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O LAMAÇAL DO PROGRESSO: IMAGENS DO ESQUECIMENTO EM BENJAMIN E KAFKA* * O presente artigo é fruto de uma pesquisa realizada em 2020 no Benjamin-Archiv de Berlim, com bolsa PRINT-Capes e continuada no Brasil com bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ2). **

THE QUAGMIRE OF PROGRESS: IMAGES OF FORGETFULNESS IN BENJAMIN AND KAFKA

RESUMO

Este artigo pretende estudar os conceitos de esquecimento e rememoração na literatura de Kafka, a partir da interpretação de Walter Benjamin. Além do conhecido ensaio “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte ”, serão abordados também outros ensaios menos conhecidos de Benjamin sobre Kafka, como “Moral de cavaleiro” e “Franz Kafka: Na construção da muralha da China ”. O objetivo do artigo não consiste apenas em desnudar a interpretação de Benjamin sobre Kafka, mas também mostrar em que medida a obra de Kafka ilumina pontos centrais do pensamento de Benjamin, sobretudo no que se refere às categorias de esquecimento, rememoração, negatividade e crítica à noção de progresso.

Palavras-chave:
Benjamin; Kafka; Crítica ao progresso; Esquecimento; Rememoração

ABSTRACT

This article intends to study the concepts of forgetting and remembering in Kafka’s literature, based on Walter Benjamin’s interpretation. In addition to the well-known essay “Franz Kafka: on the tenth anniversary of his death”, other lesser-known essays by Benjamin on Kafka will also be covered, such as “Knight moral” and “Franz Kafka: On the construction of the Chinese wall”. The aim of the article is not only to expose Benjamin’s interpretation of Kafka, but also to show the extent to which Kafka’s work illuminates central points of Benjamin’s thought, especially with regard to the categories of forgetfulness, remembrance, negativity and criticism of notion of progress.

Keywords:
Benjamin; Kafka; Critique of progress; Forgetting; Remembrance

No mundo distópico de “O castelo” de Kafka, o personagem K. não consegue estabelecer contato com as ordens superiores pelas quais foi chamado para exercer a função de agrimensor. Em vez de ajudá-lo, os personagens com os quais K. se depara ao longo do romance antes o afastam constantemente de sua meta. Quanto mais se esforça para alcançá-la, eis a lógica própria do livro, mais essa meta se distancia dele; quanto mais procura compreender a situação na qual se encontra, mais essa situação se lhe torna incompreensível. “O castelo”, assim, exprime em suas muitas páginas o que já diziam as poucas linhas do conto “Prometeu”: “A lenda procura esclarecer o que não pode ser esclarecido” (Kafka, 1985, p. 28KAFKA, F. “Nachgelassene Prosa”. Leipzig und Weimar: Gustav Kiepenheuer Verlag, 1985.).

Foi o amigo Max Brod quem descobriu o conto sobre o mito de Prometeu nos papéis póstumos de Kafka, junto a outros textos, também relacionados a mitos gregos, como “O silêncio das sereias”, “O novo advogado” e “Poseidon”. Essa descoberta revelou uma faceta desconhecida do escritor: sua predileção inconfessa pela mitologia grega. Kafka busca nesses contos recriar os mitos gregos, mas salientando neles um aspecto nem sempre considerado: o esquecimento implicado em sua transmissão. Ao longo dos tempos, o mito chega ao século XX, particularmente na pena de Kafka, apagado e distorcido. Em “O silêncio das sereias”, por exemplo, o escritor recria a história da “Odisseia” em que Homero canta a passagem de Ulisses pelo reino das sereias. Em vez do som melífuo que ludibria o viajante, Ulisses, no conto de Kafka, ouve das sereias apenas um silêncio retumbante. Nessa longa viagem pelos séculos até o presente, é como se algo do mito tivesse se perdido, tendo chegado a nós uma versão fragmentada e modificada pelo trabalho da consciência e da memória. Em seu ensaio mais conhecido sobre Kafka, Benjamin comenta: “Pois em Kafka, as sereias silenciam. [...] Elas utilizaram essa arma contra Odisseu” (Benjamin, 2008, p. 143BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

Essa leitura dos mitos gregos pode servir como chave para se compreender não apenas os personagens mais conhecidos da literatura de Kafka, como Gregor Samsa e Odradek, por exemplo, mas também muitos outros personagens e histórias da literatura moderna. Os personagens dos romances do século XX não constituiriam nesse sentido criações ex nihilo, frutos da imaginação radical dos escritores e poetas, mas reflexos tíbios dos heróis e deuses de outras épocas, que nos chegam distorcidos e enfraquecidos pela ação do tempo. A literatura do século XX ecoa o período dos grandes feitos, cantado nas epopeias homéricas, repleto de atos heroicos e dignos de serem lembrados pela posteridade, mas de forma opaca, sem seu brilho original. No caso particular de Kafka, os heróis consagrados da “Ilíada” e da “Odisseia”, amados e odiados pelos deuses, reaparecem carregando sobre os ombros o peso do tempo, cansados, entediados e deprimidos. O próprio Kafka afirma-o, no mesmo conto de Prometeu, ao escrever que, após este último ter traído os deuses, “sua traição foi esquecida ao longo dos milênios, os deuses foram esquecidos, as águias, e ele próprio” e, “aos que permaneceram desterrados, sobreveio o cansaço. Os deuses ficaram cansados, as águias ficaram cansadas, a ferida fechou-se de cansaço” (Kafka, 1985, p. 28KAFKA, F. “Nachgelassene Prosa”. Leipzig und Weimar: Gustav Kiepenheuer Verlag, 1985.).

A releitura kafkiana do mito grego traz consigo a impossibilidade de, em pleno século XX, reviver tel quel o mundo virtuoso e heroico da Grécia antiga, como se entre este e o nosso mundo não tivessem passado muitos séculos de história. Mutatis mutandis, também o Ulysses de James Joyce dialoga com a dificuldade da recepção do mito antigo. Diante do industrioso e sagaz personagem da “Odisseia”, capaz de enganar com sua astúcia o próprio destino, como no episódio das sereias, o Ulysses de Joyce não desfruta de nenhuma virtude, tampouco pode se gabar da fdelidade da esposa que, no mito, rejeitava de modo igualmente sagaz as investidas dos pretendentes durante a longa ausência do marido. Seguindo a toada dos personagens de Kafka, o Ulysses de Joyce torna-se assim um dos mais conhecidos anti-heróis modernos, a povoar as páginas literárias da modernidade que, já a partir de Baudelaire, é considerada a época da décadance por excelência, marcada pela perda da aura e da auréola que outrora dignificavam o poeta e seu mundo heroico. Nessa modernidade decadente, aquelas virtudes heroicas dos antigos deixam de ser objeto de admiração, pois, em última análise, elas apenas podiam surgir como heroicas diante do mundo grego. Na era moderna, o heroico já não se deixa confundir mais com o ser virtuoso, habilidoso ou belo, pois, entre o antigo e o moderno, há uma queda considerável, marcada pela passagem do tempo e pelo esquecimento inerente a ela. O antigo, enquanto tal, não pode mais ser objeto da experiência, senão por intermédio do atual, que é o passageiro. Desse modo, o único elemento que permite identificar o antigo ao moderno é o fato de que ambos perecerão no tempo, como atestam as seguintes palavras que Benjamin dedica a Baudelaire: “O traço comum aos dois [o antigo e o moderno] é a desolação pelo que foi e a desesperança pelo que virá. Nessa debilidade, por último e mais profundamente, a modernidade se alia à antiguidade” (Benjamin, 2000, p. 81BENJAMIN, W. “Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras Escolhidas (v. III). Trad. J. C. M. Barbosa e H. A. Baptista. São Paulo: Brasiliense, 2000.). Nas recriações dos mitos gregos na pena de Kafka, sobrevém justamente o tempo que nos separa daquela cultura, bem como o trabalho silencioso do esquecimento a nos separar daquela civilização de outrora.

