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Ritual melquita e dinâmicas identitárias dos cristãos no Líbano1 1 Este artigo foi baseado em 14 meses de trabalho de campo entre os anos de 2014 e 2018 a partir da observação participante nas atividades rituais dos espaços sagrados da comunidade greco-melquita católica do Líbano, seja nas igrejas ou então nos monastérios, onde eu pude participar integralmente da vida monástica e assim compreender com mais acuidade a construção das identidades religiosas dos cristãos do país. Além disso realizei entrevistas formais e conversas informais com sacerdotes e fiéis com intuito de analisar seus discursos sobre o ritual melquita assim como a despeito desta tradição ritual. E por fim, também utilizei o método histórico para compreender a formação da religiosidade melquita por meio da consulta bibliográfica, dos documentos disponíveis nas igrejas e monastérios e por meio das entrevistas.

Melkite ritual and identity dynamics among Christians in Lebanon.

Resumos

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a importância da comunidade greco-melquita católica na mobilização de dinâmicas identitárias dos cristãos libaneses. Os resultados deste estudo estão baseados no trabalho de campo realizado no Líbano entre 2014 e 2018 por meio da observação participante em igrejas e monastérios. Por meio de suas vésperas, missas e orações, o clero dessa confissão coloca em prática as prescrições de sua tradição ritual, construída com base na combinação entre os elementos associados a referenciais opostos do cristianismo, principalmente o bizantino e o latino. Tal característica associada à qualidade da performance em termos disciplinares, estéticos e/ou emocionais, faz com que a com que essa comunidade religiosa consiga atrair para os seus espaços sagrados membros de diferentes confissões cristãs. A consequência disso é a mobilização de uma série de referenciais identitários como a identidade melquita, a católica, a bizantina ou então a genérica cristã nos discursos dos participantes dos rituais.

Palavras-chave:
Comunidade greco-melquita católica; Líbano, ritual, dinâmicas identitárias


Abstract: The aim of this article is to analyze the role of the Greek-Melkite Community in mobilizing identity dynamics among Lebanese Christians. The results of this study are based on fieldwork conducted in Lebanon between 2014 and 2018 through participant observation in churches and monasteries. Through its vespers, masses and prayer services, the clergy of this confession put into practice the prescriptions of its ritual tradition, built from the combination of elements from opposite references of Christianity mainly the Byzantine and the Latin. This factor in addition to the quality of these performances in disciplinary, aesthetic and / or emotional terms, help to attract both melkites and other Christians to these churches and monasteries. Therefore, it is possible to recognize the presence of several identity references such as the Melkite, Catholic, Byzantine or the generic Christian identity within the participants’discourses.

Keywords:
Greek-Melkite Community; Lebanon; ritual; identity dynamics


Introdução

A tradição ritual2 2 Entendo o conceito de ritual como “comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas às rotinas tecnológicas, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos” (Turner 2005:49), mas também como desenvolve Talal Asad de que “ritual é o desempenho adequado do que é prescrito algo que depende da disciplina prática e intelectual, mas não exige decodificação”. Com base nessa definição, Asad argumenta que a “performance adequada não implica em símbolos a serem interpretados, mas habilidades a serem adquiridas de acordo com as regras sancionadas por aqueles que têm autoridade” (Asad 1993:27). da Igreja Greco-Melquita Católica3 3 Apesar da Igreja Greco-Melquita da Antioquia utilizar o termo melquita em seu nome oficial, este é cronologicamente anterior à data de fundação dessa Igreja. A versão mais comum da origem do termo melquita (do siríaco maliki = rei) é que este foi dado no período do Concílio da Calcedônia em 451 AD quando o Imperador Romano Marciano organizou esse evento para debater sobre a questão da natureza de Jesus Cristo. Sendo decidido que Cristo tem duas naturezas (divina e humana) os cristãos do Oriente se dividiram entre aqueles que rejeitaram e os que apoiaram. Os que concordaram com as determinações do concílio e do imperador Marciano passaram a ser chamados de melquitas de forma pejorativa por aqueles que rejeitaram as mesmas. Após a divisão dentro do Patriarcado Ortodoxo, em 1724, o lado católico decidiu deixar o Patriarcado, fundou uma nova instituição e usou oficialmente o antigo termo melquita, tendo, portanto, como nome oficial Igreja Greco-Melquita Católica. está diretamente associada com a sua religiosidade, a qual é formada a partir da interseção4 4 O conceito de interseção pode ser definido como uma relação em que determinados elementos são pertencentes simultaneamente a planos distintos. No contexto da tradição ritual melquita no Líbano, esse termo é útil, pois expressa a sua conexão com a normatividade bizantina e com a latina, esta última, em virtude do processo de latinização vivenciado por esta Igreja desde a sua fundação. entre dois referenciais distintos e opostos do cristianismo: o bizantino e o católico. A construção dessa religiosidade e sua tradição ritual tem sua origem em 1724, quando a instituição melquita surgiu oficialmente, após a ruptura com o Patriarcado Greco-Ortodoxo da Antioquia para tornar-se uma igreja uniata, isto é, vinculada ao catolicismo romano e obediente ao Papa.

A partir dessa ruptura, essa característica religiosa de interseção passa a se configurar na medida em que, por um lado, os melquitas5 5 Sobre as categorias referenciais da comunidade greco-católica melquita, usarei neste artigo tanto o termo melquita, nome oficial e bastante usado pelo clero, quanto greco-católico (em árabe: rûm catholique), mais comum entre os fiéis e usado do ponto de vista político e social, tal como foi classificado no censo de 1932, e em outros registros não oficiais, e nos meios de comunicação de maneira geral. tornavam-se católicos, enquanto, por outro lado, eles receberam a garantia de Roma de ter o próprio patriarca e de preservar as suas práticas religiosas da tradição bizantina. Gradativamente, a influência ocidental no ritual melquita se intensificou mediante a atuação dos missionários católicos europeus no Oriente Médio, que, aos poucos, foi modificando o rito bizantino a partir da introdução de elementos latinos (Hachem 1990HACHEM, Gabriel. (1990), Primauté romaine et conciliarité dans l’évolution de l’Église Melkite catholique. Essai de théologie historique. Louvain: Thèse de doctorat, Université de Louvain.; Heyberger 2014HEYBERGER, Bernard. (2014 [1994]), Les chrétiens du Proche-Orient au temps de la Réforme catholique: Syrie, Liban, Palestine, XVII - XVIIIeme siecle. Rome: École française de Rome. [1994]; Hourani 2001HOURANI, Albert. (2001), Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das letras.).

Diante do aumento da influência religiosa latina no Oriente Médio a partir do século XVIII, o clero melquita tem adotado uma postura dupla: por um lado, permite determinadas inovações propostas pelos missionários, como a adoção do calendário gregoriano, no lugar do juliano, e a redução da duração da missa em consequência do corte em determinadas orações e cantos. Por outro, ele resiste a uma latinização exagerada com o objetivo de impedir uma descaracterização de suas tradições orientais bizantinas. É por meio desse movimento ambivalente que se forma a religiosidade melquita, concentrada na interseção entre esses referenciais religiosos distintos. Essa característica, por conseguinte, tem se tornado desde então a base da identidade religiosa promovida pelos seus padres, bispos e patriarcas em suas igrejas no Oriente Médio e na diáspora.

Dentre os países do Oriente Médio em que está presente a Igreja Melquita, o Líbano configura um local privilegiado para observar a importância do ritual de interseção e a dinâmica de identidades religiosas produzidas, haja vista a diversidade de confissões cristãs presentes em seu território (12 no total),6 6 As confissões cristãs presentes no Líbano são: a maronita, a greco-ortodoxa, a greco-católica (melquita), a armênia ortodoxa, a armênia católica, a siríaca ortodoxa, a siríaca católica, a copta ortodoxa, a caldeia, a assíria, a latina e a evangélica. a maior entre os países vizinhos (Eickelman 2002EICKELMAN, Dale. F. (2002), The Middle East and Central Asia: an anthropological approach. New Jersey: Prentice Hall.; Heyberger, 2013HEYBERGER, Bernard. (2013), Les chrétiens au Proche-Orient: de la compassion à la compréhension. Paris : Éditions Payot & Rivages.). Nesse cenário, o ritual aqui estudado é importante por dois motivos principais: por um lado, para a afirmação da identidade confessional da comunidade greco-católica a partir da delimitação das fronteiras em relação às comunidades cristãs tais como a maronita, a greco-ortodoxa, a siríaca ortodoxa e a siríaca católica; por outro, para atrair, em função de sua plasticidade, fiéis de diferentes tradições cristãs e com expectativas variadas, sejam eles melquitas e não melquitas. Entre estes últimos, os que mais frequentam os espaços sagrados da comunidade aqui estudada e participam deste ritual são os maronitas,7 7 A comunidade maronita tem como base religiosa a Igreja Maronita, que é uma instituição fundada no século VII, pelo cristão John Marun de Sarum e defensor do monotelismo, no contexto em que esta doutrina foi condenada como herética. No período anterior à sua nomeação como patriarca monotelita, John Marun tinha sido o chefe de uma importante base monástica no Vale dos Orontes, perto de Hama, Síria, que tinha o nome do antigo monge, São Marun. No século XII, já territorializada no Monte Líbano, essa igreja tornou-se uniata e nos séculos posteriores foi modificando a sua tradição ritual siríaca a partir da incorporação de elementos latinos, principalmente após o século XVII devido à atuação mais significativa de missionários católicos ocidentais no Oriente Médio. que se conectam com essa tradição religiosa pelo lado católico, e os greco-ortodoxos,8 8 A comunidade greco-ortodoxa tem como base religiosa a Igreja Greco-Ortodoxa que surgiu oficialmente a partir da Grande Cisma do Oriente, quando houve a separação na instituição cristã oficial do antigo Império Romano entre a Igreja Católica, no Ocidente, e a Igreja Ortodoxa, no Oriente. A Igreja Greco-Ortodoxa é a representante histórica da religiosidade bizantina no Oriente Médio, com a conservação de sua arte icônica no espaço ritual, a prática da liturgia de São João Crisóstomo e São Basílio, o monasticismo e a utilização da língua grega em algumas partes do ritual. em virtude de sua identificação com o lado bizantino.

