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A renda mínima garantida como proposta para remover a pobreza no Brasil

The minimum income guaranteed as a proposal to remove poverty in Brazil

Resumo

A economia brasileira continua apresentando a distribuição de renda mais desigual entre todos os países do mundo. O artigo apresenta as consequências das crescentes disparidades e considera os prós e os contras da introdução de um Programa de Rendimento Mínimo Garantido, através de um imposto negativo sobre o rendimento, como um instrumento eficaz para eliminar a pobreza. A segunda parte deste trabalho identifica uma estrutura analítica que poderia reproduzir os efeitos, ao nível da estrutura produtiva, de um processo de Distribuição de Renda. O objetivo foi alcançado a partir da escolha de um Modelo Input-Output que utilizou uma ampliação do Modelo básico de Leontief (1951LEONTIEF, W (1951), The structure of the American economy 1919-39, Cambridge: Mass. Harvard University Press.), a partir de uma derivação da matriz de contabilidade social, resultando em uma estimativa dos multiplicadores desagregados para produção, receita e emprego.

Palavras-chave:
Renda mínima; distribuição de renda; desigualdade

Abstract

The Brazilian economy continues presenting the most unequal distribution of income among all countries in the world. The article presents the consequences of the growing disparities and considers the pros and cons of the introduction of a Guaranteed Minimum Income Program, through a negative income tax, as an efficient instrument to remove poverty. The second part of this work identifies an analytical structure which could reproduce the effects, on the level of the productive structure, of a process of Income Distribution. The aim was achieved as a result of the choice of an Input-Output Model which used an enlargement of the basic Leontief (1951LEONTIEF, W (1951), The structure of the American economy 1919-39, Cambridge: Mass. Harvard University Press.) Model, from a derivation of social accounting matrix, as resulted in an estimation of the disaggregated multipliers for production, income and employment.

Keywords:
Universal basic income; income distribution; inequality

1. INTRODUÇÃO

O Brasil, por pelo menos duas décadas, vem ocupando uma posição muito inconfortável no sentido de se caracterizar pela mais desigual distribuição de renda entre os seus cidadãos em comparação com a de qualquer outro país do mundo, como se pode detectar pelos relatórios anuais do Banco Mundial.

Durante o período do chamado “milagre brasileiro”, de taxas muito rápidas de crescimento, especialmente de 1968 a 1980, as autoridades econômicas, ao argumentar em favor das políticas econômicas governamentais, diante de severas críticas feitas por diversos segmentos da sociedade por causa da crescente concentração da renda, costumavam dizer que, apesar do acelerado enriquecimento dos mais ricos, os pobres também estavam de alguma forma melhorando a sua condição. Dessa maneira, no Brasil, não estaríamos assistindo ao processo de pauperização crescente, como previsto por Karl Marx quando ele descreveu a “Lei geral absoluta de acumulação capitalista” (Karl Marx, O Capital, Chicago: Charles H. Kerr and Company, 1906, vol. I, pp. 707-9).

“As mesmas causas que desenvolvem o poder de expansão do capital desenvolvem também o poder da mão-de-obra à sua disposição. A massa relativa do exército da reserva industrial portanto aumenta com a energia potencial da riqueza. Mas quão maior for esse exército da reserva em relação à força de trabalho ativa, maior será a massa de população em excesso, cujo sofrimento é uma relação direta do tormento dos trabalhadores. Quanto mais extensa, finalmente, the lazurus-layers da classe trabalhadora, e quanto maior o exército da reserva industrial, maior será o pauperismo oficial ( ... ) A acumulação de riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, agonia, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental, no polo oposto ( ... ).“

Durante os anos 80 e até meados de 1993, entretanto, após um longo período de recessão e diversas tentativas sem sucesso de conter a inflação, a qual persiste a taxas de 30% ao mês, o número de pessoas pobres no Brasil tem crescido dramaticamente. O número de pessoas vivendo com uma renda familiar per capita de até um quarto do salário-mínimo (ou seja, US$ 34,70 por mês em 1980), depois de diminuir de 44,7 milhões, em 1970, para 29,5 milhões, em 1980, cresceu para 39,2 milhões em 1990. A participação da remuneração do trabalho na renda nacional diminuiu de 55,5%, em 1959, para 52% em 1970, para 50% em 1980, e para 38% em 1988, segundo o IBGE. Os 50% mais pobres no Brasil diminuíram a sua participação na renda nacional de 14,5%, em 1981, para 12% em 1990, enquanto os 1% mais ricos aumentaram a sua participação respectivamente de 12,1 % para 13,9%.

O debate a respeito da forma mais eficiente de erradicar a pobreza está na ordem do dia. Obviamente, isso inclui todas as medidas necessárias para promover o crescimento, como a criação do melhor ambiente possível para que os investimentos prosperem e aumentem as oportunidades de trabalho. Entre os instrumentos para lidar com o problema da pobreza, há um que recebeu o apoio dos principais economistas de várias correntes de pensamento; trata-se do Programa de Garantia de Renda Mínima, que pode ser introduzido mediante o imposto de renda negativo ou, alternativamente, por uma renda básica universal ou crédito de imposto de renda. Podemos encontrar essa recomendação nos escritos dos filósofos Bertrand Russell (1919RUSSELL, Bertrand (1919). Roads to freedom, socialism, anarchism and sindicalism, Edição publicada em 1973 por George Allen & Unwin, Londres.), Friedrich A. von Hayek (1944HAYEK, F.A. (1944). O caminho da servidão. Editado em 1977 pela Editora Globo, Porto Alegre. e 1980), Milton Friedman (1962), George Stigler (1946STIGLER, G. (1946). “The economics of Minimum Wage Legislation”, American Economic Review nº 36, junho.), James Tobin (1965TOBIN, J. (1965). “On improving the economic status of negro, Daedalus”. Journal of the American Academy of Arts and Sciences.), John Kenneth Galbraith (1973GALBRAITH, J. K. (1973). Economics and the public purpose, Boston: Houghton Mifflin Company.), James E. Mead (1938 e 1989MEADE, J. E. (1989). Agatopia: The Economics of Partnership, Aberdeen University Press (Hume Paper number 16).) e tantos outros, como observado por Leslie Lenkowsky, em “Politics, economics, and welfare reform - The failure of the negative income tax in Britain and the United States” (1986LENKOWSKY, L. (1986). Politics, economics and welfare reform - The failure of the negative income tax in Britain and the United States. Nova York: University Press of America.), e por Phillippe von Parijs, em “Arguing for basic income, ethical foundations for a radical reform” (1992VANPARIJS, P. (1992). Arguing for basic income, ethical foundations for a radical reform, Londres: Verso.). No Brasil, o Imposto de Renda Negativo teve entre seus primeiros defensores Antonio Maria da Silveira (1975SILVEIRA, A. M. (1975). “Moeda e redistribuição de renda”, Revista Brasileira de Economia, abr./jun., Rio de Janeiro.), Edmar Lisboa Bacha e Roberto Mangabeira Unger (1978).

