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AVALIAÇÃO TECNOLÓGICA EM SAÚDE

Resumo:

O autor discute a Avaliação Tecnológica em Saúde (ATS) buscando contextualizá-la no processo de decisão médica e em suas interfaces com a formação médica e a prática profissional.

Discute a instúiciência do paradigma biomédico quer seja como poder explicativo para o processo saúde-doença, quer seja para responder com eqüidade e integralidade às necessidades humanas e sociais de saúde.

Reconhece finalidade e intencionalidade na escolha e no uso de tecnologias em saúde.

Conclui pela necessidade de que a ATS se constitua em um Programa integranteda política científica do setor saúde, nos marcos dos direitos e necessidades individuais e sociais e dos princípios éticos da sociedade.

Summary:

The autl1or discusses Health Technology Assessment in the context of the decision-making process and its interfaces with medical training and professional practice. He maintains that the biomedical paradigm is incapable of either explaining the health/disease process or responding fully and equitably to human and social health needs.

He acknowledges both the intent and intentionality in the choice and use of health technologies. The article concludes that there is a need for Health Technology Assessment to become an integral program in scientific policy for the health sector, within a framework of individual and social rights and needs as well as ethical principles pertaining to society.

Introdução

A Medicina moderna tem alcançado formidáveis resultados no decorrer deste século como, por exemplo, a redução da mortalidade e da morbidade das doenças infecciosas, o prolongamento da vida e, até, a cura de algumas modalidades de câncer, a aplicação de cuidados intensivos a pacientes graves, o transplante de órgãos e tecidos, etc. Grande parte destes avanços devem ser creditados ao dcesenvolvimento de vários campos do conhecimento científico dentro e fora da Biologia e à tecnologia gerada a partir desses conhecimentos.

Esses avanços vêm introduzindo importantes modificações na prática médica, com conseqüentes repercussões no ensino e na organização dos serviços de saúde.

Além disso, tem gerado também, problemas de natureza social, econômica e ética na medida em que introduzem novos comportamentos, maiores gastos e criam novas e complexas situações para a vida cotidiana das pessoas, das famílias e da própria sociedade.

A partir dos anos 70 deste século a Avaliação Tecnológica em Saúde (Health Tecnology Assessment) surge como um novo campo de atividade que pode ser compreendido tanto como uma atividade acadêmica (pesquisa em saúde), quanto uma atividade técnica de assessoria a órgãos de decisão política.

Como atividade acadêmica, entendemos que a Avaliação Tecnológica em Saúde poderá vir a ter uma grande importância no Brasil e o nosso propósito é discutir alguns princípios e critérios a partir dos quais poderá se tomar um importante instrumento reordenador da prática médica, da educação médica e da organização dos serviços de saúde, dependentes entre si.

Educação, prática e organização dos serviços

A interdependência entre a Educação Médica, a Prátca Médica e a Organização dos Serviços de Saúde, defendida por VIDAL (199213. VIDAL, C. La Educación Médica, Los Cosias e La Calidad de la Atencion. Rev. Bras. Educ. Méd., 16(1/3):01-100. jan./dez. 1992.), aponta para o fato de que não se pode analisar qualquer um desses fatores sem levar em conta os demais. O autor acentua que a decisão médica, representando a expressão concreta da produção dos serviços de saúde, é o elemento central para onde confluem o problema educativo e a prática profissional. A decisão médica, que supostamente goza de grande autonomia, resultado de uma concepção ligada à prática de Medicina liberal, é, na verdade, o elemento determinante central dos procedimentos que constituem a assistência médica. Porém, a dita autonomia é mais aparente do que real, de vez que é indispensável reconhecer a existência de condi­ cionantes externos derivados de processos sociais, que lhe dão forma.

Esses condicionantes são de natureza política e econômica (as concepções e os modelos de desenvolvimento e progresso): científica (o paradigma que orienta a reflexão, a pesquisa e a prática) e ética (os contratos implícitos e explícitos da vivência social).

Nesse sentido, a decisão médica está hoje imersa na crise do modelo de desenvolvimento econômico e tecnológico hegemônicos. De um lado do conflito está o modelo atual que, segundo a lógica do mercado, transforma o usuário dos serviços de saúde em consumidor: do outro lado, está o princípio da eqüidade, como valor social. indispensável ao pleno exercício da cidadania.