Contudo, cabe destacar que a característica de interseção não é o único elemento explicativo acerca do fenômeno da atração multiconfessional no que diz respeito à frequência nos espaços sagrados e à participação no ritual melquita. Articulado a isso, os dados etnográficos indicam que os lugares que se impõem como polos atrativos, principalmente os monastérios, são aqueles que se destacam em virtude da qualidade da performance, seja em termos da obediência à disciplina, ao valor estético ou então das emoções produzidas nos sujeitos.

Sobre a dinâmica identitária, a participação multiconfessional neste ritual de interseção mobiliza referenciais distintos, não apenas religiosos, mas também sociais, e isso se deve à estrutura confessional construída historicamente (Makdisi 2000MAKDISI, Ussama. (2000), The culture of Sectarianism: Community, History, and Violence in Nineteenth- Century Ottoman Lebanon. University Berkeley, Los Angeles: California Press.) e oficializada com a independência do país em 1943 (Salibi, 1988bSALIBI, Kamal. (1988b) Histoire du Liban: Du XVIIeme siecle à nos jours. Paris : Groupe Naufal Europe Sarl.; El Khazen 1991EL KHAZEN, Farid. (1991), The Communal Pact of National Identities: The Making and Politics of the 1943 National Pact. Centre for Lebanese Studies. Oxford: Oxonian Rewley Press Ltd.). Nesse modelo, cada comunidade religiosa configura uma entidade sociopolítica separada, dispondo de um estatuto próprio, com regras de casamento, herança, uma rede de instituições de bem-estar social (hospitais, escolas, centros de caridade) e posições políticas no Parlamento e no Poder Executivo (Cammett 2014CAMMETT, Melani. (2014), Compassionate Communalism: Welfare and Sectarianism in Lebanon. New York: Cornell University Press.). Do ponto de vista identitário, os referenciais religiosos se transformam em pertencimentos sociais porquanto cada indivíduo ao nascer deve ser registrado dentro da confissão de seus pais (Salibi 1988b; Traboulsi 2007TRABOULSI, Fawwaz. (2007), A History of Modern Lebanon. London: Pluto Press.).

Com relação aos fiéis que são melquitas de nascimento, a identidade assumida pelos participantes do ritual de interseção combina o pertencimento social com o religioso por intermédio de sua identidade confessional. Em contrapartida, quando se trata dos não melquitas, apesar de se identificarem do ponto de vista religioso com o ritual melquita, eles se definem a partir de suas identidades sociais (maronitas, greco-ortodoxos, siríacos ortodoxos). E para justificar o seu vínculo religioso com o universo de outra confissão, esses sujeitos acionam identidades religiosas genéricas, como a católica, a bizantina, e principalmente, a identidade cristã.

Em resumo o objetivo deste artigo é destacar o papel da comunidade greco-católica e de tradição ritual na mobilização de dinâmicas identitárias dos cristãos do Líbano. Para isso, o texto a seguir está organizado em três partes principais: primeiro, apresentarei com detalhes essa tradição com base na descrição do rito bizantino e no processo de latinização; segundo, analisarei a importância ritual de interseção e da qualidade da performance na construção das identidades religiosas dos participantes. E por fim, na conclusão, retomarei a discussão da dinâmica identitária situando-a no contexto religioso do Líbano e do Oriente Médio contemporâneo.

A tradição ritual melquita

Rito Bizantino

O Rito Bizantino, também chamado pelo clero de Ofício Divino, é formado pelas Vésperas e pela Liturgia Eucarística. As Vésperas são ofícios religiosos compostos de orações (em árabe, ṣalawāt),9 9 A transliteração do alfabeto árabe para o latino seguiu neste artigo as normas do IJMES (International Journal of Middle East Studies) retiradas de sua página eletrônica: https://www.cambridge.org/core/journals/international-journal-of-middle-east studies/information/author-resources/ijmes-translation-and-transliteration-guide. salmos e hinos executados diariamente nos monastérios e normalmente nos sábados à noite ou domingo pela manhã antes das missas nas igrejas. A Liturgia Eucarística, ou Divina Liturgia (em grego, theia leitourgia; em árabe: al-quddūs al-ilāḥiyy; sentido literal, “santificação divina”) é a missa tradicional bizantina, a qual deve ser realizada obrigatoriamente pelo menos uma vez na semana, seja em igrejas ou monastérios.

A performance das vésperas, normalmente realizada nos monastérios, é caracterizada pela interação entre os participantes na medida em que em há um revezamento na realização das orações, hinos e salmos. Cada sacerdote ou monge dispõe de um livro de orações (kitāb alṣalawāt) para acompanhar e participar do ofício do dia, normalmente localizado nos bancos da igreja. Com o livro em mãos, inicia-se o ritual, em que cada um deles lê uma parte de forma cantada, obedecendo às prescrições da tradição bizantina.10 10 Essas informações foram adquiridas através do trabalho de campo que realizei nos espaços sagrados do Líbano, principalmente nos monastérios: dayr almukhalliṣ (Monastério São Salvador), dayr mᾱr yūḥannᾱ (Monastério São João Batista) e no dayr alqiyāmat (Monastério da Ressurreição), nos quais pude participar das principais atividades religiosas e acompanhar a vida monástica.

A Liturgia Eucarística por sua vez é o núcleo do Rito Bizantino e, por isso, cabe uma análise mais detalhada. Embora seja dividida em três partes (Prótese, Liturgia da Palavra e Liturgia Eucarística), esta recebe o nome da última fase em virtude de a Eucaristia representar o símbolo dominante (Turner 2005TURNER, Victor Witter. (2005), Floresta de símbolos. Niterói: EDUFF.:76-80) desse ritual. No Rito Bizantino existem três liturgias: a dos Pré-Santificados (celebrada apenas às quartas e sextas-feiras da quaresma nas igrejas principais); a de São Basílio (realizada 10 vezes no ano); e a de São Crisóstomo (é uma forma reduzida da Liturgia de São Basílio, realizada no restante dos dias). Portanto, me concentrarei na Liturgia de São Crisóstomo por ser a mais usada (Kerbage 2015KERBAGE, Elias Hachem. (2015), A igreja greco-melquita católica. Fortaleza: Editora Pouchain Ramos.; Maalouf 2014MAALOUF, Charbel. (2014), Entre L’Orien et L’Ocident: Histoire de l’Eglise Saint-Julien-le-Pauvre, la Paroisse Grecque Melkite Catholique de Paris. Paris: Edition du Jubilé.).

A Prótese é a primeira fase do ritual: o padre atua sozinho, secretamente, fazendo algumas orações em voz baixa, preparando os alimentos e separando os objetos no altar que serão usados na Eucaristia. O objetivo da Prótese ou Preparação é evocar a fase oculta da vida de Jesus, ou seja, desde o seu nascimento até os 30 anos.

A segunda fase, chamada de Liturgia da Palavra ou Liturgia dos Catecúmenos, representa a transição da vida oculta para a vida pública de Jesus. Começa com uma série de orações, salmos e antífonas (canto alternado por dois coros) até o momento da Primeira Entrada (Procissão do Evangelho), a qual representa efetivamente o início da vida pública de Jesus Cristo. Em seguida, o grupo composto do padre, diáconos portando o Evangelho (livro sagrado) e acólitos (ajudantes do padre) segurando a cruz, a tocha e o turíbulo (incensório) caminham em procissão pela nave da igreja. A Liturgia da Palavra tem seu momento principal com a leitura da epístola pelos leigos, a do Evangelho pelo sacerdote ou diácono. E, por fim, é realizada a homilia (sermão do padre).

A última parte da missa, a Liturgia Eucarística, ou Liturgia dos Fiéis, compreende o Ofertório, a Anáfora (consagração eucarística) e a Comunhão. Na subfase do Ofertório, o momento principal é a Grande Entrada (Procissão dos Dons), na qual o padre portando a patena com o pão dentro e o cálice com vinho, ambos cobertos com véus; e os acólitos levando a tocha, a cruz e o turíbulo, transitam pela nave até o altar e assim começa o período de consagração, chamado de Anáfora. A consagração tem como pontos principais a Oração do Credo, quando sacerdotes e leigos professam a sua fé cristã; as orações secretas em recordação da Paixão de Cristo (Anamnese); a Oração do Pai Nosso; a Oração da Inclinação, quando os fiéis inclinam o corpo como ato de humildade e reverência ao sacrifício de Jesus. A última subfase, a da comunhão, acontece depois de que todo o processo de consagração foi concretizado na Anáfora e assim o sacerdote já está apto para comungar, o que acontece dentro do santuário. Nesse momento, o sacerdote ingere o pão e bebe o vinho, que representam a carne o sangue de Jesus Cristo; em seguida ele se posiciona com o diácono no intersepto (parte intermediária no chão entre a nave e o santuário) para a comunhão dos fiéis, a qual também é feita em duas espécies (pão e vinho), diferente das igrejas católicas de Rito Latino, onde os fiéis comungam apenas em uma espécie, isto é, com o pão.

Em uma primeira análise da missa bizantina destaca-se a importância dos objetos litúrgicos, aqueles usados durante a liturgia, tais como: o turíbulo, a patena, o cálice, o pão e o vinho. Fazendo um paralelo com a teoria de Bruno Latour acerca da diferença entre os conceitos de mediador e intermediário, em sua sociologia das associações (humanos e objetos), os objetos litúrgicos assumem uma função de mediadores na medida em que para além de transportar significados, como fazem os intermediários, eles se tornam agentes fundamentais na produção de efeitos variados nos sujeitos religiosos (Latour 2012:65).11 11 Os conceitos de mediador e intermediário foram discutidos por Bruno Latour em sua teoria sociológica dos objetos. Para o autor, um intermediário, é aquele que transporta significado ou força sem transformá-los; por outro lado, os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam os significados ou os elementos que supostamente veiculam. Observando a realização da liturgia bizantina, podemos afirmar, seguindo o modelo teórico de Alfred Gell, que os objetos são equivalentes às pessoas no sentindo de serem igualmente agentes sociais (Gell 1998:7).

