Acessibilidade / Reportar erro

Ossificação heterotópica em saco herniário incisional

Heterotopic ossification in incisional hernia sac

Resumos

O achado de ossificação heterotópica (OH) sobre cicatriz cirúrgica abdominal é um evento raro, mas que soma morbidade ao paciente. Manifesta-se por dor, endurecimento ou desconforto na cicatriz, levando a novas abordagens cirúrgicas. Relatamos um caso de OH no saco herniário incisional com o objetivo precípuo de chamar a atenção para o potencial "totipotente" do fibroblasto, já que sua íntima relação com a OH é inegável. A partir dessa prerrogativa, qualquer forma de tratamento das hérnias incisionais deveria associar o reparo tecidual ao uso de prótese (tela), para enriquecê-lo com os fibroblastos e seus fatores de crescimento celular do próprio paciente, todos autólogos e prontos para uso. A tática é oferecer uma abordagem combinada ou mista, com menores chances de recidiva na correção dessas afecções.

Ossificação heterotópica; Cicatriz; Osteogênese; Morbidade; Hérnia ventral


The heterotopic ossification (HO) on abdominal scars is a rare but very unconfortable finding. It causes pain, induration and discomfort in the scar, leading patients to undergo reoperation. This report aims to describe a case of HO, and especially to call attention of surgeons to fibroblast transforming potential, once its close relationship with HO is undeniable. Therefore the surgeon should endeavor all atempts on good surgical practice to avoid HO occurrence. He should also associate pure tissue repair techniques to prosthetic management of incisional hernias, in the hope that patient's fibroblast grow factors can be offered to the wound healing as a biologically reinforcement of the repair.

Ossification; heterotopic; Cicatrix; Osteogenesis; Morbidity; Hernia, ventral


NOTA TÉCNICA

Ossificação heterotópica em saco herniário incisional

Heterotopic ossification in incisional hernia sac

Renato Miranda de Melo, TCBC-GOI; Edson Tadeu de MendonçaII; Ernesto Quaresma MendonçaIII; Mateus Quaresma MendonçaIV

ICirurgião Geral do Hospital e Maternidade Jardim América-GO-BR

IIMédico Residente de Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas da FM-USP-SP-BR

IIIProfessor Adjunto do Departamento de Cirurgia da FM-UFG e da PUC-Goiás-BR

IVAcadêmico de Medicina da FM-UF-GO-BR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mateus Quaresma Mendonça E-mail: mateusqm@hotmail.com

RESUMO

O achado de ossificação heterotópica (OH) sobre cicatriz cirúrgica abdominal é um evento raro, mas que soma morbidade ao paciente. Manifesta-se por dor, endurecimento ou desconforto na cicatriz, levando a novas abordagens cirúrgicas. Relatamos um caso de OH no saco herniário incisional com o objetivo precípuo de chamar a atenção para o potencial "totipotente" do fibroblasto, já que sua íntima relação com a OH é inegável. A partir dessa prerrogativa, qualquer forma de tratamento das hérnias incisionais deveria associar o reparo tecidual ao uso de prótese (tela), para enriquecê-lo com os fibroblastos e seus fatores de crescimento celular do próprio paciente, todos autólogos e prontos para uso. A tática é oferecer uma abordagem combinada ou mista, com menores chances de recidiva na correção dessas afecções.

Descritores: Ossificação heterotópica. Cicatriz. Osteogênese. Morbidade. Hérnia ventral.

ABSTRACT

The heterotopic ossification (HO) on abdominal scars is a rare but very unconfortable finding. It causes pain, induration and discomfort in the scar, leading patients to undergo reoperation. This report aims to describe a case of HO, and especially to call attention of surgeons to fibroblast transforming potential, once its close relationship with HO is undeniable. Therefore the surgeon should endeavor all atempts on good surgical practice to avoid HO occurrence. He should also associate pure tissue repair techniques to prosthetic management of incisional hernias, in the hope that patient's fibroblast grow factors can be offered to the wound healing as a biologically reinforcement of the repair.

Kew words: Ossification, heterotopic. Cicatrix. Osteogenesis. Morbidity. Hernia, ventral.

INTRODUÇÃO

Ossificação heterotópica (OH) é a formação de tecido ósseo fora do sistema esquelético, que pode ocorrer em todos os tipos de tecidos moles1-3. Também chamada de miosite ossificante, é uma doença relativamente comum após operações ortopédicas, sobretudo as artroplastias, embora a patogênese exata da doença ainda não tenha sido esclarecida3. Na cirurgia abdominal é considerada uma complicação rara, ocorrendo principalmente na linha média. Pode eventualmente causar dor ou desconforto e o tratamento consiste na ressecção cirúrgica completa do tecido ósseo neoformado. Apresentamos um caso de OH abdominal, no saco herniário de paciente com hérnia incisional mediana e suas implicações cirúrgicas.