Creio que, quando estavam desenvolvendo a ideia de uma renda mínima garantida, aqueles economistas tinham em mente e levavam em consideração as críticas severas dos economistas clássicos, como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e mesmo, por outro prisma, Karl Marx, a respeito de todas as formas das Leis dos Pobres na Inglaterra do século XVI ao século XIX. Afinal, a ideia de oferecer aos pobres um complemento de renda não é exatamente nova. Primeiro, através da comunidade local, isto é, as paróquias, e mais tarde, como responsabilidade da nação, a sociedade tem necessitado preocupar-se cada vez mais com a melhor maneira de solucionar o problema dos desamparados.

É interessante observar o pedido de reavaliação da Antiga Lei dos Pobres, feito por Mark Blaug (1964BLAUG, M. (1964). “The poor law report reexamined”, Journal of Economic History, XXIV (2), junho.): “Apesar de tudo o que dizem os livros, os dados que temos não indicam que a Lei Inglesa dos Pobres, na forma como estava em vigor antes de ser emendada em 1834, reduzia a eficiência dos trabalhadores agrícolas, estimulava o crescimento da população, achatava os salários, deprimia os aluguéis, destruía os pequenos proprietários rurais e agravava o ônus dos contribuintes. Excetuando-se esse argumento puramente negativo, tentei demonstrar que a Antiga Lei dos Pobres era essencialmente um instrumento para tratar dos problemas do desemprego estrutural e dos baixos salários em um setor rural atrasado, de uma economia em rápido crescimento, mas ainda subdesenvolvida. Constituía, por assim dizer, o “estado de bem-estar” em miniatura, combinando elementos de reajuste de salários, salário-família, salário-desemprego e obras públicas, todos os quais administrados e financiados ao nível local. Longe de ter um efeito inibidor, isso provavelmente contribuiu para a expansão econômica.”

Atualmente, na maioria das nações desenvolvidas existem diferentes formas de programas de garantia de renda mínima. Na Inglaterra, na Alemanha e na Holanda, por exemplo, os pais de crianças com idade de até 16 anos recebem um benefício mensal que, na Alemanha, é de 50 marcos; na Inglaterra, de ,65 libras por semana para a criança mais velha, e de 7,80 para as demais; o beneficio, normalmente pago às mães, estende-se até os 19 anos, se a pessoa estiver estudando. Na França, desde dezembro de 1988, todos os cidadãos com idade igual ou superior a 25 anos, cuja renda seja inferior a 2.184,79 francos, têm direito a uma “Renda Mínima de Inserção” (Revenue Minimum d’Insertion) até aquele valor máximo, com complementos para seus dependentes, por um período de três meses, que pode ser estendido até 12 meses.

Nos Estados Unidos, desde 1975, uma forma limitada de imposto de renda negativo, o Crédito do Imposto sobre Rendimentos Auferidos (Earned Income Tax Credit, EITC), tornou-se uma das formas mais importantes de auxílio, por parte do Governo Federal, aos trabalhadores pobres. Em 1991, cerca de 14 milhões de famílias receberam benefícios do EITC, que é disponível para famílias que trabalhem, que tenham uma renda baixa ou moderada, inferior a US$ 23.760 em 1993, e que tenham pelo menos um filho vivendo com elas. As famílias com dois ou mais filhos recebem um crédito equivalente a 25% de seus primeiros US$ 7.990 de rendimentos; isso resulta num crédito máximo de US$ 1.998 anuais. O crédito, então, permanece nesse nível de US$ 1.998 até que os rendimentos familiares ultrapassem US$ 12.570. Nesse ponto, o benefício começa a ser gradualmente reduzido, até que os rendimentos familiares atinjam US$ 23.760. Nesse nível de renda, o crédito cai a zero. Nos termos do Plano Bill Clinton, aprovado pelo Congresso Nacional em agosto de 1993, o crédito será expandido e incluirá trabalhadores de baixa renda sem filhos. No caso de famílias com dois ou mais filhos, a taxa do EITC será igual a 40% para os primeiros US$ 8.425, oferecendo um beneficio máximo de US$ 3.370. Quando os rendimentos de uma família ultrapassarem US$ 11.000, o crédito passará a ser reduzido a uma taxa de 21%. Quando os rendimentos familiares atingirem US$ 27.000, o valor de seu EITC chegará a zero. A partir de 1994, 20 milhões de famílias estarão sendo beneficiadas com o EITC.

Em abril de 1991, o senador Suplicy, um dos autores, apresentou no Senado brasileiro um projeto de lei criando o Programa de Garantia de Renda Mínima, o PGRM, através do qual todos os residentes no Brasil com idade igual ou superior a 25 anos, cuja renda mensal bruta for menor que, em cruzeiros de abril de 1991, Cr$ 45.000,00, em torno de US$ 140, terão direito a um imposto de renda negativo, isto é, 30% da diferença entre essa quantia e seu nível de renda. Dependendo da disponibilidade de recursos e do desempenho do programa, essa porcentagem poderá ser elevada a 50% pelo Executivo. O projeto de lei foi aprovado pelo Senado brasileiro em dezembro de 1991, com o apoio de todos os partidos e apenas três abstenções. Ele está agora sendo discutido na Câmara de Deputados, em que, na Comissão de Orçamento, recebeu parecer favorável.

