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UMA NOTA SOBRE A TRANSPOSIÇÃO DE TERMOS QUÍMICOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA

A NOTE ON THE TRANSPOSITION OF CHEMICAL TERMS ONTO THE PORTUGUESE LANGUAGE

Resumo

This note has the purpose of calling the attention of the chemist to some aspects of the process of translating chemical terms onto the Portuguese language. A quick inspection on the chemistry literature in Portuguese shows a certain number of inadequate or dubious translations of terms originally coined in other languages. Firstly, the possible origins of these inadequacies are briefly discussed. Then one proceeds to a cursory explanation of some fundamental concepts such as signs, words, meaning, real referents, scientific concept, and scientific term. These concepts are traced back to the origin of Western Civilization, being first systematized in the work of Aristotle, forming the backbone of all Western languages. A short discussion on the features of a well-done translation is presented. Finally, a set of ill-translated or dubiously translated or dubiously named chemical terms are used to illustrate the presented concepts, divided among the general type of inadequacy. In some cases, with justification, grammatically correct or more adequate terms are suggested to replace the offending translated chemical terms in portuguese.


INTRODUÇÃO

Este texto tem o objetivo de chamar a atenção do químico para alguns aspectos envolvidos na tradução de termos associados à química para o português. Em sua grande maioria, os termos técnicos utilizados em Química foram cunhados em outra língua que não a portuguesa. E a maioria deles foi corretamente traduzida. Mesmo assim, um olhar atento aos livros de Química em português revela algumas inconformidades no que diz respeito à tradução de termos técnicos para a língua portuguesa. É importante notar que a comunicação de fatos e conceitos da Química, em português, é subordinada às regras gramaticais da língua portuguesa e não o contrário. Observam-se inconformidades nas traduções, que vão desde duplicidades ortográficas sistemáticas, passando por pleonasmos viciosos, por termos simples e compostos gramaticalmente desprovidos de sentido, e chega-se até mesmo à supressão de ideias que estão presentes nos termos químicos em outros idiomas, mas não no português “brasileiro”.

Não é nosso objetivo fazer aqui um estudo abrangente de como chegamos ao atual descuido na expressão de conceitos da Química em português. Possivelmente, pode-se traçar uma das origens deste quadro à supressão do estudo obrigatório do latim nas escolas há algumas décadas, e do grego, há mais de um século. Desde a fundação das primeiras universidades no século XII, o latim foi reconhecido como um idioma altamente preciso e estruturado, sendo o idioma empregado em todas as aulas e materiais escritos.11 Abelson, P.; As sete artes liberais: Um estudo sobre a cultura medieval, Kirion: Campinas, 2019 A mesma qualificação se aplica ao grego clássico, do qual o latim é em parte derivado. As chamadas línguas vernáculas ocidentais, em sua maioria, obtiveram sua estrutura gramatical a partir do latim e grego clássicos, adaptando-os e combinando-os às línguas faladas por cada povo específico. O português nasceu de formas tardias do latim, herdando na sua forma original muito da precisão característica do latim.22 Mendes de Almeida, N.; Gramatica Latina, Saraiva: São Paulo, 2013 A compreensão da formação de palavras em português é dificultada sem o sólido conhecimento de latim e grego clássico. O estudo desses idiomas foi mantido até meados do século XX no Brasil, no nível médio chamado “clássico” presente nas boas escolas. Nas universidades, esses estudos necessariamente continuam, já que tais idiomas são uma parte indissociável da Civilização Ocidental. Sem eles, os cursos de humanidades perdem todas as referências, não só de conteúdos gerados até o século XIX, mas também de conteúdos mais modernos, que, sem esta base, perdem toda ancoragem ortográfica, semântica e literária desenvolvida nos últimos três milênios. De uma forma menos evidente, mas não menos importante, esse ancoramento é essencial também para o conjunto das ciências exatas, da qual a Química faz parte. Muito do conhecimento em Química é transmitido pela linguagem escrita expressa num idioma vernáculo, como português, inglês, alemão, espanhol, etc. Portanto, problemas que afetam a expressão escrita dificultam o entendimento e a transmissão de qualquer tipo de conteúdo. A negligência programada das fundações da língua portuguesa é uma das causas da desorientação na expressão escrita, percebida em várias instâncias de comunicação científica, principalmente nos alunos, mas infelizmente também nos profissionais. Uma consequência indireta do fenômeno é a eventual falta de clareza na expressão escrita de termos e conceitos científicos, entremeados atualmente em grande parte da literatura e da comunicação científica.

