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OS OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO MÉDICA

Resumo:

São analisados os objetivos clássicos da educação médica, de natureza cognitiva, psicomotora e comportamental. Considerando que novos conhecimentos testemunham a importância do aspecto emocional no processo de aprendizagem, sugere-se o reconhecimento de um novo objetivo educacional, representado por adequado equilíbrio psicoemocional do educando. Parta tanto, será importante o reconhecimento da ‘ecologia do estudante de Medicina’, com o objetivo de reduzir o fatores de ansiedade envolvidos.

Palavras-chave:
Educação médica; Ansiedade e aprendizagem; Objetivos psicoemocionais do ensino médico

Summary:

Classical objectivities in medical education areanalyzed. New informations are giving evidence about emotional aspects relevance in learning process, supporting the conception of a new objective in medical education, of psycho-emotional content. In this sense it is important a conscient search about anxiety factors that are included in the ‘ecology medicine student’.

Keywords:
Medical education; Anxiety and learning; Psycho-emotional objectives in medical education

Os elementos conceituais básicos podem ser extraídos da contribuição essencial de Bloom et al.22. BLOOM, B.S. cit. por BLOOM, B.S. e col., 1983 (3)., habitualmente lembrados quando se cogita da elaboração de objetivos educacionais. Esses autores extraem de Tyler a afirmação de que "o ensino é um processo sistemático, destinado a auxiliar na produção de modificações no comportamento do aprendiz por meio da instrução". A partir dessa conceituação, Bloom e colaboradores afirmam que "qualquer atividade de ensino que o professor realize tem como objetivo auxiliar o aluno a se modificar de alguma maneira, auxiliá-lo a desenvol­ver uma nova capacidade ou aperfeiçoar uma outro, já existente". Tais elementos conceituais foram desenvolvidos gradualmente, a partir das colocações iniciais de Bloom, em torno do que se denominou "taxonomia dos objetivos educacionais"33. BLOOM, B.S.; HASTINGS, J. T. & MADAUS, G. I. F. Manual de Avaliação Formativa e Somativa do Aprendizado Escolar, Livr. Pioneira Edit., S. Paulo, 1983 (3). num trabalho completado posteriormente por Klathwohl et al.99. KLATWOHL, BLOOM & MASIA. cit. por BLOOM e col., 1983 (3).. Em cima de todos esses elementos é que se costuma identificar como objetivos básicos do ensino médico aqueles de natureza cognitiva, os de natureza psicomotora e os comportamentais.

Já de início será útil recordar que, quase sempre, se fala de processo de ensino-aprendizagem ao se identificar o conjunto de atividades desenvolvidas com o objetivo de conseguir atingir aquelas modificações propostas pelos educadores referidos, que cuidaram de definir objetivos educacionais. No caso da educação médica, é de lembrar também que, quase sempre, se cuida apenas do aspecto contido na expressão ensino, deixando de lado a rica possibilidade de explorar o ângulo representado por aprendizagem. Em outras palavras, o docente preocupa-se mais com seu desempenho pessoal, na aula que vai dar, do que com ludo quanto o aluno poderá aprender, no momento básico do processo, que é o do encontro entre professor e aluno. Na verdade, aprender significa para muitos apenas a capacidade de os alunos repetirem em prova o que tiver sido dito em aula, quando em essência a expressão deve envolver capacidade, por parte dos alunos, de buscar informações, de rever a própria experiência, de adaptar-se a mudanças, de descobrir significados nos seres, nos fatos e nos acontecimentos.

Por tudo isso, entende-se que, para que realmente aconteça, a aprendizagem deve ser significativa para quem aprende, isto é, precisa envolvê-lo como pessoa, como um todo, em suas idéias, seus sentimentos, sua cultura. Tal como importa lembrar que, na medida em que a aprendizagem envolve mudança de comportamento, ela representa um processo pessoal, porque só acontece na pessoa do aluno e pela pessoa do aluno. É então possível começar a esboçar o papel do professor, assumido como o facilitador da aprendizagem de seus alunos. Seu papel não é somente o de ensinar, mas o de ajudar o aluno a aprender; não é apenas o de transmitir informações, mas o de criar condições para que o aluno possa adquirir informações.

O esboço pode ser colorido pela formulação de Masetto1010. MASETIO, M. T. Aulas vivas, MG Edit Assoc., 2a ed., S. Paulo, 1992., quando enumera as característicos do professor: "coerência entre discurso e ação; segurança, abertura às críticas e às propostas dos alunos; capacidade de diálogo; competência específica em sua área de conhecimentos; competência didática; clareza e objetividade na transmissão de informações; preocupação com o aluno e seus interesses; incentivo à participação e capacidade de coordenação das atividades; relacionamento pessoal e amigo; paixão pela docência". Será pedir demais?

No caso do ensino médico, a exploração dos objetivos definidos por Bloom e colaboradores é sempre rica. Falar, então, de objetivos cognitivos é falar de aquisição, elaboração e organização de informações por meio do acesso ao conhecimento existente, mas é também falar da relação entre o conhecimento que se possui e o nove que se adquire, tal como é falar da reconstrução do próprio conhecimento, com significado para si mesmo. Mas desenvolvimento cognitivo é também a avaliação crítica de argumentos apresentados para defesa ou questionamento de hipóteses, bem como o incremento de imaginação e criatividade a serem aplicadas em projetos de pesquisa, seja experimental, seja clínica.

O grande desafio aqui é representado pela extraordinária massa de conhecimentos científicos disponíveis, os quais crescem em ritmo exponencial. Considerando-se apenas os periódicos indexados no ISI (Institute for Scientific Informantion), estima-se que sejam publicados cerca de um milhão de artigos novos a cada ano, o que significa aproximadamente um texto novo a cada 30 segundos55. DE MEIS, L. A Busca do Saber, Médicos MC/FMUSP, 1:30-34, 1998.. A dificuldade reside, pois, na identificação do que é realmente conhecimento novo e do que deve ser selecionado para transmitir ao aluno.

Os objetivos psicomotores no ensino médico representam, por certo, um componente fundo mental da preparação do futuro profissional, correspondendo ao desenvolvimento de habilidades que o aluno já tem integradas em sua personalidade e que poderão ser estimuladas, ou outras, criadas de novo. Desde logo, importa lembrar que habitualmente, quando se fala em habilidades psicomotoras no campo médico, a visão se limita ao campo da cirurgia e, por extensão, ao da obstetrícia. Trata-se, evidentemente, de um reducionismo mental, uma vez que, por exemplo, todos os procedimentos ligados ao diagnóstico, momento básico da relação médico-paciente, envolvem a utilização de habilidades manuais. Deixando de lado os procedimentos instrumentais envolvidos nesse momento, importa lembrar todo o desenrolar do exame físico, em que aquelas habilidades são necessariamente postas à prova. Palpação, percussão e ausculta, ainda que com baixa valorização naturalmente, não podem jamais ser esquecidas, quando se pensa na fase inicial da aproximação com o doente, marcada pelo interesse na obtenção de informações básicas. Estas é que irão permitir a definição diagnóstica, sobre a qual será firmada a conduta posterior, incluindo todo o tratamento que deve ser desenvolvido.