A agência dos objetos é perceptível desde o início do ritual, quando o sacerdote, manipulando o turíbulo, começa o processo de purificação, ou sacralização do espaço ritual. Esse objeto tem formato de taça, local onde se coloca a resina perfumada, é sustentado por 4 correntes cada uma delas carregando 3 guizos, totalizando 12, simbolizando os 12 apóstolos. Segurando na extremidade das correntes o sacerdote balança o objeto que, por sua vez, exala um aroma por todo o espaço sagrado simbolizando, segundo o clero, o perfume do Espírito Santo. Durante as duas procissões (Evangelho e Dons) o padre, diácono ou acólito transita pela nave da igreja incensando todo o ambiente, e no rito de consagração para a eucaristia, o sacerdote novamente incensa o santuário e os fiéis.

Os objetos propriamente eucarísticos, o pão e o vinho, assumem uma função central em todo o ritual, por isso a liturgia de São João Crisóstomo é também chamada de Liturgia Eucarística. No entanto, o agenciamento com relação à Eucaristia não se limita ao pão e ao vinho, uma vez que uma série de outros objetos como a patena, o cálice, a lança e o véu também atuam nesse momento. Além destes, destacam-se os objetos usados nas procissões - a cruz e as tochas - bem como os paramentos dos sacerdotes - vestimentas, o báculo (cajado), a mitra (coroa), cruz peitoral e a panagia (medalhão com a efígie de Cristo ou da Virgem Maria).12 12 O báculo, a mitra, a cruz peitoral e a panagia são usados apenas pelos bispos ou arcebispos. Todos esses em conjunto, incluindo o turíbulo, produzem um efeito emocional nos fiéis garantindo em níveis variados a eficácia do ritual.

Reconhecer a agência desses objetos é ampliar o foco da análise desse ritual dos atores humanos para os atores materiais, fazendo um estudo das associações, como propõe Latour (2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Tradução: Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador, Bauru: EDUFBA-EDUSC.), entre humanos e objetos. Isso se torna necessário na análise do ritual bizantino já que embora sejam humanos que manipulem esses objetos durante a liturgia, os objetos induzem ações nos participantes que vão além do controle humano. Na Procissão dos Dons, por exemplo, quando o sacerdote passa com a patena e o cálice, o diácono, com o turíbulo, e os acólitos, com as tochas, os fiéis reagem fazendo o sinal da cruz, seguindo as prescrições disciplinares (Asad 1993ASAD, Talal. (1993), Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam. Maryland: John Hopkins University Press.) enquanto, ao mesmo tempo, alguns fazem orações, tocam na vestimenta do padre e em certos casos se emocionam, como observei em diversas situações no trabalho de campo, principalmente nos monastérios. Essas reações distintas podem ser visualizadas em outros momentos do ritual, sobretudo na Comunhão, por se tratar do instante em que eles têm o contato mais próximo com esses agentes materiais.

A música bizantina, por sua vez, é outro elemento fundamental e diacrítico dessa tradição religiosa. Trata-se de uma prática ritual feita à capela, sendo, portanto, proibida a utilização de qualquer instrumento musical que na concepção do clero e de muitos membros comprometeria a beleza e a pureza da voz dos cantores. Nas grandes igrejas, catedrais, basílicas ou arquidioceses, os cantos são divididos entre dois coros, posicionados um em cada parte do intersepto (parte intermediária entre a nave e o santuário). Nas igrejas menores, normalmente há apenas um coro, ficando seus membros posicionados tanto à direita, como na Igreja Saint-Elie, no Downtown de Beirute, ou à esquerda, como na Igreja Saint-Peter and Paul, em Hamra (bairro de Beirute). Os monastérios normalmente seguem essa estrutura de dois coros como nas grandes igrejas, como é o caso do dayr almukhalliṣ e o dayr mᾱr yūḥannᾱ. No entanto, o dayr alqiyāmat representa uma exceção na medida em que o canto bizantino é entoado pelos monges e leigos na nave da igreja, já que ninguém fica posicionado no intersepto nas atividades rituais, apenas o padre no momento da missa.

O idioma tradicional do canto, como de toda a liturgia, é o grego, mas desde o processo de arabização do Oriente Médio (Antonius 1969ANTONIUS, George. (1969), The Arab Awakening: The story of the Arab national movement. Beirut: Librarie du Liban.), o árabe passou gradativamente a substituir o grego nas atividades religiosas, que atualmente é utilizado em algumas orações e músicas (Hourani 2001HOURANI, Albert. (2001), Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das letras.:23) e no tradicional kyrie Eleison (Senhor, tende piedade) que é constantemente repetido na liturgia de São João Crisóstomo.

A missa bizantina, bem como os outros serviços dessa tradição religiosa, é executada em sua maior parte de forma cantada e uma característica dessas orações entoadas é a repetição de refrãos ou frases, tais como o kyrie Eleison e o canto do trisaghion (três vezes santo): em árabe, quddūs allāh quddūs alqawiyy quddūs illadhi lā yamūt ҆irḥamnā (Santo Deus, Santo Poderoso, Santo Imortal, tende piedade de nós). Este refrão é complementado pelo trecho: almajdu lillāh wal ibn wal rūḥ alqudus al ҆ ān wa kulli҆ awān wa ila dahr aldāhirīn āmīn (Glória ao Pai, ao filho e ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém).

Latinização

Entendo por latinização “as formas de pregação, liturgia e devoção popular tomada por “empréstimo” pelos ritos orientais junto ao Rito Latino” (Stepien 2000:92 apud Buzalka 2008BUZALKA, Juraj. (2008), “Syncretism among the Greek Catholic Ukrainians in Southeast Poland”. In: S. Mahieu; V. Naumescu (ed.). Churches In-between. Berlin: Lit Verlag.:190). Com base nessa definição que discutirei a complexidade do processo de latinização enfrentado pela igreja melquitas do Líbano já que ao mesmo tempo em que há um contexto histórico de imposição de práticas latinas no Oriente Médio por parte de missionários europeus, o clero melquita, por sua vez, tem incorporado desde a fundação desta Igreja elementos latinos teológicos e rituais.

Para abordar a história da latinização no Oriente Médio, é necessário analisar a relação estabelecida por Roma com as igrejas católicas orientais, a qual, longe de ser homogênea, mostra toda sua complexidade, tanto em função das diferentes posições dos papas quanto pelas divergências entre os grupos de missionários acerca da latinização.

A formação das igrejas uniatas (unidas a Roma), dentre as quais inclui-se a Igreja Melquita, foi resultado direto da intervenção dos missionários latinos vinculados à Propaganda Fide, que era uma instituição da Igreja Romana criada para expandir a fé católica romana no Oriente no intuito de retomar a união jurídica e eclesiástica com as igrejas ortodoxas e por fim conquistar uma universalidade sob a liderança do Papa. O princípio defendido pela Propaganda, o qual foi fundamental para a adesão de parte das igrejas orientais, diz respeito à preservação dos ritos tradicionais e o respeito aos costumes locais. Durante os séculos XVII e XVIII houve uma tentativa de manter esse compromisso, por parte de seus oficiais em Roma e dos papas por meio de discursos e cartas aos missionários estabelecidos no Oriente Médio ou até mesmo a partir de uma fiscalização in loco.

Entretanto, da parte dos missionários não houve uma obediência integral a esse princípio por dois motivos principais: primeiro pela divisão interna desses funcionários da Propaganda em função de suas afiliações normativas, na qual os jesuítas e capuchinhos seguiam a posição de Roma, exigindo o respeito ao Rito Bizantino ao passo que os franciscanos, em contrapartida, atuavam no propósito de converter as igrejas uniatas ao Rito Latino; em segundo lugar pela ignorância que esses missionários, nesse caso de todos os grupos, tinham do rito dos orientais, sobretudo por não dominarem o árabe e desconhecerem os costumes locais. Em tal contexto, os missionários adotavam uma postura etnocêntrica de rotular a religiosidade oriental como mágica e herética, como foi o caso de muitos franciscanos, ou então de passividade (jesuítas e capuchinhos) diante das incorporações latinas feitas pelo próprio clero uniata a partir das influências adquiridas em seus estudos na Europa (Heyberger 2014HEYBERGER, Bernard. (2014 [1994]), Les chrétiens du Proche-Orient au temps de la Réforme catholique: Syrie, Liban, Palestine, XVII - XVIIIeme siecle. Rome: École française de Rome.: 235-238, 315).

Os papas por sua vez também variaram quanto a sua política em relação à preservação dos ritos orientais. O ímpeto demonstrado por eles nos séculos XVII e XVIII, quanto a essa questão, não foi seguido no século XIX, pelo contrário, os papas adotaram uma prática cada vez mais latinizante para com o Oriente Médio, a qual teve seu auge no mandato do Papa Pio IX.

Com base na ideologia romana da Primazia do Papa e na crença pessoal da superioridade do Rito Latino sobre os ritos orientais, Pio IX adotou uma série de práticas centralizadoras e latinizantes com o objetivo de universalizar o catolicismo no contexto em que a fé católica era desafiada pelo racionalismo oriundo da grande transformação enfrentada pela Europa com as revoluções industrial, francesa e científica (Polanyi, 2000POLANYI, KARL. (2000), A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução: Fanny Wrabel. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda.). Seguindo essa tendência, missionários da Propaganda seguindo as determinações do Papa, pressionaram o Patriarca Melquita Mazloum Bahouth para a introdução do calendário gregoriano entre os melquitas, no lugar do juliano, medida que foi confirmada em 1858, desagradando parte do clero e dos fiéis (Hachem 1990HACHEM, Gabriel. (1990), Primauté romaine et conciliarité dans l’évolution de l’Église Melkite catholique. Essai de théologie historique. Louvain: Thèse de doctorat, Université de Louvain.:141).