Negatividade e esquecimento

Em face da harmonia entre humanos e celestes, característica da cultura grega antiga, a modernidade surge como a época da dissolução e da cisão. Trazendo em si de modo latente a negatividade, a modernidade passa a ser vista como a época em que os indivíduos, incapazes de celebrar a alegria da existência, afundam-se no sentimento sem fim da melancolia e da nostalgia. A filosofia procurou identificar essa mudança já na passagem da mitologia grega ao Cristianismo. Enquanto, na primeira, os deuses manifestavam-se esteticamente no corpo e na natureza, como se observa nas estátuas gregas e nos poemas homéricos, no segundo, o divino refugia-se no espírito, desaparece da vista dos homens, momento este definido em alguns poetas e pensadores como a noite da história. No conhecido § 125 de “A gaia ciência”, Nietzsche identifica esse retraimento do divino ao âmbito do invisível à morte de Deus:

Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! (Nietzsche, 2012, p. 138NIETZSCHE, F. “A gaia ciência”. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).

Essa mudança profunda de um divino solar e visível para um deus absconditus implica uma transformação igualmente profunda na percepção da vida, que, da celebração do corpo e da natureza, passa à sua mortificação e condenação moral. A posição afirmativa da vida, própria dos gregos, transforma-se na modernidade em uma atitude negativa, e expressa-se na veemente condenação dos prazeres sensíveis; tendo em vista a conquista da eternidade da vida supraterrena, a vida terrena e corpórea passa a ser necessariamente negada. Nietzsche denomina essa era, que começa já com Platão e se estende ao longo da noite cristã, de “era do niilismo”. A alegria de viver dá nela lugar ao ascetismo monacal, lúgubre e meditativo, o qual pode ser constatado, por exemplo, nas obras de arte cristãs, a figurar o declínio e a negação do corpo e da vida. Sentida ao longo de milênios, tal concepção, prenhe de negatividade, irradia das artes plásticas e se refete de modo particularmente forte na literatura e na filosofia moderna e contemporânea. Adorno, em uma conhecida passagem da “Dialética Negativa”, busca chamar a atenção para esse fato: “Nos debates estéticos mais recentes, as pessoas falam de antidrama e de anti-herói; analogamente, a dialética negativa, que se mantém distante de todos os temas estéticos, poderia ser chamada de antissistema” (Adorno, 1998, p. 8ADORNO, T. W. “Dialética Negativa”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.).

No caso da literatura moderna, a negatividade revela-se principalmente na recusa radical da forma do drama clássico, calcado na encenação da ação, no sentido aristotélico do termo. Em vez de pôr em cena uma ação com começo, meio e fim, predomina nessa literatura a antiação ou o antidrama a que se refere Adorno. “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, é um exemplo clássico de antidrama, por não desenrolar linearmente nenhuma ação propriamente dita. A peça arrasta-se antes ao longo de um interminável interlúdio, fazendo da pausa e da espera seu tema e seu objeto dramático. Na peça de Beckett, o tempo, que no drama clássico é claramente homogêneo e linear, com algumas exceções, é virado do avesso, de modo que o antidrama se instala nos intervalos (eternizados) que separam o início do meio, e o meio do fim. Ou como se (não) se desenrolasse no vazio que se situa antes do início, ou no vácuo que invariavelmente permanece depois do fim, eternamente aberto. Em “O que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht”, Benjamin, embora não se refra a Beckett, poderia ter como alvo o dramaturgo irlandês, ao mostrar como o teatro épico de Brecht retoma a “tentativa de encontrar um herói não-trágico” (Benjamin, 2008, p. 82BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Afinal: “já Platão, escreveu Lukács há vinte anos, reconhecera o caráter não-dramático do homem elevado entre todos, o sábio” (Benjamin, 2008, p. 83BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). A negatividade está aqui relacionada a um drama não catártico, cujos acontecimentos não são dispostos de um modo tal que a ação, encarnada pelo ator, conduza a um clímax apoteótico, envolvendo a plateia numa espécie de transe. Pelo contrário, a plateia é constantemente frustrada, no sentido de que o transe nunca chega, como o Godot da peça de Beckett, o que, em contrapartida, permite o distanciamento entre o público e a obra que Brecht, por exemplo, já exigia: “O espectador e o ator não deveriam aproximar-se mas distanciar-se um do outro. E cada um deveria distanciar-se de si próprio” (Brecht, 1967, p. 43BRECHT, B. “Teatro dialético”. Trad. L. C. Maciel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.).

Seguindo a mesma referência de Adorno, Benjamin e Brecht, também na filosofia a negatividade marca sua presença indelével na modernidade. Particularmente o século XVIII opera a destronização paulatina daquela razão orgulhosa em relação a seu poder de explicação e compreensão do mundo e do cosmos. Quando o belo mundo grego, contido outrora em limites claros e determinados, se dilacera em ruínas e se estilhaça em uma infinidade de mundos subjetivos e autônomos, a razão percebe-se finalmente incapaz de reduzir o universo a um único princípio (de razão) suficiente, perdendo assim seu título soberano de rainha da humanidade. Em vez de lançar mão dos potentes sistemas filosóficos que grassaram outrora entre Kant e Hegel, a pós-modernidade, calcada na experiência do romantismo, vê-se obrigada a empreender um gigantesco esforço de reconstituição daquele todo perdido, seja por meio da especulação, seja por meio da intuição estética. Essa reconstrução, porém, tem como ponto de partida e ao mesmo tempo como objetivo a ruína e o fragmento, numa abdicação consciente do todo em si, como se observa na relação de Kafka com o mito. Por isso, em “Origem do drama barroco alemão”, Benjamin afirma que, a partir dessa modernidade assim entendida, “é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo, através da estrutura alegórica” (1984, p. 208).

Assim como as estátuas de Rodin surgem já fragmentadas do cinzel do escultor, também os personagens de Kafka trazem em si a marca do ocaso e da queda em relação à tradição. A metamorfose sofrida por Gregor Samsa pode ser interpretada nesse mesmo sentido como a narrativa de um eu que, antes senhor de si e da natureza, dissolve-se lentamente em um fragmento de consciência, esculpido pelo tempo e pelo esquecimento de si. “Quando Gregor Samsa acordou uma manhã de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso” (Kafka, 1983, p. 57KAFKA, F. “Erzählungen”. Hamburg: Fischer Verlag, 1983.), lê-se na conhecida frase de abertura de “A metamorfose”. O rico jogo de palavras negativas dessa única frase – unruhigen Träumen, ungeheuren Ungeziefer – anuncia o processo de desintegração do eu e da consciência, tema do livro por excelência. Não por acaso, nesse mesmo sentido, em “O processo” e “O castelo”, os personagens são designados apenas por fragmentos de nomes, simples letras às quais sua integridade foi reduzida: K. e Joseph K. As linhas que determinam o início e o fim do eu são submetidas na literatura de Kafka a um processo de erosão, de metamorfose, mas por meio da qual todo um mundo, relegado ao inconsciente, novamente vem à tona. Esse processo de regressão do eu divino e poderoso a um simples fragmento de consciência propicia o ressurgimento imediato de figuras e desejos paulatinamente depositados nos sótãos, arquivos e chancelarias da existência, palco escondido onde se passam (e não se passam) os escritos de Kafka. É nesse mesmo sentido que Benjamin se refere à lenda de Potemkin para abordar o universo do escritor tcheco: “Potemkin, semiadormecido e abandonado num quarto distante cujo acesso é proibido, vegetando na penumbra, é um antepassado daqueles seres todo-poderosos, que Kafka instala em sótãos, na qualidade de juízes, ou em castelos, na qualidade de secretários...” (2008, p. 138).