É tranquilo o reconhecimento de que o exercício da prática médica, para o qual o aluno de Medicina estará sendo preparado, é essencialmente um encontro entre pessoas: de um lado, o doente, do outro, o médico. Daí a importância de que se reveste a definição de objetivos comportamentais a serem buscados ao longo do processo de ensino-aprendizagem que se desenvolve na escola médica. Falar de relações entre pessoas significa folar do encontro entre valores, próprios e alheios, significa falar da capacidade de ouvir durante a anamnese, mas também significa falar do respeito e da delicadeza que devem presidir a realização do exame físico.

Mais ainda: o doente que chega no consultório, seja aquele luxuosamente instalado em prédio próprio ou aquele despojadamente inserido numa unidade de saúde da periferia, traz consigo todo um processo de regressão psicológica, típico da situação de dependência em que o doente se encontra. E ele poderá sair de lá ou na mesma situação de infantilização ou a caminho da reintegração de sua personalidade, dependendo do comportamento do médico que o tiver atendido. Valerão aí, ao lado da prescrição medicamentosa, mas como verdadeiros componentes do tratamento do doente, a paciência, a discrição, a dedicação, o carinho que lhe sejam dispensados.

Ainda mais: o exercício da prática médica conduz sempre ao contato com outros profissionais, em busca do esclarecimento diagnóstico ou de repartição das responsabilidades envolvidas no tratamento. De novo aqui, um encontro entre pessoas, donde a necessidade de comportamentos adequados, sobretudo baseados no respeito e no espírito de colaboração.

Nos dois exemplos de relacionamento analisados, de relação do médico com o doente e com o colega, o comportamento deverá buscar-se essencialmente em valores éticos e morais a serem buscados, aprofundados e vivenciados. Tais valores serão interiorizados na personalidade do aluno, n partir do padrão de relacionamento que com ele desenvolver seu professor, bem como pelo comportamento do professor diante do doente, num contato que é presenciado pelo aluno. Não é possível esquecer: pelo exemplo se ensina, mas também pelo exemplo se “desensina”.

Nessa linha importa repetir que a aprendizagem é um processo individual e individualizado, tal como é forçoso reconhecer que diferentes pessoas aprendem coisas diferentes por diferentes meios e emtempos também diferentes, o que foz da aprendizagem um processo individualizado. A razão fundamental de tudo isso reside não apenas no equipamento neurológico-mental de que o aluno dispõe, mas também e principalmente em aspectos psicoemocionais com que cada ser humano dá colorido a todas as situações que vive, mesmo na idade emque o estudante de Medicina se encontra

Um dos ângulos do problema é, pois, de natureza psicológica. Aqui começam as primeiras dificuldades, porque pouca gente tem-se ocupado com as características psicológicas dos adultos universitários. As reflexões mais frequentes sobre aprendizagem de adultos referem-se à situação dos que não tiveram possibilidade de frequentar o curso básico e desejam alfabetizar-se depois de adultos. Assim, já encontramos estudos relativos a aspectos da aprendizagem de adultos da chamada "terceira idade". Masetto1010. MASETIO, M. T. Aulas vivas, MG Edit Assoc., 2a ed., S. Paulo, 1992. afirma não ter encontrado nenhum estudo realizado no Brasil que pesquise as características de adulto de nossos alunos universitários e os princípios de aprendizagem próprios dessa situação caractcristica, de adulto-aprendiz.

A literatura internacional oferece algumas pistas. Brookfield44. BROOKFIELD, S. B. Understanding and Facilitating Adult Learning, San Francisco, USP, Jossuey Boss Publ, 1986., buscando identificar características de aprendizagem em adultos, refere contribuições de Simpson, de Cibb, de Brundage & Mackracher e de Smith, que podem ser assim resumidas: os adultos acumularam experiências anteriores, do que resulta preferência por estilos e modalidades diferentes de aprender; eles já exercem múltiplos papéis e diferentes responsabilidades, o que significa uma diferente orientação para a aprendizagem, em comparação com crianças e adolescentes; os adultos aprendem melhor quando assumem responsabilidades sobre o quê, por quê e como aprender e principalmente quando podem controlar os passos de sua aprendizagem; em função do processo e dos instrumentos adotados, os adultos podem ser fortemente motivados para aprender.

Não se imagine que, no se folar emadultos-aprendizes, não se possa estar falando de alunos da universidade e particularmente de alunos das escolas médicas. Miller1111. MILLER, G. E. Ensino e Aprendizagem nas Escolas Médicas, Camp. Edit, Nac. S. Paulo, 1967., em seu livro tradicionalmente utilizado por todos os que se ocupam da educação médica no Brasil, identifica situações ou fatores condicionantes da aprendizagem, necessidade de motivação suficiente para modificar comportamentos; tomada de consciência da inadequação dos atuais comportamentos; necessidade de clareza quanto à definição dos comportamentos exigidos; oportunidade para praticar tais comportamentos; importância do reforço quando da realização do comportamento desejado.

O CONTRATO

Justifica-se, então, a elaboração de Masetto1010. MASETIO, M. T. Aulas vivas, MG Edit Assoc., 2a ed., S. Paulo, 1992. de alguns princípios vinculados ao processo de aprendizagem do adulto e que, aplicados à situação do aluno universitário brasileiro, podem significar condições facilitadoras da aprendizagem. O primeiro de tais princípios é promover a participação, num processo de troca entre aluno e professor e entre colegas da mesma turma. Essa participação não será gratuita, mas deve ser planejada, desenvolvida, conquistada; é certo que alguns docentes têm mais facilidade para conseguir essa situação de aprendizado interativo. Mas resultados positivos podem ser esperados a partir do planejamento do curso e da definição de seu conteúdo, completados pela aplicação, em sala de aula, de estratégias adequadas, visando a criação de um clima de abertura, envolvendo a discussão e organização do processo de avaliação.

Em seguida, valorizar a experiência e a contribuição dos participantes, uma vez que a aprendizagem do adulto está intimamente associada à sua vivência. Por esse caminho desenvolve-se a autonomia do aprendiz, ao mesmo tempo em que surgem pistas mais consistentes, ousadas e desafiadoras para o desenvolvimento do processo.

Dois outros princípios vinculam-se à preocupação de que ao aprendiz-adulto se devem oferecer, logo de início, elementos conceituais sobre os quais se irá apoiar a própria aprendizagem. Trata-se primeiro de explicar o significado do que se pretende desenvolver, reconhecendo que, para aprender, o adulto precisa ser envolvido como pessoa, no conceito abrangente que essa expressão contém. Apenas assim o aprendiz será capaz de identificar questões que o interessem e o envolvam, para colocá-las em discussão no momento oportuno. Na mesma linha, será fundamental definir claramente objetivos e metas, capazes de transmitir ao aluno firmeza e segurança no acompanhamento das atividades programadas, no desenvolvimento das quais ele deverá encontrar resposta para suas necessidades, dúvidas, inquietações e expectativas.

