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A inflação brasileira e o “Plano Real”

The Brazilian inflation and the “Real Plan”

RESUMO

De acordo com a maioria dos padrões, a inflação brasileira tem sido a mais intratável da história mundial. O período de alta inflação brasileira é incomparável: a inflação excede 50% ao ano todos os anos desde 1979 e tem taxas de dois dígitos todos os anos desde 1957. Até a Argentina, a rival perene do Brasil pela distinção dúbia ou pela alta de longo prazo inflação, alcançou estabilização de preços desde abril de 1991. Houve inúmeras tentativas grandes e menores de estabilização brasileira, incluindo pelo menos cinco “Planos” importantes desde 1986. Cada um fracassou. O Brasil está atualmente no meio de outra grande tentativa de estabilização, o Plano Real. Este artigo avalia as dificuldades inerentes aos programas brasileiros de estabilização e as perspectivas para o Plano Real, incluindo suas motivações particulares e suas chances de sucesso.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; plano Real

ABSTRACT

By most standards, Brazilian inflation has been the most intractable in world history. The time span of high Brazilian inflation is unparalleled: inflation has exceeded 50 percent per annum every year since 1979 and has been at double digit rates every year since 1957. Even Argentina, the perennial rival of Brazil for the dubious distinction or longest-running high inflation, has achieved price stabilization since April 1991. There have been innumerable major and minor attempts at Brazilian stabilization, including at least five major “Plans” since 1986. Each has failed. Brazil is currently in the midst of another major stabilization attempt, the Plan Real. This paper assesses the difficulties inherent in Brazilian stabilization programs, and the prospects for the Plan Real, including its particular motivations and its chances for success.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; Real plan

1. INTRODUÇÃO

Por diversos critérios, a inflação brasileira tem sido a mais persistente da história. A duração da inflação elevada é sem paralelos: a taxa de inflação foi superior a 50% ao ano todos os anos desde 1979, e tem registrado níveis de dois dígitos desde 1957. Mesmo a Argentina, a perene rival do Brasil na briga pela distinção duvidosa de qual inflação elevada é de maior persistência, conseguiu alcançar a estabilidade de preços desde abril de 1991. Diversas tentativas de estabilização, de maior ou de menor fôlego, foram tentadas, inclusive cinco “planos” abrangentes entre 1986-91, mas todas falharam. Em julho de 1994 teve início uma nova tentativa, com o Plano Real. Este trabalho avalia as dificuldades inerentes nos programas de estabilização brasileiros e os prospectos do Plano Real.

Toda estabilização bem-sucedida deve ter três componentes: (i) uma solução para os problemas orçamentários crônicos que quase sempre estão na origem da inflação elevada; (ii) um método de eliminar os elementos inerciais da inflação elevada no início da estabilização, principalmente a indexação de preços e salários; e (iii) a introdução de uma ou mais “âncoras nominais” ao nível de preços. Sem âncoras nominais, a inflação elevada pode reaparecer facilmente, quer como resultado de profecias auto realizadas (por exemplo, um ataque especulativo contra a moeda doméstica), quer por comportamento oportunista das autoridades monetárias que tentam colher benefícios de curto prazo de práticas inflacionárias. Até o presente, todas as tentativas de estabilização no Brasil podem ser caracterizadas pela ausência da combinação requerida desses três elementos.

Em comparação com outros países de inflação elevada, o Brasil é único em três aspectos. Primeiro, a inflação elevada de 1992-94 não parece ser derivada de um déficit público descontrolado; os dados reportados na Tabela 1 indicam que o déficit operacional consolidado do setor público tem estado próximo de zero desde 1990.1 1 Os dados da Tabela I são a melhor medida disponível do déficit público no Brasil, seguindo uma metodologia acordada com o FMI. O conceito de déficit operacional tenta estimar o déficit real, isto é, descontado da correção monetária paga aos títulos públicos. O leitor interessado em uma discussão mais detalhada dos números fiscais nos anos 90 deve consultar Barbosa & Giambiagi (1994). Mesmo admitindo-se que possa haver alguns pontos de desvio em relação ao possível déficit “verdadeiro”, um fato gerado pelas dificuldades de mensurara déficit quando a inflação é alta e crescente, ainda assim os números seriam relativamente pequenos. No Apêndice, conduz-se um teste à consistência desses números através da decomposição dos usos da senhoriagem e verifica-se que os números do déficit são basicamente consistentes. Déficits operacionais substantivos foram fatores operativos no início e no prolongamento da inflação elevada (observe que o déficit médio foi de 5,2% do PIB entre 1986-89), mas objetivamente não podem ser apontados como o principal fator explicativo da inflação elevada dos anos 90. Segundo, o Brasil tem uma inflação inercial particularmente forte, como resultado do uso generalizado da indexação pós-fixada para preços e salários. Terceiro, o estoque de moeda não consegue exercer o papel de uma âncora nominal porque a base monetária (moeda em poder do público mais reservas bancárias depositadas no Banco Central) é uma fração muito pequena do PIB e a regulamentação bancária (regime monetário) permite a expansão endógena da moeda.2 2 Esse aspecto foi observado anteriormente por Zini (1989, 1993 e 1994), embora de modo Assim, mesmo pequenos aumentos na razão base monetária/PIB são condizentes com taxas de inflação bastante elevadas. Nós defendemos neste trabalho que, no passado recente, a expansão da base monetária foi o resultado da inflação, e não uma causa independente dela. Boa parte do presente artigo é dedicada a explicar essas três anomalias e suas implicações para a política econômica.