O projeto de lei, no entanto, só terá possibilidade de ser aprovado se conseguirmos demonstrar com clareza que todos os problemas operacionais podem ser solucionados. Desde que a legislação proposta foi apresentada, algumas soluções alternativas foram expostas. O PGRM deverá ser financiado com recursos federais, principalmente através do corte, no Orçamento, de despesas com programas que não sejam tão eficientes, como a distribuição de cestas básicas pela LBA ou pela CONAB, créditos fiscais e subsídios com a finalidade de erradicar a miséria.

Por um lado, pessoas que possuem renda acima de um certo patamar terão que pagar imposto de renda variando de 15 a 25% de seus rendimentos. Por outro, aqueles cujos rendimentos situam-se abaixo de um certo patamar terão direito a receber uma complementação de renda através do mesmo sistema.

Uma vez aprovado o projeto, será necessário um período de quase um ano para que sejam efetuadas as mudanças necessárias na Lei Orçamentária. Se aprovado e implementado no segundo semestre de 1993, espera-se que a lei entre em vigor em janeiro de 1995. O PGRM será implementado, inicialmente, pela concessão de benefícios a pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, no primeiro ano; em seguida, para aqueles com idade igual ou superior a 55 anos, no segundo ano, e assim por diante. Finalmente, no oitavo ano, todos os cidadãos com mais de 25 anos de idade terão direito ao PGRM. Se o Executivo considerar viável, o programa poderá ser implementado imediatamente em sua totalidade.

O limite de renda do PGRM será indexado e atualizado semestralmente, ou sempre que a inflação acumulada atingir 30%, pelo mesmo índice utilizado pela Receita Federal. No mês de maio de cada ano, esse limite será também aumentado pelo mesmo índice verificado, no exercício anterior, no crescimento da renda per capita.

A população brasileira em 1993 foi estimada em cerca de 150 milhões de habitantes. O censo de 1991 estimou uma população de 147 milhões, dos quais 68 milhões teriam idade igual ou superior a 25 anos. Desses, cerca de 38 milhões não possuíam rendimentos, ou recebiam até dois salários-mínimos, aproximadamente, a mesma quantia proposta pelo PGRM. Esse é, portanto, o grupo dos beneficiários potenciais do programa. Considerando a taxa de 30% da diferença entre US$ 140 e o nível de renda, os beneficiários receberiam então no máximo US$ 42, e uma média de cerca de US$ 29 mensais. O custo anual total do programa seria de cerca de 3,5% do PIB, que está em torno de US$ 450 bilhões.

Quais são os principais argumentos comumente apresentados contra o PGRM?

O primeiro é que, se é garantida uma renda mínima para qualquer pessoa, ela não se sentirá incentivada a trabalhar. Em Princípios de economia política e tributação (1817RICARDO, D. (1817). Principles of political economy and taxation. Edição publicada em 1970 by Cambridge University Press.), David Ricardo, defendendo a abolição das Leis dos Pobres, adverte que, se todos os indivíduos cuja renda não fosse suficiente para sua subsistência tivessem certeza de ter a complementação necessária garantida por lei, a teoria nos levaria a supor que todos os outros impostos, tomados em conjunto, seriam leves em comparação com os impostos necessários para sustentar os pobres. Se, em vez de ser uma contribuição local, o total de fundos alocados para o sustento dos pobres fosse coletado em nível nacional, a situação se agravaria.

Se Ricardo tivesse razão ao expressar os mesmos valores que aqueles expostos por Malthus e Adam Smith, com respeito aos efeitos das Leis dos Pobres nas atitudes das pessoas em face do trabalho, nós não veríamos, hoje, por toda a Europa, a prática quase universal de programas de seguridade social, incluindo o seguro-desemprego e planos de renda mínima, cujos resultados não foram aqueles previstos pelos economistas clássicos.

Em 1919, em Os caminhos da liberdade, Bertrand Russel argumentou que não nos deveríamos preocupar tanto com o pequeno número de pessoas que não desejam trabalhar e que se tornariam preguiçosas caso tivessem direito a uma renda mínima garantida. Perceberíamos que muitas pessoas, mesmo possuindo um certo nível de renda que seria mais do que suficiente para todas as suas necessidades, ainda assim prefeririam trabalhar para construir uma vida melhor. Russel visualizou uma sociedade em que uma certa renda, suficiente para as necessidades da sociedade, seria garantida a todos, trabalhando ou não, e uma renda mais elevada - tão grande quanto o resultado da produção de bens - seria concedida àqueles cujos esforços seriam reconhecidos pela comunidade.

De fato, com poucas exceções, os ricos no Brasil e em outros países geralmente trabalham, apesar de terem mais do que o suficiente para as suas necessidades sofisticadas. Por que deveriam os pobres ser discriminados com respeito ao direito de receber uma renda mínima garantida?

Outra objeção importante que é seguidamente levantada refere-se a até onde o PGRM forneceria oportunidades adicionais para os empresários, e mesmo para as donas-de-casa, explorarem os seus empregados, e, portanto, para acumularem cada vez mais capital. Eles diriam aos seus funcionários, após pagar os salários baixos, que poderiam receber a complementação fornecida pelo PGRM. No volume I de O Capital, capítulo XXIII da Lei geral da acumulação de capital, Karl Marx analisa criticamente a forma como as Leis dos Pobres forneciam uma complementação muito baixa, paga pelas paróquias, ao salário percebido pelos trabalhadores, de modo que a soma de ambos mal era suficiente para eles vegetarem. Entre 1795 e 1814, na Inglaterra, os trabalhadores rurais foram tratados de maneira cada vez mais severa.

Será que essa situação realmente ocorreria com a introdução do PGRM? Deve-se examinar a situação primeiramente sob o ponto de vista dos trabalhadores. Eles estariam em melhor ou pior situação após ter sido garantida uma renda mínima a qualquer um com 25 anos ou mais? Naturalmente isso aumentaria o seu poder de barganha, quer aceitassem, quer recusassem um trabalho que lhes fosse oferecido, principalmente quando as condições de trabalho fossem ruins, próximas da escravidão, como ocorre em muitas regiões do Brasil. Em segundo lugar, sempre há um certo controle que a sociedade pode impor através da legislação de salário-mínimo, para evitar a exploração indevida. Em terceiro lugar, se for verdade que, devido à existência do PGRM, mais pessoas seriam empregadas pelos empresários e pelas donas-de-casa, quais seriam os resultados esperados? Normalmente, uma pressão no mercado de trabalho, para que houvesse um aumento dos salários, uma tendência que os trabalhadores não devem temer.