O objeto de “O processo”, nesse sentido, não é apenas a burocracia do mundo moderno administrado, como tantas vezes se o interpretou. Para além desse lugar comum, o livro antes envereda, alegoricamente, pelo processo, negativo por excelência, do esquecimento da tradição, inerente à condição do indivíduo moderno. Um importante comentador da obra de Kafka captou esse sentido oculto do romance ao escrever que “o verdadeiro herói desse livro inacreditável é o esquecimento...” (Haas apud Benjamin, 2008, p. 156BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Sem identidade ou domínio de si, os personagens de Kafka não constituem indivíduos autônomos, livres, mas seres que estrebucham em um estado de semiconsciência, “vegetando na penumbra”, como escreve Benjamin, completamente impotentes ante os poderes objetivos e necessários do mundo. Ou, como escreve Hannah Arendt, “O processo” descreve a luta do indivíduo contra uma máquina que, no fim, é constituída do poder de criar ilusões, de apagar a verdade, enfim, de propagar a mentira: “O poder da máquina, que prende e mata K., não é outro que a aparência da necessidade, que pode se realizar por meio da admiração dos homens pela necessidade” (Arendt, 2016, p. 91ARENDT, H. “Franz Kafka”. In: Die verborgene Tradition. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2016.).

Esquecimento da tradição

Tema central da obra kafkiana, o esquecimento se, por um lado, designa de modo geral a condição da modernidade por excelência, por outro, deve ser entendido também em um sentido bastante específico. Kafka, como Benjamin e Scholem, pertenceu à geração de judeus que buscaram se assimilar à cultura e às sociedades europeias. O processo de assimilação, porém, carregava consigo o fantasma do esquecimento da tradição judaica, o que permite pensar a obra de Kafka, em especial “O processo”, como uma alegoria dessa condição dos judeus na Europa do início do século XX.

Na “Carta ao pai”, é conhecida a censura que Kafka dirige ao pai, por ele não ter lhe transmitido os preceitos da cultura e da religião judaica, deixando desaparecer o elo de sua família com a tradição:

Da pequena comunidade aldeã, semelhante a um gueto, você tinha de fato trazido um pouco de judaísmo; não era muito e um tanto se perdeu na cidade e no serviço militar [...]. Também aí ainda havia bastante judaísmo, mas para ser transmitido ao filho era muito pouco, e enquanto você o transmitia ele foi-se perdendo lentamente até a última gota (Kafka, 1997, p. 72KAFKA, F. “Carta ao Pai”. Trad. M. Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.).

Os motivos de sua revolta contra o pai e a família, característica de toda essa geração (Benjamin aborda essa questão em textos tais como “A vida dos estudantes” e “Metafísica da juventude”), mostram-se assim mais amplos do que pretende a interpretação psicanalítica. Antes de revelar o desejo inconsciente de matar o pai, essa revolta se dirige ao comportamento de toda uma geração que, tendo abandonado a vida campesina e se instalado na cidade, deixou desaparecer o elo com sua tradição. Ao voltar-se contra o pai, Kafka, em verdade, volta-se contra o esquecimento implicado no abandono da vida no campo e na inserção de sua família no âmbito burguês de Praga. Em um movimento de resistência a esse esquecimento, Kafka, a partir de 1910, como informa Michel Löwy, começa a se interessar ativamente pelo judaísmo, “estudando a literatura iídiche, ‘A história dos judeus’ de Heinrich Graetz e os contos hassídicos...” (Löwy, 1989, p. 69LÖWY, M. “Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa central (um estudo de afinidade eletiva)”. Trad. P. Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). A partir de 1913, torna-se amigo de Martin Buber, com quem trava intensas discussões sobre o significado dos mitos judaicos, passa a frequentar o clube sionista Bar-Kochba e a se interessar pelos kibbutzim. Por influência do amigo Max Brod, começa a estudar o hebraico, tornando “a religião judaica [...] uma das principais fontes espirituais de sua obra [de Kafka]” (Löwy, 1989, p. 70LÖWY, M. “Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa central (um estudo de afinidade eletiva)”. Trad. P. Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.).

Porém, se, por um lado, essa relação com a tradição judaica é reconhecida na literatura de Kafka, por outro, é preciso chamar a atenção para o modo como sua obra expõe esse conteúdo religioso. Pois não se trata nela de uma exposição positiva dos conteúdos religiosos, de forma doutrinária, como se deduz da afirmação de Benjamin: “Fracassada foi sua grandiosa tentativa [de Kafka] de transformar a literatura em doutrina, devolvendo-lhe, sob a forma de parábolas, a consistência e a austeridade que lhe convinham” (Benjamin, 2008, p. 155BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Não restam dúvidas de que as páginas de seus livros trazem como pano de fundo o universo da doutrina judaica, mas é preciso levar em conta o fato de que a referência a ela se dá na forma de parábolas, isto é, a partir de indicações indiretas às leis do judaísmo. A transmissão do judaísmo, na obra de Kafka, é assim uma transmissão aquém e além da letra da lei judaica (cf. Weigel, 2011, p. 549WEIGEL, S. “Zu Franz Kafka”. In: Lindner B. (org.). Benjamin Handbuch: Leben, Werk, Wirkung. Stuttgart, Weimar: Metzler Verlag, 2011.), interpretação esta singular, que escapa do lugar comum das leituras psicanalíticas e teológicas. Para Benjamin, ainda, é preciso considerar que a obra do escritor tcheco é perpassada por “forças arcaicas”, sobre as quais nem mesmo Kafka possuía consciência: “Quem pode dizer sob que nome essas forças apareceram a Kafka? O que é certo é que ele não se encontrou nelas. Não as conheceu” (2008, p. 154).

A expressão “forças arcaicas”, para Sigrid Weigel (2011, p. 549)WEIGEL, S. “Zu Franz Kafka”. In: Lindner B. (org.). Benjamin Handbuch: Leben, Werk, Wirkung. Stuttgart, Weimar: Metzler Verlag, 2011., remete aos estudos de Benjamin sobre a obra de Johann Jakob Bachofen e aos conceitos de “mundo pré-histórico” (Vorwelt) e “eras hetaíricas”. Essas forças se referem aos conteúdos míticos da tradição e da religião judaicas que encontram na obra de Kafka um esteio propício para sua transmissão em pleno século XX1 1 Segundo Scholem, a relação do judaísmo com a tradição sempre foi paradoxal. Por um lado, nota-se nele desde sempre o esforço de transmissão da tradição, como na cabala, mas, por outro, sobressai também a tendência fortemente esotérica, principalmente por parte dos místicos, que acabaram por romper com a transmissão da tradição, isto é, da cabala. Assim, escreve: “Cabala significa literalmente ‘tradição’ [...]. O fato, porém, é que no misticismo judaico, desde o início, se combinou a ideia de um conhecimento que é a tradição secreta dos espíritos escolhidos ou iniciados. [...] O misticismo judaico, portanto, é uma doutrina secreta [...] porque trata das questões mais fundamentais e mais profundamente ocultas da vida humana; mas é secreta também porque é limitada a um pequeno grupo de eleitos que transmitem o conhecimento a seus discípulos” (Scholem, 1995, pp. 22). , embora suas parábolas apontem antes para a distância que a separa da tradição oral originária daqueles conteúdos, própria das comunidades pré-industriais ou pré-históricas. Por isso, em carta a Benjamin de 12 de julho de 1934, Scholem insiste na ideia de que o conteúdo doutrinário da mística judaica apresenta-se na obra de Kafka negativamente, como se a doutrina e suas leis se fzessem notar por sua ausência. Na carta, cuja primeira parte se perdeu, Scholem inclui ainda o poema “Com um exemplar de ‘O processo’ de Kafka”, cuja quarta estrofe canta:

Somente assim brilha a revelação No tempo, que te rejeitou. Apenas seu Nada é a experiência, Que ela pode ter de ti. (Scholem, in: Benjamin; Scholem, 1980, p. 155BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. “Briefwechsel”. Gershom Scholem (org.). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980.).