Tabela 1:
Medidas do déficit público no Brasil (em% do PIB)

Essas “propriedades” da inflação brasileira há muito colocam em questionamento a validade da abordagem puramente ortodoxa da estabilização para o presente caso. Em 1993, por exemplo, o FMI continuava a insistir em ações fiscais ainda mais fortes como uma precondição para dar seu apoio (requerendo um superávit primário de 6% do PIB), embora o déficit não seja a causa próxima da inflação continuada. Disciplina fiscal é bastante importante, mas o foco quase exclusivo do FMI (e de alguns colegas economistas) na política fiscal subtraiu atenção de alguns problemas mais imediatos da estabilização, como por exemplo os problemas da inflação inercial e a quase completa desmonetização da economia brasileira - no sentido preciso de colapso da demanda por base monetária.

O Plano Real é uma tentativa engenhosa e criativa de enfrentar o problema da inflação inercial, mas, após um mês do começo de sua terceira e mais importante fase, o plano permanece incompleto, porque não enfocou plenamente a questão de como estabelecer uma âncora monetária ao nível de preços no Brasil. Por essa razão, após introduzir as motivações e os mecanismos do Plano Real, esboçamos alguns passos de gestão monetária que seriam úteis para reforçar o programa de estabilização.

Na seção 2, descrevemos brevemente o modelo básico de senhoriagem de explicação da inflação elevada. Na seção 3, mostramos como o Brasil difere do modelo padrão e, portanto, requer uma estratégia diferente. Na seção 4, sumarizamos os aspectos mais importantes do Plano Real. Por fim, na seção 5, discutimos algumas medidas monetárias e mudanças na regulamentação bancária que poderiam reforçar o plano.

2. O MODELO DE SENHORIAGEM DE EXPLICAÇÃO DA INFLAÇÃO ELEVADA

Praticamente quase todo pensamento moderno sobre os programas de estabilização começa, apropriadamente, com um modelo básico no qual a inflação alta é o resultado de déficits públicos elevados. Em tempo discreto e supondo que o déficit público (real) D1 seja financiado totalmente pelo Banco Central via emissão de moeda (i.e., de base monetária, M1), temos as seguintes equações básicas para a senhoriagem S1:

( M t + 1 M t ) / P t = S t ( definição de senhoriagem ) (1)

S1 = D1 (financiamento do déficit por senhoriagem)

em que Pt é o nível de preços. Por ora, iremos ignorar as outras formas de financiar o déficit, tal como a emissão de títulos.

Definindo de forma convencional a velocidade da moeda como:

V t = P t x Q / M t (2)

na qual Q é o PIB real, suposto constante, combinando (1) e (2), e representando a inflação por Pt=(Pt+1Pt)Pt, temos a equação padrão que relaciona a inflação com o tamanho do déficit público, o nível e a variação da velocidade:

π t = ( V t + 1 V t ) / V t + V t + 1 × D t / Q (3)

Quando o déficit público (em porcentagem do PIB) é constante, e se supõe que a velocidade é constante, achamos a expressão:

π = V × S / Q = V × D / Q (4)

A equação (4) captura a ideia ortodoxa de que a inflação elevada é o resultado de déficits públicos elevados, D/Q. Para uma dada velocidade, um déficit mais elevado implica ter senhoriagem maior e, portanto, inflação maior. Segundo (4), para reduzir a inflação é necessário eliminar a necessidade de financiamento monetário do déficit. Em termos gerais, isso pode ser feito quer pela redução do déficit a um nível menor, quer substituindo o financiamento monetário por financiamento através da colocação de títulos públicos. Suponha que o governo pode tomar emprestado do público via títulos públicos, com a colocação líquida de dívida pública igual a F. Nesse caso, a senhoriagem fica reduzida a St=DtFt” Com isso a equação (4) torna-se:

π = V × ( D F ) / Q ( 4’)

Assim, o recurso à senhoriagem pode ser eliminado por uma combinação de redução do déficit e por endividamento.3 3 Em algumas circunstâncias, entretanto, a mudança para financiamento via endividamento pode não ser suficiente para eliminar a inflação contemporânea, mesmo se se eliminar a senhoriagem corrente. Se se espera que o endividamento público seja seguido por maior recurso à senhoriagem no futuro, a expectativa de maior senhoriagem pode aumentar a velocidade da moeda no presente e, assim, causar inflação no presente. Essa é a famosa lição de Sargent e Wallace, denominada “a desprazerosa aritmética monetarista” (v. Sargent & Wallace, 1981).