É interessante observar que o PGRM é condizente com o comportamento mais amadurecido da humanidade, como previsto por Karl Marx em seu Crítica ao programa de Gotha (1875), em uma sociedade em que os trabalhadores teriam assumido o poder, e as pessoas poderiam “inscrever em suas bandeiras: de cada um de acordo com a sua capacidade, a cada um de acordo com suas necessidades”, pelo menos de acordo com as necessidades mínimas como seriam democraticamente definidas. É também condizente coma recomendação do apóstolo Paulo na Segunda Epístola aos Coríntios: “na circunstância presente a vossa abundância (em bens espirituais) supra a vossa indigência (neles), de maneira que haja igualdade como está escrito: o que colheu muito, não teve demais, e o que colheu pouco não teve de menos”.

Após a aprovação do projeto pelo Senado Federal, propostas alternativas, derivadas do Programa de Renda Mínima, têm sido apresentadas.

Preocupado com o grau de informalização do mercado de trabalho, o economista Luís Guilherme Schymura de Oliveira (FGV-RJ) sugeriu a introdução de uma renda básica para os indivíduos maiores de 25 anos, que correspondem a quase 70 milhões no país. De acordo com essa proposta, os indivíduos receberiam uma quantia fixa mensalmente, em torno de US$ 20, ou US$ 240 anualmente, independentemente do seu nível de renda. O custo total da proposta seria da ordem de US$ 16 bilhões, ou 3,5% do PIB. Naturalmente essa alternativa simplifica os problemas administrativos, uma vez que elimina a necessidade de declaração de rendimento. Porém, traz a desvantagem de alterar num grau muito menor e mais lentamente do que no caso do PGRM o perfil distributivo que é tão desigual no Brasi1

Outra alternativa foi sugerida pelo economista José Márcio Camargo (PUC-RJ), que relaciona renda mínima com escolarização. Aqui os beneficiários seriam as famílias com filhos entre 7 e 14 anos, desde que estejam matriculados e frequentando escola pública. A característica dessa proposta é que ela explicita a preocupação com o desenvolvimento humano, fato esse que está intrínseco no Programa de Garantia de Renda Mínima sem, contudo, haver a vinculação obrigatória. Pois essa vinculação entre renda e educação poderá complicar a operacionalização do programa ao realizar a superposição de duas áreas complexas. Por outro lado, a necessidade de uma família, para ter acesso à renda mínima, de precisar ter filhos em idade escolar, excluiria aquelas famílias que tivessem filhos com menos de 7 anos, ainda que suas necessidades fossem igualmente prementes. O PGRM, em verdade, ao proporcionar um mínimo de rendimentos aos adultos, homens e mulheres, estará criando condições para que os pais estejam menos obrigados a forçar suas crianças a ir para a roça ou para as ruas a trabalho na idade em que deveriam estar frequentando a escola.

2. A UTILIZAÇÃO DE MODELO COM ESPECIFICAÇÃO INSUMO-PRODUTO PARA SIMULAR OS EFEITOS DE UMA REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL

Em julho de 1988, durante o primeiro “Workshop on post-keynesian economics”, um dos autores, o senador Eduardo Suplicy, conversou sobre o problema de desigualdade e crescimento com o professor Yan S. Brenner (editor do Journal of Income Distribution), enquanto caminhavam nas “Smoke Mountains”, no Tennessee. O professor Brenner falou sobre o tema comum entre o compromisso cristão da responsabilidade social e o compromisso socialista da solidariedade. Ele explicou por que no longo prazo os ricos são dependentes do crescimento da renda da parcela mais pobre da população, e como no curto prazo a necessidade de maximização dos lucros nem sempre estará em oposição ao bem-estar geral de longo prazo, desde que tenhamos certos instrumentos legais para alcançar esse objetivo (o bem-estar dos pobres, também no curto prazo), e com a devida preocupação de atender a oposição dos mais ricos a essa política.

Em julho de 1991, Suplicy visitou o professor Yan S. Brenner em Utrecht (Holanda), e eles dialogaram sobre o projeto que tinha sido apresentado no Senado Federal. Nesse encontro o professor Brenner sugeriu a utilização de um modelo insumo-produto para calcular os efeitos da introdução do Programa de Garantia de Renda Mínima nos agregados de produção, emprego, impostos e outras variáveis significativas para a economia brasileira. Após o retorno para o Brasil, Samir Cury, o outro autor e assessor do senador Suplicy no Senado, começou a trabalhar nesse tema, que se transformou na sua dissertação de mestrado na Fundação Getúlio Vargas- SP, sob o título “Modelo com especificação insumo-produto para simular distribuição de renda: uma aplicação para a economia brasileira”.1 1 A orientação dessa dissertação coube ao professor Domingo Z. Ocio, da FGV-SP.

Nessa dissertação, procurou-se a identificação de uma estrutura analítica que reproduzisse os efeitos, no nível da estrutura produtiva, de um processo de distribuição de renda. Esse objetivo foi alcançado com a escolha deum modelo insumo-produto que é uma ampliação do modelo básico de Leontief (1951LEONTIEF, W (1951), The structure of the American economy 1919-39, Cambridge: Mass. Harvard University Press.), sendo derivado a partir de uma matriz de contabilidade social e tendo como resultado o cálculo de multiplicadores desagregados para produção, renda e emprego; um modelo similar foi aplicado na economia brasileira por Locatelli em 1985LOCATELLI, R. L. (1985). “Efeitos macroeconômicos de uma distribuição de renda: um estudo para o Brasil”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 13(1), 135-170, Rio de Janeiro..