Como a situação descrita acima tem suas causas em uma série de fatores cuja discussão ultrapassa e muito o escopo do presente periódico, e não é nosso objetivo apontar livros específicos que contenham termos mal traduzidos ou mal escritos. Preferimos focar nossa discussão em alguns elementos importantes que fundamentam em parte o processo de tradução de termos provenientes de outro idioma. Discutimos brevemente a tríade signo-significado-referente como sistematizado por Aristóteles há mais de 2000 anos atrás, e a sua relação com os conceitos de “palavra”, “termo” e “conceito científico”. Tecemos também considerações sobre aspectos inerentes a uma boa tradução científica. Por fim, ilustramos as ideias apresentadas com uma série de exemplos de termos amplamente utilizados em Química, que apresentam algum tipo de inconformidade, sabendo que todos serão facilmente reconhecidos por qualquer estudante ou profissional da Química.

PALAVRAS, CONCEITOS E TERMOS

Antes de discutir as características específicas de palavras, termos e conceitos em ciência, é importante esclarecer as ideias mais fundamentais de referente real, significado e signo no discurso científico. Brevemente, signos são sinais ou símbolos, falados ou escritos, estabelecidos por convenção humana, que representam ideias criadas no intelecto humano.33 Aristóteles; Da Alma, 1ª edição, Edipro: São Paulo, 2011.,44 Tomás de Aquino; Comentário à “Metafísica” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2016, vols. 1-3. Essas ideias estão associadas a um referente presente na realidade, possuindo um significado, definição ou descrição em consonância com o referente real.55 Tomás de Aquino; Comentário ao “Sobre a Interpretação” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2018.

Portanto, significar é atribuir sentido a um símbolo que esteja associado a algum referente extraído da realidade. De outra forma, é transportar uma ideia nascida no intelecto através da criação de um símbolo em que esteja contido um substrato extraído da realidade. É atribuir significado proveniente do real a determinado signo convencionado - como, por exemplo, a uma palavra.

Existem signos que são independentes de idiomas, como aqueles em partituras musicais, símbolos matemáticos e fórmulas químicas. Embora seja imprescindível a existência de um idioma para expressar o significado de algum referente real através de palavras faladas ou escritas, tanto o referente real como o seu significado são sempre independentes de idiomas.55 Tomás de Aquino; Comentário ao “Sobre a Interpretação” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2018.

A partir do início do século XX, o estudo da tríade signo-significado-referente real foi, em parte, incorporado à uma nova disciplina chamada semiótica. Nestes estudos mais recentes, foram criados termos e designações para uma série de nuances envolvidas no processo de estudo de signos e representações. O leitor interessado pode consultar referência que procura relacionar estudos de semiótica com a Química.66 Gois, J.; Giordan, M.; Quim. Nova Esc. 2007, 7, 34. Para efeito de tradução de termos químicos para língua portuguesa, estudos específicos de semiótica são pouco relevantes. Afinal, traduções entre idiomas são discutidas e bem realizadas há milhares de anos, seguindo os princípios clássicos aqui expostos.

Retornando ao assunto principal, faz-se necessária a criação de uma nova palavra cada vez que é construída uma ideia no intelecto de um indivíduo e que não exista um signo ortográfico que corresponda a tal ideia. Se a ideia é nascida no intelecto, mas constata-se a existência de um signo ortográfico que corresponda a tal significado, então o indivíduo deve respeitar a convenção de significado e utilizar-se do correspondente símbolo gráfico em sua escrita.77 Agostinho; O Trivium de Santo Agostinho, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2021. Uma das razões mais importantes para seguir, na escrita formal, as convenções de significado e grafia pré-estabelecidas é a manutenção do diálogo com séculos (atrás e adiante no tempo) de literatura, tanto científica quanto imaginativa. Particularmente, isso é imperativo para o discurso científico, campo em que toda a comunicação tem que ser a menos ambígua e mais objetiva possível; o que se faz inviável, caso o emissor não respeite as convenções de significados pré-existentes no idioma.

