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Antigos mestres do espaço, novos protetores dos homens: formando um povoado na Amazônia brasileira1 1 Agradeço aos dois pareceristas anônimos que, com suas valiosas críticas e sugestões, me ajudaram a tentar dar um salto qualitativo na análise proposta. Espero que o resultado tenha correspondido às suas expectativas.

Former masters of space, new protectors of men: establishing a village in the Brazilian Amazon

Resumos

Resumo: Com base em uma pesquisa perto de Santarém (Pará), o artigo busca questionar a impressão de impermeabilidade entre “santos” e “encantados”, como foi enfatizada pela antropologia amazônica. Analisando as conexões entre as duas categorias, e a sua divisão em subcategorias, sugere-se que sua alternância tece uma narrativa sobre a emancipação dos seres humanos vis-à-vis das forças previamente presentes: depois de ter negociado com os encantados o direito de morar num local, os homens convidam os santos em suas próprias residências, como se a aliança com esses novos protetores permitisse afrouxar o domínio dos antigos mestres do espaço. Nessa história situada, os encantados mapeiam o espaço geográfico vivenciado enquanto santos simbolizam o tecido de relações sociais forjados nele entre os seres humanos.

Palavras-Chave:
religiosidade; Amazônia; santos; encantados; histórias


Abstract: Based on fieldwork near Santarém (Pará), the article seeks to question the impression of impermeability between “saints” and “encantados”, as emphasized by Amazonian anthropology. Analyzing the connections between the two categories, and their division into subcategories, it suggests that their alternation weaves a narrative about the emancipation of human beings vis-à-vis previously present forces: after having negotiated with the encantados the right to inhabit a place, human beings invite the saints into their own homes, as if the alliance with these new protectors allowed them to loosen the hold of the old masters of space. In this situated story, the encantados map the geographic space experienced while saints symbolize the fabric of social relationships forged in it by human beings.

Keywords:
religiosity; Amazon; saints; encantados ; situated stories


Desde os anos 1950, os antropólogos que se interessaram pela vida religiosa das populações rurais na Amazônia fluvial sublinharam as suas riquezas e criatividade. Emerge de seus escritos a imagem de uma religiosidade formada por duas vertentes que parecem quase impermeáveis uma à outra, o que se reflete no título dado por Eduardo Galvão à sua obra publicada em 1953: Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. O primeiro termo, o mais simples a caracterizar em razão da sua ampla difusão, refere-se ao culto dos santos católicos que vai agregando grupos de populações de tamanho mais ou menos extenso, conforme se trata do padroeiro de uma localidade ou do santo de devoção de uma pessoa, de uma família ou de uma profissão. O segundo termo, visagem, palavra que vem do francês visage, abrange uma variedade de seres invisíveis capazes de se manifestar aos homens, mostrando-se a eles ou fazendo-se ouvir deles. Está associado a outras expressões como “bichos visagentos” ou ainda “encantados”. Alguns desses seres são considerados espíritos da natureza, “donos” de um lugar ou de uma espécie animal; outros são concebidos como crianças, mulheres ou homens falecidos de morte violenta ou sem que seus corpos fossem jamais encontrados. A palavra “encantado”, prevalecendo hoje em dia entre as populações rurais, é a que escolho para designar esse amplo conjunto de seres que Galvão referiu como visagens.2 2 Aliás, é também o que faz Galvão no seu livro em que a ocorrência do termo encantado é maior do que a de visagem.

Aparentemente, santos e encantados se opõem de várias maneiras: os primeiros pertencem a uma religião institucionalizada e penetram a esfera pública enquanto os segundos são associados a um núcleo de “crenças populares” e à informalidade das conversas particulares. As duas figuras se diferenciam também pela sua suposta natureza: o qualificativo “besta” usado a respeito das visagens indica que estas são colocadas a certa distância da humanidade, ao contrário dos santos que continuam a pertencer a ela, apesar do novo estatuto adquirido. O fato de se julgar ou não possível encontrar relíquias dessas personagens parece ser aqui um divisor de águas: é muitas vezes o caso dos santos católicos, nunca dos encantados. Ademais, embora todos exijam “respeito” dos homens, os santos e os encantados difeririam na sua reação aos casos de transgressão. Os primeiros se deixariam apaziguar com rezes e remorsos ao passo que os segundos permaneceriam sempre insensíveis às razões das fraquezas humanas: os santos mostrariam, portanto, benevolência e clemência, enquanto os encantados despertariam acima de todo medo e desconfiança. Por fim, se é excepcional3 3 Veremos estas exceções na Parte 3. das populações locais evocarem a presença de visagens ou de encantados quando estão no espaço da igreja ou participam de uma cerimônia católica, a recíproca não é verdadeira: uma discussão iniciada com histórias de arriscados e perigosos encontros com os encantados pode prosseguir com relatos dos benefícios milagrosos concedidos por um santo e pagos com uma “promessa”.

Essa série de contrastes confirma a priori a percepção de Galvão e outros estudiosos que a religiosidade rural amazônica é composta de duas vertentes coexistindo em paralelo e se comunicando pouco, ou pelo menos de maneira não simétrica: a devoção aos santos é oferecida aos olhos alheios como prova de fé enquanto as menções aos encantados aflorando na intimidade só deixam de ter um tom jocoso quando a confiança se instala. Assim sendo, é como se uns e outros remetiam a “culturas” originárias específicas ou pelo menos a tonalidades culturais diferentes inseridas numa relação desigual: por um lado, a religião hegemônica trazida da Europa pelos portugueses desde o início da colonização; por outro lado, as crenças e práticas remotamente derivadas de um fundo ameríndio genérico e hoje subordinado.

Neste artigo, gostaria de questionar a impressão de impermeabilidade entre santos e encantados, que surge da leitura da bibliografia clássica e tende a se impor ainda hoje a todo pesquisador, sugerindo que, precisamente, ela poderia ser só uma impressão. Os dados etnográficos coletados em Alter do Chão,4 4 Alter do Chão, uma vila de cerca de 6 mil habitantes localizada a cerca de 40 quilômetros da cidade de Santarém, é bem conhecida pelos turistas pela beleza de suas praias. no estado do Pará, não me permitem ser definitiva no assunto e menos ainda pretender que a análise que passarei a desenvolver se aplique ao todo amazônico; eles me levam, no entanto, a tentar adotar uma outra perspectiva,5 5 Realizei diversas pesquisas etnográficas (2014, 2015, 2017 e 2018) sobre o tema da patrimonialização, no caso da festa do sairé, e da conformação local do campo católico. No decorrer dessas estadias, o tema dos encantados e dos santos apareceu inúmeras vezes de forma espontânea nas conversas que tive com os moradores, aposentados ou jovens, católicos fervorosos ou de circunstância, nas suas residências ou na ocasião de festejos religiosos. O artigo, portanto, não se baseia em materiais coletados no contexto de uma pesquisa precisa sobre a relação entre santos e encantados, mas em dados dispersos, contudo condizentes, obtidos no decorrer de várias pesquisas sobre outros temas, mas no mesmo local. na esteira do que o próprio Galvão também anunciou, nesta revista, com o vocabulário da época: “Essas duas ordens de divindades não resultam em duas ordens de religião, tampouco levam a contrastes entre uma religião e superstições populares. Na mente do caboclo6 6 Após o trabalho seminal de Deborah Lima (1999), difícil é utilizar o termo caboclo de maneira acrítica, e ainda menos ao singular. compõem um todo, sua religião” ([1953] 1983GALVÃO, Eduardo. (1983 [1953] ), “Vida religiosa do caboclo da Amazônia”, Religião & Sociedade, nov. 1983[1953]: 3-9.:6).