3. O MODELO UTILIZADO

Da matriz de contabilidade social2 2 A matriz de contabilidade social é um amplo esquema contábil que representa o sistema econômico através das unidades institucionais que são agentes desse sistema. Utilizando-se da produção desagregada em diversos setores e dividindo-se a renda em grupos e/ou classes (v. Pyatt e Round, 1979). derivamos as seguintes identidades:

  1. produção bruta total (X)= consumo intermediário (AX) + consumo das famílias (Cf) + gastos de consumo (G) + formação bruta de capital (∆J) +variação de estoques (∆e) + exportações (E).

  2. renda líquida das famílias (Yf) = renda pessoal (Yp) + transferências (Tf)

Equacionando essas identidades, temos:

X = A X + C f + G + Δ J + Δ e + E (1)

Y f = Y p + T f (2)

As equações (1) e (2) devem receber modificações para que possamos resolvê-las através de um sistema de equações matriciais simultâneas. Em (1) podemos tomar o consumo das famílias (Cf) como uma variação da renda das famílias ­(Cf = cY), e no caso de (2) podemos tomar a renda pessoal (Yp) como sendo proporcional à produção bruta (Yp = VX).

Desse modo, (1) e (2) transformam-se em:

X = A X + D

Y = V X + T f

em que D= G + ∆J + ∆ e + E, tendo a função de isolar os termos exógenos.

A resolução do sistema acima para as variáveis endógenas (X e Y) resulta na seguinte expressão:

x y = i - A - C - V I - 1 D T f (3)

Essa solução é uma versão ampliada do sistema básico de Leontief (Bulmer-Thomas, 1982BULMER-THOMAS, V. (1982). Input-output analysis, Londres: Chapmanand Hall.), sendo que a matriz inversa extendida em (3) é denominada de matriz dos multiplicadores desagregados da renda3 3 Segundo Large (1988), quando realizamos uma análise das propriedades reduzidas dos multiplicadores, obtemos multiplicadores do tipo Kalechi-Kaldor-Pasinetti. , que captam efeitos ampliados com relação à matriz inversa básica de Leontief.

No modelo expresso em (3), realizamos duas modificações para alcançar as relações finais que especificam integralmente o modelo. A primeira modificação é referente à introdução de um vetor de coeficientes médios de empregos por setor, na última linha da matriz inversa de (3). A segunda alteração é feita no vetor de variáveis exógenas de (3), em que excluímos a variável de transferência (Tf), em função de esta estar incorporada nos valores que substituirão a renda pessoal (Yp).

Desse modo, a relação final4 4 Na sua forma final, esse modelo foi originalmente desenvolvido por Paukert e outros (1979). que especifica o modelo é dada por:

D = B Z . . . . Z = B 1 D

em que:

Z =vetor solução de dimensão (N + K + 7) que traz os novos valores da produção (X), renda (Y) e emprego, compatíveis com o novo perfil distributivo que estamos simulando;

B = matriz quadrada de ordem (N + K + 7) dos parâmetros do modelo;

D= vetor de dimensão (N + K + 7) que representa as variáveis exógenas da demanda final, que são os gastos do governo (G), as variações da formação bruta de capital (∆J), do estoque de produtos (∆e) e o valor das exportações no ano-base (E).

No caso específico do nosso modelo, temos N = 90 setores de produção e K = 5 classes de renda, divididas entre as famílias com rendimentos mensais de até 2, de 2 a 5, de 5 a 10, de 10 a 20, e de mais de 20 salários mínimos. Com isso, teremos os vetores Z e D com 102 elementos e a matriz B com 10.404 elementos, que está representada esquematicamente na Figura 1.

Figura 1
Esquema da matriz dos parâmetros

4. AS SIMULAÇÕES E SUA OPERACIONALIZAÇÃO

4.1 Simulações de distribuição de renda

As simulações de distribuição de renda são realizadas através do vetor coluna À *k, que possui cinco elementos que estão localizados na matriz B, conforme posição representada na Figura 1.

O vetor À* k representa a nova distribuição de renda que desejamos aplicam o modelo, sendo a distribuição original do ano-base representada por Àk.

Sendo assim, temos:

λ * k = Y * k / Y K = 1 , 2 . . . 5

em que:

Yk*=valor da nova renda que imputaremos ao somatório da renda das famílias de classe de renda K. Nesse caso, devemos respeitara restrição Y1 + Y2 + Y3 + Y4 + Y5 = Y;

λk * = nova participação na renda total, referente à classe de renda k.

Os exercícios de distribuição de renda seguem duas orientações, sendo a primeira referente a três hipóteses de aplicação do imposto de renda negativo. Na segunda, adotamos para a economia brasileira distribuições de renda de cinco países diferentes, com a escolha dos países tendo a preocupação de refletir uma tendência de distribuições mais igualitárias de renda. O Quadro 1 faz um resumo dos exercícios distributivos realizados.

4.2 Simulações de adição de renda

As simulações de adição de renda são realizadas através do vetor lk * definido na seção anterior e consistem na adição de 5% do PIB (Cf) de 1980 para cada classe de renda K (K=l, 2 ... 5), o que equivale à soma de 6,68% para cada lk *. As adições são feitas separadamente para cada classe de renda K (K = 1, 2 ... 5), com o intuito de isolarmos os efeitos que cada classe proporciona separadamente.

Quadro 1
Síntese das simulações realizadas

5. ANÁLISE DOS RESULTADOS

5.1 Os resultados do modelo e o formato padrão do vetor Z de resultados

O vetor coluna Z de resultados, com 102 elementos, apresenta novos valores para:

  • produção de 90 (noventa) setores (Xi);

  • importações intermediárias e de consumo;

  • poupança das famílias (Sf);

  • contribuições sociais previdenciárias;

  • renda pessoal (remuneração do trabalho e lucro distribuído);

  • poupança das empresas (Se);

  • renda total de cada classe k(Yk) (cinco novos valores);

  • total de empregos remunerados.

Para efeito de comparação estabelecemos uma base que consiste nos resultados da simulação número zero do Quadro 1. Essa simulação, que reproduz a distribuição de renda original no ano base de 1980, teria que repetir os valores originais de todas as variáveis que compõem o vetor Z de resultados. Demonstrando a consistência do modelo, conseguimos repetir os valores originais do ano-base com uma diferença inferior a 1 %.

