações-estado classificaram, contaram e tabularam seus cidadãos periodicamente. Alguma forma de enumeração tem nos acompanhado pela história, ainda que só para atender a dois objetivos fundamentais de um governo, a saber: a tributação e o serviço militar. Antes da era Napoleônica, a maior parte do censo oficial permaneceu como informação a que só os administradores tinham acesso. Depois dessa era grande parte dessa informação foi impressa e publicada"VI V As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem. .

Pouco a pouco, em face da crescente percepção da importância das estatísticas, passa-se da elaboração de quadros sintéticos e descritivos para uso do príncipe, à elaboração de quadros detalhados e específicos, geralmente numéricos, para uso na administração dos negócios públicos, sempre sob as exigências do Estado. Em meio aos avanços técnico-científicos, as estatísticas ganharam associação definitiva com os números, ao mesmo tempo em que deixaram de ser sigilosas. Esse novo ambiente dar-se-á sob a égide do liberalismo, ao tempo em que se funda propriamente um pensamento econômico, tornado de imediato em uma poderosa tecnologia de governo. Na expressão de Michel Senellart, "a passagem de uma racionalidade finalizadora a uma racionalidade calculadora será efetuada no domínio da economia", cujo marco fundador é a Riqueza das Nações, de Adam Smith (1723-1790), obra publicado em 1776VII V As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem. . Em poucas palavras, Adam Smith funda a Economia Política reunindo os princípios da fisiocracia francesa com os princípios da aritmética política inglesa (que será um marco na produção científica das estatísticas); desde então, percebe-se que se governa uma população, entendendo-se o trabalho como a principal fonte da riquezaVIII V As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem. . As estatísticas deixarão de ser espelho do príncipe para se tornarem espelho da sociedade, fazendo-se fortemente presente na emergência dessa racionalidade governamental, voltada, a um só tempo, a maximizar os benefícios e a minimizar os custos da ação de governo sob a atividade econômica (é o início de liberalismo). Conforme ainda Michel Senellart:

"Desde o século XVIII, de fato, a visibilidade social funcionou como princípio de limitação das práticas de governo – a publicidade sendo o meio de assegurar a proteção dos indivíduos –, mas igualmente como princípio de uma tecnologia governamental racional – a publicidade vindo a ser então o meio de maximizar a eficácia do poder ao menor custo"IX V As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem. .

Com o avançar do capitalismo, a idéia de população fica mais clara, sendo paulatinamente problematizada. Assim, de acordo com Fernand Braudel, "se fosse preciso acertar o relógio do Ocidente, eu assinalaria um aumento prolongado da população de 1100 a 1350, outro de 1450 a 1650, mais um a partir de 1750. Este último já não iria conhecer regressão"

"Gerir a população não quer dizer gerir simplesmente a massa coletiva dos fenômenos ou geri-los simplesmente ao nível de seus resultados globais; gerir a população significa geri-la igualmente em profundidade, na minúcia e no detalhe. A idéia de governo da população torna mais agudo o problema da fundação da soberania e mais aguda ainda a necessidade de se desenvolver as disciplinas"XII X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21). .

A par com a gestão disciplinar do corpo-máquina irá emergir a noção de gestão governamental do corpo-espécie, tendo a população como seu alvo principal e a economia política como seu instrumento maior. Na expressão de Michel Foucault, "são esses três movimentos, creio: governo, população, economia política que constituem, vale enfatizar, desde o século XVIII, um conjunto sólido que, ainda hoje, mantém-se unido"XIII X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21). . Vale dizer, "a constitução de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à população em sentido lato, aquilo que chamamos precisamente a economia"XIV X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21). . Assim, foi somente compreendendo a realidade econômica que "o problema de governo pôde enfim ser pensado, refletido e calculado fora do quadro jurídico da soberania"XV X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21). . Enfim, governam-se os homens em relações às coisas que são as riquezas, os recursos, o território, em suas fronteiras e em suas qualidades, que são também os costumes, os hábitos, as formas de pensar, bem assim, que são os acidentes, as desgraças, como a fome, a epidemia, a morte e muito mais.

Em suma, as estatísticas que ao tempo do mercantilismo, estiveram ao serviço do Estado, operando em benefício de sua administração, sendo tomadas reservadamente como espelho do príncipe, alimentando, desde o século XVI, a chamada razão de Estado pela qual se entendia estar-se governando sempre muito pouco, acabarão por se tornar, a partir do século XVIII, espelho da sociedade, sob a égide do liberalismo, pelo qual se entendia estar-se governando sempre em demasia. Governar passa a ser governar a população, com as estatísticas revelando suas regularidades e suas diversidades, vale dizer, nas palavras de Michel Foucault:

"A estatística revela e mostra pouco a pouco que a população tem suas regularidades próprias: seu número de mortos, seu número de doenças, suas regularidades de acidentes. A estatística mostra igualmente que a população apresenta características próprias em seu conjunto e que esses fenômenos são irredutíveis aos da família: as grandes epidemias, as expansões endêmicas, a espiral do trabalho e da riqueza. A estatística mostra igualmente que, por seus deslocamentos, por suas maneiras de fazer, por sua atividade, a população tem seus efeitos econômicos específicos. A estatística, permitindo quantificar os fenômenos próprios à população, revela uma especificidade irredutível ao pequeno quadro da família"XVI.

Isso posto, duas afirmações de Nikolas Rose serão esclarecedoras, oferecendo uma bem elaborada síntese sobre a presença das estatísticas na arte de governar:

"Para se governar uma população é necessário, de um lado, isolá-la, como um setor da realidade, de modo a identificarem-se certas características e processos que lhes sejam próprios, tornando alguns de seus traços dignos de nota, dos quais se possa falar e escrever, e a eles se referir, sempre de acordo com certos esquemas explanatórios. Assim, o governo depende da produção, circulação, organização e legitimação de verdades que encarnem o que deve ser governado, tornando-o passível de ser pensado, calculado e exercido na prática. Por outro lado, governar uma população requer conhecimento de uma modalidade específica. Para se fazer cálculos acerca de uma população, faz-se necessário ressaltar certos traços dessa população como sendo a matéria-prima do cálculo e requer que se tenham informações sobre os mesmos. O conhecimento assume aqui uma forma bastante concreta; requer a transcrição de fenômenos (tais como o nascimento, a morte, o casamento, uma doença, o número de pessoas que vivem nessa ou naquela casa, o tipo de trabalho que exercem, sua alimentação, sua riqueza ou pobreza) em registros sobre os quais cálculos políticos possam ser realizados. O cálculo, então, depende de processos de "inscrição" que traduzem o mundo em traços concretos, relatórios escritos, desenhos, mapas, gráficos e, principalmente, números"XVII.

"Sobre um domínio a ser governado, precisa-se não apenas falar e pensar sobre ele, mas também poder-se agir sobre o mesmo. Ou seja, precisa-se de informações para se saber o que está acontecendo naquele domínio específico. A informação pode se apresentar sob várias formas: relatórios escritos, desenhos, imagens, números, tabelas, gráficos, estatísticas e assim por diante. Isso possibilita que o contorno estabelecido para um certo domínio – tipos de bens e serviços, ou as idades das pessoas, seus domicílios, saúde, criminalidade – seja de tal ordem que se possa calculá-los nos locais onde as decisões são tomadas: os escritórios, os gabinetes, as conferências, os comitês, dentre outros. Este século dependeu e inspirou a construção de topografias morais e mapeamentos estatísticos da população, se não como um todo, pelo menos de seus setores mais problemáticos"XVIII.