Ao mesmo tempo, será necessário viabilizar recursos adequados e eficientes capazes de permitir que objetivos e estratégias definidos anteriormente possam ser concretizados. Será importante ter em mente que as características diferenciadas dos aprendizes serão mais bem atendidas se houver preocupação no menos com a possibilidade de se dispor de uma variedade de recursos. Os recursos planejados e implementados deverão estar sujeitos a uma avaliação periódica, com vistas a possíveis alterações.

Nessa mesma linha é que se insere a necessidade de criar um sistema de retroalimentação (feedback) contínuo. Trata-se de elemento básico do processo e que já deverá fazer parte da etapa de planejamento do curso, considerando a importância de que se reveste a disponibilidade de informações sobre o caminhar emdireção aos objetivos propostos, a serem oferecidos tanto aos professores quanto aos alunos; dessa forma é que será possível criar oportunidades para corrigir ou redirecionar a rota. Mas essa retroalimentação pode representar também um elemento motivador de progresso do aluno, na medida em que sucessos parciais alcançados poderão representar reforço positivo para o aluno, na linha da conceituação de Rogers tão conhecida. Dessa forma é que assume relevo a possibilidade de avaliações intermediárias, ao longo do processo, em condições de identificar significativas vitórias parciais conquistadas.

Tratando-se de processo voltado para a educação de adultos, será importante a possibilidade de desenvolver uma reflexão crítica sobre o processo em evolução, visando à distinção entre o que pode ser assumido como treinamento, seja físico, seja mental-cognitivo, para o exercício de uma profissão, daquilo que deve constituir a educação do profissional. Os alunos devem ser aqui encorajados a examinar suposições subjacentes à aquisição de habilidades e conhecimentos, procurando identificar alternativas variáveis para os caminhos do pensar e do fazer.

Por último, deve ser procurada a possiblidade de estabelecer um contrato psicológico entre professor e alunos, com vistas a adequar expectativas de ambas as partes, de equilibrar as necessidades do aprendiz e as propostas do professor. Dificuldades maiores poderão situar-se provavelmente do lado do docente, em especial quando se contem pia o quadro habitual do ensino médico. A razão é que, principalmente nas instituições maiores, o desenvolvimento do programa geralmente se baseia na distribuição das diversas aulas que compõem o programa por diferentes integrantes do corpo docente da Disciplina ou do Serviço. Por esse caminho, fica diluída a responsabilidade ou, pelo menos, o compromisso que cada um assume com os objetivos que possam ter sido preliminarmente definidos; existe, então, o risco do desaparecimento do contrato. Avulta, em consequência, o papel que o responsável pelo curso tem que assumir: a ele caberá a tarefa de procurar fazer com que as condições facilitadoras definidos possam estar sendo, tanto quanto possível, implementadas. Haverá, por certo, dificuldades, sejam vinculadas à heterogeneidade dos docentes, apenas variavelmente comprometidos com as diretrizes desejadas para o desenvolvimento do processo, sejam as dificuldades de natureza institucional ou apenas aquelas materiais, ligadas a instalações e equipamentos. Contudo, o contrato poderá ser salvo, ainda que não na íntegra, mas pelo menos em seus compromissos essenciais.

É provável que o obstáculo maior no caminho de um novo posicionamento no âmbito da educação médica esteja situado na visão que o professor tem do aluno, ainda muito perto do que se pode chamar de pós-adolescência. Para muitos, trata-se de crianças, em relação as quais o comportamento é com frequência vinculado a concepções quase medievais do que seja a educação, muitas vezes reduzida a um processo disciplinador. Impõe-se a necessidade de visualizar o jovem estudante de Medicina como pessoa, dotada da capacidade de pensar e de amar, isto é, capacidade de elaborar diálogo mental ou verbal, mas também capaz de sair de si mesma para doar-se gratuitamente. Essa gratuidade é que torna o jovem incompatibilizado com situações de exclusiva defesa de privilégios pessoais ou de injustos desequilíbrios sociais. Com essa pessoa é que se precisa conviver ao longo do processo de ensino-aprendizagem; mas não no sentido de convivência que se confunde com simples cruzamento de dois corpos dotados de mobilidade. O que se deve procurar é atingir uma desejada convivência, que envolve o significado de viver com, buscando melhor conhecimento de personalidade e aprofundamento de relações. Em consequência, o que se deseja é que o ambiente de ensino possa ser um ambiente de real convivência, capaz de possibilitar a rica troca de experiências e a compatibilização entre compromissos do docente e expectativas/interesses do aluno. Entenda-se por ambiente de ensino não apenas a sala de aula, mas os diferentes 1ocnis em que possa ocorrer o encontro professor-aluno.

Nesse viver-com é que será possível identificar aspectos emocionais dos alunos, os quais devem ser reconhecidos como de foto são: "existe evidência isofismável de que a emoção, tanto quanto o intelecto, está envolvida no processo educacional", já afirmava Miller1111. MILLER, G. E. Ensino e Aprendizagem nas Escolas Médicas, Camp. Edit, Nac. S. Paulo, 1967., anos antes do momento contemporâneo, quando os elementos básicos da inteligência emocional vêm sendo tão explorados. Mas acrescenta Miller a respeito do estudante de Medicina: "uma necessidade básica é a da segurança, no sentido de ser aceito como indivíduo diferente de todos os outros, apesar de eventuais fraquezas, erros, fracassos ou excentricidades". Pela importância da contribuição do autor é que vale a pena retomar Miller: "os que acreditam em tudo isso são acusados de estarem mais preocupados com o foto de seus alunos estarem felizes do que estarem aprendendo". A crítica volta-se evidentemente para aqueles que se esquecem de que a felicidade é a mais profunda vocação que o ser humano tem como sinal pessoal, anterior e mais profunda do que qualquer vocação de natureza profissional. A preparação para esta apenas poderá ser implementada se o caminho da felicidade do aprendiz não for sacrificado. Falta, muitas vezes, considerar o que o jovem estudante de Medicina tem dentro de si, como elementos emocionais capazes de condicionar seu aprendizado profissional. Por isso vale a pena pensar sobre o que se pode chamar de "ecologia do estudante de Medicina".

