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Do Cruzado ao Collor: Os planos de estabilização e a agricultura* * Este trabalho contou com a colaboração de Maria Cristina Leal da Costa.

From Cruzado to Collor: Stabilization Plans and Agriculture

RESUMO

Este artigo traça as raízes macroeconômicas da atual crise agrícola. Isso mostra que o aumento da instabilidade inflacionária após 1986 e as políticas adotadas pelo governo desde então para combater a hiperinflação fizeram com que os termos de troca da agricultura se tornassem muito mais instáveis, ao mesmo tempo em que o governo recuava. o apoio que eles estavam fornecendo à agricultura; essas condições adversas acabaram causando a redução dos níveis de atividade agrícola em 1989 e 1990. O artigo conclui apontando as implicações para a atual estratégia de estabilização.

PALAVRAS-CHAVE:
Efeitos macroeconômicos na agricultura; inflação; quebra de safra

ABSTRACT

This paper traces the macroeconomic roots of the current agricultural crisis. It shows that the increase in inflationary instability after 1986, and the policies adopted by the Government, since then, to fight hyperinflation, caused the terms of trade of agriculture to be- come much more unstable, at the same time that the Government pulled back the support they had been providing to agriculture; these adverse conditions ultimately caused the reduction of activity levels in agriculture in 1989 and 1990. The paper concludes by pointing out the implications for the current stabilization strategy.

KEYWORDS:
Macroeconomic effects on agriculture; inflation; crop loss

INTRODUÇÃO

Exatamente quando passou a predominar a visão de que “no campo não há choro pela década perdida”,1 1 Essa frase, que expressa muito propriamente o bom desempenho agrícola na década de 80 (Rezende, 1989), foi dita por Ney Bittencourt de Araújo ao Jornal Agroceres de maio-junho de 1990, p. 5. sobreveio a quebra da safra 89/90, a qual vem sendo atribuída a problemas climáticos ou, então, a “falta de crédito” - perdendo-se de vista, de qualquer forma, a profundidade e a raiz macroeconômica da crise que se abateu sobre o setor agrícola no final do governo anterior.

O objetivo deste trabalho é mostrar exatamente isso, ou seja, que essa crise é um subproduto da instabilidade inflacionária e da maneira como o governo tentou combater a inflação. Para fundamentar melhor a análise, apresenta-se, na próxima seção, uma base teórica mínima que integra a agricultura à macroeconomia de curto prazo. Enfatiza-se, nessa “Macroeconomia Agrícola” (à falta de outro nome), o fato de que os preços agrícolas, no curto prazo, são determinados menos com base na demanda-fluxo e mais com base na demanda-estoque. Esse ponto tem importância fundamental na crítica que se propõe, na seção II, à análise neo-estruturalista de inflação, pois a limitação, presente nessa análise, à demanda-fluxo, torna-a incapaz de dar conta do padrão que se estabeleceu, desde 1986, entre a inflação e os preços agrícolas no Brasil. Esse padrão - que consiste em uma nítida relação inversa entre a inflação e os preços agrícolas - é evidenciado empiricamente nessa seção II. O trabalho procura explicá-lo como decorrência da subsunção dos estoques agrícolas à chamada “dança de ativos” da economia - como se cunhou o fenômeno da alocação de riqueza líquida, alternadamente, e em contraponto com a inflação, em títulos públicos ou “ativos reais” da economia. Na seção III, por outro lado, contrasta-se o Plano Collor com os planos de estabilização anteriores, e, nesse contexto, discute-se o problema agrícola atual. Por fim, uma seção de sumário e conclusões encerra o trabalho.

I. AGRICULTURA E CICLO ECONÔMICO

Antecedentes históricos e teóricos

Conforme mostra a tabela 1, o produto agrícola americano manteve-se notavelmente estável (exceto por variações climáticas em 1934 e 1936) durante a Grande Depressão e na recuperação seguinte. A evolução cíclica manifestou-se com toda a força, contudo, no comportamento dos preços relativos agrícolas, que acompanharam muito de perto as variações do produto industrial.

Tabela 1:
EUA - Índices de Produto Real e de Preços Relativos Agrícolas* (1929 = 100)

Essa evidência, que corroborava outras experiências históricas, proveu um forte estímulo à análise da agricultura no ciclo econômico (Schultz, 1945SCHULTZ, T. W. (1945) Agriculture in an Unstable Economy, Nova York: McGraw Hill. e 1953SCHULTZ, T. W. (1953) The Economic Organization of Agriculture. Nova York: McGraw Hill . ; Hansen, 1932HANSEN, A. H. (1932) “The Business Cycle and its Relation to Agriculture”, Journal of Farm Economics, vol. 14, pp. 59-68. ; Harrod, 1936HARROD, R. F. (1936) The Trade Cycle, Oxford: Clarendon Press. : 32-35; Galbraith e Black, 1938GALBRAITH, J. K. e BLACK, J. D. (1938) “The Maintenance of Agricultural Prodution during Depression: The Explanations Reviewed”, The Journal of Political Economy, vol. 46, n. 3, junho, pp. 305-323. ; Johnson, 1950JOHNSON, D. G. (1950) “The Nature of the Supply Function for Agricultural Products”, American Economic Review , vol. 40, pp. 539-564. ). Duas questões foram focalizadas: (1) por que os preços relativos agrícolas flutuavam tão intensamente com o ciclo; e (2) como explicar a baixa resposta do produto agrícola agregado a essas variações de preços relativos.2 2 Recentemente, Binswanger (1990) apoiou-se em Johnson (1950) para explicar “why the aggregate response to price changes is small in the short run”. Embora interligadas (a estabilidade da produção agrícola, ao longo do ciclo, intensificava a queda de preços, na recessão, e a alta, na retomada), essas questões foram separadas para fins de análise.

A explicação da primeira dessas questões é suficientemente conhecida, e deu origem, na moderna macroeconomia, à distinção entre flex e fix prices, os produtos agrícolas caindo na primeira categoria e os produtos industriais, na segunda.3 3 Ver, por exemplo, Hicks (1974), Kaldor (1976), Kalecki (1971). No Brasil, Sayad (1982a) também tratou deste assunto. A propósito, Considera (1981: 645) nota que as análises de Hall e Hitch e de Sweezy, sobre a “curva de demanda quebrada”, visavam explicar “a relativa inflexibilidade dos preços industriais observada nos anos da Grande Depressão”. Quanto à segunda questão, uma revisão crítica dessa antiga literatura permite apontar como duas as causas principais do fenômeno: (1) uma igualmente baixa reação da oferta dos fatores primários - terra e mão-de-obra - à variação cíclica dos respectivos preços; e (2) tendência à utilização plena da capacidade produtiva na agricultura durante as fases recessivas e, portanto, ausência de capacidade ociosa a ser utilizada nas fases de retomada de crescimento econômico.

No caso da terra, a hipótese usual de não ter uso alternativo fora da agricultura implica ser nula a elasticidade-preço da oferta dos serviços de seu estoque e, por isso, seu valor locativo (a renda da terra) acompanha as variações dos preços agrícolas; já no caso da mão-de-obra agrícola, sua quantidade ofertada reage pouco a variações cíclicas do “salário” rural em função de estarem variando, também, o salário e o nível de emprego urbanos, que em conjunto determinam a renda alternativa dessa mão-de-obra.4 4 Interessa muito, na análise da utilização de mão-de-obra agrícola no ciclo, o fato de se tratar de mão-de-obra familiar ou assalariada (e, dentro dessa, fixa ou eventual). Sobre isso, ver Rezende (1989).