A equação (4’) é ainda muito limitada, entretanto. Devemos levar em consideração que a velocidade em si é uma função da taxa de inflação:

V t = v ( P t ) (5)

Já que a velocidade é uma função da inflação, a taxa de inflação de steady-state que acompanha um dado nível de senhoriagem, S/Q, deve resolver a forma mais geral de (4’):

π = v ( P ) × S / Q (6)

Essa relação entre S/Q e inflação é ilustrada na Figura 1, conhecida como a “curva de Laffer da inflação”. A figura mostra. a relação entre a inflação e o nível de senhoriagem ou déficit orçamentário. Essa relação tem várias propriedades bem conhecidas. Primeiro, há uma razão máxima de senhoriagem/PIB que pode ser amealhada com uma taxa constante de inflação. Chamemos de Smax a esse nível máximo de S/Q tal que (6) tenha uma solução. Segundo, geralmente há pelo menos duas taxas de inflação condizentes com qualquer nível de S/Q maior que zero e menor que Smax. Em outras palavras, um dado déficit orçamentário em proporção ao PIB geralmente é condizente com dois níveis possíveis de taxas de inflação de steady-state.4 4 Bruno & Fischer (1990) analisam as propriedades desses dois equilíbrios inflacionários. Bruno (1993) e Sachs (1994) examinam outros casos de equilíbrios múltiplos em inflações altas. Ilustramos isso na figura mostrando as taxas de inflação baixa e alta condizentes com o nível de senhoriagem (S/Q)o. Do ponto de vista do bem-estar social, é obviamente preferível para uma economia com uma dada razão S/Q estar operando no nível baixo de rt.

Figura 1:
A curva de Laffer da inflação.

O equilíbrio de inflação alta (ou “mau” equilíbrio), em πH, ocorre quando a “base de taxação” do imposto inflacionário foi erodida por uma redução drástica da demanda por base monetária. Pode-se interpretar o caso do Brasil como o de uma economia que ficou atolada do lado errado da curva de Laffer, com um baixo nível de déficit público e uma inflação elevada.5 5 Rossi (1994) apresenta estimativas econométricas que dão suporte a esse postulado. A tabela abaixo também sugere essa ideia. De fato, a situação é ainda mais paradoxal do que a figura sugere: a inflação elevada do Brasil em 1993 ocorreu apesar de o déficit operacional ter sido quase zero e de não ter havido financiamento monetário ao Tesouro ou ao setor público (evidência disso será apresentada mais adiante).

Note também que, dependendo de como as expectativas são formadas e se a economia está em um círculo vicioso, reduções adicionais em S/Q podem caminhar pari passu com a economia, seguindo para a direita de PH. Como Sachs (1994SACHS, J. “Russia’s struggle with stabilization: conceptual issues and evidence”. Annual Bank Conference on Development Economics, World Bank, April 1994. ) argumenta, quando um país se encontra preso em uma dinâmica desestabilizadora (devido a uma combinação de crises política, fiscal e financeira), a economia desliza para o “mau” equilíbrio, no sentido de caminhar inexoravelmente para uma crise mais profunda ou colapso e/ou hiperinflação.

Voltando ao modelo da senhoriagem, a velocidade é determinada tanto por forças do mercado como pelo meio ambiente regulador que governa o sistema monetário (regime monetário). O baixo nível de demanda por base monetária no Brasil reflete ambos esses fatores. Os muitos anos de inflação elevada conduziram à busca de meios engenhosos de economizar na retenção de base monetária, especialmente no uso de meio circulante. Ao mesmo tempo, o aparato regulador encorajou a fuga da moeda, ao permitir que os bancos suprissem uma moeda interna (inside money) que paga juros (isto é, trata-se de uma moeda criada pelo sistema bancário, e não pelo Banco Central) no lugar da base monetária. Com efeito, as contas a juros no sistema bancário com os atributos de saldos para transações permitiram que grande número de agentes fugisse da base monetária em cruzeiros.

Uma estabilização bem-sucedida pode ser pensada como uma ação que retira a economia do equilíbrio de inflação elevada e a coloca no equilíbrio de baixa inflação, ao mesmo tempo que mantém e consolida um baixo nível de déficit orçamentário. Para efetivar essa troca, entretanto, deve haver mudanças tanto nas práticas de determinação de preços e salários (como explicitamente se fez no Plano Real) como mudanças nos procedimentos monetários (etapa ainda não realizada).