Com relação a conceitos e termos científicos, é necessária alguma elaboração adicional.

Um conceito é uma ideia universal, abstraída a partir do intelecto e que tem fundamento na realidade.44 Tomás de Aquino; Comentário à “Metafísica” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2016, vols. 1-3.,88 Aristóteles; Órganon, 1ª edição, Edipro: São Paulo, 2016. Um conceito científico tem que estar inserido obrigatoriamente numa teoria científica.99 Bunge, M.; Teoria e Realidade, 1ª edição, Perspectiva: São Paulo, 2018. Nas ciências da natureza, uma teoria é uma estória contada sobre algum aspecto da natureza, onde o recorte da realidade envolvido deve sempre estar especificado. Essa estória deve estabelecer causas e efeitos associados a fenômenos observáveis e mensuráveis, deve possuir coerência interna no seu discurso e coerência externa na sua relação com os referentes reais. Nesse contexto, os conceitos científicos fazem o papel de um conjunto de significados que compõem a caracterização do discurso científico, precisamente fundamentados nos dados mensuráveis e observáveis associados ao recorte da realidade escolhido para acessar os referentes reais.

Um termo não tem significado ambíguo - é sempre ele mesmo, e não outro -, enquanto uma palavra pode ser ambígua.1010 Joseph, M.; O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza e a função da linguagem, 1ª edição, É Realizações: São Paulo, 2008. Um termo se difere de um conceito no seguinte: o termo é a palavra gerada com intenção de representar uma ideia, enquanto o conceito é a ideia em si.88 Aristóteles; Órganon, 1ª edição, Edipro: São Paulo, 2016.,1010 Joseph, M.; O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza e a função da linguagem, 1ª edição, É Realizações: São Paulo, 2008. Deve-se sempre buscar pelo termo que melhor expresse o que se pretende, perscrutando-se, entre as palavras, a que mais eficientemente guarda os sentidos conotativo e denotativo da palavra em relação à transmissão da ideia (conceito em si) que se pretende verter de uma mente a outra. Exemplo: embora a palavra “manga” seja ambígua, em um contexto de alfaiataria o termo ‘manga’ tem sempre um e apenas um significado (manga da vestimenta, nunca a fruta manga). No contexto de botânica ou culinária, sempre a fruta manga, e nunca um fragmento de vestimenta.

SOBRE A IMPORTÂNCIA DE UMA TRADUÇÃO FIDEDIGNA

A negligência ou a ignorância das distinções associadas aos significados de ‘palavra’, ‘termo’ e ‘conceito’ prejudica, em um primeiro momento, a literatura científica produzida em determinado idioma e, em consequência, prejudica também o processo de tradução de termos e conceitos científicos.

A tradução de um dado conceito deve respeitar a norma culta da língua de origem e da língua portuguesa. O veículo de transposição da ideia que escolhemos para tradução encerra, em si, tanto 1) a convenção de significado como 2) a dimensão psicológica da palavra. A gramática básica ensina que: 1) a dimensão lógica ou intelectual de uma palavra é o conteúdo de pensamento, que pode ser expresso em sua definição conforme o dicionário (convenção de significado); 2) a dimensão psicológica da linguagem está em seu conteúdo emocional - as imagens relacionadas, as nuances, as emoções espontaneamente associadas às palavras.1111 Rònai, P.; Escola de Tradutores, 7ª edição, José Olympio: São Paulo, 2012.

É imprescindível que esse exercício intelectivo via sonoridade seja realizado respeitando os significados originais, associados aos termos, presentes no idioma que deu origem à palavra. Somente depois da compreensão precisa do significado do conceito ou termo em seu idioma original, é que se deve esquadrinhar o idioma para o qual a ideia-prima será transposta, buscando um termo que verta este concepto da forma mais inteiriça possível.