Por sua vez, a tendência à utilização plena, nas fases recessivas, da capacidade produtiva no setor agrícola decorre da estrutura concorrencial dos mercados de produtos agrícolas e da consequente tomada de decisão do agricultor com base apenas no custo marginal. Ora, isso favorece o emprego dos fatores variáveis - cujo uso maior ou menor determina o grau de utilização da capacidade produtiva -, já que somente o custo desses fatores (incluindo-se, obviamente, o juro do capital aplicado) entra no cálculo de rentabilidade do agricultor, no curto prazo. Isso deve ser visto em contraste com a indústria, em que prevalecem estruturas oligopolísticas: as firmas procuram fixar preços de modo que cubram custos plenos, no afã de preservar a margem de lucro sobre todo o capital. Ora, numa recessão, com queda generalizada de demanda, essa tentativa de manutenção (ou mesmo de aumento) de preços industriais implica, num primeiro momento, acumulação indesejada de estoques e, num segundo momento, redução planejada na taxa de utilização da capacidade produtiva.

A análise de Sayad e sua crítica

A discussão de Sayad (1982a)SAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. sobre o comportamento relativo do produto real nos setores agrícola e industrial, num contexto recessivo induzido por contração da liquidez, adota vários pressupostos comuns à análise acima - dando, aliás, uma contribuição relevante ao tema - e, mesmo assim, chega à conclusão, considerada “paradoxal” pelo próprio Sayad, de que “o setor que [tem] maior flexibilidade de preços [i.e., o agrícola] [está] sujeito também a reduções maiores no emprego e na produção face a reduções de liquidez” (Sayad, 1982aSAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. : 52).

É fácil mostrar, contudo, que essa conclusão conflita com os próprios pressupostos da análise de Sayad. Esta baseia-se na caracterização (correta) de que o investimento em gastos correntes na agricultura é de prazo mais longo, de menor liquidez e de retorno mais arriscado, quando comparado com seu similar na indústria. Uma vez que, havendo contração de liquidez, os agentes procuram evitar a posse de ativos com tais características, isso acabaria, segundo Sayad, “por reduzir muito mais a oferta de capital de giro para a agricultura do que para o setor industrial. Assim, pode-se esperar que a política de redução de liquidez afete a área cultivada diretamente, enquanto no setor industrial afetará os investimentos de ampliação da capacidade” (p. 50).

Sayad se esquece, ao propor essa conclusão, de que, embora menos líquido e mais arriscado do que seu similar na indústria, o investimento de curto prazo na agricultura - que define o grau de utilização da capacidade produtiva nesse setor - requer uma taxa de retorno menor do que o da indústria, uma vez que tem de remunerar apenas a si próprio, enquanto este último tem de gerar uma margem adicional (o “mark-up”) suficiente para cobrir o custo fixo e a taxa requerida de lucro sobre o capital imobilizado.5 5 Além disso, itens do “capital de giro” agrícola sofrem queda em seus preços (mão-de-obra, sementes, alimentos, animais de origem agrícola etc.), e a tecnologia é mais flexível (uso de defensivos químicos pode ser substituído por maior emprego de mão-de-obra, por exemplo). Não é por outro motivo, aliás, que aumenta a capacidade ociosa da indústria na recessão - muito ao contrário do que Sayad afirma-, já que a tendência de fixar o preço com esse mark-up sobre o custo variável entra em contradição com a queda da demanda, devido à recessão. O próprio Sayad, aliás, admite implicitamente esse critério específico de rentabilidade de curto prazo na agricultura, quando distingue (p. 52) os impactos da política monetária recessiva, dentro da agricultura, em função do peso relativo do custo variável (o “capital de giro”) no custo total das diferentes atividades agrícolas.

Estocagem e preços agrícolas no ciclo econômico

Apontou-se acima que a estabilidade cíclica do produto agrícola agregado contribui para que os preços agrícolas flutuem mais intensamente do que de outra forma ocorreria, já que o ajuste às variações na demanda final se dá, então, via preços. Entretanto, sendo baixa a elasticidade-renda da demanda de alimentos, é duvidoso que a grande variabilidade observada dos preços agrícolas se explique unicamente por variações dessa demanda. De fato, uma explicação mais completa das flutuações cíclicas de preços agrícolas requer a consideração explícita dos processos especulativos associados à demanda de estoques de produtos agrícolas.

Nesse sentido, cabe notar que, conquanto seja trivial que a periodicidade do processo produtivo agrícola torna nula a resposta instantânea da produção agrícola à mudança nos preços, é menos trivial saber a resposta da oferta agrícola - ou seja, a colocação em mercado dessa produção-, já que isso depende das decisões de estocagem dos agricultores. Esta é uma questão proposta por Johnson (1950JOHNSON, D. G. (1950) “The Nature of the Supply Function for Agricultural Products”, American Economic Review , vol. 40, pp. 539-564. : 552), a título de qualificação de sua própria análise: “[our] theory explains why all crop land is utilized during a depression, but it is insufficient to explain why farmers sell the output of durable products or transform the feed into livestock. Why do the farmers not store such products as wheat, corn, and oats during periods of absolute and relative price declines during a major cycle?’’ (grifo nosso).

A esse respeito, não é pertinente afirmar, como o fazem, por exemplo, Sayad (1982a)SAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. e Lipsey e Steiner (1966LIPSEY, R. G. e STEINER, P. O. (1966) Economics. Nova York: Harper and Row. : 129), que o agricultor, agindo isoladamente, não consegue - ao contrário da firma industrial - evitar uma queda do preço de seu produto estocando sua produção. Com efeito, mesmo sabendo disso, o agricultor normalmente retém, cada ano, parte de sua produção para venda na entressafra, por esperar um preço futuro maior. O problema não se esgota, tampouco, na alegação de ser cara, e muito arriscada, a estocagem entre anos, já que esta não é a única - nem a mais importante - forma de estocagem privada de produtos agrícolas.

Uma resposta satisfatória à questão proposta por Johnson exige a consideração explícita das mutações macroeconômicas que ocorrem no ciclo e de como elas afetam a estocagem de produtos agrícolas. A esse respeito, o impacto cíclico sobre as condições financeiras dos agricultores não pode ser exagerado. A agricultura difere fundamentalmente da indústria por trabalhar mais com capital de empréstimo, o que a torna um setor mais “frágil” financeiramente, no sentido de Minsky. Tipicamente, o endividamento aumenta nas fases de euforia - inclusive porque, como acentua Kirk (1983: 190-192), a valorização da terra, que normalmente ocorre nesses períodos, significa mais capacidade de oferecer colateral-, tornando-se um fardo na recessão, quando o sistema financeiro se fecha em copas e força a liquidação dos empréstimos (e o preço da terra despenca).

A recessão não só torna os agricultores financeiramente menos capazes de reter seu produto, mas reduz também a demanda de estoques agrícolas por parte do comércio e da indústria. Isso ocorre em função do aperto de liquidez que geralmente acompanha a recessão, mas, também, porque, com excesso de oferta, reduz-se o “retorno de conveniência” da estocagem (Kirk, 1933KIRK, J. H. (1933) Agriculture and the Trade Cycle. Londres: P. P. King and Son. : 64). Nesse contexto, aumenta o spread requerido de preços safra-entressafra, e, com isso, a margem de comercialização. Desova de estoques anteriores reforça a tendência de queda dos preços e “bolhas” especulativas podem também ocorrer, dado o maior grau de incerteza sobre o futuro.