Levando a sério a observação, proponho que, em vez de pensarmos em termos de práticas compartimentadas ou de uma coexistência de dois universos religiosos paralelos, façamos esforços para identificar os elos que os conectam e para pensar o que essa aparente tensão, essa, sim, efetiva, organiza. Ora, me parece que um bom exemplo desses fios entremeados se encontra nas exigências de uma construção discursiva especifica, dizendo respeito à emancipação dos seres humanos vis-à-vis das forças a quem estavam inicialmente submetidos. Mais especificamente, defendo que, com a alternância das referências aos encantados e aos santos, se desenha uma história da ocupação de um dado espaço geográfico, durante a qual homens e mulheres conquistam uma relativa autonomia substituindo a autoridade dos primeiros pelo patrocínio dos segundos: depois de ter negociado com os seres invisíveis já presentes no local antes de sua chegada o direito de morar e construir as suas casas, os homens parecem convidar os santos a virem habitar os pequenos altares providenciados para eles em suas residências, como se a contratação de uma aliança com esses novos protetores permitisse afrouxar o domínio dos antigos mestres do espaço e amenizar a sua dívida para com eles.

O relato da apropriação de um território por coletivos humanos se estrutura dessa forma em torno de uma perspectiva temporal que se alimenta de uma folheação mitológica, ou seja, que convoca a ideia de disjunção. Após ter discutido na primeira parte a categoria de encantado, e numa segunda a de santo, mostrarei suas diferentes facetas e articulações, para, por fim, voltar à lógica esboçada acima do desenrolar dessas histórias geograficamente situadas.

Encantados e visagens

A literatura sobre as práticas e crenças relacionadas com os encantados entre as populações ribeirinhas da Amazônia rural é bastante extensa, desde os estudos pioneiros de Charles Wagley (1953WAGLEY, Charles. (1953), Amazon Town, A Study of Man in the Tropics. Oxford: Oxford University Press.) e de seu estudante Eduardo Galvão (1955) até trabalhos sobre uma figura em particular, como é o caso do livro sobre o boto de Candace Slater (1994SLATER, Candace. (1994), Dance of the dolphin: transformation and disenchantment in the Amazonian imagination. Chicago; London: The University of Chicago Press.) ou do artigo sobre o lobisomem de Mark Harris (2008HARRIS, Mark. (2008), “O lobisomem entre índios e brancos: o trabalho da imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII”, Revista Ieb, 47: 29-55.).7 7 A pesquisa de Galvão e Wagley, como se sabe, foi realizada na cidade de Gurupá, o trabalho de Slater se baseia essencialmente em relatos colhidos em Parintins e a parte brasileira da documentação mobilizada por Harris provem do Baixo Amazonas. Não faltam também estudos sobre o complexo religioso que foi conceitualizado como pajelança cabocla por Heraldo Maués (1995MAUÉS, Heraldo. (1995). Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: CEJUP.) ou sobre a relação entre este e a pajelança indígena (Rodrigues, Trindade, Peixoto & Vieira Filho 2014, por exemplo).8 8 A bibliografia sobre a pajelança indígena é extensa demais para ser citada, e a comparação ultrapassa o propósito do presente artigo. A leitura de trabalhos sobre povos indígenas deixa, no entanto, entrever muitas analogias, como é o caso da tese de Milena Estorniolo (2020) sobre os Baniwa. Embora a expressão seja recorrente na bibliografia e tenha a força de evocação de uma singularidade, opto por não a utilizar porque nenhum morador de Alter do Chão, onde fiz a pesquisa, se refere a ela. O gosto que eles demostram em relatar encontros com os diversos “encantados”, seus próprios ou de outros, não se traduz por certo numa vontade de nomear uma totalidade de cunho religioso.

Nem sempre é fácil orientar-se nesse sistema dos “encantados”.9 9 Entre diversas discussões da complexidade da categoria “encantados”, podemos citar os trabalhos de Nicolas Tiphagne (2005), João Valentin Wazyniak (2012) e Emilie Stoll (2014). Com efeito, as pessoas designam as vezes com esse termo uma subcategoria precisa de seres não humanos, mas, logo em seguida, elas amenizam as singularidades apontadas e declaram que qualquer um deles é encantado. Ou, de modo simetricamente oposto, eles podem iniciar a conversa mencionando propriedades gerais que seriam válidas para todos eles, para depois contradizer essa afirmação ao introduzir diferenças que quebram a unidade alegada. Esse vaivém entre um nível genérico e um nível específico faz com que o pesquisador possa ter o sentimento de que se trata de uma categoria extremamente evanescente.

Começarei com o que aparentemente faz unanimidade. Perguntados sobre o que é um encantado, as pessoas se referem geralmente a um duplo processo: por um lado, a eleição ou a predação (dependendo do ponto de vista adotado) e, por outro lado, a transformação. Com efeito, considera-se que muitos encantados foram seres humanos de quem outros encantados - portanto, preexistentes a eles - “se agradaram”. Devido a essa paixão, homens e mulheres foram levados “de corpo e alma” para viver em sua companhia no encante, em ricas cidades subterrâneas cobertas de ouro. Nesse nível de generalidade, os encantados são seres humanos que adquiriram uma natureza não humana e podem se tornar visíveis assumindo uma forma animal ou humana.

Todavia, e embora acredita-se que todos os encantados possam se transformar no que bem entenderem, inclusive que eles possam se apresentar com traços de “gente”, a definição anterior não é condizente para os seres geralmente citados como exemplos. Assim, não é atribuído um passado previamente humano ao boto, à sereia ou à “cobra grande” que moram abaixo da superfície das águas e pertencem ao grupo mais famoso dos encantados: os “do fundo”. E ainda é menos o caso de entidades associado a um outro grupo que ocuparia o espaço da mata, como o curupira (uma pequena criatura com os pés voltados para trás), o anhangá (um veado de olhos de fogo) ou o gritador ou jurupari (um velho índio), entre muitos outros.

Como nota Eduardo Galvão, o que é comum a todos os encantados, é de “domina[r] ou controla[r] um setor do ambiente natural, a mata e os rios” (1976:80). Nessa linha de pensamento, os encantados aparecem como protetores dos espaços naturais ou espécies dos quais são “mães”10 10 Tiphagne (2005, cap. 4), entre muitos outros, lista as expressões ouvidas na Ilha do Marajó: “mãe da floresta”, “mãe d’água”, “mãe do seringal”, “mãe do bicho”, “mãe do peixe”, “mãe do fogo”. Chama atenção o fato dessas entidades serem exclusivamente qualificadas de mães e nunca de pais, apesar de os encantados serem associados à masculinidade definida pela capacidade a mandar e exercer o poder. É um ponto sobre o qual seria interessante refletir ulteriormente. particularmente ciumentas, zelando pelo que consideram ser delas (“tomam conta do pedaço deles”, costumam dizer moradores de Alter do Chão). Essa ancoragem territorial se observa da mesma forma para aqueles encantados chamados de visagens, os quais são reputados perambular durante a noite perto de certos locais determinados: o cemitério, a praça, entre outros. Mas estes não se originariam necessariamente no desaparecimento dos corpos como muitos encantados do fundo nem seriam alheias à condição dos homens, o que é o caso de boa parte dos encantados da mata. Conforme os moradores da vila, as visagens são “almas sofridas, penosas”, “espíritos”, “gente morrida”, palavras nunca usadas no caso dos outros encantados.

Indagados então sobre a diferença entre visagens e encantados, os habitantes se referem logo ao fato que as primeiras “moram” enquanto os últimos, sejam eles do fundo ou da mata, “andam”. Destarte, grande seria a tentação de deduzir da caracterização por esses verbos que as visagens são percebidas como estáticas, presas a um ponto geográfico preciso, enquanto os encantados seriam suscetíveis de se mover no território que eles dominam, se a distinção resistisse a um exame mais minucioso. Com efeito, uma conversa mais demorada permite perceber que os moradores reconhecem também que as visagens, que a princípio “moram”, se deslocam, assustando as pessoas, como o “padre sem cabeça”, que ficaria perto do cemitério, ou ainda o “calça molhada”, que apareceria na proximidade da praça. Reciprocamente, fica claro também que os habitantes acham que os encantados, apesar de dotados da capacidade de andar, têm residência fixa cuja localização é conhecida de todos.

Se buscarmos uma diferença entre os dois, não é tanto entre o “morar” e o “andar” quanto na concepção das causas e efeitos da ocupação dos lugares por esses seres: seria involuntária e parasitária no que diz respeito às visagens, derivadas de mortes inacabadas do ponto de vista do rito, enquanto ela é tida como intencional e fundadora para os encantados do fundo e da mata, cuja existência não implica um processo de mortalidade. Tanto as visagens quanto os encantados contribuem, portanto, para um mapeamento do espaço, mas, no caso das primeiras, se trata de um espaço socializado diariamente por homens e mulheres que, nessa vila turística, são poucos a ainda cuidar diariamente de roça.