Não raro, encontramos, na produção textual científica (de artigos a livros didáticos), termos cuja descrição de seus aspectos primordiais esteja atrelada a ideias de natureza abstrata - por vezes associadas a formulações matemáticas ou conceitos químicos - chamadas símbolos especiais. Existe uma variedade de símbolos especiais, utilizados junto com os idiomas correntes das linguagens faladas e escritas, mas que também os transcendem. Esses símbolos podem ser universalmente lidos por quem apreende sua linguagem e não são passíveis de tradução, haja vista a extensão de seu conteúdo abstrato. Embora os símbolos especiais estejam embutidos na construção de cada conceito indivisamente, o fato é que quase toda a troca de informações e mediação de conhecimentos ocorre através da linguagem falada e escrita.

Toda ciência lida necessariamente com abstrações e recortes limitados da realidade. Esse fato deve ser levado em conta na palavra que é escolhida para representar um conceito científico nos seus aspectos gramaticais e sensoriais.

Para garantir sua realização, é preciso 1) compreender a origem do termo, apercebendo-lhe as dimensões lógica e psicológica da palavra-matriz cunhada em outro idioma para, então 2) buscar o termo, em português, que melhor acomoda o sentido semântico considerando o aspecto sensorial da palavra, sua sonoridade e as imagens mentais e abstrações do intelecto que chegam à nossa intelecção que precedem seu significado convencionado.

“Palavras em línguas diferentes normalmente são equivalentes na sua dimensão lógica, mas frequentemente não o são na sua dimensão psicológica. É por isso que é difícil traduzir poesia satisfatoriamente. É raro que sinônimos na mesma língua tenham exatamente o mesmo significado. O menos ambíguo de todos os símbolos é uma descrição geral, especialmente uma tão perfeita quanto uma definição.”1010 Joseph, M.; O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza e a função da linguagem, 1ª edição, É Realizações: São Paulo, 2008.

A norma culta de qualquer língua escrita deve sempre ser utilizada em ciências por sua maior precisão e clareza na comunicação. Deve-se notar que qualquer ciência é caracterizada pelo seu caráter impessoal e comunicável.77 Agostinho; O Trivium de Santo Agostinho, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2021. A utilização da norma culta é a garantia que as duas dimensões da palavra (lógica e psicológica) sejam guardadas ao traduzir-se palavras e textos para um outro idioma.

A comunicação pode-se dizer bem estabelecida - ou seja, sem ambiguidade - quando uma ideia partiu original e integralmente de uma mente emissora e foi total e claramente transmitida à mente receptora, seja na forma oral ou escrita, sendo a ideia transportada num mesmo idioma ou em outro - contendo, ou não, símbolos especiais associados à teoria.

Em conclusão a esta secção, pode-se declarar que, em hierarquia de prioridade, é mais estimado que o bom tradutor tenha intimidade com o idioma a ser versado o termo do que intimidade e fluência completas no idioma-máter do conceito criado. Isso não significa tratar o idioma original de maneira puramente técnica. Como já dito, o conteúdo de significado de um conceito ou termo é em última análise independente do idioma em que os signos que os simbolizam são apresentados. O tradutor deve ter um bom conhecimento do idioma para o qual se está traduzindo, pois, estando adequadamente familiarizado com o significado e referente real de um termo ou conceito, o tradutor deve ser capaz de escolher, da melhor forma possível, que palavras utilizar na tradução.

EXEMPLOS ILUSTRATIVOS

Existe certo número de termos em uso na Química no Brasil - em livros traduzidos e originais, em periódicos científicos e em salas de aula - que, tendo origem em outro idioma, apresentam problemas ou ambiguidades na tradução ou expressão em língua portuguesa. Em alguns casos, os termos em questão foram inicialmente traduzidos corretamente, mas a tradução correta original foi ignorada, sendo substituída por traduções inadequadas que eventualmente se transformaram em majoritárias.