Como se vê, a estrofe pensa a relação da literatura de Kafka com o universo místico judaico particularmente por meio da categoria da revelação (Ofenbarung). A obra de Kafka pode ser ainda interpretada como revelação do divino, em plena modernidade industrial. Mas, ao contrário das doutrinas místicas, a revelação desse divino, em seus escritos, aponta antes para sua ausência, ou, como escreve Scholem, para a experiência do Nada2 2 Esta concepção, de resto, retoma de algum modo a teoria mística dos teólogos ortodoxos judaicos do século XIII, em especial Massoret Ha-Brit, como mostra o próprio Scholem: “Os místicos também falam na Criação a partir do nada; esta é na verdade uma de suas fórmulas prediletas. [...] Só quando a alma se despojou de toda limitação e, na linguagem mística, desceu às profundezas do Nada, é que ela encontra o Divino. [...] Numa palavra, o Nada significa o próprio Divino em seu aspecto mais impenetrável” (Scholem, 1995, pp. 26-7). Essa concepção mostra em que medida a mística judaica se opôs ao longo da história à tendência filosófico-iluminista do próprio judaísmo, em particular a Maimônides. . Em outra carta a Benjamin, de 17 de julho de 1934, escreve ainda Scholem: “O mundo de Kafka é o da revelação, certamente naquela perspectiva em que ela é remetida a seu Nada” (Scholem, in: Benjamin; Scholem, 1980, p. 157BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. “Briefwechsel”. Gershom Scholem (org.). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980.). Em sua resposta, Benjamin indica que sua interpretação se harmonizava com a do amigo neste ponto e acrescenta que, ao lado do conceito de revelação, a obra do escritor tcheco expunha, também negativamente, outro conceito teológico fundamental do judaísmo, o conceito de redenção (Erlösung):

Procurei mostrar como Kafka tateou no lado oposto deste ‘Nada’, em seu forro, por assim dizer, a redenção. Por isso que toda forma de superação desse Nada, como a compreendem os intérpretes teológicos do círculo de Brod, seria um anátema! (Benjamin; Scholem, 1980, p. 160BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. “Briefwechsel”. Gershom Scholem (org.). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980.).

Na ausência e na impossibilidade de redenção, sobressai de Kafka apenas o deserto do Nada. Nos termos de Michel Löwy: “a ‘teologia’ de Kafka [...] é portanto negativa num sentido preciso: seu objeto é a não-presença de Deus no mundo e a não-redenção dos homens” (Löwy, 1989, p. 75LÖWY, M. “Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa central (um estudo de afinidade eletiva)”. Trad. P. Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). No ensaio de Benjamin “Moral de cavaleiro, lê-se que, se há motivos teológicos na obra de Kafka, é preciso absorvê-los a partir da forma misteriosa de sua apresentação, isto é, de sua não aparência ou mesmo de sua timidez intrínseca:

A obra de Kafka, que trata das mais obscuras demandas da vida humana (demandas com as quais se ocuparam em geral os teólogos, mas raramente como Kafka e os poetas), possui sua grandeza poética precisamente no fato de que traz em si de modo completo esse segredo teológico, mas este surge no exterior de forma não aparente e simples e tímida (Benjamin, 1974, Vol. I V, p. 467BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Org. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.).

Tímida, a teologia, em Kafka, é exposta como um segredo, isto é, como algo que não quer se mostrar e se apresentar. Escrita em 1929, essa concepção reapareceria na primeira tese do ensaio “Sobre o conceito de história”, de 1940, em que Benjamin aborda o tema da exposição (Darstellung) de conteúdos teológicos em conexão com o programa do materialismo dialético. Segundo essa tese, o materialismo, para ser vitorioso em sua luta contra o fascismo, precisa necessariamente buscar ajuda à teologia, sobretudo às suas concepções de messianismo e de recordação do passado. Essa relação do materialismo com a teologia, entretanto, não pode se realizar abertamente, pois, no mundo contemporâneo secularizado, a teologia é “tímida e feia”, como se lê ao final da Tese I: “Ele [o materialismo] pode enfrentar qualquer desafo, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se” (Benjamin, 2008, p. 222BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Se o materialismo deve se servir de algum modo dos conteúdos teológicos em sua luta contra a tempestade do progresso, essa referência precisa obedecer à alegoria do fantoche enxadrista, que ganha as partidas ao ser guiado pelo anão corcunda, escondido dentro da mesa espelhada: “Na realidade, um anão corcunda [buckliger Zwerg] se escondia nela [na mesa], um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche” (Benjamin, 2008, p. 222BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Pelo que foi dito, não é demais supor que essa imagem tenha lhe advindo justamente da literatura de Kafka: “Entre as atitudes descritas por Kafka em suas narrativas, nenhuma é mais frequente que a do homem cuja cabeça se inclina profundamente sobre seu peito” (Benjamin, 2008, p. 158BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Assim como os demais personagens kafkianos, o anão corcunda, na Tese I de “Sobre o conceito de história”, é deformado, pois a deformação, de acordo com o mesmo ensaio sobre Kafka, “é o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento” (Benjamin, 2008, p. 158BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Desde Odradek até Gregor Samsa, todos os personagens kafkianos “se associam, através de uma longa série de figuras, com a figura primordial da deformação, o corcunda”, o que, por sua vez, está em conexão com o conceito de redenção:

Uma canção popular – o homenzinho corcunda – concretiza essa relação. O homenzinho é o habitante da vida deformada; desaparecerá quando chegar o Messias, de quem um grande rabino disse que ele não quer mudar o mundo pela força, mas apenas retificá-lo um pouco (Benjamin, 2008, p. 159BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

O lamaçal e a crítica ao progresso

“A metamorfose”, “O castelo” e “O processo” descrevem, nesse sentido, a agonia de indivíduos que afundam paulatinamente no esquecimento, no inconsciente, como Odradek ou o corcundinha. As deformações próprias desses personagens, ainda na leitura de Benjamin, apontam para o trabalho da memória em sua luta por manter presentes esses seres que a consciência deposita em sótãos, arquivos e almoxarifados da existência. Ao lado da imagem da deformação e do esquecimento, Benjamin recupera de Kafka ainda outra, igualmente potente, a saber, do lamaçal, pelo fato de que esta imagem se coaduna perfeitamente a uma concepção sua bastante conhecida, a crítica à ideia de progresso3 3 Na obra das “Passagens”, a obra de Kafka é ainda relacionada à imagem da charneca (Heidelandschaft), igualmente em referência crítica à ideia de progresso: “Definição do ‘moderno’ como o novo no contexto do que sempre existiu. A paisagem da charneca em Kafka (‘O Processo’), sempre nova e sempre igual, não é um mau exemplo deste estado de coisas” (Benjamin, 2018, p. 586; frag. S I, 4). . Assim, escreve: “a época em que Kafka vive não representa para ele nenhum progresso com relação ao começo primordial. Seus romances se passam num lamaçal [Sumpfwelt]” (Benjamin, 2008, p. 155BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.; trad. mod.).

