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Nossas práticas de avaliação: um anacronismo na escola

Resumo:

Salientando o descompasso entre, de um lado, as novas exigências sociais e os avanços correspondentes da tecnologia educacional e, do outro, as práticas correntes entre nós de avaliação escolar, o autor advoga a atualização do instrumental de verificação da aprendizagem. Para encarecer a urgência desta renovação, aponta as grandes falhas das provas tradicionais, responsáveis por sua reduzida validade e escassa precisão. Documentando-se em pesquisa, assina-la, ainda, as fundas repercussões das notas escolares na auto-estima dos alunos.

Summary

Marking the gap between modem social demands and educational technology on one side, and our present educational evaluation practices on the other side, the author advocates modernization of achievement test. In order to underline the urgency of such revision, validity and reliability deficiencies of traditional exams are pointed out. Supported by research, the author further discusses the impact of school marks on student's self-esteem

“Sua Majestade, o Imperador, visitou hontem a faculdade de medicina [...]. Assistio a alguns exames do 1o, 2o, 3o, 4o e 5o anos...”. Jornal do Comércio, 29 de novembro de 1879

“O rapazote louro enfiou a mão na urna e tirou [...] uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente. Este desenrolou-a e leu: “Hidrogenio”. Amancio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele [...]! talvez fosse até entre todos os menos mal sabido; [...] já não lhe tremia a mão ao receber do bedel uma folha de papel almaço, rubricada pelos lentes [...]. Ali, naqueles miseráveis dos vintens de papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a sua posição na sociedade, talvez a própria vida de sua mãe...”. Aluizio Azevedo, Casa de pensão, 1884

“A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça do arbítrio [...]. Era o Livro das Notas [...], de onde [...] nascia, surgia, avultava-se, impunha-se a opinião do Ateneu. Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião sem corretivo como os tribunais supremos”. Raul Pompéia, O Ateneu, 1888

Decorrido um século, e nele fundamente transformada a vida social, estes depoimentos sobre um dos alicerces da educação - o controle dos resultados - conservam sua atualidade. Apesar de hoje situar-se a escola em meio físico e cultural inteiramente distinto daquele em que viviam Aluízio Azevedo e Raul Pompéia, e de atender a clientela bem mais volumosa e diversificada que antes, a verificação do seu rendimento continua a firmar-se no mesmo instrumental tosco, já insatisfatório ao tempo em que era freqüentada a elite de uma sociedade semi-feudal. Apreciação tão decisiva, quanto a do produto de todo o seu intenso trabalho, ainda permanece dependente de julgamentos muito subjetivos. Não raro, subordina-se a provas montadas na hora e sobre apenas três ou quatro unidades do programa, como se as demais não importassem. Persiste em valer-se de exames orais aplicados sem roteiro prévio, que põem os examinados em condições muito desiguais, tanto no referente à dificuldade das perguntas, quanto no relativo aos moldes de lhes avaliar as respostas. O julgamento destas é, comprovadamente, influenciado por variáveis estranhas ao processo, quais sejam, fluência verbal, qualidade da dicção, presença de espírito e, até, aparência pessoal. Não obstante, baseando-se em informações colhidas com instrumentos tão pouco confiáveis - já que escassamente válidos e muito imprecisos - a escola determina “o [...] futuro, a [...] posição na sociedade, talvez a própria vida” do aluno e de familiares seus, como ao tempo dos senhores da casa-grande.

Embora, nesse ínterim, a escola tenha renovado amplamente suas instalações que agora dispõe em vasto campus, dotado de modernos recursos audiovisuais, laboratórios bem equipados, bibliotecas com sistema internacional de catalogação e aparelhagem para processar dados eletronicamente, resiste à mudança no cerne mesmo da sua tarefa principal - ensino/aprendizagem. Neste ponto, mostra-se particularmente conservadora ao fazer apreciação crítica dos efeitos da sua atuação. Paradoxalmente, atualiza conteúdos e programas, vez por outra revê currículos e, mesmo, seu Regimento Interno, requinte a seleção dos alunos e os entrega a profissionais de alto gabarito, mas abandona à tradição - ou, melhor, à experiência pessoal e à intuição de cada docente o acompanhamento dos efeitos que vai logrando. Trabalha com afinco, mas descura o controle dos resultados.

AVALIAÇÃO DE EFICÁCIA E DE EFICIÊNCIA

Qualquer empresa supervisiona atentamente a eficácia e a eficiência da sua produção. Por reconhecer a importância capital desta fiscalização, destina-lhe recursos especiais e zela pelo aperfeiçoamento sistemático dos procedimentos e dos instrumentos que nela emprega. Acompanha de perto cada fase do processo, desde a entrada da matéria-prima e a seleção do pessoal, até o controle de qualidade do produto e sua entrega ao mercado. A escola, porém, deixa seguimento de tamanho porte ao sabor de iniciativas pessoais. Preocupa-se unicamente com sua parte formal, zelando pelo ritual que o reveste: fixa o mínimo indispensável de trabalhos e provas, a época e os prazos para entrega de notas à administração e estabelece o total de pontos necessários à aprovação (este número curiosamente inflexível, embora cada docente situe sua escala de notas no nível que lhe apraz, fazendo com que uma nota 5 em certa matéria, por exemplo, corresponda a 8 ou 9 em outra).

Em lugar de promover avaliação contínua ao longo de todo o trabalho, para ir nele identificando logo as falhas e as sanando imediatamente - protela estas medidas, permitindo que muitos exames se transformem em constatação final das deficiências acumuladas ao longo de todo um semestre. Em vez de, ao receber o aluno, examiná-lo minuciosamente (colhendo-lhe a anamnese para melhor diagnosticar suas deficiências), parte logo para o seu tratamento (que é igual para todos). Firma-se no pressuposto - sobejamente desmentido pelos fatos - de que todos os alunos que chegam a cada período dominam igualmente a matéria dos semestres anteriores. Como, ao iniciar cada disciplina, não se preocupa em fazer o diagnóstico precoce das dificuldades individuais, e a todos prescreve a mesma terapia, dando-lhes ainda igual prazo para atingir a meta, acaba por registrar elevadas taxas de insucesso. Visto que não vai seguindo, passo a passo as reações dos pacientes, para reajustar em tempo útil as experiências que lhes oferece, facilitando-lhes a aprendizagem, permite o agravamento crescente de seus problemas. Não raro só os chega a identificar no exame post-mortem.