A partir daí, os resultados dessa primeira simulação tonaram-se base de comparação para as outras simulações realizadas, com os resultados sendo apresentados tanto na forma de valores como na forma de variação relativamente à base, que representa os valores originais do ano-base 1980.

Com o objetivo de facilitar o relato dos exercícios nas seções subsequentes, passamos a denominar “classe 1” a classe de renda familiar com rendimento inferior a 2 salários-mínimos, “classe 2” a classe com rendimento familiar entre 2 e 5 salários-mínimos e assim sucessivamente até a “classe 5”, com rendimento superior a 20 salários-mínimos.

5.2 Alterações na composição setorial da produção bruta

Para fins de análise, dividimos os resultados referentes às variações das produções setoriais em três agrupamentos distintos.

O primeiro agrupamento, denominado “grupo de variações superiores”, é formado pelos setores que possuem variações maiores do que a variação média da produção bruta total em cada simulação realizada.

O Quadro 2 apresenta as maiores variações do grupo, acompanhadas da respectiva média, para quatro simulações5 5 A escolha desses quatro exercícios justifica-se pela amplitude que eles cobrem entre os resultados disponíveis.

Entre os setores com maiores variações destacam-se aqueles relacionados à indústria alimentícia de gêneros básicos - leite/laticínios, moagem de trigo, beneficiamento de arroz, refino de óleos vegetais, abate e preparação de aves-, contrapondo-se à produção de outros setores da indústria alimentícia, tais como os setores de bebidas, conservas de frutas/legumes e café. Ainda com relação a esses últimos, temos vários setores com variações superiores às deles que não são bens de consumo destinados estritamente à demanda final, sendo que podemos citar a preparação de rações para animais, a produção e distribuição de EE, o setor de transporte rodoviário e o refino de petróleo e gás natural.

Quadro 2
As vinte maiores variações setoriais

Entre os setores não relacionados à indústria de alimentos destacam-se, também, a indústria de fumo, a indústria farmacêutica, o saneamento básico e o setor de perfumaria e produtos de limpeza, que, a exemplo dos outros setores, aparecem repetidos em todas as simulações.

O segundo agrupamento, denominado “grupo de variações intermediárias”, é formado pelos setores que apresentam variações positivas e inferiores à variação da produção bruta total. O Quadro 3 apresenta as dez maiores variações do grupo em cada simulação, bem como a média das variações setoriais do agrupamento.

O Quadro 3 apresenta características interessantes. A linha de produtos das indústrias químicas, petroquímicas e seus derivados como plástico e as fibras são insumos importantes dos setores com maiores variações, e se destacam em relação aos setores do grupo mineral-metálicos. Esse mesmo comportamento é seguido pelos setores de celulose e vidro/artigos de vidro, que apresentam variações significativas no grupo. Essas observações de hierarquia na cadeia de insumos são reforçadas pela inclusão no “grupo de variações superiores” dos setores de adubos/fertilizantes, papel/papelão, químicos diversos e químicos não petroquímicos.

Quadro 3
As dez maiores variações dos grupos intermediários (%)

O terceiro e último agrupamento, denominado “grupo das variações negativas”, é formado pelos setores produtivos que tiveram variações negativas de produção nas simulações de distribuição de renda que realizamos. O Quadro 4 apresenta as dez maiores variações negativas do grupo que estão acompanhadas pela respectiva média.

Quadro 4
As demais maiores variações negativas (%)

O primeiro aspecto que se destaca nesse grupo de variação é a participação dos setores de serviços- instituições de seguros, serviços domésticos, educação e saúde privados - entre aqueles que possuem os maiores decréscimos de produção. Esse conjunto de setores apresenta variações negativas superiores às apresentadas pelos setores de bens de consumo duráveis, tais como o de aparelhos elétricos/eletrônicos, o de automóveis/caminhões/ ônibus e o de receptores de rádio/TV. Nos setores de bens duráveis, as variações não apresentam magnitudes preocupantes. Por exemplo, temos o setor de automóveis/ caminhões/ônibus atingindo o decréscimo máximo de -6,31% no Quadro 4. Essa observação é corroborada pelas simulações com menores distribuições de renda, o imposto de renda negativo e o perfil da Colômbia, em que as médias das variações são modestas, com valores de-2,34% e -2,598%, respectivamente.

5.3 Resultados dos agregados de renda, tributos, emprego, importados e poupança

Análise dos impactos na renda e no emprego

O Quadro 5 representa os valores do PIB (Cf), da renda pessoal, do emprego e do PIB por pessoa empregada. Ao lado dos valores constam as variações destes relativamente ao valor original do ano-base de 1980.

Quadro 5
Valores e variações dos agregados de renda e emprego

A primeira coluna de valores demonstra que o PIB ou valor adicionado responde favoravelmente às simulações de distribuição de renda. As variações desse agregado iniciam com 1,33% de incremento, quando deslocamos 3,5% do PIB original da classe 5 para a classe 1, passando por um incremento de 5,08% quando aplicamos a distribuição de renda dos Estados Unidos, e atingindo um valor máximo de 8,28% quando aplicamos a hipótese de igualdade entre as classes. As duas primeiras simulações permitem identificar um retomo de crescimento na renda da ordem de 40% (1,33%, 1,91%) quando esta é deslocada (3,5%, 5,0%).

Quando comparamos a renda pessoal com o PIB em cada simulação, percebemos que ela possui variação pouco menor que a desse agregado. Apesar da pequena diferença entre as variações, o fato demonstra que o excedente bruto das empresas fica com uma parcela um pouco maior do que o fator trabalho na renda gerada pelos exercícios redistributivos6 6 A renda pessoal é composta da remuneração do trabalho e do lucro distribuído, enquanto a poupança das empresas é composta basicamente pelos lucros retidos. Se o valor adicionado possui uma variação maior que a renda pessoal, supõe-se que esta seja função do lucro retido. .