A análise do caso do Brasil

Tentativa anterior do autor (Rezende, 1989REZENDE, G. C. (1989) “Agricultura e Ajuste Externo no Brasil: Novas Considerações”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 19, n. 3, dezembro. ) de análise da experiência brasileira recente, à luz dos elementos teóricos apresentados acima, mostrou a necessidade de serem levadas em conta algumas peculiaridades da economia brasileira capazes de gerar um comportamento de curto prazo da agricultura, no ciclo econômico, diferente do padrão tipificado pela Grande Depressão americana.

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que os preços domésticos dos produtos exportáveis são menos afetados pelas flutuações cíclicas domésticas; em princípio, esses preços podem até mesmo comportar-se em sentido inverso ao do ciclo econômico, por influência da variação dos preços internacionais das commodities ou da taxa de câmbio. Em segundo lugar, os preços domésticos dos insumos agrícolas derivados do petróleo, como também os custos dos transportes, são muito influenciados pelo preço internacional do petróleo, e por isso também podem variar de forma autônoma vis-à-vis o ciclo doméstico. Este fato de a agricultura brasileira ser, assim, mais exposta a choques exógenos - que se traduzem em variações autônomas em sua rentabilidade - do que a indústria constituiu uma razão adicional, aduzida em Rezende (1989REZENDE, G. C. (1989) “Agricultura e Ajuste Externo no Brasil: Novas Considerações”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 19, n. 3, dezembro. ), para a evolução cíclica peculiar do seu produto (como também e principalmente do seu investimento), a partir de 1980.

Além disso, mostrou-se, nessa análise do caso brasileiro, que a agricultura conseguiu manter, em boa parte, na década de 80, sua tendência de crescimento verificada na década de 70; ora, as forças subjacentes que, atuando no médio e longo prazos, deram origem a esse fenômeno, evidentemente influenciaram, também, o comportamento de curto prazo da agricultura.

Na próxima seção, este trabalho pretende, por sua vez, apresentar resultados adicionais de pesquisa, mostrando que a análise do caso brasileiro requer que se vá além dessa problemática da “agricultura no ciclo”, e se focalize mais especificamente o contexto inflacionário.

II. AGRICULTURA E INFLAÇÃO

A preocupação estruturalista com o comportamento dos preços dos alimentos, enquanto fatores de pressão inflacionária, ganhou amparo acadêmico, mais recentemente, nos modelos neo-estruturalistas de inflação, que trataram de explicitar - e, de certa forma, justificar - as hipóteses necessárias à validade do argumento estruturalista.6 6 No Brasil, podem-se mencionar, por exemplo, Lara Resende (1979), Sayad (1979, 1981 e 1982a), Cardoso (1980a e 1980b), Barbosa (1983) e Bresser-Pereira e Nakano (1983).

Para fins de nossa discussão, é suficiente tomar por base um modelo simples (Cardoso, 1980bCARDOSO, E. (1980b) “Teorias Estruturalistas da Inflação: Um Comentário”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 10, n. 1, abril, pp. 333-340. ), segundo o qual a taxa de inflação é uma média ponderada da variação dos preços agrícolas e industriais:

π = α P ^ a + ( 1 - α ) P ^ i (1)

Admite-se, ainda, que os preços agrícolas são flex, ou seja, determinados pela oferta e demanda, enquanto os preços industriais são fix, determinados pelos custos unitários; assim, excesso de demanda de produtos agrícolas eleva seu preço relativo:

P ^ a - P ^ i = θ ^ (2)

Supõe-se que os custos unitários na indústria cresçam à mesma taxa da inflação passada, ou seja:

P ^ i = π - 1 (3)

Substituindo-se (2) e (3) em (1), obtém-se:

π = α θ ^ + n - 1 (4)

A taxa corrente de inflação é decomposta, assim, numa componente inercial, que decorre da indexação de preços e salários à inflação passada, e numa componente autônoma, representada pelo comportamento dos preços agrícolas. O impacto inicial sobre a inflação, de um eventual “choque” agrícola, é multiplicado à medida que os maiores custos industriais são repassados aos respectivos preços. Esta dinâmica é analisada num modelo parecido de Barbosa (1983BARBOSA, F. H. (1983) A Inflação no Pós-Guerra: Monetarismo versus Estruturalismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, série PNPE n? 8. : 124-128), com a conclusão de que a taxa de inflação de longo prazo será igual a:

π = α 1 - δ θ ^ (5)

onde δ é o coeficiente de realimentação dos salários. Assim, se α = 0.5, δ = 0.9 e θ^ = 4%, a taxa de inflação de longo prazo será igual a 20%.

A análise reconhece, por outro lado, que um tal processo de elevação de preços requer “acomodação” de liquidez por parte do Banco Central, surgindo daí a hipótese de passividade monetária, “uma proposição central do estruturalismo” (Cardoso, 1980bCARDOSO, E. (1980b) “Teorias Estruturalistas da Inflação: Um Comentário”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 10, n. 1, abril, pp. 333-340. : 335).

É importante notar que todos esses modelos se limitam a focalizar os fluxos anuais de oferta e demanda final de produtos agrícolas, como determinantes do comportamento de θ^. Embora isso se justifique no médio e longo prazos, no curto prazo isso é uma limitação séria, pois os preços dos produtos agrícolas mais importantes são formados, antes de mais nada, como preços de estoques, a estabilidade de cuja demanda não pode ser admitida em condições de forte instabilidade monetária - como se comprovará na análise do caso brasileiro.7 7 É ilustrativo, a este respeito, que somente no final de seu artigo (cujo tema central é o efeito da política monetária sobre os preços e a produção agrícolas) Sayad (1982a) fale no impacto da restrição de liquidez sobre a demanda de estoques, “derrubando os preços” (p. 50). Aliás, antes (p. 39, rodapé 4), ele esclarece que tem em mira a demanda final de consumo, que é função da “renda nominal” (os meios de pagamento entram em sua análise empírica apenas como proxy da renda nominal, pela falta de informações mensais sobre esta última).

Por outro lado, a causalidade nesses modelos é clara: os preços agrícolas determinam a inflação. O modelo de Sayad (1979SAYAD, J. (1979) “Inflação e Agricultura”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 9, n. 1, abril, pp. 1-32. ·e 1982aSAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. ), entretanto, destaca-se por admitir também uma causalidade inversa, da inflação para os preços relativos agrícolas; com isso, Sayad distingue períodos da história brasileira recente em que uma ou outra causalidade teriam prevalecido. o argumento é simples: como os preços industriais são formados com base na inflação passada, e os preços agrícolas variam com a renda nominal corrente, variações na taxa de inflação corrente, ao causarem variações idênticas na renda nominal, geram variações de mesmo sentido nos preços relativos agrícolas.