A associação entre o lamaçal em Kafka e a crítica à ideia de progresso é fundamental no pensamento de Benjamin. Em contraposição à concepção positivista da social-democracia alemã dos anos 1920, Kafka, segundo Benjamin, encena seus personagens atolados em um pântano. Enredados, enlameados, presos dos pés à cabeça numa situação da qual não podem se livrar, os personagens kafkaescos constituem a própria refutação da ideia do progresso, defendida e corroborada por historiadores, intelectuais e artistas de toda ordem, desde o século XIX até os dias de hoje. Aliados da narrativa histórica do poder e dos vencedores, esses intelectuais foram igualmente responsáveis por fomentar a milenar máquina da dominação que, para além das armas e da força bruta, exerceu-se também pela linguagem. Nas narrativas positivistas do passado, privilegiou-se assim apenas um aspecto da história, o dos vencedores, relegando à sombra e ao esquecimento a história dos vencidos, como se jamais tivesse existido.

Contrariamente à ideia de que o presente constitui um meio temporal nessa busca linear em direção a um futuro utópico, situado no fim de uma cadeia progressiva de acontecimentos, o mundo de Kafka é o da falência da ideia de progresso. O presente não aparece nele como uma etapa de um percurso iniciado há milhares de anos em direção à prometida redenção messiânica, pois essa redenção, como se viu, apresenta-se em sua obra apenas negativamente, em sua ausência. Isso, em outras palavras, significa que sua literatura expurga toda e qualquer finalidade e teleologia da linguagem, categorias que sempre serviram de sustentação para a concepção de tempo linear. Como Baudelaire, em “As fores do mal”, também Kafka escreve profanamente, lançando às concepções teológicas, que desde há muito habitaram de forma parasitária a linguagem, um olhar ironicamente mefistofélico. Embora estejam ainda presentes em suas páginas literárias, as concepções de revelação, redenção, paraíso perdido e retorno messiânico aparecem profanadas em Kafka, fato este que está ligado ao abalo ou à mencionada dissolução do eu antes senhor de si e da natureza e escravizador dos povos e culturas. Destronado, o eu, em seus escritos, surge atolado no lamaçal do tempo mítico, a-histórico, hetaírico4 4 Em uma anotação do texto sobre Kafka, Benjamin atesta a relação do conceito de lamaçal como os escritos de Bachofen: “O mundo encontra-se para ele [Kafka], segundo seu lado natural, no estágio que Bachofen descreveu como hetaírico. Os romances de Kafka se passam em um lamaçal [Sumpfwelt]” (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 1192). No ensaio sobre Bachofen, Benjamin confirma que o estágio hetaírico refere-se ao estágio das heteras, conhecido na Grécia antiga pela intensa promiscuidade. Daí que essa era hetaírica, recalcada, retorne, em Kafka, como uma culpa cuja causa é desconhecida, ignorada, pelos personagens, que se veem obrigados a pagá-la de algum modo. Na mesma anotação acima citada, escreve Benjamin: “Ora, a culpa que, segundo Kafka, é vista em nosso futuro próximo como punição, é a existência hetaírica da humanidade” (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 1192). , numa das mais ricas contraimagens do futuro de ouro prometido pela religião e pela civilização industrializada. Em suas anotações do ensaio mais conhecido, Benjamin escreve: “Os romances de Kafka se passam em um lamaçal. Mas este mundo é então novamente o nosso mundo, pelo fato de que nós não o combatemos, mas apenas o reprimimos e o esquecemos” (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 1236BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Org. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.).

A imagem, portanto, que melhor designa essa crítica ao progresso em Kafka é a do mito de Sísifo, figura da mitologia grega cujo esforço inútil representa a história da humanidade como um todo: “... Kafka rola o bloco do processo histórico, como Sísifo rola seu rochedo. Nesse movimento, o lado de baixo desse bloco se torna visível. Não é um espetáculo agradável. Mas Kafka consegue suportar essa visão” (Benjamin, 2008, p. 155BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Bem entendido, o lado de baixo do bloco que Sísifo rola insistentemente montanha acima é o próprio Nada que sobressai de seu esforço. Em vez de atingir um fim determinado, chegar a um objetivo fixado, ao télos, o esforço de Sísifo é diária e invariavelmente esfarelado no Nada que lhe subjaz, desfazendo todo esforço empregado na realização de sua tarefa. No lugar de um esforço cuja realização atinge sua meta, a imagem de Sísifo, pelo contrário, figura a procrastinação humana, o adiamento constante da meta, que, de resto, constitui igualmente uma interpretação plausível de “O processo”. No romance, afinal, o leitor depara-se com a longa e interminável narrativa da espera do personagem K. pela resolução de seu processo, por seu desenlace, pelo télos que nunca chega, motivo pelo qual Agamben, em “O que restou de Auschwitz”, especula quanto ao fato de que, em Kafka, o próprio julgamento (sem fim) constitua a sentença do acusado:

O julgamento é em si mesmo a finalidade, e isso - já foi dito - constitui o seu mistério, o mistério do processo. Uma das consequências que é possível tirar dessa natureza autorreferencial do julgamento - e quem a tirou foi um grande jurista italiano - é que a pena não é consequência do julgamento, mas que ele mesmo é a pena (Agamben, 2008, pp. 28-9AGAMBEN, G. “O que resta de Auschwitz”. Trad. S. J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.).

Essa reflexão auxilia a compreender o papel da religião judaica nos escritos de Kafka, em especial no que se refere ao conceito de redenção. “O processo”, segundo essa reflexão de Agamben, não tematiza apenas a questão da irracionalidade da burocracia, mas, mais profundamente, traz a imagem ou a alegoria da espera infinita pela vinda do Messias, que, segundo a tradição, redimirá a humanidade. Presente em “O processo”, o tema da espera infinita aparece também em outros textos de Kafka. Como bem lembra Stéphane Mosès, em “L´ange de l´histoire”, o conto “O brasão da cidade” constitui uma das mais certeiras alegorias sobre essa mesma questão, ao operar uma inversão do mito da Torre de Babel, da Bíblia. Enquanto, no mito bíblico, o projeto de construção da Torre é interrompido pela força divina em vistas da avidez da humanidade em preservar sua unidade (e não cair na cisão provocada pela algaravia das línguas), no conto de Kafka, o motivo do abandono da construção é a hesitação e o constante adiamento de sua realização. Ora, tal adiamento resulta imediatamente da concepção de tempo cronológico, linear e homogêneo, que perpassa a história das religiões e culmina no pensamento iluminista e na ideologia do progresso própria do século XIX. Segundo essa concepção de tempo, a história aparece como um “processo orientado de um menos para um mais, da confusão para a ordem, da obscuridade para a clareza” (Mosès, 1992, p. 12), isto é, a história, segundo essa concepção, é concebida como o vetor de um progresso contínuo, destinada a conduzir a humanidade à sua realização final. Como essa concepção de tempo revela-se ao fim e ao cabo um tempo infinito, que envolve uma espera infinita, então o esforço necessário para a construção da Torre deságua numa profunda indiferença, notada na sentença do conto segundo a qual: “Parecia que teriam séculos diante de si para trabalhar à sua revelia” (Kafka apud Mosès, 1992, p. 11). Segundo essa concepção, as energias empregadas na construção da Torre simplesmente se paralisam, conduzindo a uma espécie de ataraxia, à procrastinação da ação, pois todo o curso do tempo está de antemão voltado para a realização de um télos que nunca é alcançado.