Essa classificação entre encantados que nunca foram seres humanos (os encantados da mata), aqueles que ainda têm vínculos com essa condição (as visagens) e aqueles que têm uma dupla natureza (os encantados do fundo) é lábil, algumas pessoas chegando até a dizer que o “calça molhada” e o boto são um só. Um elemento é então apontado: o som do tecido encharcado, que dá nome à visagem, seria idêntico ao do boto saindo das águas vestido de uma calça para participar das festas dos homens e seduzir suas mulheres.

Apesar dessa flexibilidade, me parece, no entanto, que a classificação define os espíritos bons para a possessão.11 11 As pessoas usam muitas expressões para designar uma situação na qual uma pessoa é considerada habitada por seres, espíritos ou divindades entre as quais: “incorporar”, “receber”, “pegar”, “estar com” (para um estudo de caso em Belém, ver Boyer, 1993). Elas estimam também que o “dom de nascença” é mais importante de que a “formação”, o que faz eco com o que eu analisei na mesma cidade (Boyer 1996). Como o presente artigo não foca sobre as modalidades do contato entre homens e entidades, escolho utilizar o termo “possessão”, comum na literatura antropológica. É assim difícil imaginar que encantados da mata ou visagens possam usar do corpo de qualquer pessoa para fins de cura. Aliás, apenas os encantados do fundo, esses, sim, bem-vindos, recebem o qualificativo de “gente”, uma palavra que evoca a sua proximidade com os homens e as mulheres, o compartilhamento de uma corporeidade humana, e até de uma condição evolutiva. Eles são descritos nos termos seguintes por dona Isabel, uma senhora nos seus oitentas anos sempre animada e brincalhona, querida pelos netos e bisnetos e respeitada pelos vizinhos, que se sentiu “acompanhada” por eles a vida toda: “Eles podem se afastar, podem morrer. São gente que nem a gente. Não são espíritos. Estão sujeitos às mesmas doenças que nós.” Entretanto, o fato de os encantados serem considerados seres que podem morrer sem serem por isso tidos como espíritos está obviamente sujeito a discussão, de modo que ninguém possa ser definitivo sobre o assunto.

A faculdade de ser “incorporado” pelos encantados do fundo é atributo dos pajés, isto é, aqueles que completaram seu arsenal terapêutico com a excepcionalidade de serem assistidos por essas entidades durante os ritos. Os pajés formam aqui uma subcategoria de “curadores”, em que estão incluindo também as parteiras que ajudam as crianças a nascerem, os benzedeiros que intervêm contra o mau-olhado e a “flechada de bicho” preparando bebidas e banhos, os puxadores que tratam de luxações e fraturas, e os videntes que avisam sobre coisas grandes e pequenas que estão por vir. Embora a distribuição dessas habilidades na vizinhança e no parentesco seja do conhecimento de todos (mais de vinte nomes, de falecidos e de vivos, me foram citados), as práticas permanecem na maioria das vezes discretas, realizadas na casa do curador ou de seus pacientes, e muito individualizadas, sem que nenhum agrupamento de especialistas se formasse.

Em soma, esse universo dos encantados forma um conjunto onipresente, mas um tanto evanescente: sem nome definido, sem culto sistemático, sem hierarquia religiosa, com crenças e práticas flutuantes (rituais inovadores, tipos de entidades caracterizados de maneira flexível). Além de ele parecer pertencer ao passado. Em Alter do Chão, como em outras vilas e povoados amazônicos, vários moradores, independentemente da sua situação profissional, sexo e idade, afirmam, como a dona Isabel anteriormente, que os encantados agora “se afastaram” porque a modernidade - seja a iluminação, o barulho e as multidões - os incomodaria. Outros habitantes parecem até mais radicais quando alegam que isso seria apenas uma “crença, que o pessoal acreditava nessas coisas” outrora. À medida que a discussão prossegue, todavia, as coisas se tornam mais complexas, a existência dos encantados sendo posta como um fato independente das opiniões diversas de cada um. É exatamente isso que Fátima, estudante de 26 anos e militante indigenista, expressou em termos muito parecidos com o que Vitória, professora na casa dos trinta, me disse em outra ocasião: “Os jovens não acreditam, mas sabem que existe. Quando não acreditamos neles, eles se afastam. Mas eles continuam aqui.” Dona Isabel, que se encontra no outro polo do espectro etário, declarava por sua vez: “Acredito nos encantados, mas não me apego.” Algumas formulações resumem bem o sentimento geral: “Não acredito neles, mas também não duvido” ou ainda “não acredito, mas não desfaz”. Tais declarações costumam ser o prelúdio de muitas histórias dos encantados, atestando da sua persistência no imaginário amazônico.

Santos de devoção versus santos padroeiros

Frente a este mundo encantado, encontra-se um outro conjunto religioso, este organizado em torno de um núcleo duro fácil de identificar: um Deus trinitário, inúmeros santos, celebrações codificadas e publicizadas, uma hierarquia, ratificada pela instituição eclesial ou não, mas sempre conhecida de todos. O catolicismo, portanto.

No entanto, há de contar com uma distinção, já antiga na literatura, entre as celebrações dos santos padroeiros, organizadas pelas autoridades eclesiásticas e voltadas para o bem coletivo de uma localidade, e as festas de “menor importância” que os leigos realizam para honrar um santo a quem estão ligados por uma devoção pessoal.12 12 Para a Amazônia, ver Eduardo Galvão (1976 [1955]) e Heraldo Maués (1995), já citados. O que distingue essencialmente as duas categorias é a intensidade do controle do rito pela instituição católica: sólido no primeiro caso, com a presença preconizada do padre; tênue no segundo, já que a sua vinda seria dispensável. A independência das festas dos santos de devoção em relação à instituição eclesial é enfatizada nos seguintes termos por dona Mariana, uma moradora de mais de 80 anos famosa por ter guardado uma memória clara de como essas festas eram organizadas na vila: “Isso é uma criação da gente mesmo, do povo da Igreja católica. Mas é separado.” A formulação, com a qual a maioria concorda, chama atenção sobre dois pontos: os moradores julgam que as festas para os santos de devoção pertencem plenamente ao catolicismo, pois os seus organizadores se consideram seguidores dessa religião; eles acham, no entanto, que elas conservam sua autonomia porque são realizadas por particulares a fins pessoais.

Várias oposições foram propostas para apreender esse catolicismo multifacetado: popular versus erudito, informal versus oficial, subordinado versus dominante, profano versus sagrado, resistência versus controle, leigo versus hierarquia eclesiástica. Por razões diferentes, a aplicação estrita dessas oposições não demora, porém, em encontrar seus limites. Com efeito, constata-se que leigos, assumindo funções na estrutura local da Igreja e muito bem familiarizados com seus cânones, organizam cerimonias para os santos de devoção; que o lado “profano” ou a “festa social” (refeições diversas, “brincadeiras”, baile) é julgado fundamental para o brilho das festividades religiosas; ou ainda que o prestígio que alguém consegue tirar da organização de uma festa para um santo de devoção melhora também a sua posição social na comunidade católica oficial.

Ora, durante as minhas estadias em Alter do Chão, fiquei surpresa por várias vezes ouvir os moradores da vila se referir aos mesmos verbos “morar” e “andar” que vimos aparecer a respeito dos encantados, como se fosse mais um critério que diferenciasse as duas categorias de festejos: os padroeiros seriam santos que “moram”, e os santos de família, entidades que “andam”. Gostaria, portanto, de fazer duas breves descrições desses tipos de festas religiosas como elementos contextuais para tentar especificar o significado dos termos em cada caso.13 13 As descrições seguintes não visam a exaustividade, mas, sim, a levantar pontos de comparação a respeito da marcação ritual do território.