A ECOLOGIA DO ESTUDANTE DE MEDICINA

De início, é importante lembrar a frequência com que é esquecida a circunstância de que, quanto maior for o nível de tensão e ansiedade em que se encontra o aluno, tanto mais trabalhosa será sua aprendizagem. É preciso não esquecer que os estudantes estão, a cada momento, sujeitos a emoções negativas, como angústia, medo e frustração, e que seu aprendizado sofre com isso. As relações interpessoais dentro da instituição ou no seio de uma classe fazem diferença nessa aprendizagem, o que permite deduzir que os alunos terão maior facilidade para desenvolver seu aprendizado na medida em que houver um ambiente de aceitação de sua individualidade, com características próprias a serem respeitadas. Nessa linha, deve-se reconhecer que o jovem de hoje defronta-se com desafios novos que podem inquietá-lo e até angustiá-lo; é o caso, entre outros: no plano cientifico, do acúmulo de conhecimentos a aprender ou registrar; no plano social, a colaboração atuante e lúcida que a comunidade cada vez mais exige dele; no plano pessoal, o desafio de enfrentamento das drogas, seja apenas por imitação, seja como tentativa de superação da tensão/ansiedade que o próprio processo de educação médica pode desencadear.

Alguns desses fatores de ansiedade prendem-se a elemen­tos formais do processo de que ele participa. O primeiro deles refere-se ao currículo médico, no que diz respeito às disciplinas que o compõem, cada qual com peculiaridades que podem desestabilizar em maior ou menor grau o estudante. É certo que o laboratório de anatomia não pode ser eliminado simplesmente porque pode gerar tensão, mas o professor tem que se lembrar de que as visões e os odores, que já não mais o atingem, talvez desencadeiem no aluno mecanismos de defesa, tanto físicos quanto emocionais. A utilização das modernas técnicas de plastinação de cortes anatômicos por certo reduziu esse impacto, mas não superou outros aspectos do problema.

Mais adiante, o primeiro contato com o doente pode encerrar outras dificuldades: de um lado, o levantamento dos dados que configuram a anamnese pode chocar o jovem, por envolver uma nítida invasão da intimidade de uma pessoa com quem está se encontrando pela primeira vez; de outro lado, o exame físico do doente introduz o problema da exposição do corpo humano, em paradoxal conflito com a noção habitual de pudor e recato, o que pode gerar dificuldades. Nem se imagine que a frequente exposição do corpo de modelos e atrizes, que os meios de divulgação favorecem, possa eliminar a dificuldade apontada.

Muitas vezes, por fim, o problema não se situa no conteúdo curricular, mas na maneira como ele é desenvolvido ou apresentado. Com frequência, o processo assume características massificadas, esquecido o professor de que o ensino pode ser feito em grupos, mas que o aprendizado é individual, baseado que está na reflexão e na interiorização pessoal. Por isso, o ensino deverá aproximar-se cada vez mais do "manequim" do estudante, uma espécie de roupa feita sob medida, em lugar daquela fabricada em série.

Igualmente intrínseco ao processo está o fator de ansiedade vinculado ao sistema de avaliação adotado, em particular os aspectos relativos a frequência, ao tipo, ao clima em que se desenvolvem as provas e as verificações. Muitas vezes, esquecem-se os docentes do óbvio, isto é, de que o processo de avaliação não julga exclusivamente o aluno, mas o próprio esquema de ensino e, no fundo, o próprio professor.

Exterior ao processo, mas igualmente condicionante de seu desenvolvimento, está o conjunto de atividades extracurriculares em que o estudante se envolve, desde simples competições esportivas, até compromissos de natureza política a que ele não pode se furtar. Todas essas atividades representam por cerro mecanismos de formação da personalidade do jovem e devem merecer apoio e compreensão. No caso de competições esportivas, deve ser salientada a contribuição que podem trazer para a saúde física e mental do estudante.

Ao se folar em saúde do estudante, outros aspectos devem ser lembrados, em particular no caso de jovens que não residem com sua família, uma vez que a possibilidade de problemas de saúde que podem atingi-los representa potencial fator de ansiedade. O contato com inúmeros agentes patogênicos nos laboratórios de microbiologia e de patologia, bem como nas enfermarias de clínica, particularmente de moléstias infecciosas, pode desencadear momentos de tensão, facilmente compreensíveis.

Na mesma linha de contato com a doença, situa-se a ansiedade que pode dominar o estudante de Medicina diante da simples e dura realidade de que o médico está muito distante da figura mítica de onipotente responsável pela saúde dos que o procuram. A simples verificação de que há doenças para as quais ainda não há tratamento conhecido, ou de que mesmo um excelente médico pode estar pouco informado a respeito de tópicos que se situam fora de sua especialidade ou ainda de que é possível que dois especialistas conceituados divirjam sobre o significado de certos sintomas ou a eficácia de determinado tratamento ou o prognóstico relativo a certo paciente são todos fatores capazes de gerar ansiedade no jovem estudante, pela sensação de malogro que cada uma dessas situações envolve.

A enumeração e a análise sumária dos fatores de ansiedade que compõem o universo do estudante de Medicina, ao lado da consideração de alguns outros elementos que serão a seguir analisados, impõem a necessidade de completar o quadro dos objetivos da educação médica, tal como habitualmente são contemplados.

DESENHANDO UM NOVO OBJETIVO EDUCACIONAL

Com base na tradicional taxonomia de Bloom, costuma­se repetir, sem qualquer questionamento, que o processo educacional tem um tríplice conjunto de objetivos a serem desenvolvidos: aqueles de natureza cognitiva, os psicomotores e os comportamentais, como já foi examinado. Cada vez mais, contudo, vem-se impondo o reconhecimento de que fatores de natureza psicológica e, principalmente, os de natureza emocional, condicionam fortemente o sucesso pretendido ao longo do processo educacional. A presença desses elementos vem sendo valorizada crescentemente, em particular com os avanços do conhecimento sobre ns inteligências múltiplas, especialmente em função das contribuições de Gardner e Golemnn. Tão forte é a influência dos referidos fatores psicológicos e emocionais, que seu conjunto deve ser considerado como condicionante do processo educacional, donde a necessidade de definir novo objetivo que deve ser acrescentado àqueles que Bloom já identificara. Trata-se, então, de propor e analisar objetivos psicoemocionais da educação médica, a serem acrescentados às condições habitualmente lembradas como fatores vinculadores do processo. Para tanto, será importante retomar conceitos e conhecimentos relativos às emoções humanas, às suas formas de expressão e à interferência que podem desenvolver com elementos racionais que comandam o processo de aprendizagem.

É certo que se costuma afirmar que as emoções bloqueiam o raciocínio: o pensamento é rápido quando se está feliz e vagaroso quando se está triste. Em regra, moção lembra movimento, e o prefixo e indica direção para fora; em consequência, pode-se esboçar o conceito de que emoção é um movimento para fora, um impulso que nasce no interior de cada um, colocando-o em relação com o mundo. Personalizando um pouco: "a emoção pode ser suscitada por uma lembrança, um pensamento ou um acontecimento exterior. Informa-nos sobre o mundo que nos cerca mais rapidamente do que o pensamento hipotético-dedutivo. Nossas emoções nos dão nosso sentimento de existência no mundo"66. FILLIOZAT, T. Inteligência do Coração, Edil. Campus, Rio de Janeiro, 1998.. O papel das emoções seria o de assinalar os acontecimentos que seriam significativos para cada um. Algumas vezes, contudo, fatos ou comportamentos geram sentimentos de frustração ou de vergonha de si próprio, os quais podem ser de início inconscientes. Mas, eles não permanecem sempre lá; eles podem minar relações e fazer malograr projetos desejados.