Destarte, busca-se estabelecer os contornos da população, tornando-a pensável, de modo a se governá-la, ficando evidente o distinto papel das estatísticas, enquanto expressões numéricas de múltiplos organizados. Agora, a empresa será vista como muito grande para ficar limitada aos registros administrativos, quando ganham força especial os registros estatísticos, a essa época, essencialmente gerados por pesquisas censitárias. Sem dúvida, trata-se de eventos sempre muito grandiosos, a atrair o interesse de estudiosos e a exigir a presença do Estado, mas, talvez por serem espaçados no tempo, mesmo quando realizados periodicamente, acabam por fazer com que as instituições sofram descontinuidades administrativas. Vale dizer, as organizações responsáveis são frágeis, são criadas com a mesma facilidade com que são extintas, com evidente prejuízo para a memória técnica, o que só será plenamente corrigido na segunda metade do presente século, mas tendo início com a criação da Royal Statistical Society e com a realização dos nove Congressos Internacionais de Estatística.

A DIMENSÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA DA INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA, O LADO DA OFERTA

A Royal Statistical Society, fundada em 1834, declarou seus propósitos segundo o considerado verdadeiro estilo baconiano, ou seja, "buscar, organizar e publicar fatos destinados a ilustrar a condição e as perspectivas da sociedade". Para seus fundadores, os estadistas e os legisladores deveriam recorrer às estatísticas em busca dos princípios segundo os quais governar ou legislar, declarando com todas as letras a estatística como "a ciência das artes da vida civil", associando-a definitivamente ao governo do EstadoXIX. Não obstante, constata-se historicamente que importantes decisões políticas, que mudaram os rumos da humanidade, foram tomadas na ignorância dos fatos, no império das paixões, na sujeição dos palpites; uma explicação estaria na dificuldade de se governar por números, ou seja, se é verdade que os números mudam a arte de governar, não menos verdade é que governar por números é uma arte em si mesma, vale dizer, o manuseio dos números pressupõe uma certa expertise, raramente encontrável entre os governantes; outra explicação estaria na própria natureza dos fatos, ou seja, como se os entendia prontos, à espera de serem colhidos, pouca atenção se dava às organizações produtoras; como não se percebia que precisavam ser construídos, que suas construções eram exigentes e laboriosas, a fragilidade das organizações acabava por instabilizar a própria apreensão dos mesmos. Seria preciso entender que

"... os fatos não eram como pequenos seixos de verdade que acabariam formando uma lei científica quando se reunisse um número suficiente. Huxley, por exemplo, achava que os fatos isolados eram mudos. Estava plenamente consciente de que o mais diligente, o mais paciente dos empiristas, seu amigo Charles Darwin, só tinha feito progressos na teorização sobre a evolução depois de encaixar as informações que havia reunido ao longo dos anos na estrutura propiciada por uma hipótese"XX.

Realmente, a percepção de que o pensar dos fatos deveria nortear-se por teorias ainda era muito tênue e continuaria a sê-lo ainda por muito tempo. Mais ainda: percebia-se muito pouco que, para além de um corpo teórico multidisciplinar, agregando a economia e a sociologia, a demografia e a estatística, entre outras disciplinas, seria preciso contar com um método de pesquisa, tomado em suas especificidades, sendo devidamente institucionalizado, conformando assim uma arte de calcular as estatísticas, sem o que não se poderia bem expressar numericamente os fatos. Contudo, ainda passaria muito tempo até que se conseguisse compreender o que Camille Jacquart já dizia no início do presente século:

"A estatística só consegue amparar-se sobre situações concretas, objetos materiais e atos humanos [na verdade] efeitos dos atos humanos considerados em uma ou outra de suas características individuais, comuns a todo um grupo, mas sempre em suas manifestações exteriores"XXI.

De fato, importa perceber que só se pode atribuir números a coisas, só se pode produzir estatísticas em relação a coisas, então, precisamos identificar claramente o objeto da nossa observação; por demais, há de se perceber que a comensurabilidade não é uma propriedade das coisas, mas uma qualidade que se lhes atribui o observador. Assim, temas como a pobreza, a saúde, o crescimento, dentre outros, só poderão ser tornados fatos à medida que tenham em sua constituição elementos representativos passíveis de serem observados. Ora, a seleção desses elementos será tanto mais pacífica, quanto mais se ampare em teorias, conhecidas e reconhecidas; definitivamente, os fatos são construídos, não são colhidos. Enfim, acrescente-se ainda com Camille Jacquart:

"Cabe enfatizar que o método estatístico não consegue superar ou mesmo compensar a ciência na qual venha a ser aplicado. Seu emprego, numa certa área de conhecimento – pensemos na psicologia coletiva –, só pode ser eficaz à medida que os fenômenos dessa área sejam conhecidos, uma vez que será sempre preciso haver uma definição do fato a ser observado, como ponto de partida da operação estatística"XXII.

Não pode ser diferente, as estatísticas são construídas, o que não lhes diminui a importância. Desde que bem construídas, as estatísticas seguem guardando todas as suas reais possibilidades, ainda que, por serem construções, igualmente apresentem limitações. Mas, ignorar essa realidade pode levar a situações embaraçosas, querendo-se estatísticas que não são possíveis, frustrando-se com as estatísticas possíveis. Enfim, sendo da ordem da precisão e não da ordem da exatidão, as estatísticas precisam ser usadas com muito cuidado, não dispensando discernimento.

Enfim, a criação dos centros especializados voltados à produção das estatísticas só ganhará curso normal a partir da segunda metade do século XIX, ainda que uma outra experiência possa ser localizada nos séculos anteriores. Pois, muito do que se fez a essa época deve-se à figura magistral do astrônomo belga Adolphe Quetelet (1796-1874), grande animador desse processo, em um desempenho de vida absolutamente ímparXXIII. Por demais, há de se reconhecer seu grande empenho na realização dos Congressos Internacionais de Estatística, o primeiro em 1853 e o último em 1876, marcando "o início da emergência e da unificação relativa da profissão de estatístico"XXIV.

Pois, uma leitura atenta dos relatos finais desses congressos permite um sem-número de descobertas fascinantes; os nove relatos finais seguem uma estrutura única, estabelecida pelo economista alemão Ernst Engel (1821-1896), o que facilita em muito a leitura de seu variado conteúdo. De nossa parte, centraremos atenção na seção organisation de la statistique, procurando extrair as reflexões feitas sobre a necessária institucionalização da produção das estatísticas, pensando-se a criação das organizações especializadas. Comecemos pelo primeiro congresso, Bruxelas-1853, inspirado e orientado diretamente por Adolphe Quetelet:

"O alvo pretendido ao se organizar o Congresso foi especialmente o de promover a unificação das estatísticas oficiais que os governos publicam, promovendo resultados comparáveis. Os trabalhos específicos [particuliers] serão mais fáceis, quando se tiver estabelecido bases gerais que os associem, e que se tenha adotado, em diferentes países, nomenclaturas e tabelas uniformes: essa espécie de língua universal, simplificando os trabalhos, lhes asseguraria mais importância e solidez.

