A comida, ou a alimentação, é um dos temas de grande visibilidade da atualidade, notável seja pelo interesse manifesto em reality shows, programas de culinária, cursos de gastronomia, movimentos vegetarianistas e de slow food, debates sobre agroecologia e certificação, processos de patrimonialização de saberes e sabores, políticas públicas de nutrição e segurança alimentar, comercialização de produtos orgânicos etc., bem como o florescimento da área interdisciplinar dos Food Studies.
Entretanto sua conexão com a religião muitas vezes é naturalizada como algo menor, tornando-se pouco analisada em pesquisas da área, quando, de fato, são inúmeras as situações em que os fluxos de coisas e pessoas, recorrentes em diversos contextos religiosos, envolvem a produção e o consumo - ou a evitação - de comida. Podemos considerar que comer (e beber) determinados alimentos, ou abster-se de fazê-lo, é parte importante das prescrições de muitas tradições, envolvendo marcas do calendário, formas de sociabilidade, práticas rituais, princípios classificatórios, processos de fabricação do corpo e da pessoa (inclusive de papéis de gênero) etc. Em certo sentido, comer, preparar, oferecer e proibir comida, bem como as gramáticas que regem o que e como se abate, o que se sacrifica, o que se come, o que não se come, a quem ou o quê damos de comer, quem come e/ou quem regula a comida, quando e como devemos nos abster de certos alimentos podem ser entendidos como atos sagrados, ou sacralizadores, isto é, que produzem a religião. Os conhecimentos associados à maneira adequada de “fazer a comida” ou de consumi-la adquirem importância em contextos religiosos, bem como as dinâmicas em torno de sua distribuição, pois são capazes de demarcar circuitos dos que dão, ou dos que recebem, e de hierarquizar as pessoas de acordo com sua possibilidade de acessar os alimentos.
Pensar em comida e sagrado leva também a considerar os limites da categoria religião, ao perceber de que forma os alimentos, as dietas, as rotinas alimentares podem envolver a sacralização do corpo, dos seres vivos, da natureza, ou noções de doença e cura, pureza e perigo, não necessariamente associadas a linhagens religiosas demarcadas, mas se apresentando em associação com espiritualidades difusas.
Por fim, a operação de categorias etnográficas como as de comunhão, no catolicismo, ou de bori (“dar de comer à cabeça”), no candomblé, dissolvem as fronteiras, ou mesmo passam ao largo de oposições entre coisa e pessoa, divino e humano, material e imaterial, corpo e alma, ativo e passivo etc. Entram em jogo materialidades efêmeras, que se desmancham e se consomem para que o sagrado aconteça. Os estudos de comida em contextos religiosos levam à melhor compreensão de ontologias e cosmologias que operem mais com porosidade e fluidez e menos com demarcação e oposição. E, nesse sentido, os estudos sobre comida e sagrado podem ser entendidos como uma das formas privilegiadas de estudo das materialidades religiosas.
Portanto, consumir, distribuir, proibir, ensinar a preparar comida são formas de fazer religião, e nesse sentido, foi proposto à Religião & Sociedade a realização deste dossiê, de caráter pioneiro. Ao realizar uma pesquisa sobre comida e relações étnicas,1 1 Trata-se da pesquisa Comida étnica, fluxos transnacionais e performances de identidade, financiada pelo Edital Universal MCTI/CNPq 28/2018, do CNPq. Menezes, Chagas e Bahia consideraram relevante tratar de sua interface com as religiões, e se dispuseram a coeditar, na revista, uma primeira tentativa de agregação de textos especificamente produzidos sobre a temática. Trata-se de lançar um foco inicial, a partir do Brasil, na produção sobre o tema. Embora a revista já tivesse publicado artigos avulsos a respeito de comida e religião em seus 45 anos de existência, é a primeira vez que ela recebe um conjunto de trabalhos articulados em torno do tema. A ideia de abrir espaço e visibilizar o tema em um periódico consolidado nos estudos da religião no Brasil - o mais antigo na área de Ciências Sociais - busca ir ao encontro de periódicos internacionais, como Material Religion, ou em coletâneas como a editada por Sally M. Promey sobre o sensório na religião (Promey 2014PROMEY, Sally M. (2014), Sensational Religion. Sensory Cultures in Material Practice. New Haven and London: Yale University Press.), que dedicam interesse à alimentação. Se a chamada abria a possibilidade de envio de trabalhos que tratassem de assuntos como tabus alimentares, sacrifícios, padrões dietários, preparações culinárias e corporais, abates religiosos e consumos rituais, patrimonializações do saber-fazer culinária religiosa, alimentação e cura (entre o físico e o espiritual) e outros temas conexos, sete foram os artigos selecionados, recobrindo alguns desses temas.