Assim como a forma de expressão do pensamento é verbal, "forma de manifestação mais frequente das emoções é não-verbal. A chave para identificar sentimentos dos outros está na capacidade de interpretar canais de comunicação não-verbais, como tom de voz, gestos, expressão facial, além de outras manifestações. A verdade contida numa frase está mais presente no como ela é dita do que naquilo que é dito. Estima-se que cerca de 90% do conteúdo da mensagem estejam contidos em manifestações não-verbais, as quais, entre­tanto, quase sempre deixam de ser consideradas.

A emoção que assume maior peso atualmente talvez seja representada pela ansiedade, criada por situações com as quais devemos conviver, embora curiosamente ela possa ser desproporcional à realidade ou invocada por resíduos que permanecem na memória e que não correspondem a desafios reais. O preço dessa ansiedade não se traduz apenas em manifestações emocionais, mas pode chegar a situações de agravos somáticos, de gravidade variável. Vale lembrar o quanto se disse a respeito de fatores de ansiedade que pesam sobre o estudante de Medicina, configurando o meio ambiente em que ele vive.

Os autores que se têm ocupado da análise da relação emoção/ aprendizagem afirmam que os sinais de forte emoção, entre os quais ansiedade e ira, particularmente, podem criar uma verdadeira estática neural, reduzindo a capacidade do lobo pré-frontal de manter a memória funcional. Goleman88. GOLEMAN, D. Inteligência emocional, Edit. Objetiva, Rio Janeiro, 1995. afirma que "num certo sentido, temos dois cérebros, duas mentes e dois tipos diferentes de inteligência: racional e emocional. Nosso desempenho na vida é determinado pelas duas - não é apenas o QI, mas a inteligência emocional é que conta. Na verdade, o intelecto não pode dar o melhor de si sem a inteligência emocional".

Na medida em que as emoções prejudicam ou ampliam a capacidade de pensar ou de fazer planos, de solucionar problemas ou de elaborar objetivos a serem alcançados, assume-se que elas definem os limites do poder de utilizar capacidades mentais inatas. Nesse sentido é que se aceita que a inteligência emocional é uma capacidade que afeta todas as outras, facilitando ou interferindo em sua operação.

Pesquisas recentes em neurobiologia sugerem a presença de áreas no cérebro humano que correspondem, pelo menos de maneira aproximada, a espaços determinados de cognição. Mais ainda: os neurocientistas acreditam que as emoções são transmitidas e controladas por um sistema de comunicação localizado no cérebro e dominado pelo tálamo, pela amídala e pelos lobos frontais do córtex, com o apoio de outras estruturas cerebrais e glandulares. Conhecer os aspectos neuroanatômicos das emoções permite perceber que existem dois sistemas pelos quais se desenvolve o aprendizado do controle emocional de uma parte, estruturas que desenvolvem atividades corticais (pensantes) e, de outra, um complexo sistema que se define como o cérebro emocional, essencial mente baseado no sistema límbico. No conjunto, poucas tarefas dependem exclusivamente da atividade isolada de uma região; particularmente aquelas mais complexas exigem a participação de um número considerável de núcleos e de regiões, numa complexa rede de estruturas inter-relacionadas.

Gardner77. GARDNER, H. Estruturas da Mente. A Teoria das inteligências múltiplas, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994. afirma que “há evidências persuasivas para a existência de diversas competências intelectuais humanas relativamente autônomas, identificadas como inteligências humanas, cujo número preciso não foi ainda estabelecido". Forma-se também aos poucos a convicção de que algumas dessas inteligências, que são relativamente independentes umas das outras, podem ser modeladas e combinadas numa multiplicidade de formas adaptativas. Gardner lembra ainda que a posse de uma inteligência deve ser pensada mais precisamente como um potencial, cujo uso não poderá ser impedido por qualquer circunstância.

Das múltiplas inteligências referidas, sele foram já conceitualmente identificadas com mais precisão. As formas de inteligência relacionadas a objeto, na expressão de Gardner, ou seja, a espacial, a lógico-matemática, a corporal-cinestésica, estão sujeitas ao controle exercido pela estrutura e pelas funções dos objetos particulares com os quais o indivíduo entra em contato. As inteligências livres de objeto - a linguagem e a música - não são modeladas pelo mundo físico, podendo refletir aspectos da função dos sistemas oral e auditivo, embora a linguagem e a música possam se desenvolver na ausência das referidas impressões sensoriais. Finalmente, as formas pessoais de inteligência refletem um conjunto de restrições às vezes até rivais, em particular vinculadas à existência da própria pessoa e à existência dos outros.

São numerosas as tentativas de dimensionar ou avaliar o nível de inteligência, sobretudo aquelas baseadas nas Escalas de Inteligência de Wechsler, sobre as quais se construiu o conceito de Quociente de Inteligência (QI). A maioria dos estudiosos está hoje convencida de que o entusiasmo em tomo dos testes de inteligência foi excessivo e que há numerosas limitações nos instrumentos empregados na quantificação do QI e nos usos que às vezes dele se fazem. Embora os testes possam apresentar considerável poder preditivo em relação ao sucesso acadêmico, encerram em geral baixo poder de previsão fora do contexto escolar.

O desenvolvimento dos estudos relativos à conceituação e elaboração da inteligência emocional revela que não existe oposição entre QI e inteligência emocional, embora sejam elementos distintos, que se situam em níveis diferentes. Por esse caminho chegou-se ao interesse pelo desenvolvimento de um Quociente Emocional (QE), baseado na circunstância de que a inteligência emocional pode ser definida como "um subconjunto da inteligência social que envolve a capacidade de acompanhar sentimentos e emoções próprios e dos outros, discernir entre eles e usar essas informações para orientar os pensamentos e as ações". A objeção fundamental no uso do QE situa-se no fato de que não existe ainda teste preciso para medi-lo, ou que, em outras palavras, não se pode imaginar que as emoções sejam mensuráveis. Mas, embora não possa ser medido, o QE permanece um conceito significativo, e as possibilidades indicadas pelo QE não são o oposto daquelas intelectivas identificadas pelo QI; ao contrário, elas se integram em nível conceituai e no mundo real.

As emoções envolvem um duplo movimento, uma espécie de fluxo e refluxo, que se processa dentro de cada pessoa e para fora dela, em sua relação com situações e acontecimentos que envolvem naturalmente outras pessoas. São impulsos que penetram em cada um, são processados em sua intimidade e a seguir refluem para o nível de relacionamento com o mundo e com os outros. Tudo isso constitui o amplo conjunto de processos do que se tem denominado "inteligência pessoal", na verdade, a melhor denominação seria aquela vinculada ao plural, para que se possa apreciar uma inteligência intrapessoal ao lado de outra, de natureza interpessoal. A primeira corresponde à “capacidade de efetuar instantaneamente discriminações entre afetos e emoções, rotulá-los, envolvê-los em códigos simbólicos, basear-se neles como um meio de entender e orientar nosso comportamento”77. GARDNER, H. Estruturas da Mente. A Teoria das inteligências múltiplas, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994.. A outra inteligência pessoal volta-se para fora, para as outras pessoas; a capacidade central aqui é a de observar e fazer distinções entre outros indivíduos, mas principalmente entre seus humores, seus temperamentos, suas motivações e intenções.