Para dar unidade aos trabalhos oficiais, é preciso relacioná-los a um centro comun; é preciso que os principais funcionários, encarregados da apresentação [rédaction] dos diferentes segmentos da estatística geral, possam se ver e se entender conjuntamente, aceitando as mesmas divisões, adotando, após detido exame, os mesmos nomes e os mesmos números para representar os mesmos objetos, não deixando nenhuma lacuna nas tabelas gerais, e evitando, de outro lado, as duplicidades. O meio mais seguro de se chegar à unidade desejada parece ser a criação, em cada Estado, de uma comissão central de estatística, ou de uma instituição análoga, formada pelos representantes das principais administrações públicas, aos quais se somariam algumas pessoas que, por seus estudos e conhecimentos especiais, possam iluminar a prática e resolver as dificuldades essencialmente científicas [qui appartiennent essentiellement à la science].

A medida proposta não é exclusiva, e, em certas circunstâncias, a concentração dos trabalhos estatísticos, nas mãos de um ou vários funcionários, pode ter suas vantagens. Como é de numerosos documentos, que só podem ser verificados em seus lugares de origem, e que as estatísticas devem ser examinadas e controladas nos mínimos detalhes, importa constituir funcionários, agências [bureaux] ou comissões especiais, mas que estejam em relação com a comisão central. Em meio dessa vasta rede, que cobre todo um país, será difícil que fatos de alguma importância escapem à atenção dos que têm a missão de os constatar, e se popularizam com vantagens as grandes operações estatísticas que, quase sempre, desperta apreensões e encontra mesmo oposição no público em geral. É desejável, de outro lado, que as instituições centrais de diferentes países se ponham em relacionamento, entre si, promovendo a troca de suas publicações e modelos de tabelas empregadas para juntar documentos, classificá-los e resumi-los"XXV.

Assim, alguma organização precisaria haver no sentido de se introduzir uma unidade e de se conformar uma totalidade nas estatísticas públicas, garantindo-se resultados comparáveis, se não por outras razões, para melhor lidar com as eventuais oposições às estatísticas, tidas como muito polêmicas entre o público. Fala-se na criação de um centro comum a se fazer catalisador dos trabalhos, tornando-se referência para os pesquisadores. Refere-se a constatar fatos, sugerindo o espírito que norteara a criação da Royal Statistical Society 19 anos antes, mas já se vislumbra uma certa percepção de que os mesmos são construídos, o que será de extrema importância. Os congressos de Paris-1855, de Viena-1857, de Londres-1860 e de Berlim-1863 simplesmente reiteram as declarações anteriores, enquanto o realizado em Florence-1867 faz acréscimos que merecem destaque, particularmente por introduzir explicitamente a palavra coordenação, de interesse especial neste texto:

"É preciso haver no topo do trabalho estatístico: a) Um conselho de pessoas que tenham autoridade na matéria, não somente por suas posições hierárquicas, mas também por suas competências pessoais; um Conselho que delibere sobre aspectos científicos e aspectos práticos, que possa deliberar sobre o método de coleta dos fatos e sobre o plano a seguir por parte dos pesquisadores, coordená-los e resumi-los e sobre a forma de lhes dar publicação; b) Uma diretoria ou una agência [bureau], qualquer que seja o nome que se lhe dê, para onde se levem todos os trabalhos estatísticos e que seja encarregado de sua apresentação [rédaction]. (...)

Eis então qual seria a organização da estatística oficial...: 1) Uma agência [bureau] de estatística deveria ser organizada em cada Estado, para recolher, coordenar e publicar as estatísticas sobre todos os segmentos da administração pública e sobre todas as manifestações que interessam à vida física, econômica e moral do país, tanto quanto à ciência. 2) A agência [bureau], do mesmo modo que a estatística em geral, deveria ser posta sob a alta dependência da Presidência do Conselho de Ministros e formar uma Direção geral autônoma, cujo chefe teria responsabilidade com direito a chancela [droit de signature] sobre tudo que não se referisse ao orçamento, à execução de novas estatísticas [de relevés statistiques nouveaux], as despesas e publicações extraordinárias e as designações para funções fixas. 3) O Conselho de Ministros seria chamado por seu presidente a se pronunciar sobre todas as questões relativas à competência do diretor-geral. (...) 10) O cuidado de coletar, reunir, revisar, coordenar e publicar os fatos e os trabalhos estatísticos, tanto quanto o papel de relator geral de todos os trabalhos competiria ao diretor-geral. Nenhuma estatística seria publicada por qualquer ministério ou agência [bureau] governamental: tudo deveria partir da direção-geral de estatística"XXVI.

Dessa forma, enuncia-se a idéia de um conselho formado por pessoas de comprovada competência em matéria estatística, diríamos, tendo expressa familiaridade com a produção estatística, bem assim, enuncia-se a idéia de uma direção ou uma agência encarregada da execução dos trabalhos estatísticos; por demais, enfatiza-se que a essa estrutura estaria subordinada toda a produção estatística de um país, a ninguém sendo dada liberdade de agir independentemente. Finalmente, reconhece-se explicitamente a dimensão sociopolítica das estatísticas na medida em que se propõe um vínculo direto dessa estrutura ao chefe de governo, cuidando de resguardar plena independência no que tange à dimensão técnico-científica das mesmas, reinvindicando-se plena liberdade de ação para o encarregado máximo dessa estrutura. O congresso seguinte, realizado em La Haye - 1869, faz um acréscimo que precisa ser destacado, como segue. Já os dois últimos, realizados em Saint-Pétersbourg-1872 e em Budapest-1876, simplesmente reiteram as declarações anteriores.

"O Congresso, considerando que para a constatação dos fatos, para a exatidão e a perfeição das informações [renseignements] estatísticas, o trabalho dos funcionários, dos administradores provinciais e comunais é da mais alta importância, então, importa, sobretudo aos governantes, assegurar-se da capacidade e do zelo de seus funcionários, e de prover os meios de estabelecer um elo direto e contínuo entre esses empregados e a agência [bureau] central ou a administração central de estatística, de modo que é essencial que eles recebam prontamente as instruções e as tabelas ou modelos em todas as matérias que concernem às estatísticas"XXVII.

Começa-se a falar em constatar fatos, deixando-se entrever a percepção de que os mesmos são construídos. Nesse sentido, muito sabiamente, preocupa-se com o valor das pessoas envolvidas com a produção das estatísticas nas províncias e nas comunas. Fala-se, assim, da necessidade de haver capacidade, digamos técnico-científica, o que é de percepção imediata, mas fala-se também da necessidade de haver zelo, o que não é assim de apreensão tão imediata. De fato, como será visto logo a seguir, na produção das estatísticas, há de se contar com um esprit de corps a envolver todos os participantes, na medida em que é impossível controlar-se tudo e todos, no tempo e no espaço. Ademais, até porque parece ser mais e mais aceito como imperativo o conviver com a descentralização da produção, começa-se a ensaiar a idéia de que aos organismos centrais seria atribuída a tarefa de capacitar as diversas pessoas envolvidas com a produção.

Não obstante terem contribuído significativamente para o desenvolvimento de uma mentalidade estatística, os Congressos Internacionais de Estatística tiveram vida curta, por conta de uma controvérsia diplomática considerada de difícil equacionamento, qual seja, o saber se seus participantes falavam em nome próprio como pesquisadores, ou, contrariamente, falavam em nome de seus governos, representando-os. Os congressistas queriam-se representantes de seus países, imaginando que, ao retornarem, teriam condições de aplicar as resoluções aprovadas, o que talvez só muito raramente tenha se dado, não fossem tantos os interesses sociopolíticos subjacentes às estatísticas, sem contar que a idéia sempre presente de se estar construindo um sistema estatístico internacional ainda causava um certo temor nos governos nacionais.