Os termos escolhidos para discussão foram divididos de acordo com o tipo geral de inadequação encontrada na tradução e expressão em língua portuguesa. Estas inadequações variam desde questões sobre sentido, ortografia e sonoridade de um termo, passando-se por ambiguidades semânticas e químicas e chegando-se até à supressão ou à comunicação incompleta e/ou equivocada de uma ideia.

I) Erros crassos da norma culta da língua portuguesa

Exemplos: “molécula (ou geometria) planar”, “complexo quadrado planar”, “cromatografia gasosa”, e “cromatografia líquida”.

Esses termos violam regras da norma culta, contribuindo para a perpetuação do hábito de ler-se algo levando em consideração ‘o que quer ser dito’ em vez de ‘o que foi dito’.

“Planar” é um verbo, não adjetivo. O correto seria molécula (ou geometria) plana. Caso ilustrativo de tradução inadequada do inglês “planar” que é equivalente ao português “plano(a)” tomado como adjetivo.

“Complexo quadrado planar”, é uma tradução inadequada do inglês “square planar complex”. A inadequação do termo “planar” já foi explicada acima. “Quadrado planar” é ainda pleonasmo vicioso, pois todo quadrado é plano; se não for plano, não é quadrado. Uma das razões para confusão pode advir do fato de que em inglês “square” pode ser empregado em situações distintas das empregadas em português. Por exemplo, em inglês, “square” pode significar quarteirão (como um pedaço de cidade cercado por quatro ruas), não necessariamente plano e não necessariamente quadrático. Uma tradução correta para o português seria “complexo quadrático”.

Em português, “cromatografia gasosa” e “cromatografia líquida”, estritamente falando, não fazem sentido, constituindo-se em traduções descuidadas das suas ambíguas designações em inglês “gas chromatography” e “liquid chromatography”. O uso dos termos espúrios “cromatografia gasosa” e “cromatografia líquida” provavelmente advém da infeliz supressão do termo intermediário “em fase”, como em “cromatografia em fase gasosa” e “cromatografia em fase líquida”, que são gramaticalmente corretos. Não é a cromatografia que é gasosa ou líquida. Essas adjetivações são referências à natureza da fase móvel envolvida no processo. Traduções corretas alternativas para o português seriam: “cromatografia a gás” e “cromatografia a líquido”.

II) Mais de uma opção acerca da ponte de sonoridade e de ortografia estabelecida entre os idiomas

Exemplos: “enantiômero/enanciômero”, “glicose/glucose”, “mol/mole”, “mols/moles”, “absorvência/absorvância/absorbância”, “cromo/crômio”.

Esses termos ilustram uma duplicidade na ponte sonora-imagética da dimensão psicológica intrínseca de cada idioma entre o idioma de origem e o idioma de destino da palavra.

Do grego clássico, têm-se os termos “έναντίος (enantios)”, significando “opostos” e “μέρος (meros)” significando “partes”. O termo correspondente advindo da junção dos dois termos gregos acima, em inglês, “enantiomer”, era usualmente traduzido para o português como “enanciômero”. De uns trinta anos para cá, o termo “enantiomer” passou a ser traduzido direto do inglês para o português como “enantiômero”, sem referências a procedimentos estabelecidos que guiam traduções de palavras de raiz latina ou grega. Talvez por ser mais parecido com a palavra inglesa, nos últimos anos essa forma foi a mais comumente utilizada. Entretanto, ambas formas podem ser fundamentadas no latim e no grego. A forma “enantiômero” é claramente mais próxima do termo em grego, onde a letra tau “τ” foi substituída pela letra “t”. A substituição de um “t” ou “τ” por sibilação (“s” ou “c” com som de “s”), gerando o termo “enanciômero”, é um procedimento característico do português baseado em formas mais tardias do latim, ocorrendo também a partir de palavras gregas, só que em frequência muito menor.

Exemplos:

  1. potentia” (latim); “potential” (inglês); potência

  2. competitio” (latim); “competition” (inglês); competição

  3. mentio” (latim); “mention” (inglês); menção

  4. constitutio” (latim); “constitution” (inglês); constituição

  5. attributio” (latim); “attribution” (inglês); atribuição

  6. μαντϵία (manteia)” (grego) - predição ou adivinhação; -mancia (terminação em português das palavras quiromancia, nigromancia, etc.)