Período Senhoriagem/PIB(%) Inflação média(%) 1950-59 1,9% 19% 1960-69 2,7% 45% 1970-75 1,2% 22% 1976-79 2,0% 51% 1980-84 1,8% 148% 1985-90 2,9% 835% 1991-94 2,0% 2.375% Fonte: autores; v. explicações na Tabela 5.

O sistema bancário brasileiro

A razão base monetária PIB no Brasil foi de apenas 0,8% em 1993, comparada com 6,1% nos Estados Unidos, tal como mostram as tabelas 2 e 3. (A velocidade é simplesmente o inverso da razão M/PIB. Assim, a velocidade de circulação da base monetária no Brasil é um estonteante 125, comparado com 16 nos Estados Unidos). A base monetária, como se sabe, tem dois componentes: reservas do sistema bancário junto ao Banco Central e papel-moeda em circulação (meio circulante). A diferença entre o Brasil e os Estados Unidos é evidente em ambos os componentes, mas é notada de forma ainda mais acentuada na demanda por meio circulante. No Brasil, a proporção moeda em circulação/PIB caiu para 0,5%, comparativamente a 5,1% do PIB nos Estados Unidos. As reservas bancárias caíram para apenas 0,2% do PIB no Brasil, vis-à-vis 1% nos Estados Unidos.

Tabela 2:
Estoque de moeda e ativos líquidos no Brasil (em% do PIB)
Tabela 3:
Estoque de moeda e ativos líquidos nos Estados Unidos (em% do PIB)

Parte da baixa demanda por meio circulante no Brasil apenas reflete uma resposta do mercado ao alto custo de se reter moeda quando a inflação está alta. Parte, no entanto, reflete a evolução das regulações bancárias para facilitar a fuga da base monetária. Os bancos brasileiros criaram, com apoio regulador do Banco Central, um sistema altamente eficiente de depósitos com saldos para transações que pagam juros, os quais têm permitido que os detentores de moeda no Brasil escapem do uso direto da moeda e/ou do uso indireto de reservas bancárias.

As contas relevantes que pagam juros são mostradas na Tabela 2 como os itens (4) a (7). Essas contas, que no Brasil são classificadas como M2 (nos Estados Unidos são definidas como M1), são depósitos sobre os quais se passam cheques e que pagam juros (isto é, efetivamente podem-se passar cheques sobre essas contas e eles são compensados ao fim do dia útil; características básicas dos saldos para transações). Ademais, até junho de 1994 não se exigia dos bancos que mantivessem reservas bancárias no Banco Central (base monetária) contra essas contas. Em vez disso, os bancos comerciais mantinham uma carteira de títulos de curto prazo (na sua maior parte títulos do governo) como ativo praticamente único de contrapartida desses recursos. Verifica-se, assim, que essas contas são como os fundos de money market nos Estados Unidos; isto é, depósitos sobre os quais se podem passar cheques.

As principais contas domésticas desse tipo no Brasil são as contas do FAF (item 4). As empresas com reservas monetárias maiores mantêm contas sob os itens 6 e 7. Para abreviar a descrição, denominamos todas essas contas genericamente “contas do tipo FAF”, como se fossem apenas um tipo de depósito que paga juros e sobre o qual se pode passar cheque.6 6 A taxa de juros nominal nessas contas é prefixada (ou voltada para a frente), antecipando-se à taxa corrente de inflação; os rendimentos são creditados diariamente nas contas. Desde 1991 as retiradas nos primeiros 15 dias úteis após um depósito nas contas do FAF pagam um imposto sobre o rendimento nominal que é inversamente proporcional ao número de dias do depósito.

Sob o peso da inflação elevada, e com a alta liquidez que as contas do tipo FAF propiciam, as famílias e as empresas no Brasil substituíram quase completamente os depósitos à vista e o meio circulante por contas do tipo FAF. Efetivamente, os depósitos nas contas à vista são principalmente um tipo de float, um saldo remanescente enquanto o dinheiro é temporariamente transferido para dentro e para fora das contas do FAF. Observe, nesse contexto, a diferença notável na demanda por depósitos à vista entre os bancos brasileiros e americanos. Os depósitos à vista representaram apenas 0,8% do PIB no Brasil em 1993, comparados com 6,3% nos Estados Unidos.

No entanto, se compararmos o montante de depósitos sobre os quais se podem passar cheques, a diferença entre os dois países diminui consideravelmente: 10% do PIB no Brasil (itens 2, 4, 5, 6 e 7 da Tabela 2), comparados com 12,9% do PIB nos Estados Unidos. Se compararmos todos os saldos para transações (depósitos em cheque mais moeda em poder do público), a diferença é maior, com os saldos para transações alcançando 10,5% do PIB no Brasil, comparados com 18% do PIB nos Estados Unidos. Mesmo assim, essa é uma diferença modesta, tendo em vista a diferença na inflação em 1993 (2.709% no Brasil comparados com 3% nos Estados Unidos).