Isso posto, percebida e entendida a importância das agências nacionais de estatística, o que vem de ser uma das grandes contribuições dos Congressos Internacionais de Estatística, importa apreender-se a natureza do trabalho realizado no seu interior, tornando-as efetivamente centros de cálculo. Como ponto de partida, notemos, portanto, com Oskar Morgenstern (1902-1977), notável economista de origem alemã, que "uma diferença significativa entre o uso de informações nas ciências naturais e nas ciências sociais é que naquelas o produtor das observações é geralmente também seu usuário", sendo que nas ciências sociais "as informações são freqüentemente disponibilizadas por produtores independentes entre si e afastados dos usuários finais", com o complicante de ser praticamente impossível a esses usuários restabelecerem as condições sob as quais as estatísticas foram geradas, ao contrário do que é normal nas ciências naturais. A esse propósito, ainda com Oskar Morgenstern:

"Muitos produtores de estatísticas preocupam-se em passar aos seus usuários informações sobre as conceituações e as classificações adotadas, dentre muitas outras especificidades. Existem, entretanto, vários casos onde essa descrição é um esboço e onde permanecem grandes lacunas. Algumas vezes, isso se deve à negligência e à crença de que a autoridade da agência produtora seja suficiente para inspirar plena confianca nas estatísticas. Mas, em termos científicos, essa autoridade nunca existe. Por demais, os muitos detalhes envolvidos na geração da grande maioria das informações econômicas torna praticamente impossível repetir-se todos os detalhes descritos a cada vez que algum número seja usado"XXVIII.

Assim, elaboram-se quando muito documentos na lógica da justificação, só muito raramente fazendo-o na lógica da descoberta, vale dizer, passa-se sempre a falsa idéia de que os processos foram conduzidos limpidamente, sem a mais tênue dúvida, sem a menor incerteza, sem nenhuma insegurança. Entretanto, a verdade é bem diferente, muito mais humana, pautada em freqüentes indecisões, a começar da obtenção das inscrições e descrições de primeira ordem, ou seja, os registros individuais, ato fundador de todas as estatísticas, a exigir o equacionamento de uma enorme quantidade de detalhes. De fato, não é nada simples a tarefa de se obterem registros individuais confiáveis, conseguindo o concurso de inúmeros informantes, pessoas físicas e jurídicas, nos setores privado e público. Assim, a definição das amostras, a redação das perguntas, a elaboração dos questionários, atividades prévias ao trabalho de campo, desencadeando-o, bem assim, a realização das entrevistas e o registro das respostas a serem posteriormente agregadas, além de serem tarefas extremamente complexas, trazem o agravante de envolver um grande e heterogêneo número de pessoas, só muito raramente tendo um olhar plenamente educado. Como bem observado por Oskar Morgenstern:

"Até mesmo recenseadores treinados e tantos outros profissionais dedicados ao trabalho de campo não são `observadores' em um sentido científico estrito. Um observador científico é o astrônomo em seu telescópio, o médico clínico que registra a dispersão dos mésons, o biólogo que determina o comportamento hereditário de algumas células etc. Todos são os próprios cientistas. Eles não operam por meio de agentes várias vezes substituídos. Exceto no caso de haver experiências, as ciências sociais nunca terão uma posição equivalente no que concerne à matéria-prima básica das observações. Devido à quantidade de informações envolvidas, isso seria fisicamente impossível. Nós não podemos colocar economistas ou estatísticos, tecnicamente treinados, nas portas das fábricas para determinar o que foi produzido, e o quanto está sendo embarcado, para quem e a que preço"XXIX.

Em prosseguimento, quando são realizadas sucessivas traduções das inscrições e descrições até a enésima ordem, gerando por fim as estatísticas, há um grande número de pessoas envolvidas. Na verdade, por serem em menor número as pessoas envolvidas nos trabalhos de crítica e de análise, pode-se imaginar maior homogeneidade, contudo, há que se considerar as muitas formações disciplinares envolvidas, cada profissional trazendo as especificidades de sua disciplina, economistas e sociólogos, demógrafos e estatísticos, dentre outros. Métodos e mais métodos são criados e usados, considerando todos os aspectos do processo de geração das estatísticas, lançando-se mão de novas e melhores tecnologias de comunicação, de observação, de apresentação, de processamento. Mas, em que pese a importância desses avanços, "os principais `instrumentos' são ainda as massas de seres humanos: para registrar, interpretar, classificar, contar, perguntar"XXX. Então, fica claro que a qualidade das estatísticas dependerá sobremodo da qualidade dos diversos profissionais envolvidos, criando ou aplicando diferentes métodos de pesquisa. Não se trata obviamente de uma verdade particular ao processo de geração das estatísticas, pois não há processo de trabalho que não dependa da qualidade das pessoas envolvidas. Pode-se, entretanto, afirmar com segurança que, no caso das estatísticas, trata-se de uma verdade mais contundente. Nesse sentido é que dissemos anteriormente ser fundamental haver um esprit de corps entre as muitas pessoas envolvidas, tornando-as especialmente zelosas, introjetando-lhes tanto uma ética de comportamento, quanto uma ética de priorização.

O ENCONTRO ENTRE OS LADOS DA DEMANDA E DA OFERTA, A COORDENAÇÃO

Então, vistas as dimensões sociopolítica e técnico-científica, fica claro que a definição da demanda e da oferta, além da associação harmoniosa entre ambas, não passa pelo jogo livre das forças de mercado, locus natural da espontânea coordenação econômica, de modo que será preciso forjar e mesmo forçar uma coordenação especializada, devidamente institucionalizada, em sendo um bem que se quer público, em alguma esfera oficial de governo. Sua trajetória histórica aconteceu em três tempos.

Primeiro tempo, um ensaio de coordenação:

Desde que sir William Petty desenvolveu sua Aritmética Política, ao final do século XVII, lançando os alicerces de uma espécie de cálculo estatístico, aplicado à geração das estatísticas públicas, a ciência estatística teve avanços memoráveis, atravessando os séculos XVIII e XIX, conformando e consolidando o velho paradigma científico tão caro ao mundo ocidental. O progresso dessa ciência, valeria destacar, sempre se fez em estreita consonância com os problemas sociais, não sendo diferente com a ciência estatística, mais e mais reconhecida como necessária ao pleno conhecimento da realidade, natural e humana, social e econômica. Assim, cientistas como Adrien Legendre, Abrahan De Moivre, Jacob Bernoulli, Pierre Laplace, Carl Gauss, Adolphe Quetelet, Francis Galton, Francis Edgeworth, Karl Person, George Yule, Ronald Fisher e outros contribuíram sobremodo para o conhecimento do mundo, procurando expressá-lo na linguagem dos números, tomada como essencial ao alcançar de um pleno conhecimento.