O complexo médico-industrial moderno que integra esse modelo, responde hoje por uma parcela significativa da produção e do comércio internacional de medicamentos, dispositivos e equipamentos - denominados insumos ou tecnologia - influindo fortemente a atividade econômica, em todos os países, sobre a decisão médica. Porém, nesse caso, permanece o espaço de conflito, sendo a lógica do mercado mediada pelo poder que o médico detém na determinação do uso desses produtos e recursos, seja pela tradição de seu papel na sociedade, seja pelo aval dado por esta mesma sociedade ao estatuto científico da sua prática. Desse modo, é ainda a decisão médica um elemento fundamental a movimentar esse imenso arsenal de recursos tecnológicos hoje existentes, cujo uso pode resultar em benefícios, ser inócuo ou produzir catástrofes tanto no plano individual, quanto no coletivo.

Assim, a decisão médica articulando a interdependência entre educação médica, prática médica e organização dos serviços de saúde, se transforma numa questão fundamental, tanto para o processo de incorporação de tecnologias, quanto para a inovação tecnológica em Medicina. Neste sentido, a Avaliação Tecnológica em Saúde (ATS) ganha uma dimensão estratégica, no contexto da Reforma Sanitária posta para o Brasil, na qual o direito à saúde constitui o princípio básico.

As bases atuais da decisão médica

A decisão médica está fortemente determinada por dois fatores principais: a racionalidade científica do modelo biomédico e as concepções que orientam o atual modelo de desenvolvimento e progresso. É importante assinalar que tanto um quanto o outro destes determinantes, adquire suas condições de possibilidade na mesma conjuntura histórica. Conforme assinala JAPIASSU (1985)07. JAPIASSU, H. A Revolução Científica Moderna. Rio de Janeiro. Imago, 1985., não temos o direito de separar os fatores intelectuais de seu enraizamento histórico concreto. As condições históricas reais que possibilitaram o nascimento da ciência moderna, coincidiram com o nascimento do capitalismo. Este, por sua vez, engendrou o atual modelo de desenvolvimento e progresso.

A racionalidade do modelo biomédico, cuja matriz fundadora está na revolução científica do Século XVII, passoua constituir-se no novo paradigma para a Medicina. A concepção cartesiana da separação corpo/mente fez com que os médicos fixassem suas preocupações nos aspectos físicos e orgânicos da doença, vinculando toda a idéia de progresso da Medicina ao desenvolvimento dos conhecimentos biológicos, concepção esta que foi sendo cada vez mais legitimada pelos conhecimentos gerados nas diversas disciplinas da Biologia.

O desenvolvimento da Fisiologia no século XVII. através dos estudos de Harvey sobre a circulação sangüínea, a teoria microbiana de Pasteur no século XlX e o método experimental nos trabalhos de Claude-Bernard, também no século XIX, contribuíram para a consolidação do pensamento mecanicista na Medicina.

CAPRA (1982)03. CAPRA, F. O Punto de Mutação. São Paulo, Cultriz, 1991., ressalta o aparecimento, no século XVII, do que chamou de “contra-movimentos”, como a Homeopatia que, no entanto, não conseguiram sobrepujar, sequer fazer face, ao caráter hegemônico do pensamento mecanicista baseado no conceito de causalidade que constituía, e ainda constitui, a questão fundamental não só da Biologia como, também, da Ciência como um todo.

O conceito de causalidade está intimamente vinculado à noção de controle da natureza e representou, para além do paradigma da ciência moderna, uma verdadeira revolução cultural, de vez que tal conceito faz parte da compreensão geral que tem a sociedade de sua relação com o conhecimento, com a técnica, com a natureza, finalmente, com a própria vida.

Este talvez seja o aspecto central da questão aqui abordada. A racionalidade científica tomou-se a base sobre a qual a sociedade realiza suas escolhas. Desta forma, a sociedade legitima a razão científica como base da decisão médica.

Legitimada pela sociedade, pela comunidade científica e pelo mercado gerado pelo complexo médico-industrial, a decisão médica passa a constituir-se num instrumento de auto-alimentação e de perpetuação desse modelo, cada vez mais caro e, portanto, mais seletivo em relação a amplas camadas da população, de certas sociedades.