O leitor curioso pode encontrar inúmeros outros exemplos do mesmo processo de formação de palavras. Portanto, ambas formas, “enanciômero” e “enantiômero” são aceitáveis. Uma discussão mais detalhada sobre estas questões está no Material Suplementar.

Ambos os termos “glicose” e “glucose” são encontrados na literatura em língua portuguesa de química e bioquímica. Enquanto a terminação “-ose” é associada à nomenclatura química de carboidratos, a parte inicial é derivada do grego “γλυκύς (glukus)” significando “doce”. A letra grega “υ” chamada “úpsilon” pode ser substituída no alfabeto latino tanto pela letra “y” (mais comum) quanto pela letra “u”. Por essa razão, em inglês, o termo utilizado é “glucose”. No português, como a letra “y” não é utilizada, a manutenção da ponte de sonoridade leva a forma preferencial “glicose”, embora possa se justificar a forma “glucose”. Para uma discussão mais detalhada, o leitor pode consultar o Material Suplementar em anexo.

O termo em português “mol”, à primeira vista poderia ser considerado como uma tradução adequada do inglês “mole”. Entretanto, a situação real não é bem essa. Em português, além do conhecido adjetivo “mole” (oposto de “duro”) derivado do latim “mollis”, existe um substantivo feminino “mole” derivado do latim “moles” que significa “massa”, “volume” especialmente caracterizados pela sua imensidade: a mole das águas oceânicas, é o exemplo dado por dicionários. Claramente, o português já possui um termo adequado para ser utilizado especificamente em Química para indicar a quantidade de “6,02 × 1023” unidades de alguma coisa. Portanto, o termo mais correto segundo a norma culta da língua portuguesa seria “mole” (substantivo feminino), não “mol” (substantivo masculino).

Na literatura de Química em português, ambos termos “moles” e “mols” são encontrados como plural de “mol”. Esta confusão ilustra bem os problemas que advém de escolhas inadequadas de tradução. O pouco conhecimento do idioma leva a traduções inadequadas o que por sua vez leva a inconsistências crescentes na expressão escrita. Mantendo-se o termo “mol”, cremos que talvez seja aceitável usar “moles” como plural (e o dicionário o contempla como possível), especialmente - e seria até melhor - se a grandeza mol adotasse também uma forma feminina, afinal “massa molecular” e “molécula-grama” já são termos femininos. Fica claro que o uso do substantivo feminino “mole” como alternativa a “mol”, eliminaria estas inconsistências. Uma alternativa compatível com o gênero masculino de “mol” seria a de fazer o plural em “móis”, como o de “sol” se faz em “sóis”. Portanto, a forma plural “mols” não pode ser justificada adequadamente em português. O termo “moles” como plural de “mol” parece ser o mais correto, embora permaneça a questão mal resolvida acerca da forma preferencial do substantivo singular. Para maior coerência com a norma culta, por todo o exposto acima, a melhor sugestão seria utilizar o substantivo feminino “mole” como singular e “moles” como plural.

A tradução correta do termo em inglês “absorbance”, derivado do infinitivo “to absorb”, para o português é dada pelo termo absorvência, derivado do infinitivo “absorver”. Entretanto, no uso em química no Brasil, são encontradas as formas “absorvância” e “absorbância”. Nenhuma destas formas alternativas é aceitável segundo a norma culta do idioma, segundo a simples derivação do infinitivo mostrada acima. Portanto, o termo que deveria ser utilizado é absorvência.

A designação em português do elemento “cromo” (Cr) pode também ser encontrada como “crômio”. Para este caso, indicamos o estudo detalhado realizado pela Academia das Ciências de Lisboa em 2016, que embora considere aceitável a grafia “crômio”, favorece a grafia cromo.1212 https://porticodalinguaportuguesa.pt/index.php/component/zoo/item/cromio-ou-cromo?Itemid=248&highlight=WyJjcm9tbyJd acessado em 21/06/2022
https://porticodalinguaportuguesa.pt/ind...