Além de regidas pela instituição católica, celebradas pelos seus representantes e integradas ao calendário litúrgico oficial, as festas dos santos padroeiros têm por centro cerimonial o próprio edifício da igreja e as procissões indicam até onde ele irradia. Isso fica claro na dupla caminhada que leva os fiéis até as casas as mais afastadas, ou seja, até os confins do que se reconhece como território da comunidade. Em um dos bairros mais recentes da vila como em muitos locais, a importância político-religiosa da exibição do santo no espaço público para realizar essa conexão era evidente durante a festa do Sagrado Coração de Jesus, que foi escolhido como padroeiro. Num primeiro momento, o da trasladação noturna, a imagem do santo, instalada na sua carruagem coberta de flores e folhagem e acompanhada pelos cânticos dos devotos carregando lamparinas, sai da igreja, onde fica de costume, para desfilar longamente pelas ruas enfeitadas por bandeirinhas de papel colorido, até a casa escolhida pela comissão organizadora para o pernoite. No decorrer do trajeto, as várias paradas nas residências dos promesseiros, todas elas celebradas com foguetes e as vezes distribuição de refrigerantes, comemorem publicamente graças alcançadas ou novos votos que foram dirigidos ao santo. De manhã cedo, ainda no som de uma banda, o círio segue um itinerário parecido, mas no sentido contrário, para trazê-lo solenemente de volta para o edifício religioso. A parte chamada “festa social”, muito prezada, também está controlada pela comissão que atribui espaços na praça para barraquinhas de jogos e comidas, mas mantém o baile e as vendas de bebidas alcoólicas a distância de onde o santo “mora”. Na festa de um padroeiro, a hierarquia eclesial está dessa forma no comando da afirmação recorrente, por meio da movimentação dos fiéis, da existência de um coletivo formalmente instituído em determinado espaço geográfico. E se o pároco não está presente em todos os momentos, quem poderá ocupar o seu lugar é necessariamente um leigo aprovado como ministro da palavra ou da eucaristia, isto é, alguém sancionado pela instituição católica.

Por outro lado, o centro da atividade ritual das “festas de santo de família”, como são designadas, se encontra a distância da igreja e do padre, e é na propriedade de quem se comprometeu a festejar o santo que os devotos se encontram para rezar. Na ocasião da festa da Santíssima Trindade ocorrendo entre os dias 7 e 13 de junho, é assim no seu sítio, a poucos quilômetros de Alter do Chão, que uma família construiu um “barracão” de palha para acolher o pequeno altar enfeitado de papel colorido, chamado “troneiro”, o qual destinado por sua vez a receber a coroa “da santa” coberta de fitas multicolor. Como no caso do padroeiro, a celebração implica deslocamentos no espaço, mas estes são ao mesmo tempo mais frequentes e mais restritos: o trajeto efetuado pela imagem da Santíssima Trindade se restringe a sair de manhã da casa do “festeiro”, onde pernoita, para ocupar o troneiro onde permanece o dia inteiro. A volta noturna para essa residência é precedida de um momento solene em que o circuito se alonga ligeiramente com uma procissão em torno dos mastros votivos: após ter participado do “rito” no barracão com ladainhas em latim, os devotos saem cantando atrás da imperatriz carregando a santa e do imperador, os dois cercados dos porta-estandartes, ao som da caixa. Houve caminhadas mais compridas - uma, diurna, até a estrada de chão nos limites do sitio; outra, na alvorada, até a casa de um vizinho -, mas a santa não foi levada em nenhumas. No que diz respeito à parte “social”, considerada moralmente superior, já que em um festejo de padroeiro “é tudo vendido” enquanto numa festa de santo de família “tudo é de graça”, ela ocorre a pouca distância do barracão (ver dentro dele para o almoço dos foliões), numa estrutura maior que acolha todas as manifestações importantes (aniversários, reuniões associativas) e a santa ocupe até lugar de destaque na última refeição. Para entender então a qualificação desses santos como “santo que anda”, quando em suma, a sua imagem se move muito pouco, é preciso considerar a série composta por essas festas. Com efeito, o santo irá ocupar cada ano uma nova casa, a do festeiro que se compromete a organizar a próxima edição do festejo.14 14 O “dono” da imagem não é sempre, portanto, o dono da festa.

Como no caso anterior, a associação dos verbos “andar” e “morar” a cada subcategoria de santos poderia ser sujeita à discussão, na medida em que todos passam o ano todo num local determinado e se deslocam quando festejados. Todavia, o tipo de deslocamentos, indubitavelmente diferentes, indica bem processos de acumulação de prestígio específicos: o de um santo de família aumenta por meio a sua circulação entre diversas residências particulares e a capacidade de um grupo de parentes a juntar as partes social e religiosa para o proveito dos convidados, enquanto o de um padroeiro afirma-se pela irradiação a partir do edifício da igreja e a eficiência do seu clero no controle dos divertimentos “profanos”. É esse contraste entre um poder que se constrói no movimento e um poder estático que se reflete na distinção mencionada. De forma mais geral, a recorrência desses verbos constitui, a meu ver, uma primeira indicação de que os santos e os encantados são mais conectados do que geralmente se imagina.

Aproximando a relação entre santos e encantados

Heraldo Maués foi o primeiro a sistematizar a comparação entre santos e encantados, detalhando as suas semelhanças e diferenças dentro de um mesmo esquema analítico. Entre as primeiras, ele inclui uma origem humana e uma capacidade a “manifestar-se em forma humana [para] comunicar-se diretamente com as pessoas” (1995:207), os seres de ambas as categorias tendo o poder de curá-las ou castigá-las eventualmente. Entre as segundas, ele lista o local de residência das entidades (no céu ou na terra para os santos, na mata ou no “fundo” para os encantados) e o lugar de realização do ritual (casa, rua, praça e igreja para os santos, somente casa para os encantados), as modalidades do contato com os homens (por meio da “promessa” ou da possessão), a presença ou não de uma representação material (a imagem do santo, nada para os encantados).

A minuciosa descrição do antropólogo põe em evidência um interessante descompasso: “Nos rituais de pajelança, Deus e os santos são constantemente invocados, mas nenhum santo se incorpora no pajé; por outro lado, porém, os encantados estão inteiramente ausentes dos rituais dirigidos aos santos” (ibid.:202). Em outros termos, além de mantidos a distância dos espaços rituais dedicados aos santos, os encantados, nos seus próprios recintos cerimoniais, só poderiam “baixar” nos especialistas religiosos depois de se rezar para as entidades católicas. Tudo parece indicar, portanto, que a essas categorias se encontram entremeadas numa hierarquia se estendendo desde a figura de Deus, passando pelos santos e pelos encantados até os homens e as mulheres, organiza as diversas qualidades de criaturas: “os poderes dos santos [...] estão subordinados ao poder divino, assim como os encantados e homens subordinam-se aos poderes dos santos e os homens aos dos encantados” (ibid.:206).

Seria errôneo deduzir disso que a religiosidade relativa aos encantados é totalmente sujeitada às figuras do catolicismo dominante. Se existe de fato uma ordem de precedência - os homens homenageando os santos antes de “chamar” os encantados - o poder de cura que estes últimos detêm procederia diretamente de Deus mesmo, sem necessitar mediação alguma. Logo, a principal diferença entre as entidades das duas categorias não reside na origem de seus “poderes” conferidos, em ambos os casos, pelo próprio Deus, mas, sim, na origem dos próprios seres, ou seja, nos seus processos respectivos de produção: “os homens são santificados diretamente por Deus, dependendo de seu modo de vida na terra” enquanto “o encantamento se dá com a mediação dos encantados, que recebem de Deus o poder de levar as pessoas para o encante” (ibid.:206). Poderíamos imaginar então que, ao guardar o controle direto de sua reprodução coletiva (os santos são escolhidos por Deus, mas os encantados são escolhidos por outros encantados), os segundos têm afinal de conta mais autonomia do que os primeiros em relação com o divino.