A propósito, vale destacar a reflexão apresentada por Hylary Rose e Steve Rose em “The Radicalization of Science” citada por MENDELSHON (197810. MENDELSHON, E. História da Ciência e Estudos em Política Científica. In: Anais do Seminário Internacional de Estudos sobre Política Científica. Rio de Janeiro. CNPq, 1978.), onde os autores questionam “se a natureza da verdade da ciência não seria apenas o consenso correntemente adotado entre os cientistas atuantes?”. Se a verdade científica pode representar apenas o consenso de uma comunidade específica, a “comunidade cientifica”, seria profundamente parcial ao adotar esta racionalidade como critério exclusivo de legitimidade. Até porque se pode identificar hoje, em diferentes sociedades, a presença de laços e conexões que articulam a comunidade científica, setores empresariais e setores da burocracia governamental, em redes de interesses, nem sempre representativos das necessidades sociais.

Impactos e questionamentos - “O Estado da Arte”

O grande impacto do modelo biomédico sobre a prática médica foi, inicialmente, a unificação da linguagem clínica, incorporada da Biologia. A seguir, a especialização permitiu o aprofundamento de conhecimentos específicos sobre o corpo humano e, ainda, a organização e sistematização desses conhecimentos para a prática.

A linguagem unificada e a especialização contribuíram para a criação de urna certa ordem institucional, sem dúvida responsável por importantes conquistas no campo do conhecimento, do diagnóstico e do tratamento das doenças e tiveramo papel de estabilização da atividade médica. Esta ordem foi construída e predominou sem contestações e de acordo com a idéia de causalidade, sendo muito bem representada e fundamentada no modelo das doenças infecciosas.

FUNCK-BRENTANO (1990)04. FUNCK, BRETANO, J. L. Le Grand Cheamhardement de la Medicine. Paris, Editions Odile Jacas, 1990., discutindo este tema, chama a atenção para uma questão crucial na etapa da estabilização, relativa aos tempos históricos da Medicina. Naquele momento, o tempo do nascimento e da morte conservavam seu caráter pontual. O tempo de evolução de uma doença ajudava a assegurar a validade de um diagnóstico.

O tempo de evolução do conhecimento era, entretanto, lento, permitindo a cada geração assimilar, sem muito esforço, os progressos alcançados pela Medicina e as tecnologias médicas utilizados no lidar, no trato dos pacientes.

A descoberta dos antibióticos constituiu um momento revolucionário na prática médica, não somente pelos resultados relativas à cura das doenças infecciosas mas, principalmente, pelo questionamento radical do processo saúde-doença imposto pelo seu modelo.

As doenças crônico-degenerativas passaram a ter maior significação para a Medicina a partir de então e não se enquadram no modelo de causalidade das doenças infecciosas. Este passa a ser posto em questão pelo discurso da Medicina Social, pela insuficiência de seu poder explicativo para os fenômenos ligados a essas “novas” doenças. O aspecto evolutivo dessas doenças depende da eficácia do tratamento. Torna-se mais difícil estabelecer um prognóstico. Torna-se possível o prolongamento da vida, produtiva inclusive, mesmo na presençada doença. Os tempos da Medicina se modificaram radicalmente e, com isso, há a necessidade de se rever os seus conceitos.

O nascimento e a morte não são mais fenômenos invioláveis no seu tempo. As técnicas de fertilização “in vitro” e a possibilidade de manipulações genéticas alteraram, de forma radical o caráter natural do fenômeno do nascimento. De outro lado, a possibilidade de prolongar a vida através de vários métodos como próteses, transplantes etc, romperam com a naturalidade da morte.

Tod a esta Tecnologia. resultado do desenvolvimento da Biologia e da associação com outros ramos do conhecimento, principalmente a Engenharia Eletrônica, a Ótica, a Informática, alterou a linguagem da clínica, retirando sua autonomia.

A linguagem médica foi numerizada, não só pela necessidade de sua representação em gráficos, imagens, computadores mas, também, pela economia pois esta revolução tecnológica impõe custos crescentes ao seu próprio desenvolvimento.

Aqui, outra vez o tempo. O espaço de tempo cada vez menor entre a pesquisa e a inovação acelera enormemente a incorporação de novas tecnologias e provoca a obsolência dos até então incorporados pela prática médica. Toda esta mudança tecnológica interna à prática médica repercute no campo institucional, exigindo novas tecnologias de gerenciamento.