A inflação recente e os preços agrícolas

Entretanto, a experiência brasileira recente choca-se frontalmente com esses modelos neo-estruturalistas. Como o gráfico 1 mostra, verifica-se, desde 1986, uma nítida relação inversa entre a inflação e os preços relativos agrícolas.8 8 Os preços relativos agrícolas são a razão entre o IPA-Produtos Agrícolas e o IPA-Produtos Industriais, e a taxa de inflação é a taxa de variação mensal do IGP. Testes de análise de regressão relacionando os preços relativos agrícolas à taxa de inflação confirmaram a existência dessa correlação inversa para o período 1985-90; para o período 1980-84, entretanto, a correlação entre essas variáveis foi positiva. O gráfico 2 usa dados diferentes (preços a nível de produtor), e confirma o fenômeno. 9 9 É de se acreditar que os preços industriais sejam mais controláveis, na prática, do que os agrícolas - a começar pelos próprios preços públicos, que têm grande peso no IPA. Além disso, os preços agrícolas do IPA são informações mais efetivas de mercado (já que são cotações) do que os industriais, que, supõe-se, baseiam-se em tabelas de preços, não necessariamente cumpridas. Nessas condições, a razão entre esses preços é mais sensível tanto aos choques negativos de oferta agrícola, nos congelamentos, quanto aos choques positivos, nos descongelamentos, ocasião em que o índice de preços industriais dispara não só por mera “atualização”, mas, também, como reflexo de expectativas aceleracionistas. Essas considerações são relevantes para explicar a menor amplitude de variação da razão entre o IPR e o IPP, mostrada no gráfico 2, já que o IPP difere do IPA-Indústria tanto em sua composição (por incluir itens como mão-de-obra e insumos de origem agrícola), quanto na forma de coleta (o IPP baseia-se em preços efetivamente praticados). Note-se que é menor, também, a amplitude de variação da razão entre o IPA-Produtos Agrícolas e o IGP-DI, já que este inclui os próprios preços agrícolas de atacado e preços de varejo, que subiram mais que o IPA-Indústria nos congelamentos, e menos, nos descongelamentos. A análise a ser apresentada focalizará, de maneira explícita, os determinantes da demanda de estoques agrícolas. Será argumentado que as variações abruptas na taxa de inflação, desde o Plano Cruzado, estiveram associadas a (para não dizer “causaram”) mudanças igualmente abruptas na distribuição da riqueza financeira da economia, entre ativos financeiros e não financeiros (os últimos incluindo os estoques agrícolas), de tal maneira que, em períodos de queda da inflação, houve uma corrida para os estoques agrícolas - com consequente elevação dos preços agrícolas -, o contrário ocorrendo em períodos de aceleração inflacionária.

Gráfico 1:
Inflação e Preços Relativos Agrícolas

Gráfico 2:
Índice de Preços Recebidos / Índice de Preços Pagos (Junho de 1986 = 100)

Mais especificamente, e adotando os próprios termos da análise neo-estruturalista, a hipótese é de que os congelamentos de preços deram origem a “choques de oferta” agrícola negativos, e os descongelamentos, a “choques de oferta” positivos. Adota-se, contudo, neste trabalho, uma definição de oferta agrícola mais adequada para análise de curto prazo:

o f e r t a = S t 1 + Q t - S t (6)

onde St1 e S, são os estoques no início e no fim de cada período (o mês, por exemplo), e Qt é a produção do período. O argumento, em suma, consiste em mostrar que os congelamentos e os descongelamentos afetaram de forma sistemática as decisões sobre St, afetando também, consequentemente, o fluxo de oferta em cada período, já que St1 e Qt são dados no curto prazo.

Como parte desse fenômeno, pode-se notar, com ajuda do gráfico 3, o que aconteceu com o preço do boi gordo. Os movimentos alternados de queda e alta da inflação, de 1986 para cá, fizeram desaparecer o antigo ciclo pecuário - que já fora afetado, aliás, pela recessão de 1981-83 e a política monetária restritiva de então-, surgindo, em seu lugar, ciclos mais curtos e irregulares. São notáveis, em particular, tanto a queda de preços que se sucedeu à grande alta da época do Cruzado, quanto a alta de preços ocorrida durante o Plano Verão, em plena safra, e a queda posterior, em plena entressafra.

Gráfico 3:
Preço Real Dessazonalizado do Boi Gordo (Médias mensais de 85 = 100)

O antigo ciclo pecuário tinha sua origem na divergência entre a disponibilidade efetiva de boi gordo e a demanda final de carne: assim, uma situação de escassez detonava uma elevação do preço do boi gordo, que se transmitia, em cadeia, até o bezerro, tornando-se então mais lucrativa a retenção de matrizes - cuja oferta para o abate reduzia-se e, como consequência, intensificava-se a alta inicial de preços. A fase de baixa do ciclo, por sua vez, tinha início quando os novos bezerros chegavam à idade de abate, surgindo, então, excesso de oferta, com queda de preços, intensificada, por sua vez, pela menor retenção de matrizes (“liquidação do rebanho”).

No período posterior a 1980, a demanda de carne tornou-se mais instável em comparação com o passado, ou seja, o ciclo pecuário passou a sofrer a influência da maior instabilidade cíclica da economia. Mais importante, todavia, a retenção maior ou menor de matrizes deixou de guiar-se apenas em função do preço do bezerro, e muito mais em função da maior ou menor atratividade dos ativos financeiros, um aspecto praticamente invariável antes de 1980. O próprio boi magro entrou também nessa “dança de ativos”, passando a pressionar o preço do boi gordo e invertendo-se, assim, a relação de causalidade presente no ciclo pecuário tradicional.

O gráfico 4, que apresenta os índices das séries de abate de bois e vacas (peso de carcaça) do IBGE, devidamente dessazonalizadas, confirma a análise acima. Fica evidente que a alta do preço do boi gordo, em 1986, foi realmente fruto de um “choque de oferta negativo”, causado pela maior retenção de matrizes, assim como ocorreu de fato, após o descongelamento no início de 1987, um “choque de oferta positivo”, representado pelo aumento do abate de vacas. É notável, por outro lado, que o abate de matrizes parou de crescer exatamente no congelamento do Plano Bresser, retomando seu ímpeto com o descongelamento. É altamente significativo, também, a queda no abate de matrizes com o advento do Plano Verão, seguido de nova alta no segundo semestre de 1989. A evidência de queda no período mais recente (final de 1989 e o primeiro semestre de 1990) faz sentido também, já que o risco das aplicações financeiras aumentou nesse período.

Gráfico 4:
Abate Bovino Dessazonalizado (Médias mensais de 85 = 100)

A inflação e o preço da terra

Flutuações análogas às dos preços agrícolas ocorreram, também, nos preços da terra, como mostra o gráfico 5. É evidentemente ingênua qualquer tentativa de se estabelecer uma relação de causalidade entre uns e outros, já que todos eles se determinaram, simultaneamente, pelo mesmo mecanismo macroeconômico de alocação alternada da riqueza financeira em títulos ou em “ativos reais”. Esse fenômeno estendeu-se, aliás, a preços de imóveis urbanos, ações e dólar paralelo (para citar apenas os mais conhecidos), como comprova evidência empírica levantada para este trabalho, mas não publicada aqui por razões de espaço.

Gráfico 5:
Índice de Preços de Terra (em Logs, 1980 = 100)

O primeiro ciclo de queda e alta do preço da terra, entre 1981 e 1985, coincide com o ciclo econômico geral, e é consistente com a evolução da política monetária e de taxas de juros nesse período. Por outro lado, a excepcional elevação ocorrida em 1986, seguida de queda mais excepcional ainda em 1987, e também o ciclo de alta e baixa em 1989, devem ser vistos como decorrentes de processos especulativos detonados, no sentido altista, pela desindexação financeira que prevaleceu em 1986 e entre janeiro e junho de 1989; e, na direção baixista, pelo retorno da indexação no início de 1987 e em julho de 1989.