Essa dimensão, todavia, não interessa muito a Maués. O que importa a ele é de dar conta da “maior relevância dos santos no esquema cosmológico das populações rurais do Salgado”, no estado do Pará. Recusando-se a ver aí um simples reflexo da hegemonia católica, o antropólogo vá buscar explicações nas representações do que é considerado o “verdadeiro destino dos seres humanos” (ibid.:258), isto é, se aproximar de Deus tornando-se um santo. Por essa razão, as populações consideram inconcebível que “os santos desejem deixar de ser santos [para] volta[r] à sua antiga condição” (loc. cit.) humana e, de modo simetricamente inverso, elas julgam que “os encantados desejam desencantar-se, individual ou coletivamente” (loc. cit.).15 15 De fato, histórias relatam tentativas infrutíferas de desencantamento individual; outras contam que o afloramento das cidades do fundo provocará um desancamento coletivo e o fim das cidades dos atuais homens. Neste último caso, o desencantamento significaria anular uma transformação improdutiva para alcançar a santificação esperada, ou seja, retornar a uma condição anterior para voltar nos trilhos corretos que levam dos homens aos santos.

Construindo um mundo simbólico bem ordenado, a proposta é intelectualmente sedutora. Mas, ao fazê-lo, parece-me perder a flexibilidade necessária para dar conta de uma paleta extremamente rica de articulações imagináveis entre o mundo dos santos e o mundo dos encantados. O depoimento de um morador de Alter do Chão em particular, um homem jovem de 26 anos a quem chamo de Pedro, é muito interessante por se tratar de uma personagem-chave entre duas vertentes do catolicismo local. Ele reivindica, com efeito, uma dupla compreensão do universo religioso: por um lado, na sua posição de “ministro da palavra”, isto é, como membro ativo da hierarquia institucional da igreja, e por outro lado na posição de folião, isto é, como organizador e participante de festas de santo de devoção. Vale notar que, além disso, Pedro julga também ter competência para falar dos encantados, por ter vista a sua tia-avó, dona Isabel que encontramos anteriormente, se incorporar com frequência durante a sua infância.

Num primeiro encontro onde estávamos sentados no quintal da sua casa num bairro periférico da vila, onde mora com seus pais, sua mulher e seu filho, Pedro apresenta o que ele acredita ser o ponto de vista oficial: “para o catequista, dentro do ministério, [os encantados] são legiões [demoníacas]. Com o encontro com Jesus, a gente vai se libertando: Pai Nosso, Ave Maria. Isso vai se afastando.” Trata-se aqui de uma leitura dos encantados como servos do diabo. Esclarecidas pelo próprio Deus e usando das armas que ele legou (as rezas), as pessoas conseguiriam romper com eles. Nessa perspectiva, o único horizonte benquisto dos seres humanos é constituído dos santos.

No entanto Pedro não demora em fazer declarações menos taxativos: “Some e não some. Porque tem a crença, a liturgia amazônica, o jeito de celebrar [...] Os padres apresentaram Jesus, mas nem todos [os moradores] tinham o conhecimento. Não é que faltava fé, mas se tinha o costume.” Nessa variante, a distinção operada entre dois planos - o do “costume”, do quotidiano, e o da “fé”, do absoluto - abre caminho para o reconhecimento de especificidades locais (a liturgia amazônica) e, portanto, para arranjos e convivência. O ministro da palavra estima aliás que “os padres vocacionados gostam [do nosso jeito] porque conseguem ver Deus [no nosso jeito de cultuar]”, e enxerga na oposição de outros a prova que eles só estão aí pelo “emprego”.

Em outra entrevista, Pedro vai ainda mais longe, ao afirmar que a crença nos encantados é tão enraizada quanto a fé em Deus: “Tem muita gente que acredita em Deus, santos, encantados. Tem outros que tiram os santos. Só Deus e os encantados: são os evangélicos.” Chama atenção ele se referir aos evangélicos para enfatizar a importância dos encantados no imaginário religioso amazônico. Com efeito, estes são geralmente referidos pelos católicos como pouco respeitosos das tradições, recusando o culto dos santos e mesmo quebrando as suas imagens. Poderíamos então esperar que a sua aversão pelo “paganismo” se estendesse também aos encantados que parecem se situar ainda mais longe do que os santos de uma prática religiosa que se quer genuinamente cristã. Ora, para o ministro da palavra (e tendo a compartilhar a sua opinião),16 16 Na sua tese de doutorado, Soares (2013) nota também que evangélicos frequentam os especialistas religiosos “recebendo” encantados, o que deixa pensar que, pelo menos essas pessoas, acreditam na sua existência. até mesmo eles não duvidariam da existência dos encantados; no máximo, eles passariam a considerá-los demônios, se alinhando, dessa forma, sobre a posição da hierarquia católica.

Por fim, numa outra discussão, Pedro parece sugerir que os encantados são importantes porque deixam entrever a possibilidade de outro destino pós-morte para os seres humanos: “Eis o mistério da fé. Só com um outro olhar... Quando estamos rezando, tem Deus. Mas também tem os nossos antepassados, tios, avôs que estão na nossa memória. Outros acreditam que são encantados.” Sob a égide de Deus e com a proteção dos santos, os encantados perpetuariam a memória dos ancestrais, pelo menos dos mais valentes entre eles, que são os chamados pajés sacaca.

Percebemos no início desta seção a complexidade da relação entre santos e encantados: os primeiros têm em teoria a precedência sobre os segundos, mas nem tanto já que estes tiram o seu poder diretamente de Deus e conservam certa autonomia na sua reprodução por meio do processo de encantamento. Além disso, reparamos agora que uma mesma pessoa pode referir-se a interpretações nitidamente divergentes: condenação dos encantados, permanência a distância, presencia perceptível por alguns, perpetuação da memória familiar. No caso das duas versões as mais incompatíveis (a primeira e a última), isso depende claramente da posição que, no momento, a pessoa resolve assumir no campo religioso local: ao falar como ministro da eucaristia, Pedro vê os encantados como “legiões”, mas quando se expressa como folião de um santo de devoção, ele anuncia que poderiam ser eles “antepassados”. A questão que se coloca então diz respeito a origem desses seres, considerada de modo genérico ou como socialmente situada: antropólogos como Mariana Pettersen Soares (2013SOARES, Mariana Pettersen. (2013), Almas e encantados: uma cosmologia sobre o mundo dos mortos na região do Baixo Amazonas. Niterói: Tese de doutorado em antropologia, Universidade Federal Fluminense.) e Joel Pantoja da Silva (2019SILVA, Joel Pantoja da. (2019), Patrimônios, Narrativas e encantaria no Marajó. Belém: Tese de doutorado em antropologia, Universidade Federal do Pará.) já notaram que existem duas concepções relativas à origem dos encantados: numa, esses seres são pessoas que “morreram”, na outra, julga-se que não é o caso. Os meus interlocutores em Alter do Chão confortam a observação, e se a segunda interpretação é geralmente privilegiada, constata-se que a primeira nunca fica longe.

A compreensão desses múltiplos desdobramentos e aparentes contradições necessita, portanto, ficar ciente que encantado é uma ampla categoria recobrindo não um tipo de ser, mas pelo menos três que se diferenciam em função do local onde se manifestariam (encantados da mata, encantados do fundo e visagens).17 17 Poderíamos levar em conta mais um local que seria a casa dos especialistas religiosos onde baixam os “mestres”, mas os dados de que disponho não me permitem integrá-lo de modo satisfatório à análise proposta. Por outro lado, ela implica também de levar em conta que não há um posicionamento católico, mas pelo menos dois que nós podemos caracterizar a partir do local de realização do ritual (a igreja, institucional, e a casa, doméstico). A observação aponta para uma importância crucial da dimensão territorial, que me proponho agora analisar.

Alternando registros para contar histórias situadas

Até agora, vimos que a referência aos santos perpassa toda a vida religiosa, já que os próprios rituais visando à possessão por encantados começam com orações que lhes são dedicadas. Na sequência, poderíamos nos indagar se a recíproca é observável, com menções ou alusões aos encantados durante as cerimonias católicas? A resposta é indubitavelmente negativa no que tange as festas de santos padroeiros organizadas pelas diversas comissões locais da igreja com a coordenação do padre. Porém, ela é menos definitiva quando se trata de festa de santo de devoção, que acontecem nas residências particulares.