Vale aqui lembrar a postura de certos docentes - felizmente poucos - que metodicamente reprovam grande número dos próprios alunos. Depois de ficarem sob os seus cuidados por um semestre inteiro, tais estudantes são por eles considerados inaptos, esclarecendo alguns dever-se tão ampla ceifa a terem eles chegado ao curso com males insanáveis... Pelo tratamento que sabem dispensar, não apenas só dá resultado com os que o iniciam já em condições favoráveis, como ainda, antes mesmo do seu começo já antevê numerosos êxitos letais... Em uma analogia sumária - e simplista - seria o mesmo que vangloriar-se um médico das altas porcentagens de mortalidade, registradas entre seus pacientes... Os efeitos que conseguem podem ser previstos com tão grande acerto, que, antes de inscrever-se nesta ou naquela disciplina, a clientela informa se sobre as probabilidades “de alta” que cada uma promete.

O APEGO À TRADIÇÃO EM UM DOS COMPONENTES MAIS CRÍTICOS DA EDUCAÇÃO FORMAL

“Trouver n'est rien, difficile est s'ajouter ce qu'on trouver”. Paul Valéry, Monsieur Teste

O curioso é que tudo isto ocorre em ambiente de trabalho sério e atenção à qualidade da produção. Nele, os professores dedicam o melhor dos seus esforços e os alunos período decisivo da própria vida. Todavia, muitos parecem subestimar o papel do controle do processo, talvez por encará-lo como algo de externo, quando não meramente terminal. Em lugar de verem na avaliação componente integrante - e crítico - de todas as suas etapas, restringem-lhe as funções à atribuição de notas e à sua comunicação tempestiva à Secretaria. Deixam de lado sua contribuição crucial ao aperfeiçoamento de ensino e aprendizagem, bem como ao controle de qualidade do produto.

A escola como que zela por oferecer à sua clientela “a terapia” mais atualizada para o que se socorre dos mais recentes conhecimentos, de aparelhagem sofisticada e de medicamentos modernos - mas guarda fielmente a tradição ao fazer o seguimento do tratamento. Neste aspecto, age do mesmo modo que à época em que Theodor Billroth (1883, apud Bailey, 1955BAILEY, C. P. - Surgery of the heart. Philadelphia, Lea and Febiger, 1955.) advertia: o cirurgião que tentar sutura cardíaca “deverá perder o respeito dos colegas”. É que então, segundo iria assinalar Rudolph Matas (1951, apud Sabinston), cabeça, tórax e abdomen ainda eram “santuários”, que não se deviam abrir a não ser por acidente. Não obstante, nesse mesmo período muitos iriam tentar a neurocirurgia. Logo, porém as dificuldades que a ela se associavam os fariam desanimar. Assim, enquanto entre 1886 e 1896, “cerca de 500 cirurgiões relatavam operações no cérebro”, conforme ressalta R. H. Wilkins (1972, apud Sabinston), na década seguinte o seu total “cairia para menos de 80”. Ressalte-se, ainda, neste paralelo de progresso médico com estagnação didática, que a esse tempo, Roentgen fazia sua primeira comunicação (1895) sobre os raios - X à Sociedade Médico-Física de Wurzburg, enquanto que Stephen Paget (1896, apud Sabinston), afirmava: “Sugery of the heart has probably reached the limits set by nature to all sugery. No new method and no new discovery can overcome the natural difficulties that attend a wound of the heart. It is true that heart suture has been vaguely proposed as a possible procedure, and that it has been done in animals, but I cannot find that it has ever been attempted in pratice”.

Na mesma ocasião, a anestesia geral limitava-se ao uso de éter e clorofórmio. “Jusque vers 1910, l'éther et le chloroforme furent les seuls anesthésiques généraux pratiquement utilisés, et c'est au cours de la première guerre mondiale que l'on revint à l'emploi du protoxyde d'azote”, como assinalaria G. Valette (1959VALETTE, G. - Précis de pharmacodynamie. Paris, Masson , 1959.).

Para sublinhar ainda mais o atual descompasso entre prática médica e prática escolar, especialmente na área da avaliação, registre-se que bastaria retocar apenas a forma das citações iniciais deste artigo, para lhes assegurar foros de contemporaneidade. Seria necessário unicamente lhes atualizar a grafia e certas designações, ambas capazes de lhes trair a data. Haveria somente que trocar bedel por inspeto torcida de papel e urna por mostrador da calculadora digital, Lente por Professor, dois vinténs por vinte (?) cruzeiros e Imperador por outra autoridade de proa. Para um toque final de modernidade, a elas seria suficiente acrescentar algum barbarismo da moda de hoje, como “colocar questionamentos”, “repensar discursos”, “otimizar materiais” ou “implementar estratégias alternativas”...

A MUDANÇA SOCIAL ASSEDIA A ESCOLA

“O costume é a rainha do mundo, seja entre os deuzes, seja entre os mortais”. Píndaro, Fragmentos, século V a.c.

Entretanto, desde a época dos testemunhos que abrem este artigo, nossa população expandiu-se com acentuada celeridade, exercendo pressão cada vez maior sobre o sistema escolar. Se em 1890 contávamos apenas cerca de 14 milhões de habitantes, menos de 30 anos depois este total já havia dobrado. E esta dilatação continuaria em ritmo acelerado, para atingir o auge na década de 1950, quando a taxa média de crescimento anual igualou 3,1%. Posteriormente, este índice deveria ceder, para hoje beirar os 2,7%. Sempre, porém, iria manter-se elevado, a intensificar a demanda escolar. Ao longo de todo este período, a proporção dos menores de 20 anos na população total ficaria acima de 51%, até os tendo ultrapassado no recenseamento de 1920, quando alcançou seus 56%. Definiu-se, então, como crônica a nossa carência de escolas e de profissionais habilitados para o magistério.

Enfocando unicamente o ensino superior, note-se que nas últimas décadas sua matrícula registrou aumento impressionante. Em 1939, poucos anos após a criação (por decreto) da nossa primeira universidade, eram 21.235 os alunos matriculados nos cursos de graduação de todo o país; em 1979 esse total já ascendia a 1.311.799, soma que em 1982 iria superar um milhão e meio. Verificou -se, pois, um crescimento igual a 62 vezes em apenas 40 anos. E isto sem incluir os alunos de pós-graduação, cujo número veio exibindo acentuada dilatação, nas últimas duas décadas. No entanto, a avaliação do desempenho de tão extensa clientela prossegue tal como dantes, com as mesmas provas clássicas, que nas condições anteriores talvez pudessem atender à sua população que era bem menor e, de saída, selecionada. “Plus ça change”, comentava Alphonse Karr, ainda no século passado, “plus c'est la même chose” (Le Guepes)...