Conhecimento e tecnologia gerados no marco positivista da ciência, ainda predomina. Positivista enquanto referido à concepção de neutralidade do conhecimento científico.

Este marco positivista atende, de certo modo, às exigências postas à Medicina, enquanto prática técnica voltada ao conhecimento e à cura das doenças. Entretanto, adotá-lo pode significar a renúncia ao objeto de estudo “processo saúde/doença” e que contempla condições sociais, econômicas e ambientais. Esta renúncia, conforme destaca GONÇALVES (1990)05. GONÇALVES. R. B. M. Investigação. Epidemiologia e Prática Médica a Propósito das Doenças Crónico-Degenerativas. In: Epidemiologia: Teoria e Objeto. São Paulo, HUCITEC/ ABRASCO, 1990., antes de significar uma presumível impossibilidade epistemológica, significa a subordinação do raciocínio às possibilidades de intervenção previamente definidas. E os critérios que podem definir previamente a escolha de um caminho, abandonando outros possíveis, são necessariamente políticos.

Enquanto objeto de estudo o “processo saúde/doença” se reveste de grande complexidade, posto que inclui outras categorias de análise, além das consideradas na concepção posítivista. Aqui, torna-se necessário tomar como referência o processo social como um todo, onde o modo de produção, as relações sociais, as condições de vida e de trabalho, o acesso à educação, à cultura e ao lazer, enfim dentro de um marco conceitual onde a vida é Biografia e, portanto, História (para utilizar um conceito de ORTEGA Y GASSET -196311. ORTEGA Y GASSET, J. Meditação da Técnica. Rio de Janeiro, Ibero-Americana Ltda. 1963.) e não apenas Biologia.

Assim, o grande avanço alcançado pela Medicina biológica, não é suficiente para dar conta dos graves e crescentes problemas de saúde que atingema maior parte da população. A desigualdade sócio-econômica torna os menos favorecidos mais suscetíveis às mesmas doenças e, ao mesmo tempo, mais distantes da possibilidade de alcançar os resulta dos positivos do desenvolvimento científico e tecnológico.

Avaliação tecnológica

A palavra Tecnologia foi utilizada até aqui sem que fosse conceituada. Consideramos, neste ponto, necessário desenvolver algumas reflexões antes de delimitar o conceito de Tecnologia.

O Office of Technology Assessment (OTA), órgão do Congresso Norte-Americano, assim definiu Tecnologia Médica: “o conjunto de técnicas, medicamentos, equipamentos e procedimentos utilizados por profissionais de saúde no oferceimento de cuidados médicos aos indivíduos e pelos sistemas nos quais tais cuidados são ofertados”.

LITTENBERG (1992)08. LITTEMBERG, B. Technology Assessment in Medicina. Academic Medicine, 6(7): July, 1992. propõe incluir neste conceito a ampla gama de serviços prestados aos pacientes por outros profissionais (enfermeiros, dentistas, nutricionistas etc), o próprio hospital como local de prestação de serviços e a relação médico-paciente.

Outra definição proposta pela OPAS considera Tecnologia como sendo “essencialmente informação incorporada em elementos tão tangíveis como são os instrumentos, equipamentos, medicamentos e outros insumos materiais; em procedimentos e práticas que configuram a atividade em saúde; em instrumentos normativos que prescrevem condutas e comportamentos, em habilidades e desempenho do pessoal e em base de dados e outras fonnas de conservação e difusão da informação” (retirado de MARQUES, 199109. MARQUES, M. B. Ciência, Tecnoloia, Saúde e Desenvolvimento Sustentado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 1991. (Série Política de Saúde. n.11).).

Parece clara. em todas estas definições, a preocupação de buscar um conceito abrangente que permita incorporar as diversas dimensões da Tecnologia.

No entanto, a definição da OPAS ao considerar Tecnologia como “informação incorporada...” é a mais adequada aos marcos a que nos propusemos, posto que além de englobar produtos e processos contempla a finalidade e a intencionalidade da informação.

