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Ensino da farmacologia

Ao Editor

No momento em que se discute a necessidade imperiosa da instituição da disciplina Farmacologia Clínica em nossas Escolas de Medicina, conforme notícia no BOLETIM DA ABEM, vale recordar que a primeira referência em nosso meio, sobre o assunto, adveio do título do livro do Prof. Pedro A. Pinto, Lições de Farmacologia Clínica e Bio-experimental, publicado em 1934.

Reli a 6ª edição do referido livro e avaliei, mais uma vez. como era pequeno o número de medicamentos farmacologicamente ativos: alguns narcóticos (clorofórmio, éter, protóxido de azoto); barbitúricos (veronal, luminal); derivados do ópio (codeína, morfina, heroína, apomorfina, papaverina); antitérmico-analgésicos (ácido acetilsalicílico, piramido, dipirona, salicilato de sódio...); cardiotônicos (digital, estrofantina); Atropina, Escopolamina, Cafeína, Quinina, Quinidina, Salvarsan, Neosalvarsan, Bismuto, Arsênico, Emetina, Iodo, Tártaro Emético... e só.

Não existia um único medicamento eficaz para o tratamento de infecções bacterianas, e Mestre Austregésilo, uma das maiores figuras da Medicina brasileira, dizia em suas aulas, de 1939, que “o diagnóstico exato de endocardite bacteriana equivaleria à assinatura de um atestado de óbito”.

A publicação do livro de Goodman e Gilman, em 1940, revolucionou completamente o ensino de Farmacologia, como também abriu novas perspectivas à compreensão da necessidade do conhecimento atualizado de Farmacologia para a prescrição racional dos medicamentos.

Foi o livro de Goodman e Gilman publicado em pleno período a que Sir Henry Dale denominou de “fase áurea da Farmacologia”, e que coincidia com a descoberta das sulfamilamidas, dos antibióticos e com o despontar na década de 50, da Psicofarmacologia (que somente apareceria em outras edições do livro).

Convém lembrar, pela sua atualidade, alguns trechos do prefácio das Bases Farmacológicas da Terapêutica: “Três objetivos levaram-nos a escrever esse livro: a correlação da Farmacologia com as ciências médicas; a interpretação das ações e uso dos medicamentos em face dos importantes progressos da Medicina, e a necessidade de enfatizar a aplicação do conhecimento da Farmacodinâmica à Terapêutica”.

E em outro passo: “Deve ser finalmente ressaltado que através de todo o livro, tal como foi indicado no título, o objetivo principal é o clínico. Isso é imperativo, já que se deve ensinar Farmacologia aos estudantes de Medicina tendo em mira as ações e o emprego dos medicamentos na prevenção e no tratamento das doenças.

Houve em função do grande progresso da Farmacologia nas décadas de 40, 50, 60 e 70, a obrigação, o dever de proceder a uma revisão dos programas da disciplina Farmacologia na então Faculdade Nacional de Medicina.

Em atenção a pedidos insistentes dos alunos e dos professores do ciclo clínico, procuramos estabelecer uma correlação entre os tópicos ensinados em Farmacologia e os efeitos imediatos e mediatos das ações e efeitos dos medicamentos.

A leitura do livro pioneiro de A.J. Clark “Farmacologia Aplicada”, levou-nos (Professor Paulo de Carvalho e eu próprio) a propor nos idos de 50 a divisão do ensino de Farmacologia em duas partes: Farmacologia Geral (hoje cunhada de Farmacocinética) e Farmacologia Aplicada. Os alunos receberam esta nova modalidade de ensino da Farmacologia de maneira entusiástica, pois não só nas aulas práticas de demonstração, como nas aulas teóricas, procuramos estabelecer as relações entre os resultados das experiências em animais e as possíveis correlações clínicas.