Inflação, moeda indexada e preços agrícolas

A explicação dessa evidência empírica deve iniciar-se com o reconhecimento de que, quanto maior a incerteza inflacionária, maior tende a ser a preferência por ativos indexados à inflação. Ativos com juros prefixados, nessas circunstâncias, embutem maior risco, seja para o aplicador (no caso de a inflação efetiva superar a inflação esperada), seja para o tomador (no caso contrário); e não é à toa que um ambiente de instabilidade inflacionária, na ausência de correção monetária, leva a um encolhimento do mercado financeiro.

Ora, a hipótese básica deste trabalho é de que os congelamentos de preços adotados nos Planos Cruzado, Bresser e Verão romperam com a capacidade de os ativos financeiros servirem de hedges contra a inflação, enquanto os descongelamentos que se seguiram recompuseram esse atributo. O argumento é de que, nas fases de congelamento, os índices de preços - e, com eles, a indexação financeira - tornaram-se enviesados para baixo com relação à “verdadeira” inflação corrente (por não captarem os ágios) e, sobretudo, com relação à inflação futura, da saída do congelamento (pela defasagem da coleta). Nas fases de preços livres, por outro lado, os índices de preços - e, junto com eles, a indexação financeira - recuperaram sua credibilidade como indicadores da inflação efetiva.

No caso do Plano Cruzado, o problema foi mais grave ainda porque este acabou com a correção monetária em ativos com prazo inferior a um ano (a ORTN, transformada em OTN, foi congelada por um ano), o que, juntamente com a adoção de uma política monetária expansiva, deu origem a uma desintermediação financeira sem precedentes, com explosão de preços de todos os ativos não financeiros. Esse fenômeno foi atribuído também, na época, a “ilusão monetária” por parte dos investidores: assim, a queda abrupta na taxa de juros nominal, devido ao “choque”, seria confundida com queda na taxa de juros real. Seja por um ou outro motivo, a verdade é que a transferência inicial de fundos para os “ativos reais” aumentou os preços desses ativos e deu lugar a expectativas de alta adicional desses preços - afinal concretizada pelos movimentos de capital suscitados por aquelas expectativas. Instalou-se uma febre especulativa generalizada com os chamados “ativos reais” (imóveis urbanos, terra, dólar paralelo, ações, rebanho bovino e demais estoques de produtos agrícolas).

Com o descongelamento de preços, no início de 1987, retomaram os ativos financeiros (leia-se: títulos públicos) sua condição de hedges preferidos contra a inflação, sobretudo porque, além de indexados, passaram a oferecer um atributo agora altamente premiado pelos investidores: liquidez máxima.

Indexação à inflação e liquidez máxima foram de fato garantidos aos títulos públicos pela atuação do Banco Central junto aos intermediários financeiros; surgia, então, a “moeda indexada”. Esta resultou do encontro da LBC, criada ainda no tempo do Cruzado - graças à qual o setor financeiro passou a ser remunerado também pelo ovenight -, com a “zeragem automática”, que garantia a recompra, pelo Banco Central, dos títulos não colocados junto ao público pelo setor financeiro.10 10 O mecanismo institucional responsável pela “moeda indexada” (conhecido, no jargão técnico, como “zeragem automática”) é discutido em Pastore (1990).

O Plano Bresser, partindo do pressuposto correto de que o fracasso do Plano Cruzado se deveu à desintermediação financeira, procurou manter a atratividade dos ativos financeiros, com preservação da OTN e fixação de juros nominais elevados no overnight. Contudo, como o gráfico 1 e outras evidências indicam, essas medidas não impediram uma corrida aos ativos reais. A explicação, segundo nossa hipótese, reside na inadequação de o IPC - e, portanto, a OTN - servir de indexador no contexto do congelamento. Era com base nesse mesmo IPC, por outro lado, que se consideravam elevados em termos reais os juros nominais. A base de comparação correta, contudo, devia ser a inflação “verdadeira”, como percebida pelos agentes, e, melhor ainda, a inflação que, a juízo dos investidores, o descongelamento poderia trazer.

A desintermediação financeira retornou com toda a força com o Plano Verão, que combinou a extinção pura e simples da OTN com a repetição da política de juros nominais supostamente elevados no overnight, A retenção especulativa de estoques só terminou com o descongelamento, em junho, e a volta dos investidores à “moeda indexada”, cuja garantia pelo governo tornou-se o instrumento principal - ou único - para evitar a hiperinflação.

Consequências para a própria inflação

Vê-se, assim, que, tanto no Plano Cruzado quanto nos Planos Bresser e Verão, inflação baixa - mas reprimida pelo congelamento - coincidiu com desindexação financeira, enquanto as fases de descongelamento e aceleração inflacionária coincidiram com reindexação cum liquidez. Isso é que explica a correlação inversa entre inflação e preços agrícolas no Brasil, desde 1986.11 11 A hipótese alternativa, já levantada antes, de “ilusão monetária”, subentende, de fato, a inde0xação nas fases de aceleração inflacionária. A experiência argentina, aliás, ilustra como, na ausência da “moeda indexada”, não surgiu qualquer ilusão monetária, mas, sim, a dolarização e a passagem rápida para a hiperinflação.

Como consequência disso, os preços agrícolas e os industriais trocaram de papéis nas fases de queda e de alta da inflação: Estes últimos, longe de serem “passivos” no processo inflacionário - reajustando-se pela inflação passada, como suposto nos modelos neo-estruturalistas -, tornaram-se os veículos das expectativas aceleracionistas. O comportamento dos preços agrícolas, por sua vez, se por um lado arrefeceu o ímpeto da inflação nessas fases explosivas, por outro, foi uma força desestabilizadora nas fases de congelamento - lembremos o exemplo da carne em 1986 - e, assim, contribuiu para a formação dessas mesmas expectativas inflacionárias.

Esse papel desestabilizador foi cumprido sobretudo pelos preços agrícolas no nível do produtor e do atacado, aos quais restringimos, até aqui, nossa discussão. Na realidade, os preços relativos da alimentação no varejo não acompanharam esses preços do atacado, como pode ser notado no gráfico 6.12 12 Nesse gráfico, relacionamos a razão entre o índice de custo de alimentação e o índice de custo de vida total, da FIPE, com a razão entre o IPA-Gêneros Alimentícios e o IPA-DI total, da Fundação Getúlio Vargas. Os preços relativos da alimentação, no varejo, caem nas fases de congelamento - denotando a maior facilidade de controle dos preços de alimentos vis-à-vis os preços dos demais itens de custo de vida-, e, ao contrário do que se poderia esperar, não explodem com o descongelamento, já que, a esta altura, a tendência de alta dos preços de atacado se invertera, dando lugar à tendência de queda.13 13 Testes de análise de regressão, tomando os preços relativos de alimentação no varejo como variável dependente, mostraram correlação positiva muito maior, entre esses preços e os seus similares no atacado, no período 1980-84, do que no período 1985-90. Nessas regressões, o coeficiente da taxa de inflação tornou-se altamente significativo (com sinal positivo) no período 1985-90, depois de se mostrar não significativo entre 1980 e 1984. (Resultados análogos foram obtidos usando-se o índice de custo de vida da FGV.)

Gráfico 6:
Preços relativos de Alimentação (Atacado e Varejo)

A adoção, desde fins de 1985, de um índice oficial de inflação, restrito ao nível de varejo (IPC), contribuiu, assim, para um amortecimento da força desestabilizadora dos preços agrícolas nos planos heterodoxos, comparativamente ao que teria ocorrido caso a inflação continuasse sendo medida pelo IGP.