Os três primeiros trabalhos versam sobre religiões afro-brasileiras, o que não parece ser acaso, dada a centralidade da comida nesse universo (Corrêa 2005CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz.). Ela relaciona corpos e materialidades na sua produção, evocando sentidos, construindo e redefinindo sensações sobre doce e salgado, quente e frio. A comida dos deuses, espíritos e entidades deve ser ritualmente preparada e implica também na circulação do axé, em que esse poder expressa os laços familiares e mediúnicos entre os presentes e destes com o mundo sagrado (Capone 2019CAPONE, Stefania. (2019), “Ará and axé: ritual construction of the body in Brazilian Candomblé”. Transcultural dialogues. FIND Research and Intellectual Dialogue, Issue 2: 33-41, September.). A diversidade na sua produção, a finalidade de cada comida, os interditos, os comportamentos, e os objetos que compõem a sua fabricação combinam uma religiosidade complexa, o que Bastide (1958BASTIDE, Roger. (2001, [1958]), O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras. :70) chama de “cristalização de todo um conjunto de participação entre homens, coisas e orixás”. Os textos do dossiê trazem práticas, os agenciamentos e o olhar sobre o modo como sujeitos, deuses e coisas emergem em suas relações sociais, desestabilizando ideias prontas, e evidenciando que a centralidade do comer nos revela a riqueza de um modo de vida (Goldman 2014GOLDMAN, Márcio (2014), “Da existência dos bruxos (ou como funciona a antropologia)”. Revista de Antropologia da UFSCAR - R@U, 6 (1): 7-24.).
O texto de Jean Favaro, Heida Corona e João Daniel Dorneles Ramos, “Composições de pessoas e mundos na cosmopolítica afro-religiosa: a rede de relações no agenciamento das comidas dos orixás”, tem por base uma etnografia de longa duração, realizada desde 2016 no terreiro Abaçá de Oxalá, dirigido pelo Pai Aldacir, no estado do Rio Grande do Sul. Os autores apresentam as formas e as categorias pelas quais esse coletivo afro-religioso agencia as comidas dos orixás, associando vários modos de composição e produção dos alimentos (a exemplo ebós, quartinhas, abate de animais) às concepções dos orixás, do corpo, do território, dos fundamentos e da cosmopolítica afro-religiosa.
Animais, vegetais, seus derivados em diferentes tipos e cores de axés juntamente com outras materialidades são agenciados pelo pai de santo e demais partícipes, transformando o ato de comer em algo que não se reduz a uma simples comensalidade, mas elementos que compõem fluxos entre coisas e pessoas conectadas ao mundo sagrado. Os corpos dos médiuns também são suportes e alimentos para os espíritos. Obrigações, assentamentos e encruzilhadas produzem uma poética em que tudo e todos simetricamente se alimentam, entretanto não se fundindo em unidades, mas em multiplicidades, como um modus operandi de viver e experimentar as diferenças.