A par destas modificações quantitativas, que foram compelindo a escola a abandonar várias tradições elitistas, fundas mudanças no próprio estilo de vida foram-lhe impondo uma série de reajustamentos. Teve ela não só de receber cada vez mais alunos, mas também de acolher discentes e docentes com diversidade bem maior de formação escolar (e pessoal).

Abolida a escravatura, substituído o regime monárquico pelo republicano e grandemente avivada a imigração (chamada a repor a mão-de­obra servil, que repentinamente fora derruída), as atividades culturais ganharam alento. A antiga sociedade agrária - e intelectualmente acanhada - dos meados do século XIX foi vendo, então, ampliadas suas necessidades e renovadas suas aspirações. Para isto concorreram bastante os costumes trazidos pelos imigrantes, que, aplicando­se ao comércio e à indústria, instigaram o crescimento urbano. A par disto, paralelamente a suas ocupações profissionais, cultivavam seus hábitos de lazer diferentes dos aqui praticados e nos quais incluíam artes, ginástica, atletismo e uma variedade de desportos (equitação, remo, bocha, cricket, ciclismo). Ainda em 1855, os clubes sócio-culturais que aqui fundavam começariam a difundir essa nova mentalidade. Note-se datar dessa década a Sociedade Germânia, de Porto Alegre, talvez a pioneira nesse campo. Entre essas atividades culturais, a música merecia-lhes tanto cuidado quanto o colégio dos filhos: em 1867, por exemplo, alemães criavam o Clube Mozart, em São Paulo, e pouco depois, na mesma cidade, músicos italianos organizavam o Quarteto Paulista, que tocaria para o público em praças e jardins. No Rio, em Petrópolis, Campinas, Curitiba e em outros centros urbanos maiores, os corais e as Fil'Harmonicas se multiplicavam, apresentando-se regularmente em reuniões sociais.

Nessa nova atmosfera cultural, a escola viu-se premida a mudar. Ao lado dos seus tradicionais estudos humanísticos e literários, herança da educação dos jesuítas, foi tendo de oferecer formação profissional. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, significativamente, data dessa época. Fundou-o em 1856 o arquiteto Bethencourt da Silva, nascido a bordo do navio que lhe trazia os pais, em uma leva de imigrantes europeus. Vale lembrar que bacharelismo e o ensino verba lista ainda custariam muito a perder o prestígio. Somente a partir de 1910 esboçam-se cursos profissionalizantes de nível primário e médio. A partir de 1930 eles iriam tomar impulso, ampliando-se desde 1942, corri suas Leis Orgânicas especiais e a criação de SENAI e SENAC. Mesmo assim, a “formação para o trabalho” só em 1971 apareceria especificada, em texto legal, entre “os fins da educação formal” (Lei 5692).

Bem mais tarde, já no século XX, a aceleração do avanço industrial - e urbano - do país pressionaria a escola a buscar novos rumos. Viu­ se ela, então, obrigada a reformular sua estrutura e o seu funcionamento (este às vezes mais “no papel” que na prática, tomando providências meramente cartoriais). Mesmo assim, resistiu quanto pôde às pressões sociais e ao progresso tecnológico. A ambos, todavia, foi tendo de fazer concessões, por força mesmo da vivência dos alunos, fora dos seus muros, e das solicitações de um mercado de trabalho em rápida transformação. Em nossos dias, sua clientela difere amplamente daquela dos anos 30, quando nossas universidades, começaram a se constituir, pela “incorporação de, pelo menos, três institutos de ensino superior, entre os mesmos incluídos os de Direito, Medicina e Engenharia ou, no lugar de um deles, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras”. Hoje graças à excelência dos modernos meios de telecomunicação, cujo alcance vem sendo muito estendido por satélites artificiais e microcircuitos transistorizados, o aluno do mais remoto povoado chega à sala de aula ciente das “últimas novidades”. Traz outras experiências, novos moldes de comportamento, expectativas e valores diferentes. Vive em um mundo de aparelhos de precisão, que ele próprio utiliza ou cujo funcionamento pode observar com impressionante clareza no televisor, mas vê seus esforços de aprendizagem avaliados na escola de forma obsoleta - e personalista. Mesmo nas regiões mais carentes, cuja renda per capita ainda é várias vezes inferior àquela das nossas áreas metropolitanas, sente o choque entre a objetividade da medida no dia-a-dia e a subjetividade das notas escola res. Percebe a variação dos critérios de um examinador para outro. E, mais grave ainda, observa a instabilidade dos padrões de julgamento de cada examinador, os quais vão flutuando ao longo do dia, segundo seu estado momentâneo de ânimo, isto é, conforme seu cansaço e humor. Embora centenas de pesquisas já tenham patenteado defeitos tão graves quanto estes, suas conclusões ainda não lograram atingir as práticas de avaliação escolar.

Enquanto certos docentes mantêm-se apegados ao passado, cultivando um ensino verbalista e calcado em memorização de informações - objetivo não abertamente declarado, mas posto a descoberto por rápida análise do que “cobram” nos exames - a sociedade vai alterando suas feições. A população se urbaniza, e passa a fazer outras exigências ao sistema educacional. Enquanto que, há apenas 40 anos, só 31% dos nossos habitantes viviam em áreas urbanas, hoje sua proporção já atinge 68% do total. A escola vai, então, sendo forçada a alargar-se e a aumentar o tamanho de suas turmas, com prejuízos para o ensino e para o relacionamento pessoal, decisivo, dos que nela convivem. Tendo, conseqüentemente, exacerbada e sua carência de professores, entrega a cada docente número tão elevado de alunos, que ele sequer o nome lhes consegue aprender. Não obstante, exige que avalie a competência de cada um e, mais ainda, que o faça dentro de minuciosas prescrições legais e administrativas. Só não lhe facilita instrumentos confiáveis para este trabalho, nem o ajuda a preparar-se para a tarefa crucial de controlar o rendimento do próprio trabalho. Mesmo em cursos específicos, de formação do magistério, é recente o estudo das medidas educacionais, apesar de já contar o seu campo com substancial acervo de conhecimentos, técnicas e instrumentos.

O LARGO DESCOMPASSO ENTRE SABER E FAZER

“In education, we continue to be seduced by the equivalent of snake-oil remedies, fake cures, perpetual-motion contraptions, and old wives'tales. Myth and reality are not clearly differentiated; and we frequently prefer the former to the latter”. Benjamin S. Bloon, Innocence in education, 1972.