O que é tecnologia médica

A expressão Avaliação Tecnológica - A. T. - (Technologycal Assessment) foi utilizada pela primeira vez em 1965 pelo comitê de Ciência e Astronáutica do Congresso Norte-Americano (GOODMAN, 1992). Ela significava a necessidade que tinham os congressistas de considerar as implicações de ordem social econômica e legal associadas a qualquer de suas decisões em relação ao desenvolvimento de programas tecnológicos. Para isso foi, posteriormente, criado, no ano de 1973, o Office of Technology Assessment (OTA), e que estabeleceria seu programa no campo da saúde em 1975 (MARQUES, 199109. MARQUES, M. B. Ciência, Tecnoloia, Saúde e Desenvolvimento Sustentado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 1991. (Série Política de Saúde. n.11).).

O escopo desse organismo foi estabelecer um plano de ação que permitisse o exame sistemático dos efeitos que podem provocar na sociedade uma tecnologia a ser intro­ duzida, expandida ou modificada, especialmente quando suas conseqüências são desconhecidas, indiretas ou tardias. O objetivo da Avaliação Tecnológica seria, então, o de identificar problemas sócio-econômicos e ambientais direta ou potencialmente ligados ao desenvolvimento tecnológico e, por outro lado, produzir informações para o público e para o governo, as quais iriam permitir decisões sobre políticas de pesquisa e de desenvolvimento e alocação de recursos respectivos.

Nesse sentido, a Avaliação Tecnológica adquire um significado muito mais amplo do que a aplicação de métodos que possam ser utilizados para a análise de aspectos específicos do uso de determinada tecnologia. Por exemplo, as análises clássicas de eficácia, eficiência, efetividade, custo, custo-beneficio, custo-efetividade, ensaios clínicos controlados, entre outros, não dão conta, senão que parcialmente, dos objetivos da Avaliação Tecnológica, conforme expresso anteriormente.

Se Avaliaçio Tecnológica significa a construção de elementos que vão possibilitar decisões políticas e que tais decisões impliaca em efeitos sobre indivíduos, a sociedade e o ambiente, então este processo precisa estar claramente demarcado por uma visão de mundo e, portanto, contém uma filosofia.

A atual visão positivista pretende imprimir à ciência e à tecnologia um caráter de neutralidade; com isto corre-se o risco de atribuir à Avaliação Tecnológica um caráter exclusivamente técnico e instrumental.

Porém, para efeito da discussão aqui apresentada, preferiu-se adotar uma conclusão de MENDELSHON (197810. MENDELSHON, E. História da Ciência e Estudos em Política Científica. In: Anais do Seminário Internacional de Estudos sobre Política Científica. Rio de Janeiro. CNPq, 1978.), onde afirma que “as características da epistemologia - o modo de conhecer - e os mecanismos de formação do conceito e da técnica e, assim sendo, as estruturas cognitivas da própria ciência, são construídas socialmente; que ciência e tecnologia não são neutras, nem destituídas de normatividade, mas que, como todas as maneiras humanas de ordenar a realidade e de compreender dados - na verdade como todas as formas culturais - elas, ciência e tecnologia, são geradas em contextos sociais e históricos com valores e interesses sociais incrustados em suas estruturas”.

Portanto, ciência e tecnologia são coustruções humanas que, embora procurem lidar com os “fatos” e “dados”, foram construídas com base em uma idéia de valor básico.

Assim, para se conduzir um estudo adequado sobre Avaliação Tecnológica é necessário pré-estabelecer sob que princípios este estudo será desenvolvido e a quais critérios deve obedecer.

Em busca de princípios e critérios para um programa de Avaliação Tecnológica em Saúde no Brasil

Tendo como referência a ciência e a tecnologia como cultura, com binômio social e historicamente determinado, só se pode pensar em princípios e critérios para a Avaliação Tecnológica a partir da sua vinculação a determinados interesses.

Se admitirmos, como o fizemos, existir na tecnologia intencionalidade expressa pelo conceito de “Informação incorporada”, a análise da Avaliação Tecnológica em Saúde não pode deixar de considerar o jogo de interesses que perpassa o campo da saúde em uma dada sociedade.

PANNERAI e MOHR (198912. PANNERAI, R. B., & MOHR, J. P. Health Technology Assessment. Methodologies for Developing Countries. Washington, D. C., PAHO, 1989.) reviram amplamente as metodologias usuais em Avaliação Tecnológica em Saúde e apresentaram descrição de algumas delas. O que se pode concluir analisando estas descrições é que estas metodologias, em geral, constituem abordagens parciais do problema estudado, não contemplando suas diferentes dimensões e complexidade.