A diferença mais notável, portanto, é na composição dos saldos para transações, e não no seu nível relativo ao PIB. No Brasil, os saldos para transações são quase inteiramente moeda interna, sem conexão com a base monetária. A base monetária é apenas 7,5% dos saldos para transações brasileiros. Nos Estados Unidos, em contraste, a base monetária responde por 33,7% desses saldos.

Como resultado desse nível notavelmente baixo de demanda por base monetária (ou, inversamente, a alta velocidade de circulação da base), a inflação brasileira tem sido elevada não obstante o fato de o nível de senhoriagem em relação ao PIB ser baixo. Isso pode ser verificado na Tabela 4, onde podemos ver que muitos países têm aproximadamente o mesmo nível de senhoriagem/PIB que o Brasil, mas com taxas de inflação no intervalo normal.

Tabela 4:
Inflação e senhoriagem em países selecionados (em%)

A fuga da base monetária foi gradual. A senhoriagem no Brasil manteve-se razoavelmente estável nos anos 80 e 90 no nível de 2-3% do PIB (v. a Tabela 5). Entretanto, a base monetária foi encolhendo como percentagem do PIB, de 3-4 % no fim dos anos 70 para menos que 1% em 1993. Assim, uma taxa de inflação sempre crescente tomou-se necessária para permitir a arrecadação do mesmo nível de senhoriagem. Este é um dos custos da inflação cronicamente alta: uma fuga contínua da moeda (isto é, erosão da base do imposto inflacionário), de modo que a economia se torna cada vez mais distorcida apenas para se manter no “mesmo” lugar.

Tabela: 5
inflação e senhoriagem no Brasil (em%)

Igualmente digno de nota é o fato de que mesmo o baixo nível de senhoriagem não reflete financiamento de déficit público no período recente (1992-94). Em 1993, por exemplo, não houve crédito líquido do Banco Central ao setor doméstico da economia, e, especificamente, não houve crédito do Banco Central ao Tesouro. Para entender como a senhoriagem foi usada, devemos examinar o papel do setor externo na expansão da oferta monetária no Brasil.

Para fazer isso, precisamos primeiro ampliar a equação da senhoriagem de modo a levar em conta a influência do setor externo na criação de moeda. Em vez de escrever (Mt+1Mt)/Pt=DtFt, iremos agora reconhecer que a base monetária pode se expandir por três razões: crédito ao orçamento e/ou ao Tesouro (D - F), crédito ao setor doméstico privado e/ou fora do orçamento (NB) (por exemplo, redesconto aos bancos comerciais), e intervenção do Banco Central no mercado de divisas estrangeiras (i.e., compras de divisas levam a um aumento de M igual ao aumento do estoque de divisas estrangeiras Rt do Banco Central).7 7 A notação pode ser um pouco confusa devido à existência de variáveis de estoque e de fluxos. D, F e NB são fluxos de crédito. R é o estoque de reservas internacionais e M é o estoque da base monetária. Portanto, a mudança na base monetária é igual à soma dos fluxos de D e F mais a mudança no estoque de R. O equilíbrio do balancete do Banco Central garante que:

M t + 1 M t = ( D t F t ) + NB t + e t ( R t + 1 R t ) (7)

em que et é a taxa de câmbio nominal em termos de cruzeiros por dólar.

Na Tabela 6, dividimos as fontes expansionistas da base monetária em termos de crédito doméstico ao setor público, crédito doméstico ao setor privado e aumento nas reservas internacionais, tal como na equação (7). Como se pode verificar, a senhoriagem em 1993 e 1994 (primeiro semestre) reflete compras de reservas em vez de créditos ao governo ou ao setor privado.8 8 Como mostramos no Apêndice, os recursos amealhados pela senhoriagem no período recente foram usados para reduzir o nível geral de endividamento público, e não para financiar déficits. A oferta de moeda cresceu no período devido à acumulação de reservas internacionais, e não devido a déficit público.

Tabela 6:
Brasil: fatores expansivos da base monetária-participação sobre a mudança da base (em%)

Em nossa interpretação, o aumento da base monetária pela via da balança de pagamentos foi o resultado da inflação doméstica, e não sua causa. Suponha que a inflação brasileira seja em grande parte dada pela inércia (como defendemos na próxima seção), de modo que a inflação desse período seja aproximadamente igual à do período passado. Portanto, pt é determinado pelo passado. Similarmente, a velocidade V, = v(πt) é determinada pela história passada (e pela regulamentação bancária). Então, podemos usar (1) e ( 4) para derivar o crescimento da base monetária como uma função da inflação e da velocidade:

( M t + 1 M t ) = ( P / V ) × P t × Q (8)

Como surge essa oferta monetária? Se não há expansão doméstica do crédito, então M deve aumentar pela via do balanço de pagamentos. O equilíbrio do mercado monetário é alcançado quando a acumulação de reservas et×(Rt+1Rt) é igual à mudança desejada da base monetária. Como V é muito elevado, o aumento requerido na base monetária, medido como porcentagem do PIB, é relativamente pequeno.