A agravar este quadro de incongruências, saber e tecnologia avançam em ritmo exponencial, como assinala o físico e historiador Derek de Solla Price (1965)SOLLA PRICE, D. J. - Little science, big science. New York, Columbia University Press, 1965., ampliando o hiato entre os conteúdos ensinados na escola e as práticas por ela adotadas. Segundo o mesmo professor, da Universidade de Yale, a cada dez anos os conhecimentos científicos dobram de vulto, também rapidamente se dilatando o corpo de pesquisadores. Expansão tão célere quanto esta, e sem precedentes no passado, faz de nós contemporâneos de “mais de 80% dos cientistas de todos as eras”. Se de um lado tal fato desdobra muito nossas possibilidades, de outro amplia a responsabilidade dos profissionais a quem a sociedade confia a educação dos jovens.

No século XVII, a revolução científica quase não repercutiu nas técnicas do dia-a-dia, e na segunda metade do século seguinte a renovação das técnicas de produção teve reduzida influência nas ciências. Desde a Segunda Guerra Mundial, porém, ciência e tecnologia caminham juntas, e quase no mesmo passo. O aproveitamento da energia nuclear e o desenvolvimento da informática ilustram claramente sua estreita correlação, evidenciando a velocidade com que a sucessão de conquistas científicas vai originando modificações em nosso meio físico. Mas isto ocorre fora do ambiente tradicionalista de muitas escolas...

É claro que sempre transcorre bom intervalo (por certos autores estimado em cerca de 30 anos) entre a descoberta científica e sua aplicação sistematizada à vida prática. “Se está em vôo”, dizem especialistas em aeronáutica, “já é obsoleto”. Em educação, entretanto, este distanciamento é bem maior e reveste gravidade especial, visto que ela atinge todos, principalmente as novas gerações. Uns atribuem este descompasso a preconceitos, outros à resistência à mudança (ou à inércia), havendo ainda quem o explique pelo “natural” conservantismo da instituição escolar, “criada pela sociedade para lhe transmitir a cultura”. Já o conhecido matemático Caleb Gattegno o explica pela tendência que percebe nos professores “de se deixarem impressionar porém jamais influenciar - pelos resultados das pesquisas”.

Considerando que estas explicações ainda se situam no terreno das hipóteses, também avento a minha: a do excesso de familiaridade com o processo educativo (e, nele, com a avaliação). Esta última já é exercício diário: a todo momento julgamos o valor de objetos, fatos e pessoas, vendo-nos, também, a cada passo avaliados pelos outros. Igualmente, todos educamos e somos educados. Cada um se crê, então, “naturalmente” habilitado ao desempenho de tais funções, embora reconheça a necessidade de preparação específica para outras ocupações, como as de eletricista, ou de bombeiro hidráulico. É que os prejuízos de um curto-circuito ou de um alagamento são imediatos e bem visíveis ... Em Educação, entretanto, os efeitos demoram a aparecer - e são menos palpáveis. Muitos deles só vêm à tona anos depois, quando alunos e mestres já se distanciaram. Os erros demoram então muito mais a se evidenciar (pelo menos aos olhos de quem os comete...). Além disto, como o processo educativo envolve múltiplas variáveis, seus insucessos podem ser imputados a extenso rol de fatores, entre os quais condições que independem de nós. “Os alunos vêm sem base”, “a mocidade de hoje não quer estudar” ou “minha matéria é difícil e por isto reprova tanto” são exemplos de racionalizações comuns. A situação lembra o conselho de Mark Twain: só faça previsões para daqui a cem anos; assim não terá de responder por elas" ...

O leitor interessado em pesquisas sobre cursos de aperfeiçoamento didático para professores universitários e sobre a imagem que deles fazem participantes e não-participantes, encontrará farto material, principalmente a partir de 1970, em periódicos especializados, como a Review of Educational Research, Higher Education, Harvard Educational Review ou Research in Higher Education. Entre os artigos recentes, destaco o de B.B. Koering (1980KOERIN, B. B. - Teaching effectiveness and faculty development programs: a review. The Journal of General Education. University Park, Pa, 32 (1): 40-51, 1980.), Teaching effectiveness and Faculty development programs; a review, que analisa numerosos estudos anteriores. Entre os fatores desfavoráveis, salienta a pequena credibilidade que os docentes universitários interrogados demonstraram em relação às vantagens de tais cursos. “Para quem me rejeita”, já avisava Mário de Andrade (1922) em Paulicéia Desvairada, “trabalho perdido explicar o que antes de ler já não aceitou”. Em outras palavras, como lembrava Einstein, “é mais fácil desagregar um átomo que um preconceito”. Ressalve-se, contudo, que, dos numerosos estabelecimentos de ensino superior consultados por J. A. Centra (Faculty development in higher education, 1978), apenas em pouco mais da metade haviam-se organizado cursos dessa natureza para os professores. Na resenha mais completa e atualizada de que disponho, a saber, Improving college teaching a critical review of research, J. Levinson - Rose e R.J. Menges LEVINSON-ROSE, J. e MENGES, R. J. - Improving college teaching: a critical review of research. Review of Educational Research , 51 (3):403-434, 1981.examinam 71 relatórios de pesquisas sobre o tema, concluindo que: “apesar das falhas metodológicas evidenciadas por alguns estudos, são eles capazes de oferecer boa orientação para o planejamento de programas de aperfeiçoamento didático”. Entre os novos procedimentos que investigaram, destacam a contribuição positiva das avaliações do ensino feitas pelos alunos, em resposta a questionários especiais. Levados ao conhecimento dos professores, por meio de resumos escritos, ou de conversa direta com o grupo, seus resultados orientam o reajustamento dos procedimentos e do material didático. Outros achados muito favoráveis foram os referentes aos cursos intensivos voltados para a discussão de conceitos relevantes à ação educativa. Mais relatos de investigações poderão ser facilmente localizados pelos grandes Centros de Dados, como o Educational Resources Information Center (ERIC), o Comprehensive Dissertation Abstracts e o Psychological Abstracts, bem como na Bibliografia Brasileira de Educação (INE P/MEC).

Contudo, em contraposição aos numerosos educadores que participam de cursos deste tipo, ou das próprias pesquisas experimentais na área didática, outros tantos sequer se interessam por eles. “Ensino deste jeito há anos; não há de ser agora que vou mudar” dizem alguns. “Aprendi assim e deu certo; não vejo porque ir atrás de novidades”, comentam outros: “Não me interessam essas teorias de educação, aprendizagem e avaliação; quero coisas práticas, que poupem tempo e energia” falam outros, tipicamente preocupados apenas com o como, imediatista. Despreocupando-se do exame fundamental dos para quê, dos porquê e dos porquê não, perguntam simplesmente: “Mudar agora, depois de tantos anos de magistério?!” Pena é que não ouçam respostas tão esclarecedoras quanto as que seus alunos lhes poderiam oferecer. A cátedra parece induzir pronto esquecimento das críticas e queixas do tempo de aluno . . . E deste modo, fechando olhos e ouvidos à realidade, malbaratam esforços, próprios e dos seus alunos, enquanto a eficiência do trabalho escolar vai ficando muito aquém das possibilidades dos que nele se envolvem.