Consequências sobre a agricultura

O impacto desse contexto macroeconômico instável foi o aumento brutal do risco na agricultura. Isso resultou não apenas do aumento da instabilidade de preços agrícolas, mas, sobretudo, da inviabilização das políticas setoriais que vinham operando, com claros resultados positivos, desde o início da década: as políticas de preços mínimos e de crédito. 14 14 O coeficiente de variação dos preços relativos agrícolas, que fora igual a 0,06 e 0,11 nos quinquênios 1970-74 e 1975-79, respectivamente, subiu para 0,19 no período 1986-90, depois de assumir o valor 0,17 entre 1980 e 1985. Nesse último período, entretanto, a instabilidade de preços deveu-se muito mais a fatores exógenos (flutuações dos preços internacionais entre 1981 e 1984), ou independentes da ação do governo (como a quebra de safra de 1983, coincidente com aguda crise cambial), do que à própria ação do governo, como ocorreu após 1986. Além disso, a bateria de política setorial (preços mínimos principalmente) estava em plena forma, no primeiro quinquênio da década.

A incapacidade de essas políticas setoriais operarem num ambiente de tamanha instabilidade revelou-se plenamente na crise financeira agrícola de 1987, em função dos pesados ônus impostos, então, ao Tesouro. Desde então, o crédito rural passou a ser fornecido com recursos da caderneta de poupança, o que introduziu uma rigidez óbvia ao instrumento - vide o ocorrido nos Planos Verão e Collor. Desarmou-se, ainda, o esquema anterior de participação ativa do governo na comercialização agrícola (através tanto da compra - via preços mínimos remuneradores - como da venda de estoques agrícolas), e optou-se, em seu lugar, pelo financiamento da estocagem (EGF) e pela adoção de “novas regras de comercialização”, que restringiam a desova de estoques públicos somente em níveis predeterminados de “preços de intervenção” e excluíam a possibilidade de subsídios nessas operações de compra e venda de estoques por parte do governo. Essas novas regras de comercialização, aliás, contribuíram para agravar ainda mais o problema do risco na agricultura, pois serviram para alimentar tanto a alta de preços agrícolas em 1988 como o ciclo de alta e queda em 1989, já que ampliaram a faixa de variação possível dos preços agrícolas. Com isso, os estoques agrícolas passaram a preencher melhor os atributos necessários a que um bem qualquer sirva de reserva de valor.15 15 Esses atributos são bem discutidos em Sayad (1977 e 1982b). Ver também Ackley (1983).

Esse solapamento das bases do bom desempenho que a agricultura vinha apresentando desde 1980 ocorreu exatamente no período das “supersafras” de 1987, 1988 e 1989, que na verdade resultaram dos elevados investimentos agrícolas de 1986 e 1988 (neste último ano, induzidos pelos preços agrícolas favoráveis, para o que muito contribuiu a seca americana).

É dentro desse contexto que se pode explicar melhor a queda na produção agrícola ocorrida em 1990. Com efeito, a comercialização da safra de 1989 já se iniciou de forma atípica. A colheita da safra se deu com tendência de alta dos preços agrícolas, o que se explica por sua coincidência com o Plano Verão e, também, pelo baixo nível de endividamento dos agricultores, o que possibilitou a estes últimos reter a safra, não obstante a redução no crédito de comercialização nesse ano. (De fato, maior oferta de EGF, nesse contexto, poderia ter feito os preços agrícolas explodirem mais ainda, o que deve ter contribuído para a decisão do governo de contrair o EGF).

A derrocada dos preços agrícolas no segundo semestre de 1989, entretanto, frustrou inteiramente as expectativas que levaram os agricultores a reter a safra. Os próprios agricultores, no afã de encontrar melhor refúgio para seu capital (necessário para o plantio seguinte), passaram a converter seus estoques em aplicações financeiras. Culminando tudo isso, o atraso na liberação do crédito de custeio da safra 89/90 - sem falar na redução de seu montante e no aumento de seu custo - tornou mais grave ainda esse desequilíbrio entre o fluxo de desova dos estoques agrícolas e o de consumo corrente (um fenômeno que se estendeu até mesmo, como foi visto, ao abate bovino), pois essa era a única via de obtenção de liquidez para o custeio da nova safra. Seja por contribuírem para a formação de expectativas pessimistas de preços futuros, seja por achatarem a capacidade de autofinanciamento dos agricultores num contexto de forte restrição (“interna” e “externa”) na tomada de crédito, os baixos preços recebidos na entressafra de 1989 foram os principais responsáveis pela queda que se verificou, em seguida, no nível de atividade setorial.

Essa experiência de comercialização agrícola em 1989 revela, por outro lado, a necessidade de se levar em conta também, na análise das flutuações dos preços agrícolas, o estado de liquidez dos agricultores. Isso, aliás, ajuda a explicar tanto a conjuntura de 1986 - em que o crédito rural se expandiu violentamente-, quanto a do início de 1987, de crise financeira do setor agrícola. Até mesmo a recuperação dos preços agrícolas durante o Plano Bresser pode explicar-se em parte, pelas anistias creditícias de então.

III. O PLANO COLLOR E A POLÍTICA AGRÍCOLA

A estratégia, adotada desde 1986, de assegurar a rolagem do estoque de dívida pública (e bem assim de viabilizar o acréscimo real a esse estoque, requerido para financiar o déficit público e a redução dos encaixes reais) pela via da “moeda indexada”, se por um lado evitou a explosão inflacionária aberta (a hiperinflação), por outro, impediu o combate mais efetivo à inflação, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o aumento da liquidez dos ativos financeiros - e a consequente maior facilidade de conversão da riqueza em “ativos reais” e em antecipação do consumo (e vice-versa) - tornou os agentes econômicos mais aptos a especular contra os planos de estabilização. Em segundo lugar, o mecanismo da “zeragem automática”, que viabilizou a oferta ao público, pelo setor financeiro, da “moeda indexada”, implicava a renúncia, por parte do Banco Central, à faculdade de exercer uma política monetária ativa.16 16 Sobre isso, ver Pastore (1990), segundo o qual “o over acabou com o open”: Simonsen (1990), contudo, argumenta que o problema da moeda indexada é reduzir a relação M1/PIB (ou base/PIB), o que, em seu modelo, “eleva consideravelmente a taxa de inflação de equilíbrio” (p.124).

Partindo do diagnóstico implícito de que não seria viável conseguir a adesão voluntária dos agentes econômicos à reforma desse sistema, o novo governo adotou a estratégia de choque, simplesmente congelando a maior parte dessa “moeda indexada”. Neutralizou, assim, a possibilidade do ataque especulativo contra o congelamento inicial de preços e ganhou controle sobre a política monetária. O resultado inicial, de derrubada completa dos preços. dos ativos reais - inclusive os dos estoques agrícolas e de terra -, foi, contudo, rapidamente desfeito pela inundação de cruzeiros em abril e maio, o que explica o aquecimento, nesses meses, dos preços agrícolas (inclusive pelo crédito abundante à retenção da safra).

Desde meados de maio, entretanto, assiste-se a uma progressiva contração da base monetária e à tentativa de penalizar, com menor taxa de juros, a preferência por liquidez. Ao lado disso, o setor financeiro, com o fim da “zeragem automática”, ficou menos capaz de oferecer a moeda indexada - ou seja, liquidez sem perda de rentabilidade. A adoção dessa política restritiva, juntamente com a desindexação salarial e o desaquecimento da demanda agregada, interrompeu o processo especulativo de alta dos preços agrícolas (como também do preço da terra).

