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Reflexões sobre A Crise do Estado

Reflections on A Crise do Estado

RESUMO

Crise fiscal e caráter cíclico da intervenção estatal são os dois pilares do diagnóstico de Bresser-Pereira sobre a atual crise. A imobilização do estado e a recuperação de seu poder de intervenção estão no centro da discussão. A solução depende, por um lado, da superação da crise fiscal simultaneamente com um programa de estabilização de preços. Por outro lado, redefinir as metas e papéis, que antecipam a contração do estado, mas não a eliminação. Por fim, o populismo econômico e o nacionalismo não são a raiz, mas são barreiras para superar a crise.

PALAVRAS-CHAVE:
Ajuste fiscal; reforma do Estado; resenha

ABSTRACT

Fiscal crisis and cyclical character of state intervention are the two pillars of Bresser-Pereira’s diagnosis about the current crisis. The state’s immobilization and the recovery of its power of intervention are in the center of the discussion. The solution depends on, on one hand, the overcome of fiscal crisis simultaneously with a price stabilization program. On the other hand, to redefine the goals and roles, which bring forward the state’s contraction, but not its elimination. Finally, the economic populism and nationalism aren’t the root, but are barriers to overcome the crisis.

KEYWORDS:
Fiscal adjustment; State reform; review

O último livro de Bresser-Pereira, A Crise do Estado (1992aBRESSER-PEREIRA, L. C. (1992a). A Crise do Estado. São Paulo: Nobel , 1992.), constitui-se em instrumento de reflexão acerca da crise atual. Nesse sentido, pareceu-me estimulante rastrear as ideias básicas que sustentam o diagnóstico e as propostas de política nele contidas.

Na primeira e segunda partes - “A crise fiscal” e o “Esgotamento da estratégia de desenvolvimento” - estão reunidos os principais ensaios que embasam o arcabouço analítico, centrado nos conceitos de crise fiscal e caráter cíclico da intervenção do Estado. Em “Efficiency and politics of economic reforms in Latin Arnerica” (1992bBRESSER-PEREIRA, L. C. (1992b). “Efficiency and politics of economic reforms in Latin América”. In BRESSER-PEREIRA, L. C., J. Maravall e A. Przeworski. Economic Reforms in New Democracies. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.), Bresser-Pereira delineia sua visão sobre a natureza da crise atual, elaborada a partir desse referencial:

“De acordo com o enfoque pragmático, a crise latino-americana pode ser explicada através de distorções cumulativas provocadas por anos de populismo e nacional-descnvolvimentismo, pelo excessivo e disfuncional crescimento do Estado, pela exaustão da estratégia de substituição de importações e pela consequência central de todas essas tendências: a crise financeira do Estado - uma crise que imobiliza o Estado, transformando-o em obstáculo e não em um agente efetivo do crescimento”(p. 9).

Embora os ingredientes do diagnóstico sejam semelhantes aos utilizados pela visão neoliberal (excessiva intervenção do Estado, economia excessivamente voltada para dentro, populismo econômico e déficit público sem controle), o autor coloca a imobilização do Estado no centro da discussão.

Assim, ao contrário do enfoque neoliberal, trata-se de uma crise do Estado e não de uma crise provocada pela presença do Estado na economia. Os estados latino-americanos entram em crise, em primeiro lugar, porque estão prisioneiros da crise fiscal e, em segundo, porque o padrão de intervenção que caracterizou o processo de industrialização a partir dos anos 30 se esgotou e necessita ser redefinido.

O neoliberalismo fortalecido com o colapso do consenso keynesiano aponta para o Estado, afirmando o caráter perverso e ineficaz de sua intervenção. Trata-se de uma concepção teórica que procura demonstrar a economia de mercado competitivo como a maneira mais eficiente de resolver os problemas de qualquer economia. O mercado seria tão eficiente que pouco, ou quase nada, restaria ao Estado fazer.

Sem dúvida, não é este o referencial teórico utilizado por Bresser-Pereira.