A RESISTÊNCIA À MUDANÇA

“Lister's first papers describing his method and its success appeared in 1867. [...] The Hungarian obstetrician Ignaz Semmelweiss and the American anatomist and writer Oliver Wendell Holmes had clearly shown in the 1840s that puerperal fever was carried on the hands of their doctors. Simple washing in chlorinated lime solutions was extremely successful in Semmelwels' wards, but his Viennese colleagues and the world paid scant heed. Thus it was left to lister to doggediy convince the world that wound infection was evil, not laudable, and that it could be effectively prevented... The acceptance of listerism […] was uneven and, io our eyes, with the advantage of retrospective view, quite slow. [...]. In the decade after Lister's momentous papers on the efficacy of anti­sepsis there was still much reticence [...] about accepting the method as well as its theoretical foundation, the germ theory of disease.” Gert H. Brieger, The development of surgery, apud Sabinston, 1972SABINSTON Jr., D. C. (ed.) - Textbook of surgery. Philadelphia, W. B. Saunders, 1972..

Não obstante tal descaso de muitas escolas, desde fins do século passado, a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia já principiavam a oferecer bons subsídios à prática educativa. Graças à sua rigorosa aplicação do método científico e à adoção de procedimentos experimentais, conseguiram desenvolver-se muito, para se consolidarem nas últimas décadas. As novas técnicas de tratamento quantitativo de dados múltiplos - como análises fatoriais, de variância e de regressão múltipla - também contribuíram grandemente para a evolução das ciências do comportamento humano, às quais abriram novas possibilidades. Entre os fatores do seu progresso, sobressaem: a expansão da estatística inferencial, notadamente no campo das pequenas amostras (com menos de 30 casos); o apoio crescente oferecido pela Biologia, que, paralelamente ia logrando maior desenvolvimento; e a difusão do emprego de computadores eletrônicos, que facilitaram o controle simultâneo de muitas variáveis e que, pela rapidez com que processam dados, possibilitaram a pronta reprodução de pesquisas, para a contraprova dos achados.

A integração dos conhecimentos, técnicas e instrumentos destas ciências da educação, tendo em vista sua aplicação metodizada à prática, deu origem à moderna tecnologia educacional. Firmada a partir da década de 1950, com os trabalhos de Skinner, a nova tecnologia conta hoje largo acervo de informações, procedimentos, recursos materiais de apoio e instrumentos de mensuração, de que os professores se podem valer para aperfeiçoar ensino/aprendizagem/avaliação. Servindo-se deles ao planejar e conduzir o processo educativo, bem como ao julgar o valor dos seus resultados, conseguirão desenvolver seu trabalho sobre base científica (e mais segura). Desafortunadamente, porém, em que pesem às atuais facilidade de disseminação da informação, muitos ainda desconhecem a extensão e as ramificações do campo da nova tecnologia. Creem-na limitada a recursos materiais, como rádio, televisão, cinema ou computador. Quando se lhes fale em “renovação didática” pensam mais em alterações de forma que em mudanças substanciais em planejamento do ensino, facilitação da aprendizagem, construção e emprego de instrumentos de verificação dos resultados e em procedimentos de avaliação do produto e do processo. Alguns imaginam-se atualizados nessa tecnologia, porque, em suas aulas, projetam diapositivos, transparências ou filmes, tornaram verde o quadro­negro, dispõem as carteiras mais à vontade e aplicam provas mimeografadas.

Recordem-se a propósito as advertências, feitas há anos por B. S. Bloom (1972BLOOM, B. S. - Innocence in education. School Review, 80: 333-352, May, 1972.), em relação ao estado de “inocência” alegado por muitos profissionais da educação. Falando a seus pares, em solenidade universitária, estranhou ele que, após pelo menos 5000 anos de se dedicarem à formação das novas gerações, delas cuidando em casa, na escola, e no trabalho, os educadores ainda lamentassem “que quase nada realmente se conhece sobre o processo educativo”. Tal queixa representa a seu ver mera racionalização dos seus insucessos, ou uma desculpa para a pronta adoção - e a igualmente rápida rejeição - de “novas panacéias educacionais”. São modismos que, em ondas sucessivas atingem e depois deixam a escola, sem maiores conseqüências.

Comparando práticas educativas a práticas da medicina popular, afirmou “ser-lhe fácil compreender as razões de um leigo comprar falsas curas de câncer”: desenganado pelo médico, ele tenta caminhos que lhe dão alguma esperança. Entretanto, considerou difícil explicar porque “a reputable physician would purchase or advocate a fake cure”. Analogamente, disse não entender como um profissional da educação pode aceitar ou recomendar procedimentos sem base científica.

Para aclarar o que denominou “inocência em educação”, lembrou que, há anos, muitos eram inocentes em relação ao tabagismo. Viam­no apenas como hábito dispendioso ou desagradável, quando muito como vício. Alguns até o admiravam, por julgá-lo másculo, se não sofisticado, porém nele ninguém percebia grandes virtudes. Era tido como pouco mais que matéria de gosto ou de hábito pessoais. Hoje, entretanto, sendo do domínio público a associação entre tabagismo e incidência de câncer do pulmão, perdeu-se a inocência no referente ao fumo. As pessoas podem continuar a usá-lo, mas doravante cientes das possíveis conseqüências desta opção.

Depois de mencionar outros exemplos de perda da inocência (no que diz respeito a fontes de poluição do meio ambiente, a danos provocados por radiação e a efeitos negativos de determinadas medidas econômicas e sociais) apontou sete áreas da educação nas quais os educadores já deveriam ter perdido a inocência, por força dos achados das pesquisas. Entre elas destacou as seguintes: diferenças pessoais no processo de aprender (vários estudos tendo evidenciado a existência de diversos ritmos e de estilos individuais de aprendizagem); relações entre ensino e aprendizagem (não fluindo esta última necessariamente daquele, o que vem suscitando numerosas pesquisas sobre a preparação para o magistério e a seleção de professores); amplitude e diversidade dos objetivos do ensino (que englobam alvos nos domínios cognitivo, psicomotor e afetivo de personalidade do aluno); discrepâncias entre o currículo proclamado e o currículo latente (nitidamente configuradas nas aprendizagens concomitantes às da matéria ensinada, e que se traduzem em interesses, atitudes, hierarquia de valores etc, tácita, e não raro inad­vertidamente, inculcados na escola); e o papel da escola na sociedade em geral (a sofrer e, por sua vez, a influenciar necessidades, expectativas e aspirações de grupos como o familiar, o profissional, o de idade, o sócio-econômico etc).