III) Desconhecimento de termo existente e acréscimo de carga emocional desnecessária

Exemplos: “elétron coração”, “grupo abandonador”.

A partir do inglês “core electron” foi encontrado um livro com a tradução “elétron coração”. “Cor” em latim significa “coração”, que no inglês “core” tem a acepção mais comum de núcleo ou âmago. Embora a tradução esteja gramaticalmente correta, havia outro termo, também gramaticalmente correto, que já era utilizado no Brasil: “elétron de caroço”. O termo “elétron de caroço” é preferencial não só por já ser utilizado há décadas por físicos e químicos brasileiros, mas também porque evita a carga emocional desnecessária associada à palavra “coração”. Outra designação que em algumas circunstâncias tem significado equivalente é “elétron de camada interna”, tradução correta de “inner shell electron”.

A partir do termo em inglês “leaving group”, associado ao estudo de reações de substituição e eliminação, foi encontrada a tradução “grupo abandonador”. Como no exemplo anterior, a tradução está gramaticalmente correta, mas traz uma carga emocional desnecessária. Consideramos que a melhor tradução, que também é a mais disseminada, é grupo de saída.

IV) Supressão de termos

Exemplos: “Físico-química/Química Física”, “amoníaco/amônia”.

Em várias línguas ocidentais (mesmo no português de Portugal), existe uma distinção entre “Química-Física” e “Físico-Química”. Mesmo que haja, na prática, uma superposição grande entre as ideias distintas associadas a essas expressões, elas continuam tendo significados diferentes. Note-se que “Physical Chemistry” se traduz para o português como Química-Física. A ordem de substantivo e adjetivo é apresentada, em inglês, usualmente de modo contrário ao que comumente se utiliza em português. Neste caso, o substantivo é “química” e o adjetivo é “física”.

Assim, “Química-Física” é uma área da química onde se empregam métodos físicos quantitativos para entendimento e controle de processos químicos. Por exemplo, as áreas de termodinâmica química, eletroquímica, catálise, cinética química são, em geral, alocadas como parte da Química-Física (“Physical Chemistry”).

Por outro lado, no termo “Chemical Physics”, substantivo é “física” e o adjetivo é “química”, melhor traduzido como “Física-Química”, é uma área da física onde se estudam processos físicos em átomos, moléculas, materiais e fases condensadas, incluindo estudos de mecânica quântica aplicada a moléculas. Assim, em português, enquanto a especialização em “Physical Chemistry” corresponde à “Química-Física”, a especialização em “Chemical Physics” corresponde à “Física-Química”

O termo em inglês “ammonia” corresponde ao gás de fórmula NH3 enquanto os termos “ammonia liquor” e “solution of ammonia” podem se referir às soluções aquosas de NH3. No Brasil, encontra-se com frequência cada vez maior a designação de “amônia” para molécula de NH3, e a designação de “amônia líquida” para solução aquosa de NH3, suprimindo-se o termo “amoníaco” originalmente associado ao gás NH3. “Amônia líquida” pode ser confundida com NH3 liquefeito. “Amônia” pode ser confundida com “solução aquosa de NH3”. Essas designações são ambíguas e potencialmente confusas, como o leitor claramente deve perceber. Em Portugal mantém-se a distinção, que já foi corrente no Brasil, entre “amoníaco” (gás NH3) e “amônia” (solução aquosa de NH3). A manutenção da designação de amoníaco para o gás NH3 e a designação de amônia para a solução aquosa de NH3, resolve estas ambiguidades.

É interessante chamar atenção para uma situação similar à que acabou de ser descrita, que ainda não sofreu degradação linguística no Brasil. Essa se refere ao par formaldeído, gás de fórmula H2CO, e formol, solução de H2CO em água.

Os princípios e procedimentos empregados na discussão acima de palavras e expressões associadas à Química podem ser reconhecidos na grande quantidade de termos químicos corretamente traduzidos em uso.