Pois o que Pedro, catequista e folião, avalia ser “a crença do povo” (entender “a crença de todos”) está muito forte nestas ocasiões. Quer sejam compartilhadas de manhã cedo na hora da alvorada, quer entre os diversos momentos do “rito”, não faltam histórias de encontros entre seres humanos e encantados (à beira rio, num caminho qualquer e até durante uma festa dançante). Embora sejam narrados como acontecimentos ocorridos, Pedro e seus companheiros não acreditam que se tratam de anedotas remetendo a um passado remoto. Além do que, todos consideram que essas histórias pertencem completamente à festa católica, tanto quanto aquelas que tratam dos santos e das consequências de uma promessa não realizada, do milagre de uma imagem poupada durante um incêndio etc.: “Essas conversas sobre o encante, é como se fizessem parte da festa. Como tem história de santo e de mastro”, diz ele.

Mais significativo ainda da presença dos encantados num ritual dedicado a entidades católicas, os meus interlocutores - inclusive o próprio ministro da palavra - acham bom “pedir licença” à “mãe do igarapé” antes de soltar foguetes para celebrar o santo de devoção. No caso contrário, esta poderia se vingar por ser incomodada pela “zoada” ou pela “movimentação” mandando doenças, afogando crianças ou “secando as cabeceiras”. Apesar de as pessoas sempre indicarem que “quando a santa chega, ela é a dona. Ela toma conta de tudo”, obter permissão do outro dono, que é o encantado morando no local, aparece como um pré-requisito necessário. Desse ponto de vista, a licença pedida aos encantados antes de festejar um santo de família e a reza dirigida aos santos antes de o curador começar seus trabalhos são estruturalmente análogas. Não estou querendo afirmar com isso que ambos se encontram num pé de igualdade, mas chamar atenção sobre o fato de que os primeiros não se encontram longe dos segundos. Pude observar isso na festa da Santa Trindade, e refletem o mesmo os relatos das pessoas sobre a sua história de vida, como o de Antônio, um músico investido nas festas de santos de família. Conta esse homem na casa dos seus quarenta que, quando menino, os seus pais mandaram “fechar o seu corpo” para aliviar as “aproximações” que ele sentia, mas que “eles” só se afastaram quando ele foi trabalhar na igreja na catequese, por não gostarem dessa instituição. Apesar disso, diz ele que “eles ainda estão com ele, protegendo” e Pedro, o catequista, mencionou que Antônio, mesmo sem tempo nem vontade para praticar como curador, ainda cumpre as “suas obrigações” para com eles. Os encantados evocam assim uma presença discreta, aflorando pouco no espaço público, mas que é constante.

Não se pode pensar a relação entre santos e encantados em termos de equivalência (não há correspondência alguma entre eles, como é o caso dos santos e dos orixás), tampouco em termos de hierarquia (nem os santos nem os encantados estão submissos uns aos outros): cada um tem a sua própria localização e seu próprio poder. No entanto, essas categorias me parecem conectadas segundo modalidades muito mais diretas do que imaginamos, como indica o fato de ambas serem associadas, de maneira transversal, a verbos com uma dimensão espacial: alguns santos e encantados são reputados “morar” enquanto de outros diz-se que eles “andam”. Se desenha assim um movimento progressivo e pendular entre familiarização de determinada área por meio das andanças e ancoragem nele pelo morar.

Nicolas Tiphagne chamou atenção sobre o caráter de “entidades definitivamente tópicas” (2005TIPHAGNE, Nicolas. (2005), Entre nature et culture, les enchantements et les métamorphoses dans le monde caboclo de l’est de l’île de Marajó: invention et discours sur l’autre, prémisses d’une identité. Paris: Thése doctorat en ethnologie, Université de Paris 7.:196) dos encantados. Por sua vez, Emilie Stoll considera que se trata de “figuras pensadas como elementos paisagísticos e territoriais; que interagem com os humanos graça a noção de maestria (Fausto 2008FAUSTO, Carlos. (2008), “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”, Mana, vol. 14, nº 2: 329-366.) e legitimam a sua ocupação territorial; que se inserem nas histórias de vida e de ocupação territorial por meio de tramas narrativas inscrevendo eles espacialmente, historicamente e geograficamente em pontos salientes do território” (2014:223). Para a autora, já que a afirmação de uma corresidência entre um coletivo humano e um outro não humano permite a um grupo de parentes reivindicar uma autoridade sobre um lugar, as histórias de encantamento e desencanto aparecem como evidências de negociações e alianças, bem-sucedidas ou não. Eu gostaria de abrir esta análise ao caso dos santos por causa de um entrelaçamento de referências para a qual apontei: contam-se inúmeras histórias de encantados num festejo de santo; rezas são dirigidas aos santos num ritual de possessão.

Proponho então que intercalá-las faz aflorar a presença de uma trama narrativa remetendo ao processo de formação e empoderamento de um coletivo humano, no qual não só o espaço vai se transformando em território, mas também os “verdadeiros donos do lugar”, que são os encantados, se vêm obrigados a compor com os novos protetores dos homens, ou seja, os santos. Em outros termos, se trata da epopeia dos seres humanos e de sua emancipação progressiva dos encantados.

Figura 1
Intercalando Santos e Encantados

O diagrama anterior tenta representar como trama narrativa da história que nos é contada na foliação alternada de episódios com santos e com encantados. Quando os primeiros homens chegam num local, os encantados já estão lá, ocupando diversos pontos estratégicos: a cachoeira, o igarapé, a mata por exemplo. Reconhecendo que a sua anterioridade confere prerrogativas, os recém-chegados pedem licença para fazer as suas casas - inaugurando assim um gesto que será repetido entre os homens, uma família só podendo construir moradia após ter recebido a autorização do “fundador” do lugar. A vinda dos seres humanos parece gerar numa cisão do grupo dos encantados. Pois a aliança que contratam só é com os encantados ditos do fundo e é em cima das suas cidades de ouro que formam as suas próprias residências. Os outros encantados ficam a distância, nos arredores das habitações humanas, na mata, nas trilhas, nos lugares de caça etc. Vale notar que um terceiro grupo de encantados - o do ar - é mencionado, sendo sobretudo associado a doenças, mas não se tem dele uma caracterização precisa, possivelmente em razão do seu ambiente evanescente. Considerando a recorrência do tema da migração entre as populações regionais, Jerônimo da S. e Silva e Agenor Sarraf Pacheco sugerem uma pista interessante ao propor que esses encantados constroem “sentidos para o deslocamento” e a possibilidade de conceber “o território da movência” (2015SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. (2015), “Diásporas de encantados na Amazônia bragantina”, Horizontes Antropológicos, ano 21, nº 43: 129-156, jan./jun. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832015000100006:142), que deverá ser explorada ulteriormente.

Uma vez instalados na convivência com os encantados, os seres humanos organizam dentro das suas casas um altar, muitas vezes uma simples prateleira coberta de um pano, onde vão colocar imagens de santos de devoção que são festejados anualmente, circulando eventualmente entre as residências de parentes. Aparece aqui um fenômeno de encaixamento entre as moradias dos encantados do fundo, dos homens e dos santos de devoção: os encantados aceitam no seu território a presença de seres humanos que acolham os santos em suas próprias casas. De certa forma, a relação que os homens estabelecem com essas duas categorias de entidades é inversa. Eles dependem da aceitação pelos encantados do seu pedido de aliança (histórias de fracasso exemplificam as consequências para aqueles que ignoram essa condição). Mas são eles que resolvem abrir sua casa para os santos de devoção (caso estes recusarem o convite, não parece ter muitos danos para os homens). O que se nota aqui é uma espécie de reversão na relação de poder, ou pelo menos, um notável reequilíbrio: no primeiro caso, os homens estão submissos a um “dono” encantado, no segundo, eles são também “donos”, não só no sentido de quem exerce o poder, mas também de quem o tem (a imagem como objeto).18 18 Entre os curadores da região bragantina, Jerônimo da Silva e Silva aponta para uma construção em espelho de um ritual com o qual uma pessoa aprende a “receber” encantados e estes a “domar” os humanos escolhidos (2018:30). No caso estudado, que não se concentra na experiência do desdobramento por especialistas religioso, mas, sim, sobre os relatos de pessoas “comuns”, a ilustração dessas relações de “dupla-captura” (ibid.) se encontra igualmente no que se diz dos santos.