Evidentemente, cada forma de inteligência apresenta seu próprio atrativo: a intrapessoal envolve-se principalmente com o exame e o conhecimento que cada um pode ter de seus próprios sentimentos, ao passo que a inteligência interpessoal olha em direção ao comportamento, aos sentimentos e emoções dos outros. Cada forma apresenta sua representação neurológica, mas o motivo de trata-las juntas reside não apenas na facilidade de exposição e simplicidade de compreensão, como também no fato de que nenhuma das duas formas de inteligência pode desenvolver-se sem a outra. Acresce que as pressões para utilizar as "inteligências pessoais" são muito mais intensas do que em relação a outras formas, como a musical ou a espacial. Assim, é excepcional que alguém deixe de tentar desenvolver seu entendimento na esfera pessoal, para melhorar seja seu mundo interior, seja seu relacionamento com os outros.

A retomada dos problemas vinculados à educação médica situa-se no fato de que o conhecimento dos diversos aspectos relativos às diferentes inteligências, principalmente à inteligência emocional, encerra uma proposta necessariamente vinculada a uma conceituação do próprio processo educacional.

Diga-se de início que a educação não é apenas uma transmissão de conhecimento, de uma habilidade ou até de uma conduta, mas principalmente uma iniciação à vida. Daí a precisa conceituação de Saltini, ao afirmar que educar é: "um processo que permite ao homem chegar a ser sujeito de sua própria ação, em harmonia com o si mesmo e não apenas o objeto de outros sujeitos; um meio para que o homem possa se construir como pessoa, em termos de sendo e não de tendo; uma iniciação à crítica, interpretação e transformação do mundo" 1212. SALTINI, C. J. P. Afetividade e Inteligência, AP&A Edit., Rio Janeiro, 1997..

Em concordância com essa conceituação será necessário definir novos paradigmas educacionais voltados para a postura educativa, para os eixos referenciais da educação (informar, pensar, construir, criticar, inovar, inventar, descobrir, transformar), para a consideração dos níveis de autonomia intelectual, moral e de responsabilidade, bem como desenvolver a transdisciplinaridade. Dessa forma, será possível educar um sujeito - no sentido filosófico de quem desenvolve uma ação - dotado de consciência e capaz de uma reflexão sobre o seu meio e de intervir no mundo real para transformá-lo. Nesse quadro estarão implicados aspectos de responsabilidade, ao lado da liberdade e da autonomia. Na verdade, o que se estará procurando é uma educação centrada na individualidade das inteligências de cada aluno, desenvolvendo programas que tornem clara a distinção entre inteligência (potencial biopsicológico que todo ser humano possui, ainda que de formas diferentes) e conhecimento (material com o qual se operam habilidades e se estimulam inteligências). Avulta nessa linha a contribuição do construtivismo, não como método de ensino ou técnica pedagógica, mas como um paradigma aberto para permitir ao sujeito construir experiências que possam ajudá-lo a resolver problemas.

Tudo isso exige e supõe a presença de um novo professor e de uma nova relação professor-aluno. O perfil do professor foi esboçado anteriormente, mas pode ser enriquecido a partir das propostas de Antunes11. ANTUNES, Q. As Inteligências Múltiplas e seus Estímulos, Papirus Edit, Campinas, 1998., com a identificação de algumas marcas essenciais de personalidade e de comportamento. Em primeiro lugar, uma mentalidade aberta, para aceitar com entusiasmo e ousadia sua missão, aliada à capacidade e ao interesse em se relacionar com outras pessoas, mostran­do-se sempre disposto a ajudar o aluno a se construir. Em seguida, uma postura investigativa, baseada na certeza de que não existem limites para o aprendizado, mas, ao mesmo tempo, desprendimento intelectual e espírito de colaboração com a comunidade, tornando públicas suas avaliações e os bons resultados obtidos com as estratégias adotadas. Elevado senso crítico, com disposição para rever procedimentos e reformular conceitos pessoais a partir de novas identificações. Por fim, serenidade para aceitar limitações de toda natureza, reconhecendo que a aceitação de novos desafios e a busca de soluções novas despertam sempre inquietações e rivalidades no meio acadêmico.

Mas, por último e acima de tudo, deve o professor ter incorporada à sua personalidade a sensibilidade para compreender que condições psicológicas e emocionais negativas perturbam o processo de aprendizagem, o que obriga o professor a assumir, como um dos objetivos educacionais a serem buscados, o equilíbrio psicoemocional do estudante. Sem que essa condição seja atendida, haverá dificuldade de grau variável, mas sempre considerável, de adquirir conhecimentos, desenvolver habilidades e incorporar comportamentos, sabidamente os três objetivos tradicionais da educação médica. É o que se procura apresentar na figura 1.

Figura 1

Esse novo professor estará em condições de desenvolver uma nova relação professor-aluno. Esta deverá basear-se naturalmente no conhecimento e na aceitação das realidades biopsicoemocionais do professor e do aluno. Trata-se de duas personalidades colocadas em contato, numa das mais estreitas relações interpessoais existentes. De um e de outro lado existem elementos físicos a serem considerados, bem como condições conjunturais, que irão interferir no desenvolvimento daquela relação. Já se esboçou o perfil desse novo professor, mas a implementação das características apontadas é condicionada por toda espécie de intercorrências que devem ser consideradas.

A complexa relação entre docente e aluno supõe naturalmente o conhecimento pleno da realidade própria e do outro, a fim de que pré-conceitos e pré-juizos não interfiram no processo. É natural que se reconheça a dificuldade contida na aplicação desse e de outros conceitos dentro da realidade de tantas de nossas escolas médicas, em que a relação do aluno se faz a cada dia com um novo professor, ao longo do desenvolvimento de um mesmo programa.

O conhecimento dessa realidade permitirá ao professor preparar e desenvolver recursos e instrumentos capazes de despertar a motivação do estudante. Nesse processo é fundamental a forma como tais recursos são utilizados, essencialmente com autoridade, mas sem autoritarismo. O exercício da autoridade equilibrada envolverá a formulação de limites claros e permitirá desenvolver um ambiente realmente educativo. Nem se pense que o processo educacional de adultos, como são nossos estudantes de Medicina, deva prescindir de uma autoridade equilibrada, capaz de valorizar sua independência, mas também de exigir deles alto padrão de responsabilidade.