Em “O caráter cíclico da intervenção estatal” (1988aBRESSER-PEREIRA, L. C. (1988a). “O caráter cíclico da intervenção estatal”. Revista de Economia Política, 9(3), julho, 1989.), após criticar o caráter ideológico dos discursos neoliberal e estatista, apresenta sua concepção acerca da natureza do processo de intervenção: “Minha asserção básica é que a intervenção estatal se expande e se contrai ciclicamente, e que a cada novo ciclo o modo de intervenção muda”(p. 121).

A ótica da natureza cíclica permite analisar a dinâmica da intervenção estatal, mais precisamente a expansão/contração e a introdução de novos modos de intervenção a partir de uma perspectiva histórica. Assim, entre os anos 30 e 50, o fato de a América Latina se caracterizar pela transição do pré-capitalismo ou do capitalismo comercial para o industrial, como indústria nascente permanentemente ameaçada pela concorrência dos países industriais, justificava plenamente a adoção do protecionismo como estratégia fundamental para promover a industrialização. A existência de um relativo mercado interno, conjugado com o pessimismo relativo às condições que prevaleciam no comércio internacional, dava suporte ao modelo de substituição de importações. Finalmente, as enormes exigências de capital nos setores de infra­estrutura (energia, transporte e insumos básicos) forçaram o investimento direto do Estado.

Nos anos 60 e 70, fatos novos apontam para a profunda mudança do quadro. Em primeiro lugar, a América Latina não era mais um continente em transição para o capitalismo; tornara-se plenamente capitalista, ainda que seu capitalismo fosse excludente e arcaico. Em segundo, a falta de competitividade internacional da indústria está atrelada à dimensão insuficiente do mercado nacional e ao desestímulo à incorporação de progresso técnico em um mercado excessivamente protegido.

O padrão de intervenção estatal predominante durante a implantação e consolidação da indústria nas economias latino-americanas, fortemente assentado no investimento direto, na proteção ao mercado interno e na regulamentação, esgotou-se. Fazia-se necessária, a partir dos anos 60, uma redefinição de orientação e de papéis. Era essencial voltar as economias latino-americanas para a exportação e para a competitividade internacional. Se o Estado fora o principal agente da poupança forçada e da acumulação de capital, era preciso transferir essas funções para o setor privado.

Em suma, faz-se mister reduzir o tamanho e a intensidade da intervenção do Estado, de um lado, porque já existem capitais privados capazes de levar adiante o processo de acumulação, e de outro, porque “não somente a acumulação de capital, mas também a inovação, a introdução permanente do progresso técnico, assumem um papel decisivo no processo de desenvolvimento econômico. E neste momento tornam-se evidentes as limitações do planejamento econômico comparativamente à coordenação via mercado. As empresas controladas pelo mercado tendem a ser mais flexíveis, criativas e eficientes. As empresas estatais, além de não terem tanto incentivo para inovar, são frequentemente vítimas de interesses políticos” (p. 128).

Contrair, no entanto, não significa eliminar o Estado. Em primeiro lugar, continuará a função precípua de prover as condições fundamentais que garantem a existência do mercado (infraestrutura, sistema legal, regulação do conflito capital/trabalho e garantias de expansão do mercado). Em segundo, a definição de estratégias amplas e setoriais, assentadas na centralização e realocação de recursos financeiros, visando a capacitação científica, tecnológica e mercadológica.

Colocada a perspectiva da intervenção cíclica, fica fácil compreender por que o desequilíbrio financeiro impele a transição para uma nova fase.

Acentuando se tratar de um fenômeno estrutural, distinto portanto da mera indisciplina fiscal, Bresser-Pereira apresenta cinco ingredientes, concentrando sua atenção em dois considerados essenciais para explicar a crise fiscal do Estado.

Em primeiro lugar, a dívida pública (interna e externa) elevada, componente vital desconsiderado pelo modelo convencional de ajuste. A explicitação do componente financeiro do déficit, fruto da dimensão do endividamento e das taxas de juros, torna patente a inviabilidade de sua carga. Significa dizer que, na presença de um desequilíbrio de estoque, o ajuste deve necessariamente recair sobre ele, sob pena de não lograr resultado e, mais ainda, arcar com consequências perversas.