Essa modificação não afeta a questão do “respeito”, que é colocada da mesma forma em ambos os casos (qualquer entidade o requer dos homens). Mas a questão da “proteção” se encontra alterada. Se, em relação aos encantados, ela se enuncia como defesa de um território e das espécies não humanas que se encontram nele, no caso dos santos de devoção que se constituem como bandeiras de agrupamentos de parentes, ela é concebida em termos mais recíprocos: com efeito, estes tornam-se os protetores de seus protetores humanos. Fortes deste amparo, homens e mulheres se encontram de certa forma no meio do jogo, em posição de introduzir uma outra “cultura”, de impor novas regras e a sua ordem, numa área anteriormente unicamente controlada pelos encantados.

Na continuidade dessa narrativa sobre dinâmica espaciotemporal e mudanças, a próxima etapa corresponderia ao aparecimento de “visagens” em pontos salientes do espaço socializado diariamente pelos homens: o cemitério, a praça etc. Na medida em que essa subcategoria de encantados agrega entes que têm alguma relação com uma atividade, intervenção ou natureza humana (o “navio encantado” parecido com as embarcações usadas pelos turistas ou os “espíritos” resultando de mortes ritualmente inacabadas), pode-se avançar que essas manifestações traduzem a consolidação da sociedade dos homens num território determinado e a representação dos seus desejos e ânsias.19 19 Agradeço pela observação ao Eduardo Ferreira.

Paralelamente, o crescimento da população leva à formação de diversos núcleos residenciais que vão aparecer como “comunidades” quando resolvem colocar-se sob a proteção de um santo padroeiro. Seja ele ou não escolhido entre os santos de devoção previamente festejados, a sua imagem é colocada num prédio específico simbolizando a comunidade, isto é, a igreja. Quando é o caso, a eleição pode provocar tensões. Pois se a adoção de um santo de devoção como padroeiro confere prestígio ao seu dono, também significa que a imagem deixa de lhe pertencer. O “rito” característico das festas de santo de devoção, com mastros, procissões, ladainhas e folias desaparece com efeito de um festejo que passa a ser visto como sendo da igreja. É o que lamentava uma neta do antigo “protetor” de são Pedro: “Hoje só se reza para são Pedro. Parou porque a Igreja festeja ele hoje. A Igreja já tomou conta. Se a Igreja resolver fazer [o mesmo para] a Santíssima Trindade, vai ser difícil de ter uma outra festa.” O depoimento reflete a ambivalência dos moradores pesando as vantagens e desvantagens de renunciar ao seu santo de devoção ao benefício do padroeiro coletivo: o seu reconhecimento como católicos ortodoxos pela instituição eclesiástica significa perder o controle das suas práticas religiosas.

Tais aborrecimentos parecem o preço a pagar para que a pressão dos encantados sobre os homens se ameniza. De fato, agora todos se valem de uma forte proteção: “Com a santa, ninguém brinca. Ela é uma santa muito séria. É mais poderosa.” Frente a essa defesa que os próprios homens introduziram, os encantados recuam, se afastam, sem que, no entanto, se trata de desaparição. Todos sabem que não estão longe e que é melhor não os desafiar, como sugere uma afirmação recorrente: “Não acredito, mas não duvido.”

O paradoxo embutido nessa formulação (como é possível não acreditar e não duvidar ao mesmo tempo?) incita a arriscar uma hipótese que estudos ulteriores terão de avaliar. Sugiro que ela deixe de parecer contraditória se considerarmos que os santos e os encantados existem, sim, mas não no mesmo plano. Os primeiros dependem da fé que homens e mulheres têm na sua faculdade de operar milagres - fé que alguns como os evangélicos já não têm mais -, enquanto os segundos pertencem ao plano da materialidade e dos fatos, ou seja, nos quais não se precisa “acreditar” ou “duvidar”. A melhor metáfora que eu encontro neste momento são os átomos que o olhar não tem condição de perceber. Isso explicaria que, na Amazônia, os evangélicos declararam a todos não acreditar na intercessão dos santos e serem muito mais discretos a respeito dos encantados.

Conclusão provisória

As figuras dos encantados e dos santos são recorrentes nas narrativas das populações ribeirinhas amazônicas. Os primeiros são conceitualizados como os primeiros ocupantes de um local, a quem os homens pedem permissão para montar as suas casas. O reconhecimento da precedência desses severos anfitriões através o “respeito”, e guardando distância, preserva, espera-se, de sua “malineza”. Os segundos são convidados pelos seres humanos, quando estes já “moram” criando família, a habitar nas suas residências para serem os seus protetores, ou seja, os santos estritamente cuidam da sociedade que os homens passam a formar. O respeito ainda é necessário, mas do contrário dos encantados, pode-se apelar para os santos, se confiar a eles, negociar ou reclamar. Para resumir, ambas figuras exigem deferência por parte dos homens, mas elas atuam em esferas bem diferentes: os encantados mapeiam o espaço geográfico vivenciado enquanto santos simbolizam o tecido de relações sociais forjados nele entre os seres humanos. A utilização desses conceitos não pretende introduzir oposições rígidas onde há fluidez e reajustes (afinal de contas, homens e encantados compartilham o espaço), mas apenas sugerir novas pistas de interpretação.

A observação de uma complexificação em cada uma dessas categorias incita, aliás, a tentar ultrapassar a simples constatação de uma tensão entre elas. Com efeito, ao lado de santos de devoção, vimos que emergem santos padroeiros federando unidades sociais maiores e que, ao lado dos encantados do fundo e da mata, se manifestam outros, conhecidos como visagens, em pontos estratégicos dos povoados. Me pareceu então valioso considerar santos e encantados não na oposição, mas na intercalação de diversas subcategorias. Sugeri que a alternância das referências tece uma trama narrativa singular, contando a história situada da ocupação humana em determinado espaço, que se torna progressivamente o território de uma “comunidade”. Nesta história, a sociabilidade humana, sob égide dos santos, produz o aparecimento das visagens, provocando o “afastamento” dos outros encantados. Mas, como bem sugere a palavra, isso significa rarefação dos contatos, e não deixar de existir.

Para terminar, gostaria de esboçar algumas reflexões sobre o termo “dono”, que aparece com muita regularidade nas falas: diz-se que o encantado é “o dono do lugar”; que “a santa é a dona da festa” e que uma pessoa é o “dono do santo”. Observamos, desde já, que o sujeito da ação pode ser tanto uma figura invisível quanto um ser humano e que o seu objeto pode ser uma área geográfica ou uma série de interações rituais. A última formulação (uma pessoa é o “dono do santo”) é, todavia, mais ambígua, já que não se sabe se o santo referido é a entidade em si ou a sua imagem. Em outros termos, não fica claro sobre o que a vontade do “dono” humano prevalece: sobre uma entidade poderosa ou um objeto fabricado por ele. É provável que a ambivalência de quem é o dono do outro e quem manda no outro seja o fundamento da legitimidade de festejar o santo: se valer da obediência para controlar redes de relações. De forma geral, repare-se a presença de um sistema de transferência de autoridade: a santa-entidade, enquanto dona, delega ao dono da sua imagem a responsabilidade da sua festa, cabendo a este, se achar necessário, pedir permissão ao dono-encantado do local para realizá-la.