A teoria econômica básica aqui é a seguinte. O Banco Central administra a taxa de câmbio de modo que ela se deprecie seguindo a taxa da inflação inercial (mantendo, assim, um nível dado de taxa de câmbio real). A inflação doméstica inercial leva a um aumento da demanda por base monetária, a fim de que o valor real da base monetária permaneça constante. Se não há expansão do crédito doméstico por parte do Banco Central e se se parte de um equilíbrio inicial do balanço de pagamentos (i.e., não há variação líquida de Rt), então irá formar-se um excesso incipiente de demanda por moeda na economia brasileira, posto que o crescimento da base monetária ficará defasado com relação à inflação. Isso tenderá a pressionar para cima a taxa de juros e, dessa maneira, a induzir um influxo de capital do exterior e uma apreciação incipiente da moeda local. O Banco Central intervém no mercado de divisas para preservar a taxa de câmbio real.9 9 Com o processo de liberalização das contas externas de 1991-93, a conta de capital é quase que plenamente aberta no Brasil no presente. Na medida em que as reservas começam a fluir para o Banco Central, a base monetária cresce em consonância com a relação (8). O equilíbrio monetário é, assim, restabelecido por via do balanço de pagamentos, com a base monetária crescendo à taxa da inflação e a senhoriagem igual ao nível expresso em (8). O resultado desse mecanismo foi o rápido aumento das reservas internacionais brasileiras desde 1991, que cresceram de US$ 8 bilhões em outubro de 1991 para US$ 41,4 bilhões em maio de 1994 (segundo o conceito de “liquidez internacional” do FMl).10 10 Esses números também corroem o mérito de outro argumento, a saber: sempre se pode argumentar que mesmo um déficit pequeno e decrescente pode causar uma inflação alta quando a oferta de poupança privada ao setor público encolhe mais rapidamente que o déficit. Essa explicação não cabe no presente caso, como fica evidenciado pelo grande aumento das reservas internacionais (fluxo voluntário de capital privado).

Dado que o aumento requerido da base monetária é uma fração pequena do PIB (apenas 1,8% em 1993), tem sido possível satisfazer a totalidade do aumento desejado na oferta monetária através de influxos de capital externo. Se a base monetária fosse maior em relação ao PIB e o aparato de regulação bancária, mais tradicional, as entradas de capital provavelmente seriam insuficientes para gerar todo o aumento da base monetária implicado por (8). Contrariamente, as taxas de juros tenderiam a se elevar, levando a um aumento da velocidade e a uma redução da demanda por moeda. O aumento da taxa de juros, por sua vez, iria reduzir a demanda agregada e, em alguma medida, a própria inflação. Desse modo, o crédito doméstico apertado iria atuar como um breque automático sobre a inflação. Com níveis muito baixos de base monetária e a conta de capital aberta, entretanto, esse breque automático sobre a inflação é muito mais fraco.

Dinâmica de preços e salários e a estabilização

A inflação brasileira recente, como se explicou, é mais a causa do crescimento do estoque nominal de moeda do que o resultado desse crescimento. A fonte básica da inflação elevada no período recente (até junho de 1994) foi a inflação passada, um ponto enfatizado por vários anos por economistas brasileiros (v., por exemplo, Bresser-Pereira & Nakano, 1987BRESSER-PEREIRA, L. & NAKANO, Y. The Theory of Inertial Inflation. Boulder, Rienner Publishers, 1987. ). A forte inércia da inflação brasileira é uma consequência de diversos fatores, incluindo-se: (i) os vários anos de convívio com a inflação elevada, resultando no uso generalizado da indexação de salários e preços; (ii) o caráter relativamente fechado do setor real da economia, um resultado inerente à escala continental do País, bem como um subproduto de anos de restrições às importações, o que atua de modo a reduzir o papel da taxa de câmbio como um fator direto na determinação de preços e salários; e (iii) a natureza relativamente oligopolística dos mercados de trabalho e de produtos no Brasil, que, em parte, também é um resultado das políticas protecionistas.