Técnica

Paciente masculino, 35 anos de idade, apresentou-se com hérnia incisional mediana xifopúbica, volumosa e dor no epigástrio (ângulo superior da hérnia). Dez meses antes, foi submetido à nefrectomia direita e controle de dano em lesão hepática, decorrente de trauma abdominal contuso. Foi reoperado dois dias depois para retirada de compressas e confecção de peritoniostomia com tela de polipropileno revestida. Permaneceu internado por 45 dias com sepse abdominal grave. Foi submetido ao fechamento da peritoniostomia, mediante aproximação apenas da pele, antes de receber a alta.

Ao exame, apresentava hérnia incisional mediana xifopúbica volumosa e algo doloroso na sua porção cranial. Palpava-se, abaixo do rebordo costal esquerdo, massa irregular e endurecida. A suspeita era de que um fragmento da tela de polipropileno, utilizada por ocasião da peritoniostomia, justificasse as queixas do paciente.

Procedeu-se à abordagem do saco herniário, que revelou extenso tecido ósseo em formação nos ângulos da cicatriz, sobretudo no superior (Figuras 1 e 2). Ressecou-se todo o tecido ósseo neoformado, que estava fortemente aderido às bordas do anel herniário, com auxílio do bisturi elétrico (Figuras 3 e 4). A peça cirúrgica consistia de dois fragmentos ósseos, sendo o inferior de aproximadamente 3cm em seu maior eixo, e o superior de 11cm (Figura 5). A hérnia incisional foi corrigida pela técnica de Lázaro da Silva4 (transposição peritônio-aponeurótica longitudinal bilateral - TRANSPALB) e o paciente evoluiu sem outras complicações.






DISCUSSÃO

A ossificação heterotópica (OH) representa um subtipo de miosite ossificante traumática, na qual elementos ósseos e cartilaginosos são formados dentro de tecidos moles, onde normalmente não há esse tipo de formação. Ocorre, por exemplo, na pele, em cicatrizes e na gordura subcutânea1-3,5. O mais comum é surgir após traumatismo músculo-esquelético ou do sistema nervoso central (lesão medular). Observa-se que pacientes submetidos à operações ortopédicas, tais como artroplastias do ombro ou do quadril, ou que apresentaram paraplegia após lesão medular, têm maior risco para desenvolverem a OH. A miosite ossificante traumática tem sido repetidamente relatada na literatura, em geral depois de contusão muscular causada pela prática de esportes6.

Embora a etiologia da OH seja incerta, é inquestionável sua íntima relação com as ações do fibroblasto. Quando um tecido é lesado, os fibroblastos mais próximos migram para esse tecido, proliferam e produzem grandes quantidades de matriz colágena, contribuindo para isolar e reparar aquele dano. O fibroblasto também parece ser a mais versátil célula do tecido conjuntivo, mostrando uma notável capacidade de se diferenciar em outros elementos, tais como o osteoblasto, o condroblasto, o adipócito e a célula muscular lisa7. Algumas teorias tentam explicar essa formação óssea anômala1,2.

Na primeira, as partículas do periósteo ou do pericôndrio, seja do processo xifóide e/ou da sínfise púbica, são inoculadas na ferida, durante a operação primária, e, assim, levam à neoformação óssea. Esta teoria não é suficiente para explicar a OH, quando não há estreita relação anatômica (contiguidade) com o tecido ósseo primário.

A segunda teoria afirma que a formação de osso heterotópico é o resultado de células mesenquimais pluripotentes imaturas, que se diferenciam em osteoblastos ou condroblastos, em resposta à lesão próxima. Esta seria a explicação mais lógica, para os raros casos de formação óssea intra-abdominal descritos na literatura (miosite ossificante intra-abdominal ou ossificação heterotópica mesentérica)8. No presente caso, esta teoria explicaria, de modo satisfatório, a OH no saco herniário incisional mediano, uma vez que ele é constituído, eminentemente, de tecido conjuntivo cicatricial (fibroblastos, fibras e matriz extracelular).

A terceira teoria é a da tensão excessiva na linha de sutura, que poderia levar à implantação intramuscular de partículas arrancadas dos locais de inserção no osso.