Exceto no caso da representação material de um santo possuída por uma pessoa, o ser dono tem pouca coisa a ver com a propriedade privada stricto sensu. A etnologia amazonista, e em particular o trabalho de Carlos Fausto, pode nos ajudar a melhor entender do que se trata. O autor defende que as línguas amazônicas possuem um termo, usualmente traduzido por “dono” ou “mestre”, que “transcende em muito a simples expressão de uma relação de propriedade ou domínio” (2008: 329). Prosseguindo, o autor afirma que ele “designa uma posição que envolve controle e/ou proteção, engendramento e/ou posse, e [...] se aplica a relações entre pessoas (humanas ou não-humanas) e entre pessoas e coisas (tangíveis ou intangíveis)” (2008: 330). Essa perspectiva se adequa bem ao caso considerado neste presente artigo. É de fato “a constituição de um mundo atravessado por relações de domínio, mas não uma cartografia cósmica de propriedades distintas e exclusivas” (id.: 341, itálicos no original) que conta a referência aos santos, aos encantados e às pessoas enquanto donos: homens e mulheres moram onde estavam/estão os encantados e os santos habitam nas suas casas, e todos se confrontam, se evitam e/ou se aliam sem que um lugar possa ser dito do uso exclusivo de um deles. Nesse dispositivo de “proliferating fractal relationships of mastery” (Brightman, Fausto & Grotti 2016BRIGHTMAN, Marc; FAUSTO, Carlos; GROTTI, Vanessa (ed.). (2016), Ownership and nurture: studies in native Amazonian property relations. New York: Berghahn Books.: 10), os seres humanos parecem, no entanto, ocupar uma posição-chave intermediária, nenhuma relação direta entre os santos e os encantados sendo apontada pelos meus interlocutores. Essa posição pode ser avaliada como desconfortável, pois deixa eles submissos a duas autoridades, mas também pode ser julgada favorável à estratégia consistindo a introduzir novos donos - os santos - para protegê-los dos encantados predadores. Adotando um santo de devoção e, depois elegendo um santo padroeiro, homens e mulheres se emancipam em parte de forças cujo domínio lhes escapa por princípio: tal narrativa esclarece algumas das articulações entre categorias que ganham a ser consideradas não na justaposição, mas na alternância.

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  • WAWZYNIAK, João Valentin. (2012), “Humanos e não-humanos no universo transformacional dos ribeirinhos do rio Tapajós - Pará”. Mediações, vol. 17, nº 1: 17-32.
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    Agradeço aos dois pareceristas anônimos que, com suas valiosas críticas e sugestões, me ajudaram a tentar dar um salto qualitativo na análise proposta. Espero que o resultado tenha correspondido às suas expectativas.
  • 2
    Aliás, é também o que faz Galvão no seu livro em que a ocorrência do termo encantado é maior do que a de visagem.
  • 3
    Veremos estas exceções na Parte 3.
  • 4
    Alter do Chão, uma vila de cerca de 6 mil habitantes localizada a cerca de 40 quilômetros da cidade de Santarém, é bem conhecida pelos turistas pela beleza de suas praias.
  • 5
    Realizei diversas pesquisas etnográficas (2014, 2015, 2017 e 2018) sobre o tema da patrimonialização, no caso da festa do sairé, e da conformação local do campo católico. No decorrer dessas estadias, o tema dos encantados e dos santos apareceu inúmeras vezes de forma espontânea nas conversas que tive com os moradores, aposentados ou jovens, católicos fervorosos ou de circunstância, nas suas residências ou na ocasião de festejos religiosos. O artigo, portanto, não se baseia em materiais coletados no contexto de uma pesquisa precisa sobre a relação entre santos e encantados, mas em dados dispersos, contudo condizentes, obtidos no decorrer de várias pesquisas sobre outros temas, mas no mesmo local.
  • 6
    Após o trabalho seminal de Deborah Lima (1999LIMA, Deborah de Magalhães. (1999), “A construção histórica do termo caboclo. Sobre estruturas e representações sociais no meio rural amazônico”, Novos Cadernos NAEA, vol. 2, nº 2, dez. 1999: 5-32.), difícil é utilizar o termo caboclo de maneira acrítica, e ainda menos ao singular.
  • 7
    A pesquisa de Galvão e Wagley, como se sabe, foi realizada na cidade de Gurupá, o trabalho de Slater se baseia essencialmente em relatos colhidos em Parintins e a parte brasileira da documentação mobilizada por Harris provem do Baixo Amazonas.
  • 8
    A bibliografia sobre a pajelança indígena é extensa demais para ser citada, e a comparação ultrapassa o propósito do presente artigo. A leitura de trabalhos sobre povos indígenas deixa, no entanto, entrever muitas analogias, como é o caso da tese de Milena Estorniolo (2020ESTORNIOLO, Milena. (2020), Manger (avec) l’ennemi. Mythe, subsistance et alimentation chez les Baniwa et les Koripako (Amazonie, Brésil), Paris : Thèse de doctorat en anthropologie, EHESS.) sobre os Baniwa.
  • 9
    Entre diversas discussões da complexidade da categoria “encantados”, podemos citar os trabalhos de Nicolas Tiphagne (2005), João Valentin Wazyniak (2012WAWZYNIAK, João Valentin. (2012), “Humanos e não-humanos no universo transformacional dos ribeirinhos do rio Tapajós - Pará”. Mediações, vol. 17, nº 1: 17-32.) e Emilie Stoll (2014STOLL, Emilie. (2014), Rivalités riveraines : territoires, stratégies familiales, et sorcellerie en Amazonie brésilienne. Belém: Thèse de doctorat en Sciences des Religions et système de pensée, École Pratique des Hautes Études/ Université Fédérale du Pará.).
  • 10
    Tiphagne (2005, cap. 4), entre muitos outros, lista as expressões ouvidas na Ilha do Marajó: “mãe da floresta”, “mãe d’água”, “mãe do seringal”, “mãe do bicho”, “mãe do peixe”, “mãe do fogo”. Chama atenção o fato dessas entidades serem exclusivamente qualificadas de mães e nunca de pais, apesar de os encantados serem associados à masculinidade definida pela capacidade a mandar e exercer o poder. É um ponto sobre o qual seria interessante refletir ulteriormente.
  • 11
    As pessoas usam muitas expressões para designar uma situação na qual uma pessoa é considerada habitada por seres, espíritos ou divindades entre as quais: “incorporar”, “receber”, “pegar”, “estar com” (para um estudo de caso em Belém, ver Boyer, 1993BOYER, Véronique. (1993), Femmes et cultes de possession: les compagnons invisibles”. Paris: L’Harmattan.). Elas estimam também que o “dom de nascença” é mais importante de que a “formação”, o que faz eco com o que eu analisei na mesma cidade (Boyer 1996BOYER, Véronique. (1996), “Le don et l’initiation: de l’impact de la littérature sur les cultes de possession au Brésil”. L’Homme, 138, avril-juin : 7-24.). Como o presente artigo não foca sobre as modalidades do contato entre homens e entidades, escolho utilizar o termo “possessão”, comum na literatura antropológica.
  • 12
    Para a Amazônia, ver Eduardo Galvão (1976 [1955]GALVÃO, Eduardo. (1976 [1955]), Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Ita. São Paulo: Cia. Editora Nacional.) e Heraldo Maués (1995), já citados.
  • 13
    As descrições seguintes não visam a exaustividade, mas, sim, a levantar pontos de comparação a respeito da marcação ritual do território.
  • 14
    O “dono” da imagem não é sempre, portanto, o dono da festa.
  • 15
    De fato, histórias relatam tentativas infrutíferas de desencantamento individual; outras contam que o afloramento das cidades do fundo provocará um desancamento coletivo e o fim das cidades dos atuais homens.
  • 16
    Na sua tese de doutorado, Soares (2013) nota também que evangélicos frequentam os especialistas religiosos “recebendo” encantados, o que deixa pensar que, pelo menos essas pessoas, acreditam na sua existência.
  • 17
    Poderíamos levar em conta mais um local que seria a casa dos especialistas religiosos onde baixam os “mestres”, mas os dados de que disponho não me permitem integrá-lo de modo satisfatório à análise proposta.
  • 18
    Entre os curadores da região bragantina, Jerônimo da Silva e Silva aponta para uma construção em espelho de um ritual com o qual uma pessoa aprende a “receber” encantados e estes a “domar” os humanos escolhidos (2018SILVA, Jerônimo da Silva e. (2018), “Tarrafa, anzol & flecha: tecnologia xamânica de predação entre humanos e encantados no nordeste paraense”. Revista Anthropológicas, 29(1) : 28-57. :30). No caso estudado, que não se concentra na experiência do desdobramento por especialistas religioso, mas, sim, sobre os relatos de pessoas “comuns”, a ilustração dessas relações de “dupla-captura” (ibid.) se encontra igualmente no que se diz dos santos.
  • 19
    Agradeço pela observação ao Eduardo Ferreira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    13 Jun 2022
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