O enfoque privilegiado dado na avaliação tecnológica em geral aos elementos de eficácia, segurança e custo, são insuficientes quando se trata de Avaliação Tecnológica em Saúde, posto que nesta última é necessário considerar os impactos sociais, legais, éticos, ambientais e culturais.

Por exemplo, os métodos utilizados para a avaliação de eficácia de drogas, equipamentos e procedimentos, não são suficientes por si só para assegurar a neutralidade e, portanto, a confiabilidade de seus resultados. Isto porque em geral estes estudos são realizados no contexto restrito de eficácia clínica e, ao assim fazê-lo, se renuncia (no sentido já mencionado) a incorporar outros elementos envolvidos, especialmente de ordem política e ética. Assim, esta avaliaçcão perde sua autonomia e se toma caudatária de decisões em outras esferas não contempladas pelo modelo de análise adotado.

Outro aspecto importante diz respeito à transposição direta dos resultados das Avaliações Tecnológicas em Saúde feitas em um país desenvolvido para outros países, prática frequente no processo de incorporação de tecnologia nos países em desenvolvimento, como o Brasil.

BANTA E ANDREASEN (199001. BANTA, H. D. & ANDREASEN, P. B. The Political Dimension in Health Care Technologies Programs. Int. Journal of Technology Assessment in Health Care, 6:115-129, 1990.) ao enfatizar a dimensão política da Avaliação Tecnológica em Saúde defendem que esta seja sempre abrangente, conquanto realizada no plano governamental, ou no plano organizacional (hospital, clínicas etc). Assim caracterizam, de acordo com MARQUES (199109. MARQUES, M. B. Ciência, Tecnoloia, Saúde e Desenvolvimento Sustentado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 1991. (Série Política de Saúde. n.11).), uma forma de pesquisa política, examinando conseqüências de curto e longo prazos das aplicações tecnológicas, necessariamente produzindo informações e sugestões políticas visando a promoção, ou o desaconselhamento destas aplicações.

Nesse sentido, a Avaliação Tecnológica em Saúde passa a adquirir a dimensão de um “Programa” ligado às atividades de Pesquisa e Desenvolvimento no setor saúde, tendo em vista finalidades sociais a cumprir.

Assim, adotaremos dois princípios fundamentais para este “programa”: o da saúde como direito de cidadania e o princípio da tecnologia apropriada.

Quanto ao primeiro trata-se, em alguns países, apenas de uma declaração já acatada pela maioria, ainda que seja um fato prático longe de ser alcançado, ou ainda a existência formal de políticas públicas formuladas com implementação arrastada ou inexistente.

Quanto ao segundo, é necessário não confundí-lo com a idéia de tecnologia “simplificada”.

O enfoque de tecnologia apropriada, aqui adotado, está proposto por MARQUES (199109. MARQUES, M. B. Ciência, Tecnoloia, Saúde e Desenvolvimento Sustentado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 1991. (Série Política de Saúde. n.11).) com base na análise da experiéncia latino-americana dos anos 60 e 70, que consta do documento “saúde para Todos no Ano 2000” - Estratégia da OPAS/OMS (Doc. Ofício nº 173).

Este estudo constatou que a transferência de tecnologia era o mecanismo generalizado de incorpornção e desenvolvimento tecnológico adotado na região e consistia na aceitação passiva e indiscriminnda de tecnologias, criando um alto grau de dependência.

Esta dependência gera vários inconvenientes entre eles: o alto custo (monopólios e oligopólios que atuam no setor), inadaptabilidade às condições locais, a seletividade em relação ao usuário (inacessibilidade) e, fundamentalmente, a obstução da criação de condições endógenas para a absorção, adaptação e desenvolvimento de tecnologias médicas.

Assim, o conceito de tecnologia apropriada não significa adoção de altrnativas para “pobres” ou “incompetentes”.

A tecnologia apropriada é um enfoque global de prioridades médico-sanitárias, fundamentado na Avaliação Tecnológica em Saúde, como pesquisa política seletiva e sistemática em serviços de saúde.