Entretanto, a produção das estatísticas públicas seguia seu caminho de sempre, pouco se beneficiando dos avanços científicos. Entendia-se, como visto, que os fatos estariam sempre prontos, bastando ser recolhidos, ao estilo baconiano, que tanto influenciou a criação das sociedades estatísticas, como já vimos. Compreendia-se muito pouco que a objetividade das estatísticas resultava de processos de objetivação, o que sempre causava espécie; logo, não obstante o empenho dos produtores das estatísticas públicas, não é de estranhar que os números sofressem críticas recorrentes dos reformadores sociais. Nessa circunstância, sobreleva a ação levada a cabo por diferentes pensadores, à frente o astrônomo belga Adolphe Quetelet (1796-1874), secundado por vários outros, com destaque para o economista alemão Ernst Engel (1821-1896), nas nove reuniões do Congresso Internacional de Estatística, ao longo do período de 1853 a 1876, quando pela primeira vez falou-se em coordenação, atribuindo-a a um órgão central adrede organizado. A coordenação emergia como uma demanda de baixo, era percebida por partícipes da produção nacional de estatísticas, preocupados com as estatísticas internacionais, ou seja, queriam-se estatísticas nacionais comparáveis e combináveis ao nível internacional.

Para tanto, em debates crescentemente refinados e afinados, concluiu-se pela necessidade de se estruturar alguma agência nacional precipuamente voltada à coordenação das estatísticas, de modo a se alcançar a meta internacionalista. Esses organismos nacionais não centralizariam a produção, que seguiria a cargo de uma diversificada rede de produtores, tão-somente cuidando para que os métodos de trabalho fossem comuns a todos, empenhando-se para que a divulgação e a interpretação dos resultados pudessem ser de alta qualidade. A preocupação em não centralizar a produção vinha, primeiro, da percepção de que a principal fonte de registros individuais seguia sendo o registro administrativo, descentralizado por excelência, em face de sua própria vocação, qual seja, ser um veículo de gestão e, segundo, da percepção de que o registro estatístico, à ocasião essencialmente de origem censitária, seguia sendo de alcance restrito, em face de sua complexidade operacional. De fato, percebia-se, com propriedade, que, sem o concurso dos registros administrativos, contando-se com os parcos registros estatísticos de origem censitária, não se conseguiria cobrir toda a gama de informações estatísticas desejadas referentes a diferentes domínios de governo, como expressa nas listas exaustivamente elaboradas e reelaboradas.

À essa época, se, de um lado, compreender o desejável, percebê-lo em sua dimensão sociopolítica não era a tarefa mais difícil, porquanto os partícipes do processo eram homens notavelmente públicos, afinados com os anseios de seus tempos, de outro lado, explicar o possível, percebê-lo em sua dimensão técnico-científica não era a tarefa mais fácil, porquanto desconhecendo-se ainda muito do processo produtivo das estatísticas. Assim, é natural que a coordenação fosse apenas ensaiada, deixando-nos, contudo, três ensinamentos: 1º) a necessidade de uma entidade coordenadora não envolvida com a produção; 2º) a percepção da dimensão sociopolítica norteando a produção; 3º) a relevância do registro administrativo a par com o registro estatístico.

Segundo tempo, um discurso de coordenação:

Terminada a II Guerra Mundial, impunha-se um esforço de reconstrução de quase todos os países envolvidos, não só dos países derrotados, mas também dos países vitoriosos, porquanto ambos estavam com suas economias em completa desorganização. Por demais, havia o comunismo a pairar como uma ameaça concreta sobre as democracias mundiais, impondo pressa nesse esforço de reconstrução, pois, paradoxalmente, a saída viria do próprio mundo comunista, onde a prática do planejamento central fora capaz de promover muitas e rápidas mudanças, tal e qual o mundo democrático necessitava.

Assim, feitas as adaptações culturais, preservados os princípios democráticos, passou-se a viver um planejamento centralizado em quase todos os países devastados pela guerra, sempre com uma ou outra nuance de ordem espacial ou temporal, de todo modo tornando imperativa a existência de muitas e boas estatísticas. Uma vez que o planejamento apresentava-se ampla e solidamente teorizado, oferecia-se como uma não-coisa de imediata compreensão aos olhos dos produtores de estatísticas, dispondo-se, em um feliz acaso, de um extraordinário mecanismo à sua coisificação, qual seja, a contabilidade nacional; a compreensão do desejável (planejamento nacional) e a explicação do possível (contabilidade nacional) encontraram-se privilegiadamente, dando ensejo a um casamento quase perfeito, et pour cause, impulsionando fortemente a produção das estatísticas.

As agências nacionais de estatística passam, então, a produzir estatísticas continuamente, de uma forma jamais vista: à elaboração das contas nacionais e à elaboração dos censos, duas distintas atividades, uma nova e outra antiga, vem se somar um uso crescente da pesquisa por amostra, lançando-se mão de técnica antiga, mas só então amadurecida – estatísticas conjunturais puderam ser produzidas. Tantas e tais atividades atraíram novos profissionais à produção pública das estatísticas, abrindo assim seu leque científico, o que se mostraria muito positivo, mas também muito complexo, avolumando-se a falta de um elo entre os muitos saberes envolvidos. Em conseqüência de fatores vários, máxime a continuidade nas atividades de pesquisa, tornou-se possível o desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa própria à produção das estatísticas, o que se apresentava como uma demanda já secular. Daí, a par com o uso das técnicas amostrais, foi possível dinamizar sobremodo a criação dos registros estatísticos, claro que ao custo do predomínio do nacional como referência espacial privilegiada das estatísticas, não fora o próprio planejamento tido e dito como nacional. Ainda que muito importante, estava longe de poder ser tomado como o elo entre as várias ciências envolvidas com a produção das estatísticas, mas foi o que aconteceu.

Por outro lado, quanto aos registros administrativos, não aconteceu nada de parecido, não se lhes associou nenhum avanço metodológico, em que pese sua importância à elaboração das contas nacionais. Mas foi possível garantir-lhes o uso sem o dissabor de se dever manuseá-los em seus ambientes dispersos e empoeirados, só muito raramente informatizados. Isso foi alcançado exatamente mediante coordenação ofertada de cima, conformando um discurso que ainda hoje povoa o imaginário dos produtores de estatísticas, mas restringindo-a perigosamente à sua dimensão técnico-científica, ou seja, cada produtor, em seu próprio ambiente, deveria agregar-se à cruzada de elaboração da contabilidade nacional, mesmo que não recebesse em troca nada além da honra de estar viabilizando o planejamento nacional.

Assim, as agências nacionais de estatística tornaram-se definitivamente centros de cálculo, conquistando enorme credibilidade, mas acomodando-se aos louros de uma vitória que parecia permanente. Crendo as estatísticas como algo indiscutível, tanta era a legitimidade advinda do planejamento nacional vis-a-vis a credibilidade advinda da contabilidade nacional, seus produtores como que se deram ao direito de não se apresentar ao crivo das contradições, fechando-se intramuros. Em conseqüência, ao menor abalo na legitimidade, a própria credibilidade costuma ser posta em dúvida, para perplexidade e mesmo tristeza de muitos dos envolvidos.

Enfim, esse segundo período, quando a coordenação é apenas discursada, deixa-nos três ensinamentos: 1º) um organismo central voltado fortemente à produção acaba por ver diminuída sua capacidade de coordenação; 2º) nenhuma legitimidade é permanente ao longo do tempo, a exigir permanente atenção à dimensão sociopolítica das estatísticas; 3º) mesmo a melhor das credibilidades precisa ser freqüentemente mostrada como tal, o que exige permanente atenção à dimensão técnico-científica das estatísticas.