Assim, a demonstração da oclusão das carótidas primitivas, a excitação do esplâncnico, as injeções venosas de adrenalina, de noradrenalina, de isopropilarterenol, possibilitavam-nos pedir a atenção dos alunos para o que aconteceria amanhã na clínica, em função da aplicação dos medicamentos.

A demonstração experimental de bloqueadores alfa e beta adrenérgicos em aulas seguintes, possibilitava-nos tratar do diagnóstico farmacológico do feocromocitoma, bem como das aplicações clínicas dessas substâncias na hipertensão arterial.

A excitação elétrica, ou farmacológica da córtex cerebral com a demonstração de contrações musculares localizadas, ou de convulsões epileptiformes levava-nos a chamar a atenção dos alunos para os efeitos imediatos da injeção venosa de fenobarbital sódico, ou de um diazepínico no bloqueio imediato das convulsões experimentais. Muitas outras experiências foram programadas sempre com o objetivo de correlacionar dado experimental com possível observação clínica.

Havia, no entanto, um hiato que dificultava, se não impossibilitava, a heurística que vínhamos adotando, a falta de coordenação entre a Farmacologia e a Clínica. Em decorrência de uma interpretação defeituosa da Reforma Universitária, com a criação dos chamados Institutos Básicos, quase todas as Universidades começaram a lecionar Farmacologia de maneira indiscriminada a alunos de Medicina, de Farmácia, de Odontologia, de Enfermagem e até de Veterinária e, não só diminuíram os créditos da disciplina, como baixaram a Farmacologia para o 3° e 4° períodos.

Recusamo-nos, com o apoio da Universidade, alterar a posição da Farmacologia, de ponte entre o curso básico e o de formação, e diversificamos os programas dos cursos de Medicina, de Farmácia, de Odontologia e de Enfermagem, já que nos pareceu um disparate (como foi evidenciado posteriormente) o que muitas Universidades fizeram.

Com a mudança dos Departamentos do Instituto de Ciências Biomédicas para as novas instalações do Centro de Ciências da Saúde na Cidade Universitária e, posteriormente, com a inauguração do Hospital Universitário, ao lado do Instituto, começamos a lecionar as aulas teóricas de Farmacologia Aplicada nos anfiteatros do próprio Hospital.

Foi extraordinária a mudança do comportamento do aluno com as aulas no Hospital, já que, perceberam, de início, que eles eram co-responsáveis no tratamento dos doentes.

Com muita satisfação já estabelecemos, em estreita colaboração com a Faculdade de Medicina, o novo programa de Farmacologia coordenado com o de Medicina Clínica, de maneira que o aluno estará em condições de receber a informação sobre tais disciplinas concomitantemente, ou com pequeno intervalo.

Deve o professor, ao terminar a Farmacologia Básica, ou ao iniciar a Farmacologia Aplicada, insistir em alguns princípios ou preceitos que servirão de alerta para o emprego racional dos medicamentos:

1° - O medicamento é algo de estranho ao organismo, pelo que somente poderá ser empregado para os seguintes objetivos:

  1. Preventivo ou profilático;

  2. Paliativo;

  3. Curativo (atuando diretamente na causa da doença, ou corrigindo alterações patológicas produzidas pela doença);

  4. Alterador do “relógio biológico” (anticoncepcional);

  5. Como auxiliar de diagnóstico (contrastes utilizados em Radiologia);

2° - Insistir no que pode parecer um verdadeiro truísmo, isto é, que “a administração de qualquer medicamento deve ser encarada como risco calculado, já que inexiste o medicamento destituído de efeitos colaterais”;

3° - Desenvolver a noção de que o Pharmakon (medicamento), desde a atinguidade, tem e continua a ter as seguintes conotações:

Pharmakon - medicamento que cura;

Pharmakon - tóxico;

Pharmakon - poção milagrosa, filtro mágico que traz esperança.

Lauro Sollero
Professor Titular do Departamento de Farmacologia e Terapêutica Experimental do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1981
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