Em geral, a formação óssea ectópica em cicatriz mediana ocorre dentro de poucos meses e, quase sempre, no primeiro ano depois da operação. Nesse paciente, ela foi observada dentro de dez meses após as várias abordagens cirúrgicas a que foi submetido. A ossificação de cicatriz cirúrgica tem sido observada apenas em incisões longitudinais, e, até agora, não foi descrita em incisões transversais1,2,5. Também não foram relatados casos dessa afecção no saco herniário, seja incisional, seja de outro tipo ou localização.

Embora rara, a OH em cicatrizes de laparotomias medianas pode causar dor ou desconforto local. O tratamento consiste na excisão completa do tecido neoformado, com novo fechamento da ferida. Algumas formas adicionais de tratamento como, por exemplo, a terapia com radiação, são utilizadas como forma de prevenção e de tratamento da OH após cirurgia ortopédica, mas ainda são controversas, principalmente na cirurgia abdominal3.

Na literatura, existem três relatos de OH recorrente em cicatrizes cirúrgicas5. No presente caso, nenhuma recorrência foi observada seis meses após a excisão. Refere-se que a formação óssea ectópica recorrente deve ser tratada mediante nova excisão e radioterapia pós-operatória. Eventualmente, anti-inflamatórios não esteroidais podem ser usados para prevenir a formação de osso heterotópico recorrente1,5.

É importante distinguir esta entidade, que é de natureza benigna, de outras complicações pós-operatórias locais (infecção do sítio cirúrgico e corpos estranhos, entre outras) e também da neoplasia primária ou metastática intraincisional. Para isso, pode-se utilizar exames de imagem, como tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética e estudos com medicina nuclear envolvendo radiofármacos2. No caso, a hipótese levantada foi de que poderia existir um fragmento de tela de polipropileno deixado por ocasião da peritoniostomia. A exclusão da hipótese de tecido ósseo neoplásico, por meio do exame anatomopatológico, é também vital. Histologicamente, a OH é composta de osso maduro com medula e elementos cartilaginosos, rodeados por tecido fibroso. Esse foi o padrão encontrado no caso em questão.

Talvez o principal desdobramento a ser considerado, neste relato, é chamar a atenção do cirurgião para o potencial "pluripotente" do fibroblasto, cujo papel nesta afecção não foi elucidado completamente, mas sabe-se que ele está presente durante a cicatrização e também no desenvolvimento da OH. Isso reitera a importância de se utilizarem os próprios tecidos do paciente, ricos nesses elementos celulares e em seus fatores de crescimento, nas herniorrafias de qualquer tipo ou localização, ainda que suplementando-as com prótese (tela). Além disso, o cirurgião deve se esmerar na técnica operatória empregada, para evitar o desencadeamento da ossificação heterotópica.

Recebido em 03/04/2011

Aceito para publicação em 05/07/2011

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

Trabalho realizado no Hospital e Maternidade Jardim América e no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.

  • 1. Degirmenci B, Acar M, Albayrak A, Haktanir A, Cel AY, Dülek ON. Heterotopic bone formation in upper midline abdominal incision. Turk J Med Sci. 2005;35:189-91.
  • 2. Jacobs JE, Birnbaum BA, Siegelman ES. Heterotopic ossification of midline abdominal incisions: CT and MR imaging findings. AJR Am J Roentgenol. 1996;166(3):579-84.
  • 3. Koolen PG, Schreinemacher MH, Peppelenbosch AG. Heterotopic ossifications in midline abdominal scars: a critical review of the literature. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2010;40(2):155-9.
  • 4. Melo RM. Reconstruindo a parede abdominal: o advento de uma técnica. Rev Col Bras Cir. 2010; 37(6):450-56
  • 5. Sanders RL. Bone formation in upper abdominal scars. Ann Surg. 1955;141(5):621-6.
  • 6. King JB. Post-traumatic ectopic calcification in the muscles of athletes: a review. Br J Sports Med. 1998;32(4):287-90.
  • 7. Alberts B, Johnson A, Lewis J, Raff M, Roberts K, Walter P. Molecular biology of the cell, 4nd ed. New York: Garland Science; 2002. Fibroblasts and their transformations: the connective-tissue cell family. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK28373/
  • 8. Athanazio DA, Carvalho ALL, Silva NO, Athanazio PRF. Heterotopic intraabdominal ossification: report of a case and review of the literature. J Bras Patol Med Lab. 2009;45(2):125-30.
  • Endereço para correspondência:

    Mateus Quaresma Mendonça
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2011
    • Aceito
      05 Jul 2011
    Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@cbc.org.br