Em segundo lugar, a poupança pública (diferença entre receita e despesa corrente) é um elemento fundamental para analisar a estratégia de redução do déficit sem afetar a capacidade de investimento do Estado:

“Quando a poupança pública estiver próxima de zero, o Estado terá somente uma alternativa se desejar investir: financiá-lo através do déficit público. No entanto, se o objetivo é reduzir o déficit público - um componente intrínseco de qualquer programa destinado a resolver a crise fiscal - o resultado provável será a redução dos investimentos. Se o Estado investir, verá o seu endividamento crescer e seu crédito reduzir; se o déficit público é elevado, o investimento cai. E se a poupança for negativa, o Estado incorrerá em déficit mesmo se o investimento público for zero ( ... )” (1992, p. 10).

A ênfase na poupança pública aponta para a vulnerabilidade básica elos governos latino-americanos: a incapacidade de financiar o Estado através de impostos, em especial o imposto sobre a renda. “Os mais ricos não pagam impostos na América Latina. A carga fiscal tende a permanecer sistematicamente baixa, não somente quando comparada com países desenvolvidos, mas também com países asiáticos com o mesmo nível de desenvolvimento” (1992, p. 14).

O Estado está enfraquecido, desacreditado e imobilizado diante da crise fiscal. Nesse sentido, sua superação, conjugada com o programa ele estabilização de preços, é a condição essencial para resolver a crise.

No capítulo 10 - “Congelamento preparado e âncora nominal” - se apresentam os elementos fundamentais de um programa de estabilização: ajuste fiscal, congelamento preparado com amplo acordo social e estabilidade da taxa de câmbio.

“O equilíbrio ou preferencialmente o superávit público é necessário porque o Estado, sem crédito, só logra financiar o déficit público através de emissão de moeda. A âncora nominal ou estabilidade da taxa de câmbio não deve, de forma alguma, ser confundida com um tabelamento de câmbio. O que é necessário é deixar claro que o Estado tem condições de defender a moeda nacional de ataques especulativos ( ... ) Finalmente, deve ter ficado claro que o congelamento aqui novamente proposto não é nenhuma panaceia. E apenas uma política de rendas que aplica um choque na economia. Que suspende o processo inflacionário inercial e o próprio funcionamento perverso do mercado” (p. 174).

Por outro lado, o resgate da capacidade de intervenção do Estado é o pressuposto fundamental da implementação das novas estratégias, delineadas na terceira parte do livro, cujas bases são: o aprofundamento da competitividade da indústria em nível internacional e uma política pragmática de relações internacionais. O pano de fundo é a nova ordem econômica internacional, caracterizada pela conformação de três grandes blocos sob a hegemonia dos EUA, Japão e Alemanha, respectivamente.

Finalmente, os componentes político (populismo econômico) e ideológico (nacionalismo), incluídos no diagnóstico, não se constituem em causas, mas sim em obstáculos que dificultam a solução da crise.

O populismo, considerado como um obstáculo central ao ajustamento fiscal, deve ser qualificado. Enquanto conceito geral, abarca uma estratégia adotada pelos políticos para estabelecer uma relação direta com a população, a partir de um discurso que enfatiza o interesse nacional, o crescimento econômico e a distribuição de renda. Por outro lado, o populismo econômico aponta para a utilização de “políticas expansionistas voltadas para o crescimento econômico e distribuição de renda, com pouca preocupação com relação aos riscos de inflação, dos déficits orçamentários e restrições externas” (Bresser-Pereira e Dall’Acqua, 1990, p. 192).

Assim, governos populistas ou sob a égide de pactos populistas, como o de Vargas no Brasil, foram politicamente populistas, mas economicamente não. Por outro lado, governos não populistas como os regimes militares autoritários podem praticar políticas econômicas nitidamente populistas, como no período 1979/80 no governo Figueiredo.

Bresser-Pereira chama atenção para a identificação do perfil político daqueles que adotam políticas econômicas populistas. De um lado, aqueles a quem chama de oportunistas (geralmente de direita) e, de outro, a esquerda moderada, assentada em uma interpretação equivocada do pensamento de Keynes quanto à questão fiscal.