No final do século XVIII, com o mandato do Papa Leão III, foi retomado o compromisso de preservação dos ritos orientais. Em 1894 ele assinou a Encíclica Orientalium Dignitas (1894) decretando que o missionário que induzir com seu conselho ou assistência qualquer fiel do rito oriental de migrar ou adotar práticas latinas será deposto e, portanto, excluído de seu ofício (Mahieu 2008MAHIEU, Stephanie. (2008), “(Re)Orientalizing the Church”: Reformism and Traditionalism within the Hungarian Greek Catholic Church. In: S. Mahieu; V. Naumescu (ed.). Churches In-between . Berlin: Lit Verlag .:209). Essa postura foi igualmente seguida no século XX, sobretudo a partir do Concílio do Vaticano II quando o Papa Paulo VI comunicou seu plano de reforma no sentido de descentralizar e conter qualquer atitude latinizante dos missionários no Oriente (Edelby 2003EDELBY, Neophytus. (2003), Souvenirs du Concile Vatican II. Raboueh: Centre Grec Melkite Catholique de Recherche.). Em se tratando especificamente dos greco-católicos, o Código de Cânones das Igrejas Orientais (1990) e da carta Orientale Lumen (1990) publicado pelo Papa João Paulo II, encorajam essa igreja a redescobrir suas raízes orientais (Mahieu 2008:210).

Independentemente da postura latinizante ou orientalizante do papa e dos missionários, o clero melquita contribuiu significativamente com o processo de latinização, pois como bem lembra Bernard Heyberger, muitos padres, bispos, monges e patriarcas foram educados em escolas latinas no Oriente Médio ou na Europa, nas quais eles aprenderam com profundidade o Rito Latino e essas influências foram levadas para as igrejas orientais. Segundo Heyberger, assim que a Igreja Melquita foi criada, o Patriarca Aftimyus Saifi passou a adotar a prática latina de colocar água quente no cálice de vinho além de cortar a Epíclese13 13 Epíclese é uma oração da liturgia de São João Crisóstomo feita no momento da consagração dos dons que serão comungados na Eucaristia. da missa melquita, encurtando o tempo do ritual (Heyberger 2014:315).

Mesmo com as recentes medidas contra os exageros da latinização por parte da Igreja de Roma com relação aos ritos orientais, esse fenômeno continuou presente, e atualmente, ainda é mais forte em virtude da globalização, que possibilita a circulação das influências latinas no Oriente em uma velocidade muito maior, não apenas por cima (clero), mas também por baixo (leigos) (Hann 2010HANN, Chris; GOLTZ, Hermann. (2010), “Introduction”. In: C. Hann; H. Goltz (ed.). Eastern Christians in Anthropological Perspective. Berkeley, Los Angeles: University California Press .; Mahieu 2008MAHIEU, Stephanie. (2008), “(Re)Orientalizing the Church”: Reformism and Traditionalism within the Hungarian Greek Catholic Church. In: S. Mahieu; V. Naumescu (ed.). Churches In-between . Berlin: Lit Verlag .).14 14 Além disso, como sustenta Stephanie Mahieu em se tratando dos greco-católicos da Europa Oriental, mas que também se aplica aos greco-católicos (melquitas) libaneses, a latinização é um fenômeno que se constrói não apenas por cima (clero e elite), mas também por baixo, por meio do agenciamento dos fiéis (religiosidade popular) (Mahieu 2008:212). A redução da missa bizantina, por exemplo, uma latinização por cima, desde o primeiro corte realizado por Aftimiyus Saifi passou por sucessivos outros cortes nas igrejas melquitas do Líbano, e hoje seu tempo médio de duração é de 1 hora enquanto o tempo médio da missa tradicional bizantina é de 2 horas. Um exemplo de latinização por baixo é a introdução de imagens latinas de Maria na esfera privada e a devoção cotidiana no espaço doméstico (Mahieu 2010).

Assim, a partir da combinação do Rito Bizantino com as influências latinas que se forma a tradição ritual melquita, a qual, além de formar o sinal diacrítico de sua Igreja e de sua comunidade político-religiosa permite a construção de identidades religiosas dos cristãos libaneses.

Ritual melquita e identidades religiosas

Ritual de interseção e identidades religiosas

O fato de o ritual melquita se posicionar na interseção de referenciais normativos de diferentes comunidades e tradições religiosas, como a bizantina e a latina; a católica e a ortodoxa; ou até mesmo a ocidental e a oriental, tem contribuído para essa comunidade político-religiosa se tornar mais competitiva no mercado religioso do Líbano - composto por 18 comunidades, dentre as quais 12 são cristãs - já que fornece conteúdo sagrado para demandas e expectativas variadas (Mahieu & Naumescu 2008MAHIEU, Stephanie. (2008), “(Re)Orientalizing the Church”: Reformism and Traditionalism within the Hungarian Greek Catholic Church. In: S. Mahieu; V. Naumescu (ed.). Churches In-between . Berlin: Lit Verlag .:1-33).

Essa característica é uma grande vantagem no contexto atual de globalização, porque, como destacam Alexander Agadjanian e Victor Roudometof, os indivíduos nos dias de hoje têm muito mais agência na formação do seu próprio repertório religioso optando pelos elementos ou referências disponíveis que atendam às suas expectativas, ao contrário das décadas anteriores em que os fiéis ficavam circunscritos às ofertas da sua própria comunidade religiosa (Agadjanian & Roudometof 2005AGADJANIAN, Alexander; ROUDOMETOF, Victor. (2005), “Introduction”. In: Eastern Orthodoxy in a Global Age. V. Roudometof; A. Agadjanian e J. Pankhurst (ed.). Maryland: Altamira Press.:5-7).

A consequência disso é a atração de membros da comunidade greco-católica que se identificam com os dois lados dessa interseção, ou pelo menos com um dos lados. No caso de um jovem de 32 anos, natural da cidade de Zahle, há uma identificação tanto com uma bizantinidade quanto com algumas inovações latinas. Segundo ele, a sua aproximação inicial com a Igreja Melquita se deu em virtude da beleza do canto bizantino. Mas por outro lado, ele se considera católico e concorda com algumas modificações, por exemplo, o corte de algumas orações da missa. Quando perguntei sobre o porquê de não frequentar uma Igreja Ortodoxa uma vez que lá o canto bizantino também é executado, sua resposta foi: “Eu já até fui, mas eu sou melquita, eu nasci melquita e gosto da minha igreja.”

Observa-se nesse caso que essa identificação com os elementos da interseção é acompanhada de uma afirmação confessional: “eu sou melquita.” Isso se explica pelo fato de todos os cidadãos libaneses nascerem dentro de uma comunidade político-religiosa de acordo com sua estrutura confessional. Na verdade, o fato de nascer em determinada confissão não impede a sua identificação com outra, mas se a sua comunidade de origem apresenta os elementos que atende as expectativas de seus membros, eles muitas vezes preferem ficar naquela em que nasceu, com é o exemplo deste jovem de Zahle.

Além dessa religiosidade de interseção atrair os membros da comunidade melquita, ela também transforma os espaços sagrados dessa confissão em polos de atração multiconfessional, principalmente de maronitas e greco-ortodoxos, os quais estão conectados diretamente a esta religiosidade por um dos lados dessa interseção. Dentre os inúmeros exemplos visualizados durante o trabalho de campo realizado no Líbano, destaco inicialmente o caso de uma jovem maronita de Beirute que frequenta junto com os seus pais a Igreja Saint-Elie do Downtown. Segundo ela, “eu frequento esta igreja porque aqui nós conservamos a tradição, já a maronita mudou muito.... Eu sou maronita, mas não tenho problema em frequentar a Igreja Melquita, eu sou católica como eles”.

Analisando o discurso dessa jovem, nota-se incialmente a sua identificação do ponto de vista ritual com a prática do Rito Bizantino, a qual ela associou ao longo da entrevista como representante da tradição oriental. E isso leva a um segundo ponto a ser assinalado: que a frequência nos espaços sagrados de outras confissões revela por um lado uma identificação, mas também em muitos casos, uma insatisfação com as práticas religiosas de sua comunidade de origem. Outro elemento interessante nesse discurso foi a afirmação de uma identidade católica, já que melquitas e maronitas têm em comum o pertencimento à comunidade católica pelo fato de serem uniatas.

Mais um exemplo nesse aspecto é o da senhora maronita de Beirute, de 47 anos, que frequenta o monastério dayr mᾱr yūḥannᾱ , localizado na vila de Khenchara, no Monte Líbano. Em seu discurso ela expressa a sua identificação tanto com os ícones bizantinos, expostos na Igreja Saint Nicolas, quanto com as imagens latinas dispostas na Capela Notre Dame, que é o local em que ela mais frequenta no monastério. Em se tratando dessa capela, ela afirma que a sua identificação se justifica através do conteúdo de “interseção” desse espaço ritual, embora não use o termo. Segue o trecho: “A nossa pequena capela é a casa de Deus, é uma coisa muito natural, bastante calma, não é 100% bizantina, é latina também, o ícone da Virgem Maria é bem próximo dos ícones maronitas, é muito lindo. A igreja é perfeita, é calorosa, é o Céu na Terra.”

Vale lembrar que a introdução de imagens latinas em igrejas bizantinas, como as imagens de Maria, é um dos principais sinais diacríticos da latinização na contemporaneidade (Mahieu 2010MAHIEU, Stephanie. (2010), “Icons and/or statues? The Greek Catholic Divine Liturgy in Hungary and Romania, Between Renewal and Purification”. In: C. Hann; H. Goltz (ed.). Eastern Christians in Anthropological Perspective. Berkeley, Los Angeles: University California Press .:79-101). A despeito da sua definição identitária, a senhora frequentadora do dayr mᾱr yūḥannᾱ se apresenta como maronita, como em todos os casos, já que é a identidade confessional que eles vão carregar como autodefinição, mas ela utiliza também a identidade de católica para justificar a sua presença no espaço sagrado da comunidade greco-católica.

Quanto à atração de membros da comunidade greco-ortodoxa para os espaços sagrados greco-católicos cito o exemplo de uma senhora jordaniana também de origem greco-ortodoxa que passou a frequentar uma igreja melquita para acompanhar seu marido, natural de Damasco e greco-católico de origem. Apesar desse objetivo inicial, ela expressa a sua identificação com a nova igreja ao valorizar explicitamente o ponto de interseção desta comunidade: “a missa greco-católica tem de tudo, um pouco da Igreja Latina e um pouco da Ortodoxa.”