Para além do cotidiano dessas relações alimentares nos terreiros, temos a comida como modus operandi étnico, identificação identitária na condução de um modo político de se pensar em um contexto de controvérsias em que a “galinha da religião de preto” volta à cena pública. Nesse sentido, temos um étnico construído em um contexto político, em que o enfrentamento de atores no campo religioso nacional produz intolerância e formas de resistências. No texto de Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues, “A ‘galinha da religião de preto’ e o reconhecimento de direitos: controvérsias e mobilizações dos povos tradicionais de terreiro em defesa da soberania alimentar e do enfrentamento ao racismo”, comida, religião afro e política aparecem em articulações bastante diferentes, mas igualmente instigantes, em relação ao artigo anterior. Trata-se de pensar as articulações religiosas e simbólicas na luta por direitos com base em uma etnografia realizada junto aos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma) e do Grupo de Estudos Bráulio Goffman (GEBG), entre 2014 e 2018. No processo, as autoras percebem de que modo seus interlocutores produzem uma mobilização nacional em defesa do abate religioso para enfrentar o julgamento ocorrido em 2019 no Supremo Tribunal Federal (STF), que o considerou como constitucional, isto é, não se configurando como maus tratos de animais.
As autoras analisam de que modo dois grupos que se mobilizam em torno dessa agenda promoveram um símbolo diacrítico de uma comensalidade “tradicional” produzida sob uma ética do compartilhar, como parte de uma identidade que se constrói no contexto de agenda de lutas contra a intolerância religiosa. O modo criativo, simultaneamente imprevisível e organizado em que os afro-religiosos promovem seus banquetes, é tomado como uma forte marca de ação na esfera pública. A mobilização de uma identidade em torno da comida reúne um arcabouço de itans, línguas e rituais em que os grupos acionam quando necessitam defender o abate ritual. A mobilização pública implica em alguns momentos na mobilização de identidades (Agier 2003AGIER, Michel. (2003), “Exu e o Diabo em ruas de carnaval: as identidades negras em questão (Brasil, Colômbia)”. In: P. Birman. Religião e espaço público. São Paulo: CNPq; Attar Editorial, :41-62).
Se a comida é uma tecnologia de produção de corpos míticos e políticos, esta traz sensações, sensibilidades e produção de sociabilidades que nos mostram que as crianças são parte da produção mediúnica dessas religiões. Abikus, ibejis, Ègbé orun, as noções que conformam o diverso pensamento africano são trazidas em um modo criativo e permeiam as nossas afro religiosidades. O artigo de Morena Freitas, “Comida de Criança; doces (e) ibejadas da Umbanda”, ao tratar dos doces nas giras das ibejadas, toca nessas questões. Nele, temos o estudo das entidades infantis, as Crianças, que, junto aos caboclos, pretos-velhos, exus e pombagiras, habitam o panteão umbandista. E os doces surgem como comidas de Criança, sociabilidade fundamental nesse rito de Umbanda, porém ainda pouco analisada nos estudos das religiões afro-brasileiras.
Balas, doces e suspiros são capazes de trazer a energia espiritual das Crianças, emanando gostos, cores, cheiros, doçura e encantamento. Brincar e trabalhar são aspectos relacionais presentes na construção do doce como comida, e do cotidiano do terreiro. Em alguns momentos, a exceção deve ser lembrada. Se a categoria trabalho é presente no universo dos médiuns, as Crianças trazem o excepcional, a doçura como aspecto alimentar e o lugar da ludicidade e da travessura como elementos de produção do sagrado. Por outro lado, a autora demonstra como as qualidades multissensoriais associadas aos doces - textura, cor, sabor, consistência - são associadas a características das próprias entidades, reforçando suas capacidades de atuação e modulando suas formas de apresentação. Daí a colocação da conjunção (e) entre parênteses significativos no título do trabalho.