Em “Populismo econômico versus Keynes: a reinterpretação do déficit público na América Latina” (1990BRESSER-PEREIRA, L. C. e Fernando Dall’Acqua (1990). “Populismo econômico versus Keynes: a reinterpretação do déficit público na América Latina”. In BRESSER-PEREIRA, org. Populismo Econômico: Ortodoxia, Desenvolvimento e Populismo na América Latina . São Paulo: Nobel , 1991. Publicado originalmente no Journal of Post Keynesian Economics, 13(2).), demonstra que a utilização da teoria keynesiana para justificar a política fiscal frouxa nos países latino-americanos é espúria. Em primeiro lugar, porque a política anticíclica proposta por Keynes é eficiente a curto prazo e na presença de capacidade ociosa, isto é, deve ser acionada somente em períodos recessivos e eliminada durante os momentos de prosperidade. Em segundo lugar, Keynes tem em mente um déficit temporário, cuja necessidade de financiamento é igualmente temporária, desaparecendo tão logo a economia se recupere. Nesse sentido, negligenciar as consequências do financiamento do déficit quando este é crônico e a carga da dívida exagerada corresponde a desconsiderar a espiral dívida-déficit-monetização-inflação.

Quanto ao nacionalismo e ao nacional-desenvolvimentismo, constituíram a ideologia do modelo de industrialização voltado para dentro das décadas de 40 e 50. O contexto internacional daquela época, quando o capital americano se mostrava contrário à industrialização da periferia e se voltava para a recuperação da Europa e, por outro lado, a experiência da profunda recessão dos anos 30 ainda estava presente, era um argumento poderoso a sustentar tal enfoque.

Diretamente acoplada ao nacionalismo, está a ideia da necessidade do aprofundamento do investimento direto estatal, fundamental no período de implantação e arranque da industrialização, mas que deixa de ser estratégica à medida que o objetivo foi atingido e novos desafios se apresentam.

Assim, essa tese, correta no passado, deixa de ser legítima a partir dos altos investimentos das multinacionais na indústria manufatureira desde meados dos anos 50.

“Mas ainda hoje temos nacionalistas pensando em termos de anos 50. Esses nacionalistas anacrônicos têm dificuldade em entender que ser nacionalista nos dias de hoje é, antes de mais nada, defender o interesse nacional, combater a tentativa irracional por parte das elites brasileiras de pagar integralmente a dívida externa, ou empenhar-se pelo desenvolvimento do progresso tecnológico e científico autônomo dentro do país” (1988bBRESSER-PEREIRA, L. C. (1988b). “Populismo e política econômica no Brasil”. In BRESSER-PEREIRA, L. C., org. Populismo Econômico: Ortodoxia, Desenvolvimento e Populismo na América Latina. São Paulo: Nobel, 1991., p. 113).

Em síntese, algumas ideias e práticas políticas da esquerda moderada, na medida em que, de um lado, são velhas ideias aplicadas a novos contextos e, de outro, fundadas em pressupostos equivocados, representam um obstáculo para a solução da crise fiscal do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRESSER-PEREIRA, L. C. (1988a). “O caráter cíclico da intervenção estatal”. Revista de Economia Política, 9(3), julho, 1989.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. (1988b). “Populismo e política econômica no Brasil”. In BRESSER-PEREIRA, L. C., org. Populismo Econômico: Ortodoxia, Desenvolvimento e Populismo na América Latina São Paulo: Nobel, 1991.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. (1992a). A Crise do Estado São Paulo: Nobel , 1992.
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  • BRESSER-PEREIRA, L. C. e Fernando Dall’Acqua (1990). “Populismo econômico versus Keynes: a reinterpretação do déficit público na América Latina”. In BRESSER-PEREIRA, org. Populismo Econômico: Ortodoxia, Desenvolvimento e Populismo na América Latina . São Paulo: Nobel , 1991. Publicado originalmente no Journal of Post Keynesian Economics, 13(2).
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    JEL Classification: Y30; E62; O23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1993
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