Terceiro tempo: uma política de coordenação:

Ainda no período anterior, o sucesso do planejamento nacional no campo econômico sugeriu sua expansão ao campo social, na tentativa de dar cobro a uma variada gama de problemas sociais, significando um novo impulso à produção das estatísticas. Estatísticas temáticas são estruturadas ou reestruturadas, atendendo a interesses setoriais, mas subordinados aos interesses da Contabilidade Nacional, mais ainda, subordinados aos interesses do Planejamento Nacional, como será o caso dos Indicadores Sociais, no esforço quimérico de se dar ao campo social o mesmo ordenamento que a Contabilidade Nacional consegue dar ao campo econômico; esforço quimérico à falta de uma teoria social equivalente à teoria econômica.

Isso posto, perceba-se que a produção das estatísticas assentava-se no Planejamento Nacional, com sua leitura sociopolítica da realidade devidamente posta em termos teóricos, o que facilitava em muito a compreensão do desejável. Em contraparte, no lado da oferta, enquanto a tradução técnico-científica da realidade pôde se assentar predominantemente na Contabilidade Nacional, esteve-se deitado em berço esplêndido. Mas, com a forte emergência do social, dando sinais de esgotamento no Planejamento Nacional, sobremodo revelando a perda de hegemonia do econômico, perdia-se a suficiência teórica da Contabilidade Nacional, tornando imperativa a explicação do possível, ao que os produtores não estavam habituados.

Assim, com o advento do neoliberalismo, desde os anos 80, em conseqüência entre outros aspectos das crises do petróleo, desacredita-se o Planejamento Nacional, em face da falência dos Estados, et pour cause, põe-se em cheque a produção pública das estatísticas. De pronto, o florescer de uma próspera indústria produtora de estatísticas sugeria a ausência quase total do Estado, na melhor das hipóteses atribuindo-lhe ou concedendo-lhe a produção de uma ou outra estatística, dentre elas as censitárias. Felizmente, não demorou muito para se perceber o equívoco dessa assertiva, recuperando-se a consciência de que as estatísticas são, a um só tempo, instrumentos de saber e de poder, cabendo resguardar ao Estado, no mínimo, a função coordenadora.

Como seja, as agências nacionais de estatística saem chamuscadas desse entrevero, tendo muitas dificuldades para se adaptarem aos sinais dos tempos, notadamente aos sinais da descentralização político-administrativa. O tempo presente parece dispensar as estatísticas nacionais ao remeter a solução dos problemas sociais ao espaço local e a solução dos problemas econômicos ao espaço global, como foi dito. Entretanto, mesmo tornando-se como que tributárias dos espaços local e global, as estatísticas nacionais seguem sendo indispensáveis, precisando ser produzidas, ainda que em bases diferentes.

A descentralização faz com que muitos governem, significando uma demanda por estatísticas ampliada e diversificada, o que dificulta a compreensão do desejável. A seu turno, a oferta amplia-se embalada por novas e melhores tecnologias, o que não é bastante garantia à correta aplicação do método de pesquisa voltada à produção das estatísticas, dificultando muito a explicação do possível. Dessa forma, considerando que o desejável e o possível assumem variadas facetas, no tempo e no espaço, alcançar seu necessário equilíbrio torna-se uma tarefa ingente, a exigir uma consistente e defensável política de coordenação, conduzindo à solução negociada dos problemas, fazendo igual o que as diferenças inferiorizam, fazendo diferentes o que a igualdade descaracteriza.

Destarte, por meio de uma política de informação, a coordenação a ser desenhada cuidadosamente deverá ter como objetivo promover a dialética entre a compreensão do desejável e a explicação do possível, com vista à interpretação dos resultados. Tratar-se-á de uma política cuja operacionalização irá exigir uma dedicação exclusiva, o que quer dizer que ela não poderá ser uma derivação da produção, ao contrário, devendo ser uma unidade especializada no interior da existente agência nacional, produtora, ou mesmo ser uma agência independente voltada à coordenação, como seja, agindo sobre os produtores com vistas a agregar-lhes a inevitável dependência sociopolítica, ao tempo da demanda, sem sacrificar-lhes a desejável independência técnico-científica, ao tempo da oferta, equilibrando-se assim a legitimidade e a credibilidade.

A COORDENAÇÃO E A POLÍTICA DE INFORMAÇÃO, A REGULAÇÃO

Antevistas as polêmicas que vicejam no entorno das dimensões sociopolítica e técnico-científica da informação estatística, há de se poder contar com uma política de informação, sob pena de não se poder dispor das informações adequadas ao conhecimento. Pois, uma política de informação estatística deverá apoiar-se em seis pilares, a serem assentados, dois ao tempo em que se define a demanda, três ao tempo em que se define a oferta (em suas fases de produção e de disseminação) e, de modo a serem precisos, bem assentados, um pilar síntese ao tempo da coordenação, síntese, abarcando o processo como um todo.

Ao tempo da definição da demanda, fundam-se o pilar da utilidade e o pilar da pertinência, de modo que, tendo-se em mente aquele, com as noções de comparação e de combinação, assenta-se este, com as noções de relevância e de abrangência. Deseja-se informações comparáveis e combináveis, como um imperativo à compreensão da realidade complexa expressa em domínios de governo, dito de outra forma, com a expectativa de se poder contar com informações comparáveis e combináveis, revelam-se os domínios de governo mais relevantes em uma cobertura atentamente abrangente. Ora, o pilar da utilidade que motiva a demanda deverá servir de guia à oferta, dado que, sem a sua plena satisfação, a demanda ficará frustrada.

Ao tempo da definição da oferta, funda-se na fase de produção o pilar da validade, com as noções de adequação e de precisão, e na fase de disseminação o pilar da visibilidade, com as noções de acessibilidade e de aceitabilidade, tendo-se o pilar da continuidade, com as noções de sistematização e de permanência como um traço de união entre a produção e a disseminação. As informações tornadas acessíveis, de modo sistemático e permanente, precisam ser aceitáveis, o que supõe estarem refletindo de modo adequado (no sentido teórico-conceitual) e preciso (no sentido teórico-processual) os domínios de interesse público, fazendo-se comparáveis e combináveis com vista a bem apreender-se a realidade complexa.

Ao tempo da coordenação, como um elo entre a demanda e a oferta, as ações e atuações deverão ser de ordem a se fundar o pilar da integridade (com as noções da credibilidade e da legitimidade), a funcionar como o derradeiro concretizar do pilar da utilidade que, recorde-se, primeiro, motivou a demanda e, segundo, guiou toda a oferta. Isso posto, perceba-se que, se de um lado, a credibilidade resulta da cuidadosa sustentação da vertente técnico-científica ao tempo da oferta, de outro lado, a legitimidade resulta da cuidadosa sustentação da vertente sociopolítica ao tempo da demanda, em conjunto, construindo-se uma inquestionável interdependência entre ambas, na prática de um diálogo franco e aberto. Portando, deve ficar claro que o tempo da coordenação não é exatamente seqüencial aos tempos da demanda e da oferta, mas antes um tempo que lhes perpassa, levando-os a se construírem de modo harmônico e mesmo integrado.

Isso posto, perceba-se que os seis pilares, assentados, enfeixam todo um ciclo de qualidade da informação, a saber: 1º) uma qualidade anterior, ao tempo da demanda, com os pilares da pertinência e da utilidade; 2º) uma qualidade interior, ao tempo da oferta, com o pilar da validade na fase de produção, e com o pilar da visibilidade na fase de disseminação, e unindo ambas as fases, com o pilar da continuidade; 3º) uma qualidade posterior, ao tempo da coordenação, com o pilar da integridade, balanço final do pilar da utilidade, que moveu a demanda e que guiou a oferta. Assim, a informação resultante terá a potência de promover conhecimento, porquanto tendo-se praticado uma diuturna conjunção entre a demanda ex-ante e a oferta ao tempo da produção e entre a demanda ex-post e a oferta ao tempo da disseminação, ou ainda, recuperando expressões clássicas, entre emissores e receptores.