Para conhecer as implicações dessa inércia, iremos retomar o modelo básico da senhoriagem. Em uma economia com salários e preços plenamente flexíveis, o fim do financiamento via senhoriagem pode trazer um fim instantâneo para a inflação, supondo-se que haja plena credibilidade nas ações orçamentárias e excluindo-se a possibilidade de uma fuga espontânea da moeda.11 11 Mesmo com um nível constante ou zero de D/Q, é possível haver uma fuga espontânea da moeda, com a velocidade em crescimento contínuo. Da equação (3) vemos que uma “bolha” inflacionária espontânea seria governada pela equação dinâmica πt=[v(πt+1)–v(πt)]/v(Pt)+v(Pt+1)D/Q . Com a oferta de moeda constante e a velocidade dada, a inflação seria zero e a velocidade seria determinada pela equação V = v(0). Os preços seriam estáveis ao nível condizente com o equilíbrio monetário: P=M×v(0)/Q.

Note um aspecto interessante: o início da estabilização iria imediatamente resultar em uma queda no nível de preços. Suponha que no momento t a oferta de moeda seja dada por Mt No momento subsequente à estabilização, a inflação é igual a P, e o nível de preços é dado por P=M×v(π)/Q. Após a estabilização, a inflação reduz-se a zero. Portanto, a velocidade iria cair de v(π) para v(0), e o nível de preços iria cair para P=M×v(0)/Q.

Quão confiável é a desinflação instantânea (isto é, um fim instantâneo da inflação elevada)? Na realidade isso tem sido observado diversas vezes na história, como Sargent (1982SARGENT, T. J. “The ends of four big inflations”. In R. E. Hall, org., Inflation: Causes and Effects, Chicago, University of Chicago Press, 1982, pp. 41-98. ) ressaltou em um artigo hoje famoso e influente. Entretanto, o mecanismo para a desaceleração súbita das altas de preços provavelmente envolve mais do que um simples fim do financiamento monetário do déficit público e a redução da velocidade. Quando a inflação elevada é crônica, os agentes envolvidos com o estabelecimento de preços e salários adotam estratégias para operar sob essas condições. Algumas dessas estratégias são conducentes à desinflação rápida, ao passo que outras não.

O principal mecanismo de formação de preço observado na prática sob condições altamente inflacionárias é o uso de uma moeda estrangeira como unidade de conta. Por exemplo, na Argentina, na Bolívia, em Israel e na Polônia, muitos agentes passaram a fixar seus preços em dólares e a usar a taxa de câmbio do dia para traduzir esse preço em divisa local. Nesses casos, os preços são estabelecidos pela relação:

P t = e t × P t * (9)

em que et é a taxa de câmbio em unidades da moeda doméstica por unidade da divisa estrangeira (um aumento em “e” significa uma depreciação da moeda doméstica) e P* t é o índice de preços externo (suposto constante) em moeda externa. Nesse caso, a estabilização dos preços pode ser alcançada instantaneamente por meio de uma estabilização bem-sucedida do mercado cambial.

As condições fundamentais para uma estabilização sustentada baseada na taxa de câmbio são similares às da estabilização dos preços no modelo básico de senhoriagem. Isto é, se o déficit público é eliminado ou é financiado por títulos públicos em condições sustentáveis, mostra-se ser possível estabilizar a taxa de câmbio nominal e, portanto, acabar com a inflação elevada rapidamente. Mesmo se o déficit público ainda não tiver sido reduzido, pode-se mostrar possível cortar a inflação alta temporariamente com a adoção de uma taxa de câmbio fixa sustentada por meio de intervenção do Banco Central no mercado de divisas, usando para tanto um estoque de reservas internacionais.

Entretanto, um financiamento continuado do déficit por parte do Banco Central combinado com uma taxa de câmbio fixa sustentada por intervenções do Banco Central no mercado leva à depleção das reservas do Banco e ao eventual colapso da taxa de câmbio fixa.

No Brasil de 1994, assim como no Chile dos anos 70 e no México dos anos 80, os preços nem são plenamente flexíveis, nem fixados em dólar. Em vez disso, os preços e salários são fixados com o uso de diversas formas de indexação, visando reduzir os custos de transação associados com a inflação elevada. Como uma ilustração extrema e muito simples, suponha que os preços sejam fixados com um mark-up dado sobre os salários, ao passo que os salários mudam seguindo a inflação do mês passado. Assim,

π t = w t w t = π t - 1 (10)

Isso, é claro, produz uma inércia inflacionária, com

π t = π t - 1 (10’)

Em termos gerais, os preços domésticos podem depender da taxa de câmbio bem como dos salários; os salários podem depender do desemprego e da inflação passada; e a indexação à inflação passada pode não ser de 100%. Mesmo sob essas condições mais realistas, a inflação corrente tenderá a ser uma função da inflação passada.