Por um lado, ela destacou a beleza do Rito Bizantino, afirmando que se identifica bastante, principalmente com o canto; por outro, ela critica a duração da missa ortodoxa, que, em sua concepção, é muito longa, e valoriza os cortes que a latinidade trouxe para a missa melquita. Do ponto de vista identitário, ela aciona primeiramente a sua identidade confessional greco-ortodoxa, mas expressa a sua identificação religiosa com a igreja melquita por meio da identidade genérica cristã: “Eu sou cristã, somos todos cristãos, ainda mais no meu caso, eu nasci greco-ortodoxa, fui batizada na Igreja Romana, meu marido é greco-católico e desde que me casei frequento uma igreja greco-católica.”

Fora do eixo maronita/greco-ortodoxo, o ritual melquita conta com a participação de membros de outras confissões cristãs, embora em um número bem menor. Para ilustrar, cito o exemplo de duas irmãs siríacas ortodoxas que são frequentadoras assíduas das missas dominicais do dayr alqiyāmat . Segundo elas, o ponto principal da identificação com esse ritual foi a beleza da missa, repetindo, portanto, o mesmo discurso da preservação da tradição oriental. E para expressar seu vínculo religioso com o local elas utilizaram a identidade cristã.

Identidades religiosas e qualidade da performance

Articulada à identificação com os elementos da religiosidade de interseção melquita, a identidade religiosa dos participantes dos rituais praticados nos espaços sagrados dessa comunidade é construída por meio da incorporação e prática rotinizada dos símbolos dessa tradição ritual, por meio de processos cognitivos associados ao modo doutrinal de religiosidade. Segundo Harvey Whitehouse, “o modo doutrinal de religiosidade consiste na tendência, dentro de muitas religiões regionais e mundiais, por revelações a serem codificadas em um corpo de doutrinas, transmitidas através de formas rotinizadas de adoração, memorizadas como parte do conhecimento geral de alguém e produzindo enormes comunidades anônimas” (Whitehouse 2000:1)15 15 Além do modo doutrinal, Harvey Whitehouse descreve o modo imagístico de religiosidade. Este consiste “na tendência dentro de certas tradições rituais e de culto em pequena escala ou regionalmente fragmentadas, por revelações a serem transmitidas através de ações coletivas esporádicas evocando imagens icônicas multivocais, codificadas na memória como episódios distintos e produzindo laços sociais altamente particulares e coesivos”. Whitehouse 2000, p.1). .

As práticas rituais melquitas se enquadram no modo doutrinal de religiosidade em virtude da sua tradição estar incluída dentro da doutrina do Cristianismo e, mais especificamente, a partir da combinação dentre referências doutrinais e rituais latinas e bizantinas, que formam a tradição melquita. A identidade religiosa construída nos espaços sagrados greco-católicos do Líbano é, portanto, resultado da incorporação e prática das prescrições disciplinares dessa tradição religiosa que inserem esses indivíduos na comunidade greco-católica, e quando se trata da inclusão de não melquitas, a referência se torna a comunidade imaginada cristã.

De acordo com Whitehouse, esse modo de religiosidade é eficaz por se tratar de um conhecimento religioso teórico e prático que fica impresso na memória semântica do indivíduo. Memória semântica “refere-se às representações mentais de uma natureza proposicional (de propósito) geral. Por exemplo, o conhecimento a respeito dos sinais de trânsito, da história da teoria antropológica, como comportar-se em um restaurante” (Whitehouse 2000:3).

Assim, a construção da identidade, na visão desse autor, não se explica apenas como uma incorporação de codificações doutrinais e rituais, mas sobretudo pelo impacto que esses elementos causam na esfera cognitiva dos sujeitos. Por conseguinte, a transformação dessas codificações em conhecimento e a rotinização dessas práticas durante nos serviços religiosos, faz com que os indivíduos se reconheçam, ou se imaginem, como pertencentes ao grupo mesmo sem ter tido com eles qualquer contato. Com a relação ao ritual melquita, os impactos cognitivos na memória e na identidade dos fiéis está associada à qualidade da performance em termos disciplinares, estéticos e/ou emocionais.

Para abordar esse ponto, utilizo como referência os dados etnográficos adquiridos nos monastérios devido à qualidade da performance, assim como pelo lugar que eles ocupam na devoção cristã em geral no Oriente Médio (Poujeau 2014POUJEAU, Anna. (2014), Des monastères en partage: Sainteté et pouvoir chez les chrétiens de Syrie. Paris: Société d’ethonologie.). Dentre os monastérios melquitas do Líbano, concentrarei a análise no dayr almukhalliṣ, no dayr mᾱr yūḥannᾱ e o dayr alqiyāmat. O primeiro monastério da comunidade greco-católica a ser aqui analisado é o Convento São Salvador (dayr almukhalliṣ), localizado no vilarejo de Joun, no distrito de Sidon. Esse espaço sagrado é a maison mère (convento principal) da ordem salvatoriana, uma das primeiras e mais importantes ordens dos greco-católicos, a qual teve participação na fundação da Igreja Greco-Católica Melquita, em 1724. Um dos elementos de maior destaque a respeito da performance ritual deste monastério e dessa ordem em geral é o impacto afetivo do culto à memória do Abūnā Bshara Abou Murad (1853-1930). Abūnā Bshara foi um monge formado nesse local e que, atualmente, está em processo de canonização em virtude de uma série de milagres a ele atribuídos (Sabbagh 2000SABBAGH, Raymond A. (2000), Bshara Abou-Mourad Prêtre. Beyrouth: Editions du Renouveau.).

A relação entre a memória deste monge e a performance ritual começa pelo próprio espaço interno da Igreja, no qual há suas imagens dispostas no local, seu túmulo e, ao lado, uma mesa com um livro de orações. Durante a performance, os sacerdotes rezam de frente para as imagens e movimentam o turibulo (incensório) próximo ao túmulo, localizado na nave da igreja, exalando um perfume que parte daquela região da igreja e circula por todo o espaço sagrado.

Para ilustrar o papel do incenso e seu impacto na memória, nos sentimentos e nas identidades dos sujeitos, cito uma entrevista feita com um rapaz de Joun, de origem sunita, mas que frequenta constantemente esse monastério:16 16 Eventualmente esse monastério recebe a visita de muçulmanos, fato que é mais comum do que nos outros estudados na maior parte dos monastérios greco-católicos, e isso se explica, pois o Monastério São Salvador se encontra em uma região cercada por muçulmanos: drusos no Chuf, sunitas em Sidon e xiitas em Tiro. Em outros monastérios como o São João Batista ou então o Monastério da Ressurreição, a presença de muçulmanos não é tão comum, já que, esses espaços sagrados estão localizados em uma região predominantemente habitada por cristãos, como a maior parte dos outros monastérios. Diante disso, a frequência deste jovem mostra que a convivência interconfessional em alguns momentos nesses espaços, promove uma união momentânea para além das diferenças entre cristãos e muçulmanos o que é justificado na maioria dos casos pela devoção a um mesmo Deus. “Eu venho para cá desde criança pois estudei aqui na Escola São Salvador, mesmo depois da escola eu continuo vindo, pois aqui eu relaxo, sinto muita paz. O cheiro desta igreja me faz muito bem. Eu não sei rezar como os cristãos, mas de qualquer forma eu tenho fé aqui.” A categoria “cheiro” (rīḥat) nesse relato foi usada para se referir à identificação com o ritual melquita praticado no dayr almukhalliṣ.

De acordo com Alice Forbess, a ênfase no estímulo sensorial por meio do cheiro revela a característica contemplativa do rito bizantino e, portanto, torna-se um ponto relevante de diferença em relação às igrejas latinas, as quais priorizam a racionalidade no ritual a partir da leitura de textos sagrados. Segundo ela, o aroma do incenso representa uma memória concreta da onipresença das energias divinas ao mesmo tempo em que esse perfume particular é dito ser exalado naturalmente pelo corpo dos santos mortos (Forbess 2015FORBESS, Alice. (2015), “Paradoxical paradigms: moral reasoning, inspiration, and problems of knowing among Orthodox Christian monastics”. In: The Power of Example: Anthropological Exploration in Persuasion, Evocation and Imitation . West Sussex: John Wiley & Sons Ltd .:121).

Essa correlação, assinalada por Forbess, entre o incenso e o corpo dos santos, se enquadra exatamente no contexto do dayr almukhalliṣ na medida em que o perfume do incenso circulado em túmulo do Abūnā Bshara tem o objetivo de estimular a conexão entre o cheiro e a presença desse santo melquita, e, por conseguinte, causar um impacto afetivo e efetivo na memória e na identidade dos participantes.

O segundo monastério a ser analisado do ponto de vista da performance ritual é o São João Batista (dayr mᾱr yūḥannᾱ). Esse monastério é a maison mère (convento principal) da ordem chouerita, a qual, junto com a ordem salvatoriana, é uma das primeiras e mais importantes ordens dessa comunidade religiosa (Heyberger, 2014HEYBERGER, Bernard. (2014 [1994]), Les chrétiens du Proche-Orient au temps de la Réforme catholique: Syrie, Liban, Palestine, XVII - XVIIIeme siecle. Rome: École française de Rome.). Nesse espaço sagrado, o ritual melquita é realizado em duas igrejas; a Igreja Saint-Nicolas, que é o templo principal, lócus da performance regular dos serviços religiosos, como vésperas, orações e missas; e a segunda igreja é a Capela Notre Dame, na qual uma vez por semana é celebrada a missa do monge Boulus Abou Rjeily.

Comparando as duas igrejas do dayr mᾱr yūḥannᾱ observa-se duas diferenças significativas no que tange à prática ritual. A Igreja Saint-Nicolas caracteriza-se pela obediência às prescrições disciplinares do rito bizantino quanto ao conteúdo, à ordem e ao tom das orações, à correta performance do canto e ao adequado posicionamento dos corpos nas diferentes partes dos rituais. Durante os dias de semana, essa igreja recebe em torno de 10 pessoas para os serviços religiosos da manhã, os quais são, normalmente, moradores do vilarejo de Khenchara. Nos fins de semana, a frequência aumenta para um número de 70 pessoas, em média, formado tanto pelos fiéis locais quanto pelos visitantes oriundos de outras regiões do Líbano. Entre os participantes do ritual praticado nesse templo, melquitas e não melquitas, foi bastante comum a ênfase na qualidade ritual em termos da obediência à tradição da Igreja Melquita e do Rito Bizantino.