Na sequência, o artigo de Thaís Chaves Ferraz, “Encontrando pontes para o divino: halal, haram e as práticas alimentares em comunidades muçulmanas sunitas e xiitas do Rio de Janeiro” leva os leitores para o universo muçulmano, tematizando as dificuldades de aprovisionamento seguindo os preceitos estritos da religião no contexto carioca. Se os conceitos de pureza, impureza, lícito e ilícito fundamentam uma gramática de classificação dos alimentos, esta precisa ser adaptada à realidade de um país em que o islã é minoritário. Mesmo em um país exportador de carne halal, como o Brasil, é difícil para os fiéis terem acesso aos produtos necessários para o consumo diário. São questões que aproximam a religião do cotidiano vivido e das dificuldades encontradas para a manutenção de fidelidade aos preceitos.
Já o trabalho de Reia Sílvia Gonçalves Pereira e Wania Mesquita, “Viver um dia por vez: jejum pentecostal e espera cristã em um contexto de insegurança alimentar”, trata igualmente de religião e cotidiano ao abordar as ressignificações do jejum pentecostal em uma favela no Rio de Janeiro. O artigo analisa significados atribuídos ao jejum - a privação voluntária de alimento como uma forma de sacrifício à divindade - em uma situação de escassez alimentar envolvendo uma concepção escatológica em torno do tempo e uma reinterpretação da categoria êmica “espera”.
O artigo seguinte, “Seicho-no-Ie, Deep Ecology e as particularidades da globalização nipônica: a comida sob a ótica da ética religiosa ambiental”, de Gustavo Martins do Carmo Miranda, traz as reflexões para uma outra escala de análise e para um outro universo religioso. Trata-se de perceber, por meio da análise de documentos e entrevistas, a forma pela qual as articulações promovidas pelo líder da Seicho-no-Ie, Masanobu Taniguchi, colocaram a mudança de hábitos alimentares no centro das preocupações da Igreja. As aproximações entre ética religiosa ambiental, os princípios da cultura japonesa e a globalização fundamentam que a Seicho-no-Ie promova, de várias formas, a mudança de alimentação e seu cuidado como parte das suas atividades religiosas.
Por fim, Arely del Carmen Torres Medina, no artigo intitulado “El camino hacia lo Halal: Ética y sacralización de los alimentos en la vida del musulmán en Guadalajara”, apresenta a discussão de volta ao islã e à adaptação do consumo alimentar à realidade dos países em que os muçulmanos são minoritários no conjunto de uma maioria cristã. É o caso do México, ou, mais especificamente, de Guadalajara, em que a autora explora a relação de migrantes muçulmanos e de muçulmanos mexicanos convertidos e a criação de um “mapa gastronômico halal” composto por pratos e alimentos de origens culturais distintas (árabes, turcos, paquistaneses e mexicanos), ressaltando os ajustes alimentares necessários aos preceitos religiosos no contexto de sua pesquisa.
Nas mais diferentes religiões, portanto, a comida (ou sua privação) assume uma dimensão fundamental, seja em termos da produção de sociabilidades e hierarquias, seja em situações rituais, relacionando-se a modos de fazer religião. Ela envolve-se também em processos de sacralização do corpo, dos seres vivos, da natureza ou em noções de doença e cura, pureza e perigo, relevantes não só entre linhagens religiosas demarcadas, mas em associação com espiritualidades difusas. Como vimos, os sete artigos selecionados recobrem uma parte expressiva das possibilidades abertas para o dossiê, apresentando casos interessantes e formas de abordagem variadas.