Na tese XVIIa de “Sobre o conceito de história”, Benjamin transpõe essa mesma inquietação de Kafka quanto ao destino da humanidade em termos da utopia da sociedade sem classes. Segundo esse texto, a social-democracia elevou a representação da sociedade sem classes a um ideal, a ser realizado por meio da ideia de uma tarefa infinita: “Uma vez definida a sociedade sem classes como tarefa infinita, o tempo homogêneo e vazio transformava-se, por assim dizer, em uma antessala, em que se podia esperar com mais ou menos serenidade a chegada de uma situação revolucionária” (Benjamin, In: Löwy, 2005, p. 134LÖWY, M “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’”. Trad. W. N. C. Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.). O perigo de se projetar o télos no infinito do futuro consiste no esvaziamento de toda e qualquer urgência da ação no presente, tornando (demasiado) serena a espera pelo desenlace da situação. Contra essa ideia, o apêndice B das teses “Sobre o conceito de história” menciona o tempo dos adivinhos, que “não era, certamente, experimentado nem como homogêneo, nem como vazio”, motivo pelo qual era possível rememorar o passado. Segundo Benjamin: “como se sabe, era vedado aos judeus perscrutar o futuro”, e “a Torá e a oração, em contrapartida, os iniciavam na rememoração. Essa lhes desencantava o futuro...” (Benjamin, In: Löwy, 2005, p. 142LÖWY, M “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’”. Trad. W. N. C. Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.). Em seu mais longo ensaio sobre Kafka, Benjamin observa no escritor tcheco precisamente esse movimento de, por um lado, opor-se à tempestade do esquecimento que sopra em direção ao futuro e, por outro, buscar o passado, por meio da rememoração e do estudo (da tradição):

Pois o que sopra dos abismos do esquecimento é uma tempestade. E o estudo é uma corrida a galope contra essa tempestade. [...] Assim se realiza a fantasia do cavaleiro feliz, que galopa numa viagem alegre e vazia em direção ao passado, sem pesar sobre sua montaria. Infeliz, no entanto, o cavaleiro que está preso à sua égua porque se fixou um objetivo situado no futuro, ainda que seja o futuro mais imediato, como o de atingir o depósito de carvão. Infeliz também seu cavalo, infelizes os dois (Benjamin, 2008, pp. 162-3BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

O futuro, em Kafka, não constitui uma abstração, como bem ensinava a Torá; não pode ser confundido com uma ideia a ser realizada por meio de uma tarefa infinita, como pregava a social-democracia alemã, de resto fundada no neokantismo de Hermann Cohen. O futuro, tal como o compreende Kafka, apenas se revela em sua concretude quando derivado da redenção do passado, que, em seu caso, não é uma categoria propriamente teológica ou religiosa, mas literária. É pelo estudo que o cavaleiro Kafka busca penetrar nos mistérios do passado, pela jornada que, nas asas da rememoração, empreende pela história da literatura: “É para trás que conduz o estudo, que converte a existência em escrita. O professor é Bucéfalo, o ‘novo advogado’, que sem o poderoso Alexandre – isto é, livre do conquistador, que só queria caminhar para frente – toma o caminho de volta” (Benjamin, 2008, pp. 162-3BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Entre outras coisas, essa ideia atesta muito da concepção do método crítico do próprio Benjamin, o qual, como se deduz do “Konvolut I” das teses “Sobre o conceito de história”, deveria se basear na flologia: “O método histórico é um método flológico, que tem como fundamento o livro da vida. [...] O leitor no qual se deve pensar aqui é o verdadeiro historiador” (Benjamin, 2010, p. 124BENJAMIN, W. “Werke und Nachlass. Kritische Gesamtausgabe: Band XIX: Über den Begrif der Geschichte”. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2010.). Em épocas profanas, em que a teologia não ousa se mostrar, a redenção do passado, tarefa do historiador, deve ser buscada por meio do estudo, ou seja, da decifração dos textos antigos, motivo pelo qual sua principal ferramenta metodológica será a flologia. Na conhecida carta a Adorno de 12 de dezembro de 1939, em que Benjamin respondia às críticas daquele a seu ensaio sobre Baudelaire, lê-se, com efeito:

Se você recordar outros trabalhos meus, verá que a crítica da atitude do flólogo é uma velha preocupação minha – e idêntica, intrinsecamente, àquela quanto ao mito. [...] É ela que insiste, para usar a linguagem do meu trabalho sobre as Afinidades eletivas, na revelação dos valores materiais nos quais o valor de verdade é desfolhado historicamente (In: Adorno, 2012, p. 415ADORNO, T. W. “Correspondência 1928-1940 Adorno-Benjamin”. Trad. J. M. M. Macedo. São Paulo: Edunesp, 2012.).

As figuras do teólogo e do rabino dão aqui lugar àquelas do escritor e do crítico. É a eles que, na modernidade do capitalismo avançado, foi dada a chave de interpretação do passado e essa chave é a flologia. Por meio dela, o passado, transformado em texto, pode ser sempre reinterpretado, de modo que o historiador consiga novamente relacionar o fato histórico, assim redimido, em novas constelações. Isso, no entanto, apenas é possível por meio do que Benjamin denomina “interrupção messiânica”: a paralisação (Stillstellung) da tempestade do esquecimento, que sopra inevitavelmente desde o paraíso (cf. tese XVII de “Sobre o conceito de história”). Ora, essa paralização do curso dos pensamentos, que também move a ideologia do progresso, bem como o voltar-se ao passado pela rememoração e pelo estudo, pode ser observada na literatura de Kafka, que, segundo a imagem de Benjamin, incorpora Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, que, prevendo a catástrofe que reside no futuro, empaca e “toma o caminho de volta”. Nas palavras do próprio Kafka, citado por Benjamin: “Livre, com seus fancos aliviados da pressão das coxas do cavaleiro, sob uma luz calma, longe do estrépito das batalhas de Alexandre, ele lê e vira as páginas dos nossos velhos livros” (Kafka apud Benjamin, 2008, p. 163BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

A imagem dialética do progresso

Em “O mal-estar na civilização”, Freud analisa e desvela o “preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento, [que] seria o caminho traçado para o homem chegar à perfeição” (Freud, 2010, p. 58FREUD. S. “O mal-estar na civilização”. Trad. P. C. Souza. In: Obras Completas (v. 18). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). Nessa análise, constata: “Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização” (Freud, 2010, p. 47FREUD. S. “O mal-estar na civilização”. Trad. P. C. Souza. In: Obras Completas (v. 18). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.), e que, apesar de todo o desenvolvimento técnico, o qual pretendia elevar o homem a deus de si mesmo, “não devemos esquecer [...] que o homem de hoje não se sente feliz com esta semelhança” (Freud, 2010, p. 52FREUD. S. “O mal-estar na civilização”. Trad. P. C. Souza. In: Obras Completas (v. 18). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). Esse mal-estar de Freud assemelha-se assim ao mal-estar de Gregor Samsa e de outros personagens da literatura do início do século XX, como é o caso também daqueles moradores da Londres de 632 AF (after Ford), cujas sagas são narradas em “O admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Publicado em 1932, o romance engrossa o coro da crítica aos que apostam na ciência e na tecnologia como formas de extirpar a melancolia inerente à condição humana. Kafka, Freud e Huxley percebem desde cedo que essa busca cega terá como resultado não a felicidade suprema, mas o sofrimento, derivado da catástrofe.