Enfim, pensa-se na criação de um centro nacional em torno do qual as várias produções e as várias disseminações possam orbitar de modo a garantir-se aos diferentes resultados das pesquisas a força de serem comparáveis e combináveis. Mas, a existência de um centro nacional, coordenador, não significa a negação de centros locais, municipais e estaduais, conforme as necessidades, nem significa afirmar hierarquia entre os mesmos, mas antes, significa perceber que a dimensão nacional, pela singular experiência acumulada, como vimos, é a mais focal ao espraiar dos espaços global e locais, dimensões imperativas e imperiosas nesse final de milênio; enfim, as relações funcionais devem ser de ordem a promover a construção da identidade possível no respeito das diferenças inevitáveis. Assim, as autoridades competentes podem e devem enunciar e anunciar uma Política Nacional de Informação Estatística, entendida como a necessária regulação do processo de geração das informações estatísticas, promovendo-se a interdependência harmoniosa entre a dimensão sociopolítica (o lado da demanda) e a dimensão técnico-científica (o lado da oferta).

Perceba-se, finalmente, que à entidade coordenadora responsável pela aplicação dessa política de informação, mantendo-a atualizada, deverá exercer sua atividade reguladora na extensão do mandato que se lhe queira ou se lhe possa atribuir, podendo ser de caráter executivo, com atuação nos tempos da demanda e da oferta das informações estatísticas, podendo receber o direito de concessão e de fiscalização da produção e da disseminação, de caráter legislativo, validando em conselhos a moldura legal e formal (diretrizes, regulamentos, interpretações, enfim, medidas e resoluções) necessárias ao desenrolar de sua função executiva, e de caráter judiciário, avaliando e julgando o cumprimento dos acordos, dos pactos, enfim, dos contratos e obrigações assumidos pelas partes, impondo-lhes as penalidades previamente estabelecidas. Como seja, tudo se fará, deverá se fazer, a partir de democrática argumentação.

Statistical information: policy, regulation, coordination

Abstract

Focusing on the statistical information, this article aims at remarking the polemics that grow around its social-political dimension which defines the demand, and technical-scientifical dimension which defines the suplly, through a historical evolution. It aims at showing that the definition and harmony between both, the demand and the suplly of statistical information, are not fixed by the market free game, natural locus of the spontaneous economical coordination, so, being absolutely necessary to have a specialized, proper and adequately institutionalized coordination in some official government level (because it comes to an output wanted as public). Therefore this institutional coordination should be up to some public agent which would act to the limits of its attributions, cosequently practicing a careful regulation of the whole social and cognitive process, based on the principles of a policy of information. In this way, the policy of information is related to the settling of polemics that may obstruct or make it difficult to turn public a certain output (in this case the statistical information), relating it in the context of some power agency (in this case a specialized coordination), establishing a six-pillar set (utility, properly, validity, visibility, continuity, integrity), able to sustain and support it.

Keywords

Information policy; Statistical information; Demand of sociopolitical dimension; Tecnico-scientific supply.

Nelson de Castro Senra

Doutor em ciência da informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT) e mestre em economia (FGV/EPGE). Pesquisador e professor no IBGE e professor na Universidade Santa Úrsula.

E-mail: senra@ibge.gov.br ou ncsenra@alternex.com.br

II. Mais precisamente, referia-se aos acontecimentos tidos como memoráveis ao entendimento de um Estado, descrevendo-se seu território e sua população, compondo assim referências a amparar a ação de seus dirigentes. Inventariando os recursos e as forças de um Estado, até então, oferecia-se em documentos como espelho do príncipe, tomando-se o príncipe como a própria encarnação do EstadoII; semelhante aos trabalhos dos geógrafos e historiadores, nesses documentos, os números não são predominantes, seja por não estarem sistematicamente disponíveis, seja também por não serem considerados essenciais a uma boa explanação, o que significa dizer que, ao tempo que chamaríamos de sua proto-história, as estatísticas não estavam necessariamente associadas aos números, sendo não raro descritiva e mesmo algo literáriaIII. Hacking, Ian. The taming... (p 24), Porter,Th. The rise of... (p 23), Desrosières, Alain. La politique... (p 30).

II Senellart, Michel. Les arts de... (p. 54).

III Porter, Theodore. Ibiden. (p. 24), Desrosières, Alain. Ibiden. (p. 219).

IV Braudel, Fernand. Civilização... O tempo do... (p. 255), Weber, Max. História... (p. 185).

VI Hacking, Ian. The taming... (p. 2). A tradução é minha.

VII Senellart, Michel. Les arts de... (p. 54). A tradução é minha.

VIII Na verdade, essa racionalité calculatrice começa a se dar antes mesmo de Adam Smith, quando os homens de negócio àquele tempo se habituaram a tratar de seus problemas por meio da elaboração de informações estatísticas.

IX Senellart, Michel. Ibidem (p. 283). A tradução é minha.

XI Foucault, Michel. História da... (p. 132s).

XIIIdem. La `governamentalité' (p 654). O grifo é meu. A tradução é minha.

XIIIIdem, ibidem. (p. 655). A tradução é minha.

XIVIdem. Ibidem. (p. 653]. Veja-se as observações de Senellart no início desta seção. A tradução é minha.

XVIdem. Ibidem (p. 651). A tradução é minha.

XVIIdem. Ibidem (p. 651). A tradução é minha.

XVII Rose, Nikolas. Governing the... (p. 6). Os grifos são meus. A tradução é minha.

XVIII Rose, Nikolas. Inventing... (p. 102-3). O grifo é meu. A tradução é minha.

XIX Gay, Peter. Domínio incerto... (p. 451).

XXIdem. Ibidem (p. 459).

XXI Jacquart, Camille. Statistique et science... (p. 59). A tradução é minha.

XXIIIdem. Ibidem. (p. 62). A tradução (algo livre) é minha.

XXIII O livro de Porter,Theodore. The rise of statistical..., quase por inteiro, é um tributo à grande figura de Quetelet, ficando marcante sua persistente atuação administrativa, a par com sua ação científica.

XXIV Desrosières, Alain. L'Administrateur et... [p. 8]. A tradução é minha.

XXV Congrès... Raport des reunions... (p. 4). Os grifos são meus. A tradução é minha.

XXVI Congrès... Raport des reunions... (p. 5-6). Os grifos são meus. A tradução é minha.

XXVII Congrès... Raport des reunions... (p. 6-7). Os grifos são meus. A tradução é minha.

XXVIII Morgenstern, Oskar. On the accuracy... (p. 14-15). A tradução é minha.

XXIX Morgenstern, Oskar. On the accuracy... (p. 27). A tradução é minha.

XXX Morgenstern, Oskar. On the accuracy... (p. 39). A tradução é minha.