Um aspecto importante na relação que estamos analisando reside na abordagem do doente por parte do professor. Há de ser obrigatório o reconhecimento de que se trata de uma pessoa, um ser humano digno de todo respeito, que não pode ser identificado apenas como "aquele caso de hepatite B" ou como o ocupante do "leito 131". A forma de obtenção dos dados da anamnese e "realização do exame físico, presenciadas pelo aluno, são absolutamente decisivas na formação de sua personalidade e na consequente incorporação de comportamentos.

Acima de tudo, entretanto, existe a necessidade de o professor capacitar-se teórica e tecnicamente para o exercício de sua função. Capacitação teórica relativa a conhecimentos básicos de pedagogia, como as teorias de aprendizagem e sua aplicação à educação médica. Capacitação técnica referente à busca do domínio de procedimentos didáticos, destinados a facilitar a aprendizagem, à fixação dos conhecimentos oferecidos e à incorporação de atitudes essenciais ao futuro exercício profissional.

Apenas com a presença desse novo professor e com o exercício dessa nova relação professor-aluno é que será possível conquistar os objetivos psicoemocionais de um novo processo de educação médica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ANTUNES, Q. As Inteligências Múltiplas e seus Estímulos, Papirus Edit, Campinas, 1998.
  • 2
    BLOOM, B.S. cit. por BLOOM, B.S. e col., 1983 (3).
  • 3
    BLOOM, B.S.; HASTINGS, J. T. & MADAUS, G. I. F. Manual de Avaliação Formativa e Somativa do Aprendizado Escolar, Livr. Pioneira Edit., S. Paulo, 1983 (3).
  • 4
    BROOKFIELD, S. B. Understanding and Facilitating Adult Learning, San Francisco, USP, Jossuey Boss Publ, 1986.
  • 5
    DE MEIS, L. A Busca do Saber, Médicos MC/FMUSP, 1:30-34, 1998.
  • 6
    FILLIOZAT, T. Inteligência do Coração, Edil. Campus, Rio de Janeiro, 1998.
  • 7
    GARDNER, H. Estruturas da Mente. A Teoria das inteligências múltiplas, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994.
  • 8
    GOLEMAN, D. Inteligência emocional, Edit. Objetiva, Rio Janeiro, 1995.
  • 9
    KLATWOHL, BLOOM & MASIA. cit. por BLOOM e col., 1983 (3).
  • 10
    MASETIO, M. T. Aulas vivas, MG Edit Assoc., 2a ed., S. Paulo, 1992.
  • 11
    MILLER, G. E. Ensino e Aprendizagem nas Escolas Médicas, Camp. Edit, Nac. S. Paulo, 1967.
  • 12
    SALTINI, C. J. P. Afetividade e Inteligência, AP&A Edit., Rio Janeiro, 1997.

Renato Morretto1

1Professor Titular de Pediatria e Coordenador Pedagógico da Faculdade e Medicina de Campos.

O texto “Os Objetivos da Educação Médica” nos foz pensar que o ser humano é, de todos os seres de criação, o que nasce mais desprovido, necessitado de maiores cuidados para sobreviver. Por outro lado, é o mais capaz de alcançar um nível de desenvolvimento rico em extensão e profundidade. Cada indivíduo cresce e se desenvolve em padrões únicos, singulares e integrados, e as necessidades humanas são reorganizadas, em progressão contínua.

Dentre as necessidades do ser humano, há um nível mais alto e complexo, que é a busca do respeito e estima, além da necessidade de auto-realização, que se fará, sobretudo, pela educação, que é um processo de individualização ou de auto-realização do indivíduo.

No processo ensino-aprendizagem, o encontro do professor com o aluno poderá representar uma situação de intercâmbio bastante proveitosa para ambos, na qual o conhecimento será construído em conjunto. Para haver um processo de intercâmbio que propicie a construção do conhecimento, é preciso que a relação professor-aluno tenha como base o diálogo. É por meio do diálogo que professor e aluno constroem juntos o conhecimento, chegando a uma síntese do saber de cada um.

Quando o professor concebe o aluno como um ser ativo, que formula idéias, desenvolve conceitos e resolve problemas da vida prática por meio de sua atividade mental, a relação pedagógica muda. Não é mais uma relação unilateral, em que um professor transmite verbalmente conteúdos já prontos a um passivo que memoriza. O aluno exerce sua autoridade mental sobre os objetos quando compara, classifica, ordena, seria, sintetiza, deduz, propõe e conserva hipóteses, avalia e julga.

Porém, nesta virada de século, quando tudo parece desestruturar-se, recompor-se para a chegada do novo milênio, a “questão da inteligência”, que desafiou o início do século, aflora com novo vigor e dinamismo. Howard Gardner afirma a existência de um leque de competências intelectuais, humanas: as "inteligências", cujas manifestações são muitas. Elas constituem as dimensões lógico-matemática, linguística, musical, espacial, corporal-cinestésica, interpessoal e intrapessoal.

Como bem nos coloca o professor Ernesto Lima Gonçalves, não podemos mais ver as questões ensino-aprendizagem sem considerar uma visão pluralista da mente. Se inteligência é a capacidade de resolver problemas, como agem os cirurgiões, os músicos, os clínicos, os marinheiros e tantos outros?

Sabemos que os fatores emocionais, aliados aos intelectuais, condicionam fortemente o sucesso ou o fracasso do aprendizado. Razão e emoção são indissociáveis. É preciso harmonizar mente e coração, o que significa utilizar nossa emoção inteligentemente.

A vida sem o colorido das emoções seria insípida. Os motivos que orientam nossa vida são de ordem tanto emocional como intelectual. Ligamo-nos com as coisas do ambiente afetivamente e emocionalmente.

Todo o sistema educativo precisa ser revisto, porque, para aprender, as emoções se fazem presentes. O aluno precisa aprender a conhecer-se, a partilhar, a pedir, a recusar, a ouvir e a empatizar. As emoções, portanto, contam para a racionalidade. Na dança de sentimento e pensamento, a faculdade emocional guia nossas decisões a cada momento, trabalhando de mãos dadas com a mente racional e capacitando, ou incapacitando, o próprio pensamento. Do mesmo modo, o cérebro pensante desempenha uma função executiva em nossas emoções - a não ser naqueles momentos em que os emoções escapam ao controle, e o cérebro emocional corre solto.

Num certo sentido, temos dois cérebros, duas mentes, e dois tipos diferentes de inteligência: racional e emocional. Nosso desempenho na vida é determinado pelas duas - não é o QI, mas a inteligência emocional que conta, Na verdade, o intelecto não pode dar o melhor de si sem a inteligência emocional. Em geral, a complementaridade do sistema límbico e neocórtex, amígdala e lobos pré-frontais significa que cada um é um parceiro integral na vida mental. Quando esses parceiros interagem bem, a inteligência emocional aumenta e também a capacidade intelectual. Isso subverte a velha compreensão da tensão entre razão e emoção e, em seu lugar, como queria Erasmo, busca encontrar o equilíbrio inteligente das duas, O velho paradigma defendia um ideal de razão livre do peso da emoção. O novo nos exorta a harmonizar cabeça e coração. Fazer isso bem em nossas vidas implica que precisamos primeiro entender com mais exatidão o que significa usar inteligentemente a emoção.