A terceira coluna do Quadro 5 apresenta a evolução da variável emprego ao longo das simulações. Acompanhando as outras variáveis, PIB e renda pessoal, o emprego correlaciona-se positivamente com a distribuição de renda, partindo de uma variação de 1,12 na primeira simulação, e atingindo um valor de 4,44 % no perfil distributivo americano, que significam 1.098.193 empregos7 7 Os dados do censo de 1980 (IBGE, 1983) informam que a população era de 117.960.301, sendo economicamente ativos 42.492.263. .

A magnitude das variações tanto da renda quanto do emprego é inferior à observada por Locatelli (1985LOCATELLI, R. L. (1985). “Efeitos macroeconômicos de uma distribuição de renda: um estudo para o Brasil”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 13(1), 135-170, Rio de Janeiro.). Para uma redução do coeficiente de Gini equivalente à nossa simulação da distribuição americana, os resultados de Locatelli são de 7,05% no caso do PIB e de 13,56% para o emprego, enquanto que no nosso trabalho eles são respectivamente 5,08% e 4,44%.

A diferença no caso do PIB é devida principalmente às propensões a poupar das classes de renda superiores, que no trabalho de Locatelli8 8 Nesse foram utilizadas quatro classes de renda -de 0 a 2 salários-mínimos, 2 a 5 mínimos, 5 a 10 mínimos e mais de 20 salários-mínimos - com a última classe de renda tendo uma propensão de 24,24%. apresentam valores maiores do que os utilizados por nós. Por outro lado, devemos considerar as mudanças nos coeficientes da matriz insumo-produto de 1970 para 1980.

No caso do emprego, este também é afetado pelas mesmas razões expostas no parágrafo anterior, contudo as diferenças entre os resultados são bem maiores para esse agregado. Acreditamos que esse fato seja decorrente da utilização de dados diferentes no vetor dos coeficientes de emprego (seção 4.1), pois Locatelli trabalhou com empregos remunerados e não remunerados para cada setor e nossos coeficientes foram elaborados utilizando-se apenas os empregos remunerados.

Essa diferença nos parâmetros leva à amplificação dos efeitos, em função de os empregos não remunerados se concentrarem no setor agropecuário - 9.153.888 de um total de 10.015.611 9 9 A Tabela 12 da matriz insumo-produto (IBGE, 1980) informa que o total de empregos é de 43.378.483, sendo 10.015.611 não remunerados. Os empregos não remunerados do setor agropecuário respondem por 21,38% do total de emprego. -, que é um dos setores com variações nitidamente superiores à média da produção bruta setorial (seção 5.2).

Impactos sobre as fontes de financiamento do investimento

Deixando de lado a controvérsia a respeito do sentido de causalidade entre poupança e investimento, procuramos através do Quadro 6 identificar os impactos de simulações de distribuição de renda sobre os componentes básicos da poupança doméstica -a poupança das empresas, do governo e das famílias.

Da análise do Quadro 6 percebemos que a poupança das famílias reage negativamente às distribuições da renda, em função das transferências de renda das classes superiores, que possuem maior propensão a poupar, para as classes de renda inferiores, com maiores propensões a consumir. Entretanto, grande parte dessa perda é compensada pelo aumento da poupança das empresas (função do aumento do excedente bruto e consequentemente do lucro retido) e da poupança do governo (função do aumento do nível de renda). Desse modo, simulações profundas de distribuição de renda, como o perfil japonês, levariam a uma queda da poupança total de apenas -3,52%. Em outros exercícios como a distribuição similar dos Estados Unidos, a queda é de 2% da poupança total.

Quadro 6
Valores de acréscimo ou decréscimo dos componentes da poupança doméstica (Cr$ milhões de 1980)

Os resultados analisados acima demonstram que a “grita” contra a distribuição da renda baseada na insuficiência da poupança apresenta-se de maneira insuficiente diante dos resultados do modelo.

5.4 Resultados dos agregados nas simulações de adição de renda

O Quadro 7 representa as variações do PIB, do emprego e dos impostos indiretos quando adicionamos 5% do PIB (Cf) a cada uma das classes de renda.

Quadro 7
Variação dos agregados nas simulações de adição (%)

No Quadro 7 podemos observar que os valores de todos os agregados decrescem com a inclusão de renda nas classes superiores, sendo que apenas os impostos indiretos, da classe 1 para a 2, não repetem esse comportamento. O comportamento dos agregados é explicado basicamente pelas diferentes propensões a poupar existentes entre as classes de renda.

Por outro lado, em todas as simulações os acréscimos são superiores a 5%, fazendo com que tenhamos acréscimos líquidos em todos os agregados apresentados.

6. CONCLUSÃO

O elevado nível de desagregação em que este trabalho foi realizado permitiu que visualizássemos quais seriam os contornos da estrutura produtiva da economia brasileira se esta possuísse melhores níveis de equidade em sua distribuição de renda.

Os setores que recebem os maiores incrementos de produção têm a participação significativa daqueles que produzem alimentos básicos, com destaque para leite/laticínios, beneficiamento de arroz e moagem de trigo. Destacam-se, também, os setores de fumo/cigarros, perfumaria/produtos de limpeza e a indústria farmacêutica, que acabam tendo incrementas maiores do que aqueles observados para outros setores alimentícios, tais como abate/preparação de carne bovina, açúcar e o próprio setor agropecuário. Os setores de energia elétrica e saneamento básico merecem destaque pelas variações significativas que apresentaram e pelo papel estratégico que desempenham na infraestrutura socioeconômica.

Entre os setores que atuam basicamente como fornecedores de insumos para outros setores, temos variações positivas significativas para químicos não petroquímicos e adubos/fertilizantes, que apresentam variações superiores à média da produção bruta nos 90 setores. Além desses, apresentam incrementas próximos à média de crescimento os setores de plásticos, celulose/pasta, vidro/artigos de vidro e químicos petroquímicas. Essa característica é uma das mais relevantes informações deste trabalho, dado que em trabalhos anteriores os insumos não apresentavam variações destacadas. Isso é corroborado pelo fato de esses setores possuírem formas de produção bastante similares: produção contínua, maior participação de fator capital que de fator trabalho e não-aceitação de tecnologia e/ou escala alternativas. Essas identidades influenciam o resultado final das simulações, que é apresentado pela remuneração dos fatores - renda pessoal e lucro retido - e pela variação dos empregos remunerados. Assim, temos que, por trás dos setores ditos “tradicionais”, que são os grandes beneficiários da distribuição de renda, estão setores com características totalmente diversas.