A verificação da aprendizagem e a avaliação do rendimento escolar mereceram-lhe especial citação. Na primeira, ressaltou o papel desempenhado pelas provas (“o setor técnico mais desenvolvido de todos os relacionados à educação”), ressaltando sua “profunda influência em muitas decisões educacionais”. Na segunda, estendeu-se sobre a repercussão das notas e das avaliações feitas pelos professores na saúde mental dos alunos.

O IMPACTO EMOCIONAL DA AVALI AÇÃO ESCOLAR

“There is considerable evidence that repeated success in school over a number of years increases the probability of the student's gaining a positive view of himself and high self-esteem. Similarly, there is evidence that repeated failure or low performance in school increases the probability of the student's developing a negative view of himself and a lowered self-esteem” B. S. Bloom, Innocente in education, 1972BLOOM, B. S. - Innocence in education. School Review, 80: 333-352, May, 1972..

O papel que um certificado de escolaridade desempenha no acesso a oportunidades profissionais e, mesmo, a posições sociais amplia a carga emocional que já envolve as notas escolares, por sua óbvia associação com sucesso e insucesso. De meros símbolos criados para indicar, sumariamente, o nível de desempenho nas tarefas acadêmicas, não raro elas se transformam, aos olhos de alunos, família e comunidade, em julgamento de valor do estudante como pessoa. “Ele é mau aluno” é observação que comumente acaba por transcender a simples apreciação do seu domínio da matéria, para significar juízo a respeito do aluno em si. Extrapolações assim aumentam de importância à medida que a comunidade vai dando mais prestígio à formação escolar e nela investindo maiores recursos, para também intensificar a cobrança do retorno que espera desta aplicação.

Para fazer face a tais exigências de melhor qualidade de ensino, a sociedade canaliza recursos para a pesquisa educacional (que entre nós só tomou impulso na década de 1950, com a criação de Centros Regionais de investigação pedagógica, filiados ao órgão federal, instalado em 1938, o então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação e Saúde). Entre os objetos de atenção destes estudos, destaco o domínio afetivo - a área mais nobre da nossa personalidade. Seu relacionamento com ensino/aprendizagem é de importância crítica. “Tout raisonnement se réduit à céder au sentimento” ressaltava Pascal há mais de três séculos, em Pensées, 4.

Nesse terreno das relações entre o desempenho escolar e traços da personalidade de alunos e professores, em particular na área de sentimentos e emoções, há muito vem-se desenvolvendo estudo sistemático. Entre pesquisas desta natureza - cada vez mais numerosas - destaco o trabalho pioneiro, do ponto de vista de sistematização, de R. Stagner (1933), que nos EUA analisou, embora sem resultados concludentes, a influência de características pessoais como extroversão, equilíbrio emocional e outras no rendimento do aluno, e a investigação realizada no mesmo país por D. Ryans (1938) sobre a correlação entre notas escolares e persistência, que apresentou resultados significantes. Saliento, ainda, o estudo de K. Torshen (1969), que, em tese defendida na Universidade de Chicago, mostrou como se poderia prever o nível do rendimento na escola a partir da mensuração do conceito que cada um fazia da própria competência intelectual e acadêmica. No mesmo ano e no mesmo país, V. Crandall (1969) registraria a superioridade do desempenho acadêmico dos estudantes que tenham expectativa mais elevada de êxito. Ainda na área do auto-conceito, N. Entwistle e D. Entwistle (1970) assinalariam, em trabalho publicado na Inglaterra, a presença freqüente nos estudantes com boas notas escolares de uma visão afetiva favorável de si mesmos e das próprias capacidades.

Aprofundando estes estudos, E. Kifer (1977KIFER, E. - The impact of success and failure on the learner. Oxford. Pergamon Press, 1977.) realizou pesquisa de dois estágios, em escolas norte-americanas, utilizando instrumentos cuidadosamente validados e calibrados para medir auto-estima, conceito das próprias capacidades e situação do locus de controle em relação aos próprios resultados acadêmicos. Apoiando-se, ainda, no histórico escolar dos 420 alunos de suas duas amostras, observou os efeitos cumulativos (desencadeados ao longo de anos de escola) do nível do rendimento de cada aluno sobre sua auto-imagem e sobre a maneira pela qual percebia sua competência pessoal. Entre as conclusões que relata, avulta a da repercussão nos resultados obtidos na escola de expectativa que cada qual desenvolve em relação ao próprio grau de sucesso, tomando por base o que sua experiência escolar lhe ensinou. Nas palavras de Kifer, “junto com o sucesso nas tarefas propostas pela escola, vão-se configurando características positivas de personalidade; junto com o malogro escolar, vão­se moldando níveis mais baixos de respeito a si mesmo e às próprias capacidades. E estas relações ganham força à proporção que o êxito (ou o fracasso) se vão repetindo (e acumulando), dando origem a moldes coerentes de resultados favoráveis (ou desfavoráveis)”.

Mais recentemente, na Austrália, analisando uma série de investigações a esse respeito, C. West, J. Fish e R. Stevens (1980) encontraram correlação significante, para p<0,05, entre auto­conceito e rendimento escolar, com coeficientes que iam de 0,50 a 0,18. No mesmo país, em minuciosíssima análise de 128 estudos, que envolveram mais de 68 mil alunos, B. Hansford e J. Hattie (1982HANSFORD, B. C. e HATTIE, J. A. - The relationship between self and achievement/ performance measusures. Review of Educational Research, 52 (1): 123-142, 1982.) registraram correlação média positiva entre rendimento acadêmico e auto-percepção. Exercendo rigoroso controle de variáveis como sexo, idade, ano escolar, nível sócio-econômico, grau de calibração dos instrumentos utilizados, procedimentas metodológicos etc., encontraram coeficientes médios de correlação entre 0,21 e 0,26, isto é, uma variância comum entre os dois fatores em apreço que ia de 4 a 7%. Embora positivos, e significantes, coeficientes baixos assim hão de estar relacionados às dificuldades de comparação dos 128 estudos, que usaram metodologias distintas de coleta de amostra e de tratamento dos dados, porém sobretudo conceituação diversa de auto-imagem e de auto-estima. Não obstante tantas discrepâncias patenteou-se a associação entre o conceito que cada pessoa faz de si mesma e das próprias capacidades e os resultados que consegue na escola. Achado de tão grande seriedade deveria instigar os educadores à procura urgente de aperfeiçoa­ mento das práticas de avaliação e dos instrumentos em que ela se esteia.