Na Capela Notre Dame, por sua vez, a performance ritual apresenta características expressivamente diferentes da igreja principal. A primeira importante diferença é o número de pessoas, uma vez que, enquanto a Saint Nicolas reúne um número pequeno de participantes, essa pequena capela, atrai em suas missas semanais um quórum de 40 pessoas, ocupando todo o espaço. A explicação para essa adesão de fiéis, vindos de diferentes regiões do país, reside nas inovações latinizantes apresentadas no ritual, associadas à qualidade da performance do celebrante, considerado pelos participantes uma figura santificada.

A performance dos leigos durante as missas celebradas pelo Abūnā Boulus é marcada pela expressão de intensa emoção sob forma da adoração coletiva em torno das imagens e ícones de Maria, dos santinhos dispostos no local e dos demais objetos sagrados. E no momento da homilia, a devoção adquire um status performático intenso por parte de muitos participantes a partir do movimento corporal daqueles que se ajoelham aos pés do Abūnā Boulus enquanto tocam em suas vestes. Na entrevista de uma senhora maronita, frequentadora da Capela Notre Dame, foi enfatizada a qualidade das missas celebradas pelo monge chouerita Boulus Abou Rjeily, o qual ela considera um santo. Em seu discurso, ela reforça a valor da homilia deste sacerdote e os milagres17 17 Segundo os relatos locais, desde quando ele assumiu a capela de Notre Dame, inúmeras vezes na celebração de sua missa se repetiu o milagre do derramamento de óleo e de vinho por parte dos ícones de Maria. Após esses acontecimentos os devotos desse monge declararam muitas pessoas já foram curadas de doenças, inclusive em estado terminal. por ele realizados durante o ritual.

E por último, mas não menos importante, analiso a performance do ritual no Monastério da Ressureição (dayr alqiyāmat), localizado no vilarejo de Chabrouh, no distrito de Faraya, no Monte Líbano. Nesse espaço sagrado, esse monastério se destaca em termos de sua performance, principalmente em relação à disciplina, intensidade e a emoção. De acordo com os interlocutores que frequentam o local, o ponto atrativo deste monastério é a concentração dos sacerdotes e do público durante as missas, as vésperas e demais orações, assim como da intensidade e emoção em cada um desses rituais.

Começando pela concentração, cito as entrevistas feitas com duas frequentadoras desse espaço sagrado. Na primeira, realizada com uma senhora maronita moradora de Faraya, em torno de 50 anos, perguntei sobre os motivos que a levam participar da missa nesse monastério em vez das inúmeras igrejas maronitas localizadas na região. Sua resposta foi: “A missa maronita não é tão bonita quanto a melquita. Os melquitas são bem mais concentrados e respeitam mais a solenidade. Os maronitas ficam conversando muito durante a missa e esquecem da adoração.” Na segunda, feita com uma jovem, em torno de 30 anos e moradora de Ajaltun (região maronita) fiz a mesma pergunta e a sua resposta foi semelhante à da primeira mesmo sem se conhecerem: “O monastério maronita é muito diferente deste, aqui é muito mais intenso, as pessoas são bem mais concentradas.”18 18 Com o falecimento do fundador do Monastério da Ressurreição, Joseph Wallit, no início de 2020, somado à saída de alguns monges, esse espaço sagrado tem passado por algumas mudanças, dentre as quais a mais significativa é a formalização do seu vínculo com a ordem chouerita. Vale reforçar que esse processo de mudança ocorreu no período em que eu já havia retornado ao Brasil após 14 meses de trabalho de campo no Líbano. Diante desse novo contexto, a continuação da pesquisa neste espaço sagrado mostra-se relevante para a compreensão do atual lugar do dayr alqiyāmat na vivência da religiosidade melquita, de sua prática ritual e a sua importância na construção das identidades religiosas dos cristãos libaneses.

Como uma primeira análise desses discursos, destaco especificamente o termo concentrado (murakkaz) empregado por ambas, o qual podemos traduzir em termos analíticos como disciplina. Essa concentração, no contexto da conversa, diz respeito à disciplina quanto ao engajamento correto do corpo ao fazer o sinal da cruz nos momentos prescritos, levantar as mãos em adoração no momento da consagração eucarística, o respeito e o silêncio e atenção durante o ritual, sobretudo no momento da homilia, e a maneira correta de fazer as orações e executar o canto bizantino tanto do clero quanto dos leigos.

No que diz respeito à maneira correta de fazer as orações e executar o canto bizantino, observa-se uma diferença entre esse monastério e os conventos mais tradicionais. Nestes, tanto monges quanto leigos afirmam que a maneira correta é aquela que preserva a tradição bizantina, isto é, sem inovações. Já no dayr alqiyāmat a maneira correta foi associada à concentração e o envolvimento dos participantes no ritual. Isso porque, nesse monastério, o fundador (Joseph Wallit) fez várias alterações nas orações e no canto, dando um aspecto mais dramático e emocional, em alguns casos, e valorizando a alegria, em outros.

Além da categoria murakkaz, destaca-se a partir da segunda entrevista a utilização do termo intensidade (kathāfa), o qual pode ser interpretado no âmbito local como a qualidade emocional da performance. E no que diz respeito ao primeiro discurso, apesar de ela não ter usado explicitamente este termo, o contexto do seu relato foi na mesma direção ao enfatizar a beleza e a solenidade da missa melquita no dayr alqiyāmat bem como o seu caráter de adoração. A intensidade do ritual nesse espaço sagrado, seja na missa ou nas vésperas, é resultado da qualidade dramática da performance, no qual há um investimento emocional da parte do clero não apenas no que diz respeito à disciplina humana, mas também pela interação entre esta e o agenciamento dos objetos.

O resultado das qualidades performáticas deste monastério com relação à disciplina e a intensidade dramática do ritual levam à utilização por parte dessas interlocutoras de mais uma categoria: jamāl (beleza), usada na frase “a missa maronita não é tão bonita quanto a melquita”. Declarações como essas, assim como nas outras destacadas na seção anterior, que reforçaram a beleza do ritual melquita, chamam atenção para o poder da estética no envolvimento dos fiéis com essa tradição religiosa.

Na análise de Alfred Gell acerca do poder da estética, as obras de arte - como pintura, escultura, música, poesia, ficção - exercem um impacto significativo no espectador em virtude de sua qualidade tecnológica de encantamento. Para Gell, a tecnologia do encantamento baseia-se no encantamento da tecnologia, a qual, por sua vez, “significa o poder que os processos técnicos têm de lançar um feitiço sobre nós, para que possamos ver o mundo real de forma encantada” (Gell 1992GELL, Alfred. (1992), “The technology of enchantment and the enchantment of technology”. In: Anthropology, art and aesthetics, p.40-63.:44).

No universo ritual melquita, a tecnologia do encantamento e o encantamento da tecnologia do ponto de vista estético reside na qualidade artística dos ícones, das imagens e na arquitetura dos espaços sagrados. Todavia, o efeito mais significativo desse encantamento ocorre em função da relação entre esses elementos não humanos com o humano mediante a capacidade técnica dos sacerdotes de utilizar os objetos religiosos durante a performance e de executar com excelência o canto bizantino, as orações e a homilia. Com efeito, a performance ritual investida de técnica por parte do clero contribui para a produção de um efeito estético nos fiéis, os quais passam a definir a missa melquita com base em sua beleza.

Em linhas gerais, a qualidade da performance do ritual praticado nos espaços sagrados melquitas, em particular nesses monastérios, no que diz respeito às suas virtudes disciplinares, estéticas e/ou emocionais, está no valor técnico da interação entre ações e palavras (Tambiah, 1985TAMBIAH, Jeyaraja Stanley. (1985), Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press.; Bandak, 2015BANDAK, Andreas. (2015), “Exemplary series and Christian typology: ‘modelling on sainthood in Damascus’.” In: The Power of Example: Anthropological Exploration in Persuasion, Evocation and Imitation. West Sussex: John Wiley & Sons Ltd.) e elementos humanos e não humanos (Gell 1998GELL, Alfred. (1998), Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press.; Latour 2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Tradução: Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador, Bauru: EDUFBA-EDUSC.; Hanganu 2010HANGANU, Gabriel. (2010), “Eastern Christians and Religious Objects: Personal and Material Biographies Entangled”. In: C. Hann; H. Goltz (ed.). Eastern Christians in Anthropological Perspective. Berkeley, Los Angeles: University California Press.; Mahieu 2010MAHIEU, Stephanie. (2010), “Icons and/or statues? The Greek Catholic Divine Liturgy in Hungary and Romania, Between Renewal and Purification”. In: C. Hann; H. Goltz (ed.). Eastern Christians in Anthropological Perspective. Berkeley, Los Angeles: University California Press .).

Começando pelas ações e palavras, é corrente na antropologia a ideia de que a ação está acima das palavras na eficácia do ritual uma vez que tem rituais em que a compreensão da plateia não é o mais importante. Entretanto, o ritual melquita se enquadra naqueles em que exploram um número de formas verbais em suas orações, músicas, discursos e, portanto, são fundamentais na sua performance mesmo que esteja articulado ao contexto de outras ações (Tambiah 1985TAMBIAH, Jeyaraja Stanley. (1985), Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press.:176).

As palavras estão presentes durante todo o ritual, seja nas orações, no canto e na homilia, as quais em conjunto refletem o seu objetivo, que é reconstituir o drama da Paixão de Cristo. No entanto, estas estão articuladas em todas as etapas em uma forma específica de proferi-las ou cantá-las, que embora também prescrita em sua maior parte na tradição religiosa, podem variar em alguns detalhes localmente, gerando impactos emocionais nos fiéis que frequentam esses espaços.

As orações e o canto são práticas bem semelhantes no Rito Bizantino tanto em matéria de conteúdo, que diz respeito à mensagem cristã, quanto de performance, já que quase todas as orações são cantadas. Nas vésperas dos monastérios dayr almukhalliṣ e o dayr mᾱr yūḥannā, muitas orações são apenas faladas seguindo as prescrições da tradição, mas nas partes cantadas, os coros se destacam pelo seu poder estético, porquanto é realizado por cantores profissionais, especialistas em canto bizantino. No dayr alqiyāmat mesmo os cantores sendo amadores, o Abūnā Joseph (fundador) alterou o jeito de fazê-las e colocou esse ritual bem mais cantado e alterou também o jeito de cantar, ao imprimir uma maior dramatização ou alegria na performance, dependendo da oração ou canção. Embora nesse monastério o canto não apresente um valor estético para os participantes,19 19 Sobre a desvalorização estética do canto executado no Monastério da Ressurreição, tanto leigos quanto os próprios monges faziam piadas a respeito do tom desafinado de alguns dos sacerdotes. muitos deles valorizam o efeito emocional que ele produz.