Ainda com relação às alterações de composição na estrutura produtiva, a combinação de pesquisas recentes de orçamento familiar com níveis compatíveis de desagregação permitiu a verificação de que os setores de bens duráveis - automobilístico, elétricos/ eletrônicos-não são afetados significativamente pela distribuição da renda. Essa posição passa a ser ocupada pelos setores de serviços de educação/saúde privados, financeiros, domésticos, e de transporte aéreo.

Quando analisamos as simulações pelos dados agregados os resultados não são menos significativos. Assim, temos que o PIB reage favoravelmente de forma crescente em todos os exercícios distributivos, porém estes beneficiam mais o fator capital do que o fator trabalho, em decorrência da remuneração dos fatores que prevalece nos setores beneficiados. Com relação às alterações na quantidade de empregos, nossos resultados apresentaram valores positivos, porém mais modestos do que aqueles verificados por Locatelli (1985LOCATELLI, R. L. (1985). “Efeitos macroeconômicos de uma distribuição de renda: um estudo para o Brasil”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 13(1), 135-170, Rio de Janeiro.), em decorrência, principalmente, de não trabalharmos com empregos não remunerados, que são bastante sensíveis ao aumento de produção no setor agropecuário. Mas essa consideração não inviabiliza a constatação das dificuldades da estrutura produtiva. em absorver grandes contingentes de mão-de-obra formal não qualificada. Seria, talvez, mais prudente que nos preparássemos para conviver por um período longo com desequilíbrios entre oferta e demanda desse tipo de trabalho.

A análise das fontes de financiamento do investimento foi objeto de uma abordagem isenta, na medida em que a estrutura analítica permitiu que identificássemos o impacto sobre os componentes da poupança doméstica. Para esse agregado os resultados mostram que as variações, em oito das nove simulações, seriam inferiores a -4%, que é uma taxa bastante reduzida. Diante dessas evidências, podemos constatar uma falta de consistência naqueles que argumentam contra a distribuição de renda sustentados apenas na controversa relação teórica entre poupança e investimento.

Para finalizar, podemos afirmar que o somatório dos efeitos de um processo de distribuição de renda apresentou resultados significativamente favoráveis. Além da direção benéfica apresentada pelos vários agregados que analisamos, temos, no plano da produção desagregada, um indicativo de que a estrutura produtiva da economia brasileira está apta, na sua maior parte, a absorver os impactos de um processo distributivo, sendo que esse processo, ao beneficiar vários setores, deverá induzir uma ampliação de seus efeitos positivos, em função da resposta do investimento aos incrementos que ocorrem nos setores beneficiados pela distribuição de renda. Entretanto, não encontramos nos resultados nenhuma garantia de que essa onda inicial de crescimento possa transformar-se numa trajetória autossustentada de crescimento com distribuição de renda. Nesse sentido, as evidências sugerem que as políticas distributivas, a exemplo do PGRM, devem ter a preocupação da correção permanente do perfil distributivo, que resulta da estrutura produtiva de nossa economia.

Os autores acreditam, firmemente, que a garantia de renda mínima, qualquer que seja a forma específica adotada, é o instrumento que poderia reverter a perversa tendência de concentração da renda que nossa economia vem apresentando ao longo de sua história.

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  • 1
    A orientação dessa dissertação coube ao professor Domingo Z. Ocio, da FGV-SP.
  • 2
    A matriz de contabilidade social é um amplo esquema contábil que representa o sistema econômico através das unidades institucionais que são agentes desse sistema. Utilizando-se da produção desagregada em diversos setores e dividindo-se a renda em grupos e/ou classes (v. Pyatt e Round, 1979PYATT, G. e J. Rouwd (1979). “Accounting and fixed price multiplier in social accounting framework”, Economic Journal, 89, 850- 73.).
  • 3
    Segundo Large (1988LARGE, C. (1988). “The use of social accounting matrix for comparative static equilibrium modelling, In Ciaschini, M., ed. Input-output analysis, Londres: Chapman and Hall.), quando realizamos uma análise das propriedades reduzidas dos multiplicadores, obtemos multiplicadores do tipo Kalechi-Kaldor-Pasinetti.
  • 4
    Na sua forma final, esse modelo foi originalmente desenvolvido por Paukert e outros (1979PAUKER T, F., J. Skolka and J. Matonm (1979). “Income distribution by size, structure of the economy and employment: a comparative study for four Asian countries”. Paper presented to the Seventh Intemational Conference on Input-Output Techniques, Insbruck, abril 1979.).
  • 5
    A escolha desses quatro exercícios justifica-se pela amplitude que eles cobrem entre os resultados disponíveis.
  • 6
    A renda pessoal é composta da remuneração do trabalho e do lucro distribuído, enquanto a poupança das empresas é composta basicamente pelos lucros retidos. Se o valor adicionado possui uma variação maior que a renda pessoal, supõe-se que esta seja função do lucro retido.
  • 7
    Os dados do censo de 1980 (IBGE, 1983IBGE (1983). Censo demográfico-Famílias e domicílios, IX Recenseamento Central do Brasil- 1980, Rio de Janeiro: IBGE.) informam que a população era de 117.960.301, sendo economicamente ativos 42.492.263.
  • 8
    Nesse foram utilizadas quatro classes de renda -de 0 a 2 salários-mínimos, 2 a 5 mínimos, 5 a 10 mínimos e mais de 20 salários-mínimos - com a última classe de renda tendo uma propensão de 24,24%.
  • 9
    A Tabela 12 da matriz insumo-produto (IBGE, 1980IBGE (1989). Matriz insumo-produto Brasil-1980. Série Relatórios Metodológicos, vol. 7, Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.) informa que o total de empregos é de 43.378.483, sendo 10.015.611 não remunerados. Os empregos não remunerados do setor agropecuário respondem por 21,38% do total de emprego.
  • 10
    JEL Classification: I31; I32; I38; O15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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