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A simulação da morte: versão e aversão em Montaigne

RESENHA

Eduino José Orione

Professor do Departamento de Letras da UNIFESP, E-mail: eduino.jose@unifesp.br

VAZ, Lúcio. A simulação da morte: versão e aversão em Montaigne. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 2011. 121p.

Em A simulação da morte: versão e aversão em Montaigne, Lúcio Vaz propõe uma análise global do problema da morte nos Ensaios, mostrando o que Montaigne pensou e como se preparou para a chegada da hora extrema. Segundo Vaz, toda a reflexão montaigniana tem como visada moral e teleológica o "último dia". O ponto nevrálgico da tese defendida no livro é a existência de "duas estratégias" elaboradas pelo filósofo, em momentos diversos de sua reflexão, destinadas a eliminar o medo da morte, e associadas a duas imagens metafóricas: a "representação teatral" e a "viagem sem rumo certo". Exercícios da imaginação montaigniana, elas teriam o papel de afastar o medo de morrer e de preparar o sujeito para o seu dia final. Trata-se de recursos imaginativos distintos, mas igualmente responsáveis pelas atitudes distintas assumidas por Montaigne em fases diferentes de sua vida e nos momentos sucessivos de suas "duas" filosofias.

A primeira estratégia liga-se à representação teatral, e caracteriza alguns ensaios, sobretudo o "Que filosofar é aprender a morrer" (I,20), como treinamento para enfrentar a hora mortis. Construída no ensaio cuja primeira redação é de 1572, e ao redor dele, a estratégia se constitui numa "simulação" mental da morte, isto é, numa premeditação artificial (quase teatral) da chegada do "último dia". Vaz encontra neste texto (e em outros do Livro I) uma postura moral dirigida para o nosso "último dia", e toma a meditação sobre a morte como um "método" de preparação para a hora extrema, cuja feição mais reconhecível é aquilo que chama de "simulação". Segundo tal raciocínio, Montaigne, num primeiro movimento dos Ensaios, simula, pela imaginação, o dia final, como forma de suplantar o sofrimento futuro. Estaríamos, então, próximos da representação teatral, que, mesmo vivida pela imaginação, é autenticamente assumida, pois, como escreve o intérprete, a simulação não é uma dissimulação.

Como a reflexão sobre a morte faz parte de um projeto moral, Vaz encontra, em diversos trechos dos Ensaios, os indícios da filosofia montaigniana da morte tal como depreendida dessas duas atitudes assumidas diante da finitude humana. Ele chega a defender a existência de um "primeiro" e de um "segundo" Montaigne, ou seja, a vigência de "duas filosofias" da morte nos Ensaios. Convicto desta "divisão bifásica e evolucionista", refere-se inclusive a um "novo" Montaigne. Notamos, então, que, mesmo que Lúcio Vaz se distancie de Pierre Villey, não adotando a evolução montaigniana em termos de adesões sucessivas a escolas filosóficas (estoicismo, ceticismo e epicurismo), ele ainda segue a perspectiva villeyana, se em nada, pelo menos, por falar em "duas" posturas assumidas pelo filósofo diante da morte.

Lendo o ensaio "Do exercício" (II,6), Vaz enxerga, na experiência que o filósofo teve de um desmaio ocasionado por uma queda de cavalo, o ponto de transição dessas duas atitudes ("simulação" e "predisposição natural") que corresponderiam às "duas" filosofias. Este acidente teria mostrado a Montaigne a "força do acaso" – que ele reconhece e incorpora na preparação para o dia final. Nesse ponto, podemos aproximar Lúcio Vaz de outros importantes comentadores dos Ensaios. Para Michael Screech, por exemplo, o desmaio proporcionou à alma de Montaigne a oportunidade de ser arrebatada do corpo, livrando-a do temor da separação definitiva. Hugo Friedrich, por seu turno, pensa que o acidente intensificou a experiência interior de Montaigne, no sentido de perceber que a morte nos individualiza a cada um de modo muito particular. Contudo, se, para Screech, o acidente forneceu à alma de Montaigne o destemor da separação definitiva do corpo, Lúcio Vaz afirma que tal vivência testemunha, na verdade, uma entrega passiva e involuntária ao corpo, isto é, ao que há de corpóreo, mortal, mundano e telúrico. Cremos haver, nestas palavras, alguma familiaridade com Friedrich, para quem uma camada de individualidade pré-volitiva foi descoberta por Montaigne quando ficou inconsciente. Sendo assim, teríamos três interpretações que se cruzam e se entrechocam: 1) a alma pronta a libertar-se do corpo (Screech); 2) a descoberta de uma interioridade pré-volitiva (Friedrich); 3) submissão e entrega da consciência a uma vivência corpórea, mortal, mundana, telúrica (Vaz).

A interpretação do sentido do acidente decorre também de uma abordagem biográfico-textual (calcada, aliás, em muitos trechos dos Ensaios), o que leva Vaz a tomar o episódio como ponto de transição entre as duas fases do pensamento montaigniano, a qual culminaria no final do Livro III, em especial no ensaio "Da fisionomia" (III,12), quando Montaigne retoma o mote "filosofar é aprender a morrer". Mas tal culminância é anunciada já pelos acréscimos que o filósofo foi fazendo em seus textos, e que deram origem às camadas A, B e C das edições modernas dos Ensaios. A queda de cavalo teria, em suma, levado Montaigne a descobrir a "força do acaso", revelando-lhe a inutilidade da preparação simulatória antes perseguida (no I,20). Daí a segunda estratégia ser representada pela metáfora da "viagem sem rumo certo", uma espécie de deixar-se ir, de entrega à natureza e à fortuna. Em outros termos: a "simulação" do morrer careceria de uma experiência efetivamente vivida, ainda que a simulação (não dissimulada) constitua uma experiência. Vivenciada no desmaio, a efetividade desta última preenche a lacuna que a simulação não preencheu. Daí resulta aquilo que Lúcio Vaz chama de entrega passiva e involuntária ao corpóreo, mortal, mundano e telúrico – que concilia Montaigne com a morte.

Como se vê, o intérprete aborda de forma original o tema da morte em Montaigne, originalidade reforçada por uma escrita de personalidade. Some-se a isso a sustentação histórico-cultural da análise e reconheceremos facilmente os méritos que fazem do livro de Lúcio Vaz uma contribuição significativa aos estudos montaignianos no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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