Entretanto, para além das discussões apresentadas pelos autores, acreditamos que o tema “comida e sagrado” aponta para uma agenda de pesquisa mais ampla, em que outras questões possam ser exploradas ou redimensionadas considerando o mote do dossiê, reforçando as interseções entre materialidades e corpos por meio da comida. Como os modos de saber e fazer culinários se engendram com os religiosos e geram novos conhecimentos e técnicas de produção e de aprendizado, já que vários tipos de produção e técnicas são agregados ao saber cozinhar e também outros conhecimentos são constituídos. Essas possibilidades de desdobramento do dossiê podem estar atreladas a seu caráter pioneiro, que ressaltamos na abertura deste editorial
O que já é possível perceber, graças aos dados e análises aqui reunidas, é que abordar as materialidades sagradas com base na comida, tirando-a do fundo da cena e trazendo-a para o primeiro plano, permite ultrapassar binarismos como natureza e cultura, animado e inanimado, morto e vivo dentre outros. Comidas nos trazem conforto, proteção, familiaridade, organizam as nossas vidas, intercedem nossos relacionamentos e nos provêm, em alguns casos, de projetos identitários.
Além do dossiê Comida e Sagrado, este número de Religião & Sociedade conta com três artigos de fluxo e uma resenha. São textos de autoria de investigadores há muitos anos dedicados à reflexão sobre os temas propostos, resultando em análises primorosas. O cristianismo compõe o universo por meio do qual cada autor e autora reflete sobre religião nas suas interfaces com cultura e territorialidades, ação social, política e poder. Em “Catolicismo de esquerda na França: uma análise da Federação Réseaux du Parvis”, Flávio Sofiati lança um olhar sofisticado sobre formas contemporâneas de atuação de católicos na França. Seu estudo de caso é a federação cristã fundada em 1999, composta por mais de 40 associações ligadas, majoritariamente, ao campo progressista católico e também por protestantes liberais, em menor número. Contrariamente aos fundamentalismos e extremismos dominantes entre neoconservadores, os integrantes da Réseaux du Parvis militam por uma Igreja Católica aberta ao mundo e à modernidade, conforme explicita o autor nesse artigo, resultado de seu período de pós doutorado sob a supervisão de Michael Löwy, na École de Hautes Études en Sciences Sociales. Somos apresentados aos períodos em que, décadas atrás, grupos católicos à esquerda gozavam de maior visibilidade e força na sociedade francesa. Com o passar dos anos, os conservadores e o movimento carismático ganharam importância eclesial, tornando-se a face da Igreja Católica na sociedade. Com o início do pontificado de Francisco, em 2013, a esperança de uma nova Igreja se acendeu entre católicos, sendo a encíclica Laudato Si’ tomada como a maior inspiração para esse ressurgimento utópico. Com esse estudo, Flávio Sofiati nos brinda com um debate candente na França e em outros países entre os segmentos progressistas e conservadores no interior dos grupos religiosos e sobre as possibilidades de arranjo entre religião e modernidade.
Fazendo a mediação entre uma temática de importância local e internacional, o artigo “Genealogia do sionismo evangélico no Brasil”, de autoria de Maria das Dores Campos Machado, Cecília Mariz e Brenda Carranza, pesquisadoras com inúmeras contribuições à Religião & Sociedade nesses 45 anos de revista, permite-nos acessar uma reflexão criativa, profunda e muito atual sobre a aproximação de evangélicos das formas de filo judaísmo e sionismo no Brasil. Por meio de uma abordagem sociológica e historiográfica, as autoras nos levam a conhecer uma vasta bibliografia produzida por lideranças evangélicas nacionais de diferentes denominações na defesa do Estado de Israel. Embora as eleições de 2018 tenham sido fundamentais para a projeção pública das alianças ideológicas, políticas e morais com o sionismo por parte de evangélicos no Brasil, Machado, Mariz e Carranza argumentam que a teologia dispensacionalista e o sionismo já faziam parte da cosmovisão desses atores, sejam protestantes históricos, sejam pentecostais. Um conjunto de publicações foi produzida principalmente nos anos 1970 e 1980, contudo, as produções do início do século XXI seriam fulcrais para compreender as formas de filo judaísmo que se anunciaram a partir de então. O Movimento Sionista Internacional, a geopolítica no Oriente Médio e as missões protestantes são alguns dos tópicos de destaque nas obras analisadas. Além da pesquisa bibliográfica, as autoras investigam os impactos que as peregrinações à Terra Santa, a teologia do domínio e o movimento Nova Reforma Apostólica desempenham no ativismo sionista cristão no Brasil.