A oração taḥiyyat alnūr almasa ҆ (Adoração à luz do mundo) feita na Véspera da Noite (ṣalāt almasā ҆) diariamente nos monastérios, apresenta uma performance bem mais dramática neste monastério de Chabrouh. Enquanto nos outros ela é apenas falada no momento em que o sacerdote acende a vela, nesse convento ela é cantada e acompanhada de toda uma dramatização protagonizada por um dos monges que se posiciona de frente para o ícone de Jesus na iconostase, acende a vela ao mesmo tempo em que começa a entoar os primeiros versos. Nesse momento, as luzes da nave da igreja estão baixas para que a iluminação da vela tenha mais impacto e à medida que começa a cantar ele caminha para o seu banco. Os outros monges, por sua vez, cada um em seu lugar, o acompanham nos próximos versos da canção, fazendo um coro uníssono em um ritmo bastante lento e com um tom de voz alto e intenso produzindo uma carga emocional que é observável em suas expressões facial e corporal.

Normalmente antes de dormir, os monges desse espaço sagrado fazem a oração yā yasūʻ rabbī ibn allāhi alḥaiyy irḥamnī ana alkhaṭi ҆ wa khalliṣni (Jesus, meu Senhor, filho de Deus vivo, tenha piedade de mim e me salve), que é mais uma inovação local que tem um impacto afetivo importante nessa comunidade monástica. É uma inovação porque embora seja uma oração conhecida, nesse monastério ela virou uma prática cotidiana, e a sua performance também é diferente. Com as luzes baixas e todos os monges sentados na nave da igreja principal começa a oração, primeiramente falada, partindo do superior local que fala três vezes esses versos e depois a plateia acompanha, e todo esse ritual é repetido com todos os outros presentes sejam monges ou leigos.

Em outros momentos, a dramatização e o sofrimento dão lugar a canções ou orações que foram alteradas em seu ritmo no intuito de deixá-las mais alegres, como do canto da vitória entoado durante a liturgia: quddūs alrabb alṣabā ҆ ūt alsamā ҆ wal ҆ arḍ mamlū ҆atān min majdika alʻaẓim hūshaʻnā fī al ҆ aʻālī (Santo, é o Senhor dos Exércitos; o céu e a terra estão cheios de vossa glória. Hosana nas alturas. Bendito seja o que vem em nome do Senhor. Hosana nas alturas). A performance dessa oração é feita durante a liturgia, e seu impacto é efetivo na plateia do ponto de vista sensorial em virtude de contrabalançar o sofrimento do restante dessa fase do ritual, bem como para celebrar, segundo eles, a vitória de Jesus Cristo sobre a morte. Normalmente os fiéis entoam essa oração em tom alto e eloquente, diferentemente do dayr almukhalliṣ e do dayr mᾱr yūḥannᾱ. Sobre esse tipo de performance, um senhor maronita, de 62 anos, frequentador assíduo desse monastério, relata em uma conversa informal que um dos pontos que mais o aproximam desse local é a espiritualidade alegre, a qual tem proporcionado a vivência de muitas experiências com Deus.

A Homilia (sermão) é outra parte importante do ritual em que palavras e ações se combinam de forma eficaz. Como no caso das orações e da música, o discurso do sacerdote também é construído tanto pelo seu conteúdo quanto pelo modo no qual é proferido. Em todos os monastérios aqui analisados, houve uma valorização por parte dos fiéis acerca da homilia dos sacerdotes, todavia, os sermões do Abūnā Boulus do dayr mᾱr yūḥannᾱ foi o que causou maior expressão emocional nos fiéis durante a performance e gerou maior impacto na identidade religiosa dos participantes, de acordo com os relatos.

Articulado às palavras e as ações, está a relação entre os elementos humanos e não humanos na performance ritual na medida em que, ao mesmo tempo em que as orações são feitas, canções são entoadas e discursos são proferidos. Além disso, os sacerdotes manipulam objetos litúrgicos como o turíbulo que solta um perfume que permanece concentrado dentro do espaço pequeno dessa igreja. Nesse caso, mesmo com toda a dramatização da performance observada no dayr alqiyāmat, no dayr almukhalliṣ o impacto emocional parece ser ainda mais intenso devido à presença do tumulo do Abūnā Bshara e dos seus ícones no espaço ritual, os quais evocam sua memória durante as missas e vésperas.

Assim, pode-se dizer que, mesmo considerando as variações locais, a qualidade da performance do ritual melquita está relacionado às virtudes disciplinares, estéticas e/ou emocionais. A consequência disso, somado à característica de interseção dessa tradição religiosa, é a atração de fiéis melquitas e não melquitas a partir dos impactos cognitivos e afetivos gerados em suas identidades religiosas.

Conclusão

O Oriente Médio contemporâneo é resultado de uma formação histórica que fez surgir uma pluralidade de confissões religiosas, principalmente muçulmanas e cristãs. Com relação ao cristianismo, a variedade de igrejas que convivem na região desde os primeiros séculos faz com que a sobrevivência de cada uma dessas dependa da delimitação das fronteiras e da afirmação de sua identidade religiosa, cujo conteúdo passa pela definição de um ritual próprio (Heyberger 2013HEYBERGER, Bernard. (2013), Les chrétiens au Proche-Orient: de la compassion à la compréhension. Paris : Éditions Payot & Rivages.:125-127). Entretanto, ao mesmo tempo em que a tradição ritual serve para delimitar a identidade de determinada confissão, quando está em jogo à oposição aos muçulmanos, lideranças religiosas têm enfatizado os denominadores rituais comuns com outras tradições para dar sentido prático à ideia de uma comunidade e de uma identidade cristã (Poujeau 2014POUJEAU, Anna. (2014), Des monastères en partage: Sainteté et pouvoir chez les chrétiens de Syrie. Paris: Société d’ethonologie.).

O Líbano, em todos esses aspectos, representa um retrato privilegiado do cenário regional, haja a vista a concentração da maior parte dessas comunidades religiosas no território nacional. Em se tratando das 12 comunidades cristãs, o clero de cada uma destas procura, por um lado, definir as suas identidades confessionais, delimitando fronteiras religiosas e rituais. Por outro, eles se envolvem no processo mais amplo de construção e afirmação de uma identidade cristã com base na seleção de denominadores religiosos e demandas políticas comuns20 20 Embora não tenha sido o foco deste artigo, cabe ainda em outro trabalho acadêmico a análise do engajamento da comunidade greco-católica em promover essa identidade cristã politicamente no contexto desfavorável no Oriente Médio de encolhimento demográfico em relação muçulmanos e do crescimento do Islã Político após a Primavera Árabe. A reação cristã ao Islã Político tem ocorrido em função da ameaça diante da atuação da Irmandade Muçulmana no Egito e do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) (Felsch, 2016). (Felsch 2016FELSCH, Maximilian. (2016), “The rise of Christian nationalism in Lebanon”. In: M. Felsch; M. Wahlisch (ed.). Lebanon and the Arab Uprisings: In the eye of the hurricane. New York: Routledge.:70-86).

Nesse panorama, o estudo concentrado na tradição melquita se torna uma proposta relevante tanto para a discussão da identidade confessional quanto para a afirmação de uma identidade cristã. A ambiguidade aparente de pertencer a referenciais normativos distintos de religiosidade serviu como uma solução para enfrentar ambos os desafios identitários. Isto é, segundo o clero, o diferencial da identidade confessional greco-católica se encontra exatamente no lugar de interseção que a sua religiosidade e seu ritual ocupam no cristianismo libanês. Além disso, em contrapartida, as lideranças religiosas usam a característica ritual e a sua qualidade performática como vocação dessa comunidade para a atração multiconfessional e, assim, valorizam a sua importância na vivência de uma identidade cristã no Oriente Médio. 21 21 Para ilustrar os discursos do clero que reforçam o papel dos greco-católicos na construção da identidade cristã, cito em primeiro lugar a tese de doutorado sobre a história desta igreja desenvolvida por Gabriel Hachem (1990), padre melquita libanês e professor de teologia do Cristianismo Oriental. Em seu estudo, ele apresenta os melquitas como germes da unidade cristã, em virtude de seu ritual e identidade os transformarem em uma ponte entre as comunidades cristãs do oriente. De acordo com ele, a tomada de consciência dessa missão surgiu a partir da experiência vivenciada pelo patriarca, bispos e padres melquitas no Concílio do Vaticano II. Nesse evento, segundo ele, o Papa Paulo VI convocou o Patriarca Melquita Maximus IV para assumir a missão religiosa e política de unir os cristãos no Oriente Médio (Hachem 1990, 274-343). E para dar mais um exemplo da promoção dessa identidade cristã cito o discurso do Abūnā Charlie na homilia do dia 22 de janeiro de 2017 no dayr alqiyāmat quando ele inicia a sua pregação destacando a presença multiconfessional na missa. “Hoje é um dia especial, pois temos aqui coptas ortodoxos, siríacos ortodoxos, maronitas, melquitas, é assim que a Igreja Cristã tem que ser.”