  • 1. BARRETO, Aldo de Albuquerque. A questăo da informaçăo. Săo Paulo em Perspectiva, Săo Paulo, v. 8, n. 4, p. 3-8, out-dez 1994.
  • 2. BRAUDEL, Fernand. Civilizaçăo material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Săo Paulo: Martins Fontes, 1996. vol I: As estruturas do cotidiano 541 p.
  • 3
    —————. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. vol III: O tempo do mundo. 626 p.
  • 4. BURGER, Robert H. Information policy, a framework for evaluation and policy research. New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1993. 193 p.
  • 5. CONGRČS INTERNATIONAL DE STATISTIQUE, 1853-1876. Rapport des reunions plenaires. Madrid: Instituto Nacional de Estadística de Espańa, 1983. 341 p.
  • 6. DESROSIČRES, Alain. L'Administrateur et le savant, les metamorphoses du metier de statisticien. Paris: Insee/Crest, février, 1996. 18 p.
  • 7. . La politique des grands nombres, histoire de la raison statistique. Paris: Éditions La Découverte, 1993. 438 p.
  • 8. FOUCAULT, Michel. La 'governamentalité'. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits: 1954-1988.Paris: Éditions Gallimard, 1994. vol. III: 1976-1979, p. 635-657.
  • 9. . História da sexualidade: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v. l. 152 p.
  • 10
    —————. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 272 p.
  • 11. FOURQUET, François. Les comptes de la pusissance: histoire de la comptabilité nationale et du plan. Paris: Encres, éditions recherches, 1980. 462 p.
  • 12. FROHMANN, Bernd. Taking information policy beyond information science: applying the actor network theory for connectedness: information, systems, people, organizations. Canadian Association for Information Science, Edmonton, Canadá, 10 p. jun 1995.
  • 13. GAY, Peter. Domínio incerto. In: GAY, Peter. O cultivo do ódio. Săo Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.426-528.
  • 14. GÓMEZ, Maria Nélida González de. Da organizaçăo do conhecimento ŕs políticas de informaçăo. Informare, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 58-66, jul/dez 1996.
  • 15. GORDON, Colin. Governmental racionality: an introduction. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter (ed). The Foucault effects; studies in governmentality. London: Harvester Wheatsheaf, 1991. p. 1-52.
  • 16. HACKING, Ian. The taming of chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 264 p.
  • 17. JACQUART, Camille. Statistique et science sociale. Bruxelles: Desclée, De Brouwer et Cie., 1907 [sic]. 120 p.
  • 18. LATOUR, Bruno. La science en action. Paris: Éditions La Découverte, 1989. 451 p.
  • 19. MILLER, Peter. Accounting for progress - national accounting and planning in France: a review essay Accounting, Organizations and Society, London, v. 11, n.1, p. 83-104, 1986.
  • 20. MORGENSTERN, Oskar. On the accuracy of economic observations. Princenton: Princenton University Press, 1973. 322 p.
  • 21. PORTER, Theodore. The rise of statistical thinking, 1820-1990. Princeton: Princeton University Press, 1986. 333 p.
  • 22. ROSE, Nikolas. Inventing our selves. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 222p.
  • 23. . Governing by numbers: figures out democracy. Accounting, Organizations and Society, London, v. 16, n.6, p. 673-692, 1991.
  • 24. . Governing the soul, the shaping of the private self. London: Routledge, 1991. 304 p.
  • 25. ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political power beyond the State: problematics of government. The British Journal of Sociology, London, v. 43, n. 2, p. 173-205, jun 1992.
  • 26. SELTZER, Willian. Politics and statistics: independence, dependence or interaction. New York: United Nations, 1994. 37 p.
  • 27. SENELLART, Michel. Les arts de gouverner, du regimen médiéval au concept de gouver nement. Paris: Éditions du Seuil, 1995. 312 p.
  • 28. SENRA, Nelson de Castro. Política de Informaçăo (Quantitativa): concepçăo, formulaçăo, aplicaçăo. Rio de Janeiro, abril, 1999. 54 p. [Ediçăo pessoal]
  • 29
    —————. A coordenação da estatística nacional. O equilíbrio entre o desejável e o possível. Rio de Janeiro: UFRJ/CNPQ, 1998. 176 p. Tese de Doutorado em Ciência da Informação
  • 30
    ______ . Os Sistemas de Informações Estatísticas no limiar do terceiro milênio: o imperativo da coordenação. (O caso brasileiro). CNPD – Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, fev. 1998. 48 p.
  • 31. WEBER, Max. História geral da economia. Săo Paulo: Ed. Mestre Jou, 1968. 367 p.
  • I * As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo.
    . Mais precisamente, referia-se aos acontecimentos tidos como memoráveis ao entendimento de um Estado, descrevendo-se seu território e sua população, compondo assim referências a amparar a ação de seus dirigentes. Inventariando os recursos e as forças de um Estado, até então, oferecia-se em documentos como
    espelho do príncipe, tomando-se o príncipe como a própria encarnação do Estado
    II * As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo. ; semelhante aos trabalhos dos geógrafos e historiadores, nesses documentos, os números não são predominantes, seja por não estarem sistematicamente disponíveis, seja também por não serem considerados essenciais a uma boa explanação, o que significa dizer que, ao tempo que chamaríamos de sua proto-história, as estatísticas não estavam necessariamente associadas aos números, sendo não raro descritiva e mesmo algo literária
    III * As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo. .
  • V V As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem. .
  • X X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21).
    . Pois neste último período, do qual vimos falando, surge no campo das grandes políticas nacionais, as questões da natalidade, da longevidade, da saúde pública, da habitação, da migração, dentre outros, apontando para a necessidade de novas técnicas com vistas ao controle das populações. Nesse contexto, é natural que os governos renovassem a atenção sobre a segurança social, surgindo o que Michel Foucault chamou de biopolítica das populações, vale dizer, "o investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento"
    XI X Braudel, Fernand. Civilização... As estruturas... (p. 21). . Isso não significa que se deixa de lado a gestão do corpo-máquina em favor da gestão do corpo-espécie, na verdade a disciplina do indivíduo não terá sido tão importante e tão valorizada quanto a partir do momento em que se procurou gerir a população. Conforme Michel Foucault:
  • *
    As seções um a três apóiam-se muito na tese de Doutorado do autor em Ciência da Informação (UFRJ/ECO e CNPq/IBICT). As opiniões emitidas são pessoais, podendo não refletir as opiniões das instituições com as quais o autor mantém vínculo.
  • VV. As poucas estatísticas então disponibilizadas ao público não o eram pelo Estado, mas sim por obra e graça de amadores, em geral viajantes com educada capacidade de observar a paisagem.
  • XX. Pois neste último período, do qual vimos falando, surge no campo das grandes políticas nacionais, as questões da natalidade, da longevidade, da saúde pública, da habitação, da migração, dentre outros, apontando para a necessidade de novas técnicas com vistas ao controle das populações. Nesse contexto, é natural que os governos renovassem a atenção sobre a segurança social, surgindo o que Michel Foucault chamou de biopolítica das populações, vale dizer, "o investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento"XI. Isso não significa que se deixa de lado a gestão do corpo-máquina em favor da gestão do corpo-espécie, na verdade a disciplina do indivíduo não terá sido tão importante e tão valorizada quanto a partir do momento em que se procurou gerir a população. Conforme Michel Foucault: Braudel, Fernand.
    Civilização... As estruturas... (p. 21).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 1999
    • Data do Fascículo
      Maio 1999
    IBICT SAS, Quadra 5, Lote 6, Bloco H, 70070-914 Brasília DF - Brazil, Tel.: (55 61) 3217-6360 / 3217-6350, Fax: (55 61) 321.6490 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: ciinf@ibict.br