As implicações desse tipo de inércia para a estabilização da inflação ficaram nitidamente manifestas no caso da estabilização no Chile no final dos anos 70. Naquele período, o governo do Chile eliminou o déficit orçamentário (e efetivamente alcançou superávits fiscais) e estabilizou a taxa de câmbio nominal. Não obstante, os preços domésticos continuaram subindo a taxas significativas. Tomou-se aparente que a inflação era como um cão perseguindo sua própria cauda: os salários estavam indexados legalmente à inflação passada; por sua vez, a inflação corrente era fortemente influenciada pelos salários nominais correntes. Eventualmente, a taxa de câmbio tomou-se enormemente sobrevalorizada em termos reais (isto é, et/Pt, caiu fortemente), de modo que o governo foi forçado a desvalorizar a moeda local. O Brasil há muito tempo vem adotando um padrão similar de indexação pós-fixada, ao contrário da Argentina, onde a prática de fixação de preços e salários em dólares passou a ocorrer de forma mais generalizada.

Por essas razões, um fim ao financiamento da senhoriagem e a estabilização da taxa de câmbio nominal não são suficientes, por si sós, para acabar com a inflação elevada no Brasil. A inércia inflacionária faz com que políticas monetária e fiscal estritamente ortodoxas sejam insuficientes para levar à estabilidade dos preços (como ficou claro no período do ministro Marcílio Marques Moreira). Iremos discutir as ramificações desse fato básico na próxima seção.

3. A INFLAÇÃO BRASILEIRA E O PLANO REAL

Para sumariar nossos argumentos até este ponto, a inflação brasileira em 1993 e 1994 foi conduzida por três fatores básicos: (i) inércia na dinâmica preço-salário; (ii) um nível muito baixo da demanda por moeda resultante das práticas bancárias brasileiras, acomodação do Banco Central e economia na retenção de moeda; e (iii) aumentos endógenos na base monetária por meio do balanço de pagamentos. O Plano Real tenta enfrentar os aspectos inerciais da inflação brasileira. Paralelamente, também buscou reforçar o lado fiscal por meio de maior austeridade orçamentária. Entretanto, o Plano permanece como uma estratégia incompleta de estabilização, principalmente porque não enfrentou plenamente os problemas institucionais de controle monetário em face das adaptações do sistema bancário.

Na década passada, o Brasil tentou dois tipos de abordagem para a estabilização. Um certo número de vezes introduziu controles de preços e de salários a fim de tentar quebrar a inflação inercial. As tentativas mais famosas foram o Plano Cruzado (1986) e o Plano Collor (1990). Esses planos ruíram por diversas razões. Os controles de preços não eram sustentáveis, nem em termos econômicos, nem em termos políticos. Eles deflagraram pressões políticas bastante fortes dos interesses empresariais afetados, que terminaram por minar o apoio do público e a credibilidade dos controles e levando à formação de mercados paralelos. Talvez ainda mais importante seja o fato de que tenderam a reverter os termos de troca contra o setor governamental, dado que os preços privados continuaram a se mover para cima, enquanto os preços das empresas estatais eram mantidos fixos, por razões políticas (numa tentativa de conferir credibilidade aos controles usados). Dessa maneira, os controles de preço em si aumentaram o déficit do setor público, e, portanto, corroeram ainda mais as bases dos controles. Como uma observação geral, o déficit orçamentário ex post também era relativamente alto na época do Plano Cruzado, de modo que os fundamentos estavam ainda mais fora do equilíbrio que em 1993-94.

O outro tipo de “esforço” de estabilização no Brasil foi a ortodoxia dos cortes orçamentários, especialmente desde 1990. É claro que essa ortodoxia é um requisito para qualquer estabilização efetiva, mas também é obviamente insuficiente para trazer a plena estabilidade dos preços, pelas três razões principais que já discutimos: inércia na determinação de preços e salários, o baixo nível de demanda por base monetária e a endogeneidade da oferta de moeda via balanço de pagamentos. Contudo, é preciso registrar que a busca de maior ortodoxia orçamentária deixou um legado positivo importante para 1994. Como vimos na Tabela 1, o déficit operacional foi cerca de zero em 1991-93, comparado com déficits de cerca de 5% do PIB na segunda metade dos anos 80.12 12 Desejamos ser claros quanto à necessidade de disciplina fiscal como um requisito para qualquer estabilização bem-sucedida. Como é bem conhecido pelos analistas brasileiros, os números relativamente baixos para o déficit em 1990-93 foram alcançados, em certa parte, por práticas ad hoc precárias. A inflação alta e em elevação também exerceu um papel na redução do valor real das despesas governamentais, como Bacha (1993) sublinhou. Entretanto, isso não é uma novidade, nem é único ao caso brasileiro. As hiperinflações “clássicas” dos anos 20 erodiram fortemente o valor dos soldos pagos aos pensionistas e veteranos de guerra, os salários dos servidores públicos e, mais importante, os desembolsos reais com a dívida pública. Esses fatores, que estão bem documentados, contribuíram para tornar esses episódios mais conflituosos. No caso brasileiro presente, não há dúvida de que