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  • TURNER, Victor Witter. (2005), Floresta de símbolos Niterói: EDUFF.
  • WHITEHOUSE, Harvey. (2000), Arguments and Icons: Divergent modes of religiosity Oxford University Press, New York.
  • 1
    Este artigo foi baseado em 14 meses de trabalho de campo entre os anos de 2014 e 2018 a partir da observação participante nas atividades rituais dos espaços sagrados da comunidade greco-melquita católica do Líbano, seja nas igrejas ou então nos monastérios, onde eu pude participar integralmente da vida monástica e assim compreender com mais acuidade a construção das identidades religiosas dos cristãos do país. Além disso realizei entrevistas formais e conversas informais com sacerdotes e fiéis com intuito de analisar seus discursos sobre o ritual melquita assim como a despeito desta tradição ritual. E por fim, também utilizei o método histórico para compreender a formação da religiosidade melquita por meio da consulta bibliográfica, dos documentos disponíveis nas igrejas e monastérios e por meio das entrevistas.
  • 2
    Entendo o conceito de ritual como “comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas às rotinas tecnológicas, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos” (Turner 2005:49), mas também como desenvolve Talal Asad de que “ritual é o desempenho adequado do que é prescrito algo que depende da disciplina prática e intelectual, mas não exige decodificação”. Com base nessa definição, Asad argumenta que a “performance adequada não implica em símbolos a serem interpretados, mas habilidades a serem adquiridas de acordo com as regras sancionadas por aqueles que têm autoridade” (Asad 1993:27).
  • 3
    Apesar da Igreja Greco-Melquita da Antioquia utilizar o termo melquita em seu nome oficial, este é cronologicamente anterior à data de fundação dessa Igreja. A versão mais comum da origem do termo melquita (do siríaco maliki = rei) é que este foi dado no período do Concílio da Calcedônia em 451 AD quando o Imperador Romano Marciano organizou esse evento para debater sobre a questão da natureza de Jesus Cristo. Sendo decidido que Cristo tem duas naturezas (divina e humana) os cristãos do Oriente se dividiram entre aqueles que rejeitaram e os que apoiaram. Os que concordaram com as determinações do concílio e do imperador Marciano passaram a ser chamados de melquitas de forma pejorativa por aqueles que rejeitaram as mesmas. Após a divisão dentro do Patriarcado Ortodoxo, em 1724, o lado católico decidiu deixar o Patriarcado, fundou uma nova instituição e usou oficialmente o antigo termo melquita, tendo, portanto, como nome oficial Igreja Greco-Melquita Católica.
  • 4
    O conceito de interseção pode ser definido como uma relação em que determinados elementos são pertencentes simultaneamente a planos distintos. No contexto da tradição ritual melquita no Líbano, esse termo é útil, pois expressa a sua conexão com a normatividade bizantina e com a latina, esta última, em virtude do processo de latinização vivenciado por esta Igreja desde a sua fundação.
  • 5
    Sobre as categorias referenciais da comunidade greco-católica melquita, usarei neste artigo tanto o termo melquita, nome oficial e bastante usado pelo clero, quanto greco-católico (em árabe: rûm catholique), mais comum entre os fiéis e usado do ponto de vista político e social, tal como foi classificado no censo de 1932, e em outros registros não oficiais, e nos meios de comunicação de maneira geral.
  • 6
    As confissões cristãs presentes no Líbano são: a maronita, a greco-ortodoxa, a greco-católica (melquita), a armênia ortodoxa, a armênia católica, a siríaca ortodoxa, a siríaca católica, a copta ortodoxa, a caldeia, a assíria, a latina e a evangélica.
  • 7
    A comunidade maronita tem como base religiosa a Igreja Maronita, que é uma instituição fundada no século VII, pelo cristão John Marun de Sarum e defensor do monotelismo, no contexto em que esta doutrina foi condenada como herética. No período anterior à sua nomeação como patriarca monotelita, John Marun tinha sido o chefe de uma importante base monástica no Vale dos Orontes, perto de Hama, Síria, que tinha o nome do antigo monge, São Marun. No século XII, já territorializada no Monte Líbano, essa igreja tornou-se uniata e nos séculos posteriores foi modificando a sua tradição ritual siríaca a partir da incorporação de elementos latinos, principalmente após o século XVII devido à atuação mais significativa de missionários católicos ocidentais no Oriente Médio.
  • 8
    A comunidade greco-ortodoxa tem como base religiosa a Igreja Greco-Ortodoxa que surgiu oficialmente a partir da Grande Cisma do Oriente, quando houve a separação na instituição cristã oficial do antigo Império Romano entre a Igreja Católica, no Ocidente, e a Igreja Ortodoxa, no Oriente. A Igreja Greco-Ortodoxa é a representante histórica da religiosidade bizantina no Oriente Médio, com a conservação de sua arte icônica no espaço ritual, a prática da liturgia de São João Crisóstomo e São Basílio, o monasticismo e a utilização da língua grega em algumas partes do ritual.
  • 9
    A transliteração do alfabeto árabe para o latino seguiu neste artigo as normas do IJMES (International Journal of Middle East Studies) retiradas de sua página eletrônica: https://www.cambridge.org/core/journals/international-journal-of-middle-east studies/information/author-resources/ijmes-translation-and-transliteration-guide.
  • 10
    Essas informações foram adquiridas através do trabalho de campo que realizei nos espaços sagrados do Líbano, principalmente nos monastérios: dayr almukhalliṣ (Monastério São Salvador), dayr mᾱr yūḥannᾱ (Monastério São João Batista) e no dayr alqiyāmat (Monastério da Ressurreição), nos quais pude participar das principais atividades religiosas e acompanhar a vida monástica.
  • 11
    Os conceitos de mediador e intermediário foram discutidos por Bruno Latour em sua teoria sociológica dos objetos. Para o autor, um intermediário, é aquele que transporta significado ou força sem transformá-los; por outro lado, os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam os significados ou os elementos que supostamente veiculam.
  • 12
    O báculo, a mitra, a cruz peitoral e a panagia são usados apenas pelos bispos ou arcebispos.
  • 13
    Epíclese é uma oração da liturgia de São João Crisóstomo feita no momento da consagração dos dons que serão comungados na Eucaristia.
  • 14
    Além disso, como sustenta Stephanie Mahieu em se tratando dos greco-católicos da Europa Oriental, mas que também se aplica aos greco-católicos (melquitas) libaneses, a latinização é um fenômeno que se constrói não apenas por cima (clero e elite), mas também por baixo, por meio do agenciamento dos fiéis (religiosidade popular) (Mahieu 2008:212).
  • 15
    Além do modo doutrinal, Harvey Whitehouse descreve o modo imagístico de religiosidade. Este consiste “na tendência dentro de certas tradições rituais e de culto em pequena escala ou regionalmente fragmentadas, por revelações a serem transmitidas através de ações coletivas esporádicas evocando imagens icônicas multivocais, codificadas na memória como episódios distintos e produzindo laços sociais altamente particulares e coesivos”. Whitehouse 2000WHITEHOUSE, Harvey. (2000), Arguments and Icons: Divergent modes of religiosity. Oxford University Press, New York., p.1).
  • 16
    Eventualmente esse monastério recebe a visita de muçulmanos, fato que é mais comum do que nos outros estudados na maior parte dos monastérios greco-católicos, e isso se explica, pois o Monastério São Salvador se encontra em uma região cercada por muçulmanos: drusos no Chuf, sunitas em Sidon e xiitas em Tiro. Em outros monastérios como o São João Batista ou então o Monastério da Ressurreição, a presença de muçulmanos não é tão comum, já que, esses espaços sagrados estão localizados em uma região predominantemente habitada por cristãos, como a maior parte dos outros monastérios. Diante disso, a frequência deste jovem mostra que a convivência interconfessional em alguns momentos nesses espaços, promove uma união momentânea para além das diferenças entre cristãos e muçulmanos o que é justificado na maioria dos casos pela devoção a um mesmo Deus.
  • 17
    Segundo os relatos locais, desde quando ele assumiu a capela de Notre Dame, inúmeras vezes na celebração de sua missa se repetiu o milagre do derramamento de óleo e de vinho por parte dos ícones de Maria. Após esses acontecimentos os devotos desse monge declararam muitas pessoas já foram curadas de doenças, inclusive em estado terminal.
  • 18
    Com o falecimento do fundador do Monastério da Ressurreição, Joseph Wallit, no início de 2020, somado à saída de alguns monges, esse espaço sagrado tem passado por algumas mudanças, dentre as quais a mais significativa é a formalização do seu vínculo com a ordem chouerita. Vale reforçar que esse processo de mudança ocorreu no período em que eu já havia retornado ao Brasil após 14 meses de trabalho de campo no Líbano. Diante desse novo contexto, a continuação da pesquisa neste espaço sagrado mostra-se relevante para a compreensão do atual lugar do dayr alqiyāmat na vivência da religiosidade melquita, de sua prática ritual e a sua importância na construção das identidades religiosas dos cristãos libaneses.
  • 19
    Sobre a desvalorização estética do canto executado no Monastério da Ressurreição, tanto leigos quanto os próprios monges faziam piadas a respeito do tom desafinado de alguns dos sacerdotes.
  • 20
    Embora não tenha sido o foco deste artigo, cabe ainda em outro trabalho acadêmico a análise do engajamento da comunidade greco-católica em promover essa identidade cristã politicamente no contexto desfavorável no Oriente Médio de encolhimento demográfico em relação muçulmanos e do crescimento do Islã Político após a Primavera Árabe. A reação cristã ao Islã Político tem ocorrido em função da ameaça diante da atuação da Irmandade Muçulmana no Egito e do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) (Felsch, 2016).
  • 21
    Para ilustrar os discursos do clero que reforçam o papel dos greco-católicos na construção da identidade cristã, cito em primeiro lugar a tese de doutorado sobre a história desta igreja desenvolvida por Gabriel Hachem (1990), padre melquita libanês e professor de teologia do Cristianismo Oriental. Em seu estudo, ele apresenta os melquitas como germes da unidade cristã, em virtude de seu ritual e identidade os transformarem em uma ponte entre as comunidades cristãs do oriente. De acordo com ele, a tomada de consciência dessa missão surgiu a partir da experiência vivenciada pelo patriarca, bispos e padres melquitas no Concílio do Vaticano II. Nesse evento, segundo ele, o Papa Paulo VI convocou o Patriarca Melquita Maximus IV para assumir a missão religiosa e política de unir os cristãos no Oriente Médio (Hachem 1990, 274-343). E para dar mais um exemplo da promoção dessa identidade cristã cito o discurso do Abūnā Charlie na homilia do dia 22 de janeiro de 2017 no dayr alqiyāmat quando ele inicia a sua pregação destacando a presença multiconfessional na missa. “Hoje é um dia especial, pois temos aqui coptas ortodoxos, siríacos ortodoxos, maronitas, melquitas, é assim que a Igreja Cristã tem que ser.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2020
  • Aceito
    21 Out 2020
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