Para concluir, chama-se atenção para o fato de que, na escolha de termos para discussão, restringiu-se a abrangência a termos cujos únicos problemas eram de ordem gramatical ou etimológica, ou que geravam ambiguidades na comunicação. Entretanto, existe certo número de termos utilizados em Química cujo uso inadequado é de natureza distinta. Isso acontece particularmente na área de Química Teórica, pois a formação-padrão básica do químico e do físico em Física e Matemática está muito aquém do conteúdo relacionado a modelos baseados em Mecânica Quântica para moléculas. Consequentemente, alguns dos termos derivados a partir desses modelos são mal compreendidos, o que pode levar a traduções inadequadas. Discussões sobre diferentes aspectos associados a esse problema podem ser encontradas na literatura.1313 Matsen, F. A.; J. Am. Chem. Soc. 1970, 92, 12, 3525. [Crossref]

14 Barbosa A. G. H.; Rev. Virtual Quim. 2009, 1, 212. [Crossref]

15 Barbosa, A. G. H.; Barcelos, A. M.; Theor. Chem. Acc. 2009, 122, 51. [Crossref]

16 Cardozo, T. M.; Freitas, G. N.; Nascimento, M. A. C.; J. Phys. Chem. A 2010, 114, 33, 8798. [Crossref]

17 Henriques, A. M.; Barbosa, A. G. H.; J. Phys. Chem. A 2011, 115, 44, 12259. [Crossref]
-1818 Barbosa, A. G. H.; Henriques, A. M.; Monteiro, J. G. S.; Fleming, F. P.; Esteves, P. M.; Theor. Chem. Acc. 2018, 137, 21. [Crossref]

CONCLUSÕES

Nesta breve nota, procurou-se apresentar um caso sobre a importância da tradução cuidadosa de termos científicos, em particular daqueles utilizados na Química. Foi mencionada a importância das referências ortográficas e semânticas para o português advindas do latim e do grego clássico. Uma breve revisão da tríade de conceitos “signo-significado-referente real” foi apresentada a partir das referências primárias clássicas de Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. Alguns dos cuidados necessários a uma tradução bem realizada foram brevemente discutidos. Por fim, mostrou-se, a partir de alguns exemplos, os tipos de inadequações, confusões e supressões de ideias que podem advir de traduções ou atribuições pouco cuidadosas de termos químicos. Como consequência, algumas sugestões sobre a melhor grafia e expressão escrita de termos químicos inadequadamente expressos em língua portuguesa foram apresentadas e justificadas. Espera-se que este trabalho seja útil para os químicos que utilizam os termos discutidos e para os químicos envolvidos em traduções de textos sobre química para a língua portuguesa.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é dedicado aos Professores Ricardo Bicca de Alencastro (in memoriam), Cláudio Costa Neto e Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, que em várias aulas e conversas durante a graduação e pós-graduação despertaram o interesse de um dos autores (AGHB) sobre as questões tratadas neste artigo.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Abelson, P.; As sete artes liberais: Um estudo sobre a cultura medieval, Kirion: Campinas, 2019
  • 2
    Mendes de Almeida, N.; Gramatica Latina, Saraiva: São Paulo, 2013
  • 3
    Aristóteles; Da Alma, 1ª edição, Edipro: São Paulo, 2011.
  • 4
    Tomás de Aquino; Comentário à “Metafísica” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2016, vols. 1-3.
  • 5
    Tomás de Aquino; Comentário ao “Sobre a Interpretação” de Aristóteles, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2018.
  • 6
    Gois, J.; Giordan, M.; Quim. Nova Esc. 2007, 7, 34.
  • 7
    Agostinho; O Trivium de Santo Agostinho, 1ª edição, Vide Editorial: Campinas, 2021.
  • 8
    Aristóteles; Órganon, 1ª edição, Edipro: São Paulo, 2016.
  • 9
    Bunge, M.; Teoria e Realidade, 1ª edição, Perspectiva: São Paulo, 2018.
  • 10
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2022
  • Aceito
    07 Jul 2022
  • Publicado
    19 Ago 2022
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