Ao lado de Kafka, Freud e Huxley, Benjamin celebrizou-se como um dos mais ferrenhos críticos da utopia civilizatória que se desenhava na Europa no início do século XX. Nas teses “Sobre o conceito de história”, expressou em imagens sua crítica ao progresso, principalmente na célebre alegoria do anjo da história. Nessa potente imagem, o progresso surge como uma tempestade que sopra do paraíso, trazendo consigo a irresistível força do esquecimento e forçando o anjo da história em direção ao futuro. O anjo, sentindo em suas asas o empuxo dessa tempestade, mantém o rosto voltado ao passado, como que resistindo a ser levado por essa força chamada progresso, pois ele sabe que o télos almejado não é o estado de perfeição prometido pela civilização, mas a catástrofe. Assim, escreve Benjamin: lá “onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos”, o anjo da história “vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (Benjamin, 2008, p. 226BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

A força da alegoria do anjo está em sua capacidade de propiciar um olhar dialético da história. Olhar dialeticamente a história significa saber ver que todo progresso técnico implica ao mesmo tempo um regresso social. Como escreve também Adorno, todo progresso técnico implica, em sentido oposto, regressão cultural, como se observa particularmente no caso da música. Ao mesmo tempo que passa a poder ser reproduzida por técnicas altamente avançadas, a música, no auge do capitalismo, sofre um processo de regressão a um estágio infantil, próprio do ouvido moderno: “Os ouvintes, vítimas da regressão, comportam-se como crianças. Exigem sempre de novo, com malícia e pertinácia, o mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido” (Adorno, 1975, p. 192ADORNO, T. W. “O fetichismo na música e a regressão na audição”. Trad. L. J. Baraúna. In: “Os Pensadores”. São Paulo: Abril, 1975.). Como constata Adorno, há uma ligação (dialética) entre o estado regressivo da audição e o estado catastrófico das sociedades modernas: “Ora, este aspecto que se diz positivo na verdade é negativo, ou seja, a irrupção, na música, de uma fase catastrófica da própria sociedade. O positivo só existe na sua negatividade” (Adorno, 1975, p. 198ADORNO, T. W. “O fetichismo na música e a regressão na audição”. Trad. L. J. Baraúna. In: “Os Pensadores”. São Paulo: Abril, 1975.). Somente a música de Schoenberg e Webern, ao contrapor-se ao furor extático proporcionado pelo jazz, “dá forma àquela angústia, àquele pavor, àquela visão clara do estado catastrófico ao qual os outros só podem escapar regredindo” (Adorno, 1975, p. 199ADORNO, T. W. “O fetichismo na música e a regressão na audição”. Trad. L. J. Baraúna. In: “Os Pensadores”. São Paulo: Abril, 1975.).

Não por acaso, Benjamin, na citada carta de 12 de dezembro de 1939 a Adorno, elogia precisamente este ponto de seu ensaio, claramente influenciado pelos seus escritos anteriores: “O que mais me agradou na Conclusão do trabalho [sobre a regressão da audição] é a reserva ali expressa ao conceito de progresso” (In: Adorno, 2012, p. 420ADORNO, T. W. “Correspondência 1928-1940 Adorno-Benjamin”. Trad. J. M. M. Macedo. São Paulo: Edunesp, 2012.). Com efeito, Adorno, seguindo a teoria exposta por Benjamin em “A obra de arte nos tempos de sua reprodutibilidade técnica”, situa a noção de progresso em seu ensaio em uma perspectiva dialética, de modo que os avanços positivos da técnica aparecem relativizados por seus aspectos negativos, principalmente no âmbito social. Segundo essa dialética, a técnica, ao mesmo tempo que amplia o alcance da ciência e da arte às massas, opera uma modificação profunda na sua forma de percepção, que a impede de compreender em sua totalidade fenômenos artísticos produzidos anteriormente a essa época. Nessa mesma toada dialética, a imagem do anjo de Benjamin viria escancarar que, do mesmo modo como todo progresso técnico implica a regressão social, também a civilização traz incrustrada em sua história os traços da barbárie sobre a qual ela se ergue, como atesta a conhecida sentença das teses: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (Benjamin, 2008, p. 225BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

Na obra das “Passagens”, Benjamin dedica toda uma seção para a crítica da noção de progresso, na qual aborda também suas consequências epistemológicas. Ao contrário de Adorno, entretanto, Benjamin insiste no conceito de “imagem dialética”, pensada como um meio específico e privilegiado de proporcionar a visão dialética do todo, pois a imagem cristaliza em um momento imóvel a dupla visão dos fatos históricos. Como se nota no seguinte fragmento da seção N desta obra:

Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta (Benjamin, 2018, p. 767BENJAMIN, W. “Passagens”. Trad. I. Aron e C. P. B. Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018.; frag. N 2a, 3).

A imagem dialética, nesse sentido, proporciona a visão dialética da história ao interromper o fluxo contínuo e progressivo do tempo: tal é o significado da dialética da imobilidade, praticada pelo materialista histórico, como se lê também na tese XVI de “Sobre o conceito de história”: “O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza”. Pois: “pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização” (Benjamin, 2008, pp. 230-1BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.). A imobilização do tempo linear e homogêneo, por meio da qual uma “configuração saturada de tensões” recebe um choque, é ocasionada pela imagem dialética, cujo exemplo mais premente é o do próprio anjo da história, que “vê uma catástrofe única” lá onde geralmente se vê apenas progresso. Ao abordar as obras de escritores como Kafka e Proust, Benjamin, nesse mesmo sentido, penetra em seus núcleos não por meio de teorias dialéticas especulativas, sejam naturais ou sobrenaturais, mas busca nelas suas imagens características, nas quais o tempo progressivo é congelado num instante único, qualitativo, como se depreende também do título de outro ensaio: “A imagem de Proust”. Na obra mestra de Proust, “Em busca do tempo perdido”, os acontecimentos, segundo Benjamin, “não aparecem de modo isolado, patético e visionário, mas são anunciados, chegam com múltiplos esteios, e carregam consigo uma realidade frágil e preciosa: a imagem” (Benjamin, 2008, p. 40BENJAMIN, W. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras Escolhidas (v. I). Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.).

No caso específico de Kafka, o mesmo preceito metodológico é rigorosamente observado. Trata-se de extrair seu universo literário não a partir de lugares-comuns teológicos, como na interpretação de Max Brod, mas de suas imagens alegórico-simbólicas, que, já na tradição judaica da cabala, surgiam como forma de expressão do sem expressão, isto é, do elemento propriamente místico do judaísmo. Segundo Scholem, na tradição da cabala, “o símbolo nada ‘significa’ e nada comunica, mas torna transparente aquilo que se encontra além da significação” (Scholem, 1995, p. 29SCHOLEM, G. “As grandes correntes da mística judaica”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1995.). Em contraposição à tradição da filosofia judaica (como em Maimônides, por exemplo), que buscava traduzir por meio de flosofemas as experiências do indivíduo com a divindade, a mística judaica insistia no caráter irredutível dessa experiência a conceitos, motivo pelo qual a filosofia judaica nunca deu conta de explicar o universo da Halachá, isto é, o “mundo da lei religiosa”, e da Hagadá, o universo mitológico do judaísmo. Ainda nas palavras de Scholem:

... o filósofio só pode realizar sua tarefa especulativa depois de ter convertido, com êxito, as realidades concretas do judaísmo num feixe de abstrações. O fenômeno individual para ele jamais é objeto de sua especulação filosófica. Inversamente, o místico evita destruir a contextura viva da narração religiosa, ao alegorizá-la [...]. Seu modo de pensar é o que eu gostaria de chamar simbólico no sentido mais estrito (Scholem, 1995, p. 28SCHOLEM, G. “As grandes correntes da mística judaica”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1995.).

Escritas por Scholem, essas palavras reverberam aqui e acolá nos escritos de Benjamin. Basta lembrar o Prefácio de “Origem do drama barroco alemão”, em que se lê que “a tarefa do filósofio é restaurar em sua primazia, pela apresentação, o caráter simbólico da palavra, no qual a ideia chega à consciência de si, o que é o oposto de qualquer comunicação dirigida para o exterior” (Benjamin, 1984, p. 59BENJAMIN, W. “Origem do drama barroco alemão”. Trad., apresentação e notas S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.; trad. mod.). Em sintonia com o que é exposto por Scholem, também Benjamin busca a reconciliação da filosofia judaica com a mística da cabala, superando o fosso que há séculos separava essas duas tendências, por meio da recuperação do “caráter simbólico da palavra”, substituído pela sua função meramente comunicativa, isto é, instrumental. Kafka, nesse sentido, surge como uma via privilegiada para a execução dessa tarefa, na medida em que sua obra recupera a tradição mística judaica, recorrendo à função alegórica da linguagem, como se observa na conhecida parábola “Diante da lei”, ao final de “O processo”. Trata-se de uma parábola, contada ao personagem K. por um sacerdote, na igreja, sobre o campesino que passa a vida toda procurando entrar na porta da lei e, impedido pelo porteiro de entrar, morre sem o conseguir. Antes de morrer, porém, pergunta o campesino ao porteiro:

“Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (Kafka, 2005, p. 215KAFKA, F. “O Processo”. Trad. M. Carone. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.).