Dentro deste novo paradigma, há que haver novo professor, uma nova relação professor-aluno. Além dos conhecimentos, habilidades e atitudes, haverá que se construir um novo profissional. Cabe-nos perguntar: como capacitar teórica e tecnicamente o professor para o exercício de sua "nova" função?

Emirene Maria Trevisan Navarro da Cruz2

2Professora Titular de Psicologia Médica. Chefe do Depto. De Psiquiatria e Psicologia Médica. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - SP.

É grata satisfação comentar artigo do professor Emesto Lima Gonçalves, com seu "apaixonamento" pelo educar, mostrando ser o novo professor que ele propõe, interessado na "pessoa" do aluno, com a sabedoria de se colocar como eterno aprendiz na incessante busca do saber maior.

O artigo, de início, lida com os objetivos educacionais propostos por Bloom et al.1, colocando, em seguida, com pertinência que, para a consecução desses objetivos é de suma importância reconhecer a aprendizagem como processo ativo e individualizado. Aliás, as novas metodologias priorizam o ensino centrado no aluno, considerado como ativo cogestor do próprio aprendizado.

Freud5 assinalou que só se poderia tratar quem tivesse ansiedade suficiente para a mudança. Transpondo-se para o ensino, isso significa que só vamos conseguir verdadeira aprendizagem, com modificação do comportamento, quando houver motivação de quem se propõe aprender.

O posicionamento do autor se alia ao de outros educadores e também ao nosso3 quando considera que o aluno só vai poder exercer a Medicina do Homem à medida que ele, aluno, for pensado, respeitado e sentido como pessoa, numa relação professor-aluno menos desigual, conscientes e inconscientes que interagem num encontro de duas personalidades únicas, equivalentes em sua singularidade. Apontamos3 ainda - pela comunhão de algumas idéias permitimo-nos citar aqui várias vezes nossos trabalhos - o paralelismo das relações médico-paciente e professor-aluno, ambas devendo ser resgatadas e aperfeiçoadas para o exercício da Medicina da Pessoa.

O professor Gonçalves chama a atenção para a necessidade e a dificuldade do vínculo professor-aluno. Aqui caberia outro paralelismo: o doente visto por vários especialistas, sem um "dono" com o qual tenha um vínculo significativo; o estudante com a pluralidade de docentes no decorrer de um curso, sem que haja aquele que assuma plenamente o compromisso dos objetivos propostos, "o contrato" com o aluno.

Concordamos4 com outro aspecto abordado, o da importância do exemplo do professor, dentro e fora da sala de aula, e o modelo de identificação que ele representa, como também assinalam Wright et al7, quando interage com o aluno ou se posiciona frente ao paciente.

O autor cita Miller6 para afirmar que a "emoção(...) está envolvida no processo educacional". No Brasil, Aníbal Silveira, cuja contribuição é referida por Coelho2, foi um dos que enfatizaram a importância do emocional na aprendizagem, colocando o afetivo como indispensável passagem para o cognitivo. Realmente, só se vai incorporar o novo, no sentido de elaborá-lo e torná-lo próprio, se houver uma prévia movimentação afetiva que crie “ranhuras” na superfície lisa, tomando-a adequada a conter, possuir e trabalhar esse novo conhecimento, só assim propiciando mudança de comportamento.

Assiste razão ao autor ao afirmar a necessidade de pensar nos aspectos emocionais do universitário: não só porque estes influenciam o aprendizado e o vir-a-ser médico, mas também porque a saúde do ensino não se limita à ausência de reprovações, mas pressupõe a adequação do aluno à escola e à vida3. Reconhecendo a importância do suporte emocional do universitário, têm-se criado, em várias escolas médicas, serviços de orientação psicológica e pedagógica ao discente.

O professor Gonçalves, após considerações a respeito dos aspectos atuais do conhecimento sobre tipos de inteligência e da importância da esfera psíquica, propõe que se complete o quadro dos objetivos educacionais da escola médica com a adição de um quarto objetivo, esse de natureza psicoemocional.

A nosso ver, escola e professores - lembrando que docência é vocação trabalhada, e seria necessária formação pedagógica, psicológica e didática àqueles que estão chamados a instruir o viver3 - teriam, como sustenta o autor, que adequar relação professor-aluno, professor-paciente, metodologia, currículos, cursos, com vistas a amenizar ou eliminar situações ansiogênicas dentro do campo "minado" que é a formação e o exercício médico.

Parece-nos, usando uma frase do trabalho aqui comentado, que “o conjunto dos fatores psicológicos e emocionais deve ser considerado como condicionante do processo educacional”. Uma adequada saúde psíquica seria, pois, pré-requisito para uma aprendizagem satisfatória.

Essa preocupação com os componentes emocionais deve estar presente desde os mais precoces instantes do ser humano, nos pais e substitutos, professores de pré-escola até os modelos universitários, privilegiando a satisfação e a adequação da criança e do adolescente à apreensão mais rápida de conteúdos cognitivos.

Não é um problema só da escola médica, mas da saúde e da educação em geral, criar condições que favoreçam o equilíbrio emocional num mundo que vivencia tamanha crise de valores, violência e busca desenfreada do poder.

No entanto, dentro do que o autor coloca como objetivos comportamentais, parecem-nos já incluídos os de domínio afetivo, devendo-se priorizar a capacidade de colocar-se a serviço do outro, o compromisso com o aprendizado constante, a sensibilidade para vínculos de zelo genuíno, contemplando o latente atrás do manifesto.

Talvez devêssemos, por exemplo, valorizar mais nas avaliações e exames de residência (e, por que não, na admissão?) o interesse altruísta, o espírito de equipe, a dedicação ao "pé do leito", a empatia com o paciente, a capacidade de sair de si para englobar o outro...

Endereço para correspondência:

Rua Francisco Cal, 83

15090-090 - S. J. do Rio Preto - SP

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BLOOM, B. S.; HASTINGS, J. T. & MAOAUS, G. I. F. Manual de Avaliação Formativa e Somativa do Aprendizado Escolar. Livr. Pioneira Edit., São Paulo , 1983.

2. COELHO, L. M. S. Teoria da Personalidade i11 Epilepsia e Personalidade. Ática, São Paulo, 1975.

3. CRUZ, E. M. T. N. Formando Médicos da Pessoa. O Resgate das Relações Médico-Paciente e Professor-Aluno. R. Bras. Educ. Méd., 21, no 2/3, p. 22-28, 1997.

4. CRUZ, E. M. T. N. A escolha da Especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, 1976. Tese de Doutorado.

5. FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 1976.

6. MILLER, G. E. Ensino e Aprendizagem nas Escolas Médicas. Comp. Edil. Nac. São Paulo, 1967.

7. WRIGHT; S.; WONG, A. & NEWJLL, C. The impact of role models on medical students. J. Cen. Intern Med. 12:1, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1998
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