OS INSTRUMENTOS TRADICIONAIS DE VERIFICAÇÃO DO RENDIMENTO ESCOLAR

“Nas lojas examinamos com atenção os objetos à venda, mas quando se trata de pessoas julgamos pela aparência”. Aristipo de Cirenaica, IV a. C. (Apud Diogenes Laercio, Philosophes II).

Todavia, quem examinar as práticas de avaliação escolar, correntes entre nós, escassa melhora nelas perceberá. No mais das vezes continuam a apoiar-se nas mesmas provas clássicas - orais, práticas e escritas - cuja validade e precisão já tiveram suas sérias limitações amplamente identificadas. Persistem-se em informações sobre o rendimento do aluno colhida com instrumental pouco adequado e mal calibrado, o que significa ser grande a margem de erro com que trabalham.

Os instrumentos tradicionais de verificação da aprendizagem ressentem-se da subjetividade da sua leitura, da influência excessiva que permitem ao fator sorte e da sua freqüente inadequação aos propósitos declarados (Em outras palavras, não satisfazem os requisitos básicos de qualquer instrumento de mensuração: precisão e validade). Nas palavras de C. Fleming (1958FLEMING, C. - Teaching: a psychological analysis. London, Methuen, 1958.), ao resumir os achados de centenas de investigações, feitas em países da América e da Europa, a atribuição de notas “a respostas dadas sob forma dissertativa acusa incoerência significante entre um e outro examinador, bem como entre o julgamento das mesmas provas pelo mesmo examinador em ocasiões diferentes”. Se cada professor atribui notas diferentes a uma prova e se um mesmo professor discorda de nota que a ela conferiu dias atrás, que confiança as provas discursivas podem merecer. A questão passa a girar muito mais em torno de quem irá corrigir a prova e de quando o fará (antes ou após o almoço? pela manhã ou ao fim de longas horas de trabalho?).

No que diz respeito à influência da sorte (que, de resto, está presente em toda a vida, antes mesmo do nascimento), ela atua intensamente desde a escolha das poucas questões que as provas clássicas conseguem propor, no tempo de que dispõem. Com sua reduzida (e freqüentemente aleatória) amostragem de todo o campo abrangido pela matéria, prejudicam a aferição dos conhecimentos dos examinados. O aluno médio que tem noções básicas de todas as unidades - pode nelas sair-se bem pior que um afortunado colega, que só domina bem alguns pontos, mas que encontra um deles na prova. Igualmente, as condições de espírito do examinador, ao julgar cada resposta, e a própria ordenação ocasional dos folhetos de prova (que pode situar provas muito boas junto a outras fracas, ou somente regulares, a lhes acentuar os contrastes) repercutem na avaliação, como as pesquisas mostram.

Toda esta contaminação da medida lhe eleva as possibilidades de erro e baixa o nível fiduciário do instrumento. A quem ocorreria cronometrar provas olímpicas (semelhantes a algumas vistas em certas universidades) utilizando um relógio de sol? Entretanto, com recursos tão falhos reprovam-se alunos por frações mínimas de nota e, não raro, os que copiam respostas de outros recebem nota mais alta que eles (talvez porque, tendo apenas que “passar a limpo” um texto, o façam com letra mais bonita...). E as provas orais, que não deixam vestígios?

São defeitos evidentes - e evitáveis - conhecidos de todos - e há longa data. Basta ter sido aluno (ou ter filhos na escola) para os observar, e saber que a nota talvez dependa quase tanto da escolha do estabelecimento de ensino, do curso, do horário (fator condicionante da designação dos professores) e, até, do momento da entrega da prova (junto com colegas fracos, para colher benefícios da comparação?), quanto da dedicação ao estudo. Já em 1905, E. KirmissonKIRMISSON, E. - Précis de chirurgie infantile. Paris, Masson, 1905., da Faculdade de Medicina de Paris, deplorava, no prefácio de seu livro Précis de Chirurgie infantile, “le bachotage des examens”. Protestava contra essa preparação açodada, feita com o auxílio de manuais para ela especialmente preparados, capazes de dar apenas ao estudante “um verniz superficial, que talvez lhe permita passar em um exame, mas que não lhe deixa nenhuma noção duradoura e fecunda para o seu futuro”. Registre-se, a título de curiosidade, a inclusão desde 1892 da palavra bachotage no dicionário, com a explicação: “preparo apressado e superficial para o exame de baccalauréat” (título que, na gíria estudantil, corresponde a bachot). O correspondente em inglês - cramming - vem do antigo anglo-saxão to cram, comprimir, “como ao estudar intensiva e apressadamente para um exame”, esclarece o verbete.

Saliente-se que estes problemas continuam florescentes, não obstante os achados das pesquisas sobre tais provas escolares. Já no século passado, o estatístico F. Edgeworth (1888) publicava trabalhos sobre as questões discursivas (e o reduzido crédito a que podiam fazer jus), no Journal of the Royal Statistical Society (apud Fleming, 1958FLEMING, C. - Teaching: a psychological analysis. London, Methuen, 1958.). Pouco depois, o médico e educador J. Rice (1893), inspirando-se nos trabalhos experimentais de psicólogos alemães (H. Ebbinghaus e W. Wundt, 1879) faria extenso levantamento das provas utilizadas nas escolas norte-americanas, concluindo, da análise dos seus resultados, ser preciso melhorá-las, dando-lhes feição “mais objetiva”. Ele próprio construiria questões deste tipo e as aplicaria com êxito. Desde então, os estudos sobre o problema vêm­se aprofundando e desdobrando, a revelar grandes possibilidades de aperfeiçoamento dos instrumentos (provas diagnósticas e prognósticas, de hétero e de auto-avaliação), mas sobretudo a urgência de melhorarmos o instrumental em que a escola firma sua avaliação. (O leitor interessado achará excelente material informativo nas duas obras de N. L. GageGAGE, N. L. (ed). - Hanolbook of research on teaching. Chicago, Rand Mac Nally, 1963. apontadas na bibliografia). Não obstante mais de um século de investigações e o desenvolvimento da tecnologia educacional, o descompasso entre prática e teoria, nessa área, ainda é enorme. Se deixássemos de lado as conquistas da medicina, da telecomunicação, ou da informática, nos últimos dez anos, nossa vida material mudaria muito; se adotássemos postura semelhante em relação à educação formal, praticamente nada mudaria na escola.