No último artigo do fluxo, contamos com uma análise sobre a pessoa pentecostal, as moralidades que envolvem o pertencimento religioso a esta tradição e as concepções de bem aventurança por meio do acompanhamento de rituais fúnebres. Andréa Vicente da Silva é autora de “A face e a bem-aventurança: a pessoa cristã pentecostal em ritos funerários”, resultado de um rico trabalho de campo realizado em congregações da Assembleia de Deus e no cemitério de Magé, Rio de Janeiro. Nessas ocasiões sensíveis, a pesquisadora, por meio de um investimento continuado nas relações com evangélicas enlutadas, conseguiu entrevistas e uma situação de observação privilegiada que lhe deram acesso aos mecanismos de avaliação da condição do morto pela observação de suas faces. Durante essas ocasiões, constatou Andréa Vicente, “quando um morto tem uma “face feliz”, sua condição de bem-aventurança é confirmada. De maneira diferente, quando tem uma “face triste e apavorada”, seguem debates com base na expressão do rosto visando compreender de que forma a trajetória moral em vida pode explicar aquele traço distintivo estampado no cadáver”. Uma delicada leitura das obras de Marcel Mauss é empreendida pela autora com vistas ao enquadramento das situações observadas em torno do corpo, das linguagens, dos rituais, da vida religiosa e das expectativas em torno dela geradas.
Na resenha intitulada “Cristianismo no Brasil em perspectiva global”, José Pereira Coutinho se debruça sobre o livro Christianity in Brazil: An Introduction from a Global Perspective, de autoria de Silvia Fernandes. Nele, segundo Coutinho, uma perspectiva de globalidade se apresenta sobre o fenômeno religioso no Brasil, em decorrência do país ocupar o segundo lugar em número de cristãos e de ser aquele com o maior número de católicos e de pentecostais em todo o mundo. Dois eventos são apresentados como exemplares do lugar do Brasil no cenário cristão internacional: a visita do Papa Francisco, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude de 2013, e a inauguração do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, em 2014. Nesse sentido, conforme Fernandes, o seu objetivo no livro era analisar a complexidade religiosa brasileira tendo, como pano de fundo, o cristianismo global em termos de alinhamentos e redes de sustentação e influência transnacionais. Na resenha, podemos acessar uma rica apresentação da obra, de seus capítulos e uma formulação própria de Coutinho sobre quais seriam os “pontos cegos” do livro, destacando ausências teórico-metodológicas que lhes chamaram atenção e sugerindo outras possibilidades de abordagem ao tema.
Referências
- AGIER, Michel. (2003), “Exu e o Diabo em ruas de carnaval: as identidades negras em questão (Brasil, Colômbia)”. In: P. Birman. Religião e espaço público São Paulo: CNPq; Attar Editorial, :41-62
- BASTIDE, Roger. (2001, [1958]), O candomblé da Bahia: rito nagô São Paulo: Companhia das Letras.
- CAPONE, Stefania. (2019), “Ará and axé: ritual construction of the body in Brazilian Candomblé”. Transcultural dialogues. FIND Research and Intellectual Dialogue, Issue 2: 33-41, September.
- CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível Rio de Janeiro: Fiocruz.
- GOLDMAN, Márcio (2014), “Da existência dos bruxos (ou como funciona a antropologia)”. Revista de Antropologia da UFSCAR - R@U, 6 (1): 7-24.
- PROMEY, Sally M. (2014), Sensational Religion. Sensory Cultures in Material Practice New Haven and London: Yale University Press.
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Trata-se da pesquisa Comida étnica, fluxos transnacionais e performances de identidade, financiada pelo Edital Universal MCTI/CNPq 28/2018, do CNPq.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Set 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022