Nesse contexto de desmantelamento da “moeda indexada”, uma reaceleração inflacionária só não fará explodir novamente os preços agrícolas se se mantiver a política monetária restritiva. Conquanto no curto prazo isso favorecerá a atual política anti-inflacionária, o provável impacto adverso sobre o próximo plantio obviamente ameaçará a continuidade dessa política. O sucesso da atual estratégia de combate à inflação supõe, portanto, a readmissão de prioridade ao setor agrícola, com a implicação de o governo ter de acomodar, nas suas restrições de política fiscal e monetária, a necessidade de expandir o crédito agrícola e de sinalizar claramente em favor da garantia de preços mínimos.

Uma maior oferta de crédito, em particular, livraria os agricultores da necessidade de obter liquidez via desova excessiva de seus estoques, como ocorreu em 1989. Além do mais, como é provável que o carregamento dos estoques em 1990 esteja ocorrendo com base em maior endividamento (contraído através de protelação do crédito de custeio da safra 89/90, obtenção de empréstimos de comercialização, e inadimplência pura e simples), mesmo a venda depreciada dos estoques não geraria os recursos necessários para o novo plantio. Por isso, o impacto de uma possível falta de crédito de custeio em 1990 seria ainda mais danoso do que o foi em 1989.

É interessante notar, antes de terminar, que a concessão de prioridade à agricultura é necessária não apenas para dar coerência à estratégia de combate à inflação, mas, também, para favorecer a retomada do crescimento econômico. Ao reduzir o risco do investimento agrícola, a política econômica consegue que um setor - que, de qualquer maneira, tem a demanda final por seus produtos menos afetada pela recessão - “parta na frente” e, por seu peso relativo na economia, puxe os demais.17 17 Segundo Feijó et al. (1990: 359), “em 1984 o incremento na produção de máquinas, implementos e tratores agrícolas foi tão significativo que chegou a responder por quase metade do crescimento do setor de bens de capital nesse ano”. Sem pretender que a agricultura repita seu feito de “puxar” a recuperação industrial de 1984, isso ilustra, de qualquer maneira, que a agricultura pode, de fato, cumprir um papel anti-recessivo no atual quadro da economia brasileira.

IV. SUMÁRIO E CONCLUSÕES

Este trabalho mostrou como o setor agrícola brasileiro foi profunda e adversamente afetado pelo agravamento do quadro macroeconômico e, em particular, pelas estratégias - seja via “choques”, seja via “moeda indexada” - adotadas pelo governo para controlar a inflação. O setor agrícola, que encontrou espaço e recebeu estímulos para crescer na maior parte da década de 80, tornou-se, ao término desta, a principal vítima do descontrole inflacionário e da incapacidade demonstrada pelo governo de combatê-lo.

Essa experiência também mostra, por outro lado, o quanto é importante, para os economistas - especialmente os agrícolas -, aprimorar a sua compreensão teórica e empírica dos vínculos macroeconômicos da agricultura. Ao fazer isso, estaremos matando dois coelhos com uma só cajadada, pois lança-se luz não apenas sobre a agricultura, mas também sobre a extensão e a forma de atuação dos próprios processos macroeconômicos. Ressalte-se, ainda, que o fato de instabilidade macroeconômica aguda - em cujo contexto se torna mais relevante um tal esforço de pesquisa - ser uma vivência cotidiana específica de países subdesenvolvidos como o Brasil faz diminuir o interesse e a percepção concreta do fenômeno por parte dos economistas de países desenvolvidos. Nada, aliás, ilustra melhor essa afirmativa do que o abandono a que foi relegada, na literatura internacional de economia agrícola, a antiga e interessante discussão sobre a “agricultura no ciclo econômico”. Cabe-nos, portanto, o imperativo e a exclusividade de retomar e aprofundar a temática aqui cunhada de macroeconomia agrícola, o que foi também um dos objetivos deste trabalho.