DO “OLHÔMETRO” AOS TESTES PADRONIZADOS

“Eis o início da filosofia: reconhecimento dos conflitos entre os homens, busca de suas causas, condenação da simples opinião (...) e descoberta de um padrão de julgamento. Epicteto, Manuel d'Épictète, século I.

Entre o olhômetro, tão comum em exames práticos, e os testes padronizados, que até oferecem normas para a comparação dos resultados de cada examinando com os obtidos por diferentes grupos (de idade, grau de escolaridade, nível sócio-econômico etc) há toda uma série de gradações. Inspirando-me em fases que muitos distinguem na evolução da ciência, proponho o escalonamento a seguir das provas escolares (e para o qual agradeceria críticas e contribuições de professores e alunos).

Fase mágica: provas improvisadas, mas que prestigiam mistérios (quanto ao que irão sondar e quanto aos critérios de julgamento das respostas), instigando práticas de adivinhação e cuidadosa transmissão de sabedoria acumulada pelos mais velhos (quais as “manias” de cada examinador, como lhe propiciar o beneplácito e o que fazer para lhe evitar censuras, e o correspondente desconto de pontos); ritual inflexível de sorteio de pontos (a assegurar má amostragem da matéria), de uso exclusivo de papel almaço, de proibição de rasuras, de consulta a fontes de informação (a reforçar a necessidade de decorar fórmulas mágicas), cronometragem rigorosa do trabalho (alheia às diferenças individuais de rapidez de reação); confusão entre hierarquia de saber e hierarquia de poder, observado nas decisões sobre as condições de realização de prova, da maneira de calcular as notas e da forma de comunicação dos resultados; julgamento sumário e ligado a impressões gerais.

Fase empírico-artesanal: provas montadas na hora, com questões escolhidas (não mais sorteadas) em um cadastro (algumas tão reincidentes que qualquer segundanista delas poderá dar fiel notícia aos recém-vindos); seleção das perguntas subordinada às preferências pessoais de cada examinador, sem a preocupação de sondar toda a matéria ou sequer seus pontos básicos; questões bem amplas, se não vagas, do tipo “Comentar...”, “Discorrer sobre...”, “Discutir...”, “Explicar...” etc., que dão margem ao aluno para alongar-se em generalidades, utilizar textos decorados (que pode nem ter compreendido), fazer citações que impressionem (principalmente se forem de autores de preferência do examinador), recorrer a “nariz-de-cera”, estender-se em sinônimos e paráfrases e, como Proteus, a quem atribuo pioneirismo nesta estrátegia, mudar de forma para escapar aos pontos duvidosos; julgamento condicionado às idiossincrasias (ou preconceitos ?) do examinador e à sua escala pessoal de valores (que será mais importante ? respostas concisas, ou extensas, medidas em centímetros ? linguagem simples, ou rebuscada ? frases diretas, ou circunlóquios ?); escalas personalistas de notas, cada docente situando o ponto zero onde quer e utilizando quantos degraus prefere (notabilizando-se alguns pela minguada extensão da sua escala, que jamais ultrapassa o 6.o ou 7.o degraus); atribuição de notas pela estranha soma de pontos conferidos às variáveis mais díspares (como domínio da matéria e conduta em sala de aula; atualização no assunto e legibilidade da escrita, interesse do enfoque e limpeza da prova); despreocupação com o possível significado desta exdrúxula combinação de julgamentos, mas rigorosa prefixação do total de pontos para a aprovação (não obstante cada examinador colocar sua escala de notas em altura diversa, reprovam-se alunos por questão de décimos, como se os instrumentos de verificação comportassem leitura desta precisão); atribuição de pesos diferentes a questões (e a erros) apoiada em opiniões pessoais dos examinadores (a permitir ganhos de causa em pedidos de revisão de notas); demora na atribuição de notas (o que concorre para a flutuação, dos critérios, ao longo das semanas que se sucedem às provas); comunicação sumária das notas à Secretaria e aos alunos.

Fase tecnológica: provas organizadas segundo preceitos técnicos sempre aperfeiçoados, que incluem: organização de um esquema básico que possibilite a amostragem de toda a matéria e uma distribuição das questões proporcional à importância relativa das unidades, tudo isto subordinado aos propósitos, previamente definidos, da verificação; especificação dos objetivos cuja consecução a prova procura averiguar (deles dando ciência aos alunos, com boa antecedência); formulação das questões apoiada na especificação dos objetivos e no nível de dificuldade previsto para o grupo em causa; enunciado simples, direto e conciso das questões, cuja dificuldade reside no conteúdo e não na forma; cuidados que assegurem a objetividade do julgamento das respostas, em obediência a critérios prefixados (e conhecidos antes pelos alunos), e também aos níveis mínimos de aceitação, igualmente definidos antes da aplicação da prova; rápida entrega dos resultados aos alunos, seguida de sua análise com eles, tendo em vista aproveitar essa oportunidade ímpar de localizar dúvidas e as dirimir; estudo dos resultados obtidos pelos alunos individualmente e pela turma, com o fim de obter informações capazes de orientar a condução de ensino/aprendizagem; crítica do próprio instrumento, destinado a lhe apurar níveis de validade, precisão, dificuldade e discriminação e identificar procedimentos capazes de aperfeiçoar tais condições.

Fase crítico-filosófica: provas diversificadas segundo os propósitos a que precisam servir, tecnicamente bem construídas e validades, que se articulam umas com as outras e todas com os procedimentos de avaliação do sistema educacional, formando um todo integrado, capaz de fornecer informações apropriadas e confiáveis aos que devem tomar decisões relativas à educação; voltando-se para o exame de fins, meios e resultados, este sistema de avaliação exerce controle permanente tanto do processo educativo, quanto de sua produção, levantando continuamente dados que vão realimentatar o trabalho e lhe permitir aperfeiçoamento gradual; alunos, professores, diretores e toda a comunidade participam ativamente desta apreciação crítica, que sobre todos incide e que encontra bons subsídios na auto-avaliação de cada participante; instalações, equipamento e material didático são também avaliados, com vistas ao seu melhor aproveitamento, ou aos reajustamentos que se impuserem. Currículo, cursos, programas, métodos didáticos, experiências de aprendizagem e procedimentos de avaliação também permanecem sob crítica constante, apreciação que se estende além da escola, para acompanhar os que dela saem, por conclusão do curso, ou por outros motivos.

(Continua)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1982
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