Como se observa em uma carta a Benjamin de 17 de julho de 1934, Scholem interpreta esse sacerdote como um halachista oculto, “um rabino que, embora não conheça a lei, sabe transmitir as tradições em torno de uma parábola”. Por isso Scholem escreve a Benjamin que essa parábola abria-lhe “imediatamente diante dos olhos o mundo moral da Halachá, seus abismos e sua dialética” (Scholem, in: Benjamin; Scholem, 1980, p. 158BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. “Briefwechsel”. Gershom Scholem (org.). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980.). Embora estivesse diante da lei religiosa judaica, feita exclusivamente para ele, o campesino não detinha o conhecimento necessário das Escrituras para reconhecê-lo. Eis o abismo da Halachá, que separa o judeu moderno da tradição mística: ao mesmo tempo que deixou de viver a tessitura viva do mito, ele perdeu a chave para decifrar o texto das Escrituras. Em sua resposta a Scholem, Benjamin afirma estar de acordo com essa interpretação do amigo, com a diferença de que ela não o “move interpretativamente”. “De fato, não desejo abordar explicitamente este conceito”, ao que ajunta: “Se esta [a ênfase de Kafka na lei] deve ter uma função – o que deixo sem resposta –, então também uma interpretação que parte de imagens – como a minha – haveria de conduzir a ela” (Benjamin; Scholem, 1980, p. 168BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. “Briefwechsel”. Gershom Scholem (org.). Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1980.).

Essa interpretação não especulativa da obra de Kafka, imagética, Benjamin a perseguia ao menos desde 1931, como se observa em uma conferência proferida nesse ano com o título “Franz Kafka: Na construção da muralha da China”:

Mas se tomarmos sua obra como uma superfície espelhada, então o essencial, há tanto perdido, pode aparecer subitamente como objeto inconsciente e verdadeiro dessa descrição, e a interpretação teria então que buscar seu reflexo no sentido oposto, tão deslocado do espelho como o modelo refetido. Dito de outra maneira: no futuro (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 678BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Org. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.).

É ao se abordar a obra de Kafka não especulativamente, a saber, dialeticamente, no sentido hegeliano do termo, mas, ao contrário, ao se observá-la como “uma superfície espelhada”, que sua força pode ser sentida: sua capacidade de espelhar o futuro a partir da invocação de um passado que permaneceu inconsciente, oculto, recalcado. É nesse sentido que, no ensaio de 1936, Benjamin escreve que a obra de Kafka teria sido profética. Ao fazer renascer no presente, por meio de seus personagens, esse passado reprimido pela história oficial, ela consegue também antecipar o curso do futuro, não no sentido interditado pela Torá, mas no sentido característico da mística cabalística, isto é, alegoricamente, por meio de imagens, tais como as que pululam também dos escritos do próprio Benjamin. A literatura como um espelho de imagens: eis o método que Benjamin desenvolve a partir de sua leitura da obra de Kafka. Como o anjo das teses de Benjamin, também as imagens de Kafka revelam a iminência da catástrofe, a partir dos escombros do passado. Esses escombros, na literatura de Kafka, deixam subitamente o mundo inconsciente, ao qual foram relegados, e passam a fazer novamente parte da história, da qual foram excluídos. A história humana, em Kafka, descasca de uma vez por todas o verniz brilhante e belo que uma determinada tradição lhe aplicou, permitindo a visão do que havia ficado oculto, soterrado por muitas camadas de ideologia: a saber, o Nada que resulta invariavelmente do esforço humano em sua busca pelo progresso.

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    O presente artigo é fruto de uma pesquisa realizada em 2020 no Benjamin-Archiv de Berlim, com bolsa PRINT-Capes e continuada no Brasil com bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ2).
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    Segundo Scholem, a relação do judaísmo com a tradição sempre foi paradoxal. Por um lado, nota-se nele desde sempre o esforço de transmissão da tradição, como na cabala, mas, por outro, sobressai também a tendência fortemente esotérica, principalmente por parte dos místicos, que acabaram por romper com a transmissão da tradição, isto é, da cabala. Assim, escreve: “Cabala significa literalmente ‘tradição’ [...]. O fato, porém, é que no misticismo judaico, desde o início, se combinou a ideia de um conhecimento que é a tradição secreta dos espíritos escolhidos ou iniciados. [...] O misticismo judaico, portanto, é uma doutrina secreta [...] porque trata das questões mais fundamentais e mais profundamente ocultas da vida humana; mas é secreta também porque é limitada a um pequeno grupo de eleitos que transmitem o conhecimento a seus discípulos” (Scholem, 1995, pp. 22SCHOLEM, G. “As grandes correntes da mística judaica”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1995.).
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    Esta concepção, de resto, retoma de algum modo a teoria mística dos teólogos ortodoxos judaicos do século XIII, em especial Massoret Ha-Brit, como mostra o próprio Scholem: “Os místicos também falam na Criação a partir do nada; esta é na verdade uma de suas fórmulas prediletas. [...] Só quando a alma se despojou de toda limitação e, na linguagem mística, desceu às profundezas do Nada, é que ela encontra o Divino. [...] Numa palavra, o Nada significa o próprio Divino em seu aspecto mais impenetrável” (Scholem, 1995, pp. 26-7SCHOLEM, G. “As grandes correntes da mística judaica”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1995.). Essa concepção mostra em que medida a mística judaica se opôs ao longo da história à tendência filosófico-iluminista do próprio judaísmo, em particular a Maimônides.
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    Na obra das “Passagens”, a obra de Kafka é ainda relacionada à imagem da charneca (Heidelandschaft), igualmente em referência crítica à ideia de progresso: “Definição do ‘moderno’ como o novo no contexto do que sempre existiu. A paisagem da charneca em Kafka (‘O Processo’), sempre nova e sempre igual, não é um mau exemplo deste estado de coisas” (Benjamin, 2018, p. 586BENJAMIN, W. “Passagens”. Trad. I. Aron e C. P. B. Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018.; frag. S I, 4).
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    Em uma anotação do texto sobre Kafka, Benjamin atesta a relação do conceito de lamaçal como os escritos de Bachofen: “O mundo encontra-se para ele [Kafka], segundo seu lado natural, no estágio que Bachofen descreveu como hetaírico. Os romances de Kafka se passam em um lamaçal [Sumpfwelt]” (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 1192BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Org. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.). No ensaio sobre Bachofen, Benjamin confirma que o estágio hetaírico refere-se ao estágio das heteras, conhecido na Grécia antiga pela intensa promiscuidade. Daí que essa era hetaírica, recalcada, retorne, em Kafka, como uma culpa cuja causa é desconhecida, ignorada, pelos personagens, que se veem obrigados a pagá-la de algum modo. Na mesma anotação acima citada, escreve Benjamin: “Ora, a culpa que, segundo Kafka, é vista em nosso futuro próximo como punição, é a existência hetaírica da humanidade” (Benjamin, 1974, Vol. II, p. 1192BENJAMIN, W. “Gesammelte Schriften”. Org. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    05 Maio 2022
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