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  • 1
    Essa frase, que expressa muito propriamente o bom desempenho agrícola na década de 80 (Rezende, 1989REZENDE, G. C. (1989) “Agricultura e Ajuste Externo no Brasil: Novas Considerações”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 19, n. 3, dezembro. ), foi dita por Ney Bittencourt de Araújo ao Jornal Agroceres de maio-junho de 1990, p. 5.
  • 2
    Recentemente, Binswanger (1990BINSWANGER, H. (1990) “The Policy Response of Agriculture”. In: Proceedings of the World Bank Annual Conference on Development Economics - 1989. Washington, D.C.: The World Bank, pp. 231-258. ) apoiou-se em Johnson (1950)JOHNSON, D. G. (1950) “The Nature of the Supply Function for Agricultural Products”, American Economic Review , vol. 40, pp. 539-564. para explicar “why the aggregate response to price changes is small in the short run”.
  • 3
    Ver, por exemplo, Hicks (1974HICKS, J. R. (1974) The Crisis in Keynesian Economics. Nova York: Basic Books. ), Kaldor (1976KALDOR, N. (1976) “Inflation and Recession in the World Economy”, Economic Journal, vol. 86, n. 12, pp. 703-14. ), Kalecki (1971KALECKI, M. (1971) Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy. Cambridge: Cambridge University Press. ). No Brasil, Sayad (1982a)SAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. também tratou deste assunto. A propósito, Considera (1981CONSIDERA, C. M. (1981) “Preços, Mark-Up e Distribuição Funcional de Renda na Indústria de Transformação: Dinâmica de Longo e de Curto Prazo - 1959/80”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 11, n. 3, dezembro, pp. 637-702. : 645) nota que as análises de Hall e Hitch e de Sweezy, sobre a “curva de demanda quebrada”, visavam explicar “a relativa inflexibilidade dos preços industriais observada nos anos da Grande Depressão”.
  • 4
    Interessa muito, na análise da utilização de mão-de-obra agrícola no ciclo, o fato de se tratar de mão-de-obra familiar ou assalariada (e, dentro dessa, fixa ou eventual). Sobre isso, ver Rezende (1989REZENDE, G. C. (1989) “Agricultura e Ajuste Externo no Brasil: Novas Considerações”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 19, n. 3, dezembro. ).
  • 5
    Além disso, itens do “capital de giro” agrícola sofrem queda em seus preços (mão-de-obra, sementes, alimentos, animais de origem agrícola etc.), e a tecnologia é mais flexível (uso de defensivos químicos pode ser substituído por maior emprego de mão-de-obra, por exemplo).
  • 6
    No Brasil, podem-se mencionar, por exemplo, Lara Resende (1979LARA RESENDE, A. (1979) “Incompatibilidade Distributiva e Inflação Estrutural”, Anais da ANPEC. Atibaia, SP, 11 a 14 de dezembro, pp. 1051-1080. ), Sayad (1979SAYAD, J. (1979) “Inflação e Agricultura”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 9, n. 1, abril, pp. 1-32. , 1981SAYAD, J. (1981) “Abastecimento Urbano e Inflação”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 11, n. 3, dezembro, pp. 563-598. e 1982aSAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. ), Cardoso (1980aCARDOSO, E. (1980a) “Oferta de Alimentos e Inflação”, Pesquisa e Planejamento Econômico, vol. 10, n. 1, abril, pp. 45-70. e 1980bCARDOSO, E. (1980b) “Teorias Estruturalistas da Inflação: Um Comentário”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 10, n. 1, abril, pp. 333-340. ), Barbosa (1983BARBOSA, F. H. (1983) A Inflação no Pós-Guerra: Monetarismo versus Estruturalismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, série PNPE n? 8. ) e Bresser-Pereira e Nakano (1983BRESSER-PEREIRA, L. C. e NAKANO, Y. (1983) “Fatores Aceleradores, Mantenedores e Sancionadores da Inflação”, Anais do XI Encontro Nacional de Economia, Belém, dezembro. ).
  • 7
    É ilustrativo, a este respeito, que somente no final de seu artigo (cujo tema central é o efeito da política monetária sobre os preços e a produção agrícolas) Sayad (1982a)SAYAD, J. (1982a) “Notas sobre a Agricultura no Curto Prazo”, Revista de Economia Política, vol. 2, n, 4, outubro-dezembro, pp. 33-55. fale no impacto da restrição de liquidez sobre a demanda de estoques, “derrubando os preços” (p. 50). Aliás, antes (p. 39, rodapé 4), ele esclarece que tem em mira a demanda final de consumo, que é função da “renda nominal” (os meios de pagamento entram em sua análise empírica apenas como proxy da renda nominal, pela falta de informações mensais sobre esta última).
  • 8
    Os preços relativos agrícolas são a razão entre o IPA-Produtos Agrícolas e o IPA-Produtos Industriais, e a taxa de inflação é a taxa de variação mensal do IGP. Testes de análise de regressão relacionando os preços relativos agrícolas à taxa de inflação confirmaram a existência dessa correlação inversa para o período 1985-90; para o período 1980-84, entretanto, a correlação entre essas variáveis foi positiva.
  • 9
    É de se acreditar que os preços industriais sejam mais controláveis, na prática, do que os agrícolas - a começar pelos próprios preços públicos, que têm grande peso no IPA. Além disso, os preços agrícolas do IPA são informações mais efetivas de mercado (já que são cotações) do que os industriais, que, supõe-se, baseiam-se em tabelas de preços, não necessariamente cumpridas. Nessas condições, a razão entre esses preços é mais sensível tanto aos choques negativos de oferta agrícola, nos congelamentos, quanto aos choques positivos, nos descongelamentos, ocasião em que o índice de preços industriais dispara não só por mera “atualização”, mas, também, como reflexo de expectativas aceleracionistas. Essas considerações são relevantes para explicar a menor amplitude de variação da razão entre o IPR e o IPP, mostrada no gráfico 2, já que o IPP difere do IPA-Indústria tanto em sua composição (por incluir itens como mão-de-obra e insumos de origem agrícola), quanto na forma de coleta (o IPP baseia-se em preços efetivamente praticados). Note-se que é menor, também, a amplitude de variação da razão entre o IPA-Produtos Agrícolas e o IGP-DI, já que este inclui os próprios preços agrícolas de atacado e preços de varejo, que subiram mais que o IPA-Indústria nos congelamentos, e menos, nos descongelamentos.
  • 10
    O mecanismo institucional responsável pela “moeda indexada” (conhecido, no jargão técnico, como “zeragem automática”) é discutido em Pastore (1990PASTORE, A. C. (1990) “A Reforma Monetária do Plano Collor”, In: Faro, Clóvis de (org.) Plano Collor: Avaliações e Perspectivas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, pp. 157-174. ).
  • 11
    A hipótese alternativa, já levantada antes, de “ilusão monetária”, subentende, de fato, a inde0xação nas fases de aceleração inflacionária. A experiência argentina, aliás, ilustra como, na ausência da “moeda indexada”, não surgiu qualquer ilusão monetária, mas, sim, a dolarização e a passagem rápida para a hiperinflação.
  • 12
    Nesse gráfico, relacionamos a razão entre o índice de custo de alimentação e o índice de custo de vida total, da FIPE, com a razão entre o IPA-Gêneros Alimentícios e o IPA-DI total, da Fundação Getúlio Vargas.
  • 13
    Testes de análise de regressão, tomando os preços relativos de alimentação no varejo como variável dependente, mostraram correlação positiva muito maior, entre esses preços e os seus similares no atacado, no período 1980-84, do que no período 1985-90. Nessas regressões, o coeficiente da taxa de inflação tornou-se altamente significativo (com sinal positivo) no período 1985-90, depois de se mostrar não significativo entre 1980 e 1984. (Resultados análogos foram obtidos usando-se o índice de custo de vida da FGV.)
  • 14
    O coeficiente de variação dos preços relativos agrícolas, que fora igual a 0,06 e 0,11 nos quinquênios 1970-74 e 1975-79, respectivamente, subiu para 0,19 no período 1986-90, depois de assumir o valor 0,17 entre 1980 e 1985. Nesse último período, entretanto, a instabilidade de preços deveu-se muito mais a fatores exógenos (flutuações dos preços internacionais entre 1981 e 1984), ou independentes da ação do governo (como a quebra de safra de 1983, coincidente com aguda crise cambial), do que à própria ação do governo, como ocorreu após 1986. Além disso, a bateria de política setorial (preços mínimos principalmente) estava em plena forma, no primeiro quinquênio da década.
  • 15
    Esses atributos são bem discutidos em Sayad (1977SAYAD, J. (1977) “Preço da Terra e Mercados Financeiros”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 7, n. 3, dezembro, pp. 623-662. e 1982bSAYAD, J. (1982b) “Especulação com Terras Rurais, Efeitos sobre a Produção Agrícola e o Novo ITR”, Pesquisa e Planejamento Econômico , vol. 12, n. 1, abril, pp. 87-108. ). Ver também Ackley (1983ACKLEY G. (1983) “Commodities and Capital: Prices and Quantities”, American Economic Review, vol. 73, n. 1, março, pp. 1-16. ).
  • 16
    Sobre isso, ver Pastore (1990PASTORE, A. C. (1990) “A Reforma Monetária do Plano Collor”, In: Faro, Clóvis de (org.) Plano Collor: Avaliações e Perspectivas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, pp. 157-174. ), segundo o qual “o over acabou com o open”: Simonsen (1990SIMONSEN, M. H. (1990) “Aspectos Técnicos do Plano Collor”. In: Faro, Clóvis de (org.), Plano Collor: Avaliações e Perspectivas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora , pp. 113-128. ), contudo, argumenta que o problema da moeda indexada é reduzir a relação M1/PIB (ou base/PIB), o que, em seu modelo, “eleva consideravelmente a taxa de inflação de equilíbrio” (p.124).
  • 17
    Segundo Feijó et al. (1990FEIJÓ, C. A. DO V. C. et al. (1990) “Produção Agrícola; Agroindustrial e de Máquinas e Insumos Agrícolas nos Anos 80: Novas Evidências Estatísticas”, Anais do XXVIII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, Florianópolis, 22 a 27 de julho. : 359), “em 1984 o incremento na produção de máquinas, implementos e tratores agrícolas foi tão significativo que chegou a responder por quase metade do crescimento do setor de bens de capital nesse ano”. Sem pretender que a agricultura repita seu feito de “puxar” a recuperação industrial de 1984, isso ilustra, de qualquer maneira, que a agricultura pode, de fato, cumprir um papel anti-recessivo no atual quadro da economia brasileira.
  • *
    Este trabalho contou com a colaboração de Maria Cristina Leal da Costa.
  • JEL Classification: Q18; Q11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1992
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