A partir destes conceitos um programa de Avaliação Tecnológica em Saúde deve considerar os seguintes critérios, tomados em conjunto:

  1. Relevância: Diz respeito à adequação da tecnologia em responder satisfatoriamente às necessidades, aspirações e interesses da sociedade em suas demandas imediatas e expectativas futuras, compatibilizando as prioridades políticas com grau de organização dos serviços e os recursos existentes.

  2. Pertinência: Diz respeito, essencialmente, ao componente ético envolvido, não somente do ponto devista do questionamento da neutralidade da ciência mas, essencialmente, em relação aos seus limites e seus fins. A este respeito vale registrar a advertência de BERLINGUER (199202. BERLINGUER, G. Bioética Cotidiana e Bioética de Fronteira. In: Saúde Coletiva: questionando a onipotência do social. Rio de janeiro, Relume / Dumara, 1992.), que afirma que a velocidade com que se passa da pesquisa pura à aplicada hoje já é tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo de erros ou fraudes, pode provocar catástrofes.

  3. Eqüidade: Diz respeito à acessibilidade igualitária para toda a sociedade dos conhecimentos, produtos e serviços disponvíeis para a manutenção, ou recuperação, de sua saúde, de acordo com os recursos disponíveis.

  4. Eficácia e Efetividade: Referindo-se aqui ao fato de serem alcançados os objetivos propostos. Entretanto, neste caso. é nccessário explicitar melhor os conceitos a fim de também torná-los mais claros como critérios. O Office of Technology Assessment (OTA) define eficácia como o resultado obtido em condições ideais (estudos de laboratório experimentais, enfim estudos com controles muito precisos das variáveis). Efetividade é definida como resultados obtidos em condições médias, ou abaixo da média. Por esta razão, este parâmetro se constitui no de maior interesse prático para os estudos da Avaliação Tecnológica em Saúde.

A noção de Efetividade se torna estratégica, na medicina em que a diferença entre eficácia e efetividade, ou seja, perda de eficácia sob determinadas circunstâncias, é que permite avaliar se uma tecnologia é ou não apropriada.

Eficiência: Aqui referindo-se mais aos estudos de processos, onde se inclui as análises de custo, custo benefício, custo efetividade etc.

A partir destes critérios um estudo de Avaliação Tecnológica em Saúde bem conduzido deveria apresentar, segundo propõ e GOODMAN (1992), as seguintes características:

  • Ter uma estrutura analítica explícita.

  • Incluir todos os domínios de impacto relevantes (econômicos, sociais, políticos e éticos).

  • Enfatizar os efeitos secundários (não intencionais, não antecipados, sinérgicos ou cumulativos).

  • Identificar claramente os impactos provocados nos grupos ou pessoas diretamente interessados.

  • Considerar os impactos sobre todos os sistemas relevantes (educação, saúde, legislação etc).

  • Ser conduzido por grupos interdisciplinares.

Conclusões

Das reflexões apresentadas podemos mencionar algumas conclusões:

  1. A decisão médica constitui o fator principal a desencadear a mobilização de um enorme arsenal de recursos tecnológicos.

  2. A prática médica, a educação médica e a organização dos serviços de saúde se articulam em torno da decisão médica.

  3. Tal decisão está fortemente condicionada por um lado pelo modelo de racionalidade científica e, por outro lado, pela lógica do mercado, institucionalizada num complexo médico-industrial.

  4. A racionalidade científica do modelo biomédico, embora seja fator fundamental para o avanço da Medicina, é insuficiente para dar conta da complexidade que envolve a compreensão do processo saúde-doença.

  5. A lógica do mercado quando aplicada à prática médica é geradora de exclusão de grandes contingentes populacionais dos seus benefícios, além de sufocar a tradição humanista da Medicina.

  6. A avaliação tecnológica realizada nos marcos da relevância, da pertinência e da eqüidade, pode ter significação positiva no sentido de reorientar as atividades da prática médica, da educação médica e da organização dos serviços de saúde.

  7. Finalmente, considerando Ciência e Tecnologia como binômio social e historicamente determinado, a Avaliação Tecnológica em Saúde só podeser concebida e obter resultados relevantes na medida em que seja parte de uma Polílica Científica e Tecnológica em Saúde explícita, que leve em conta os interesses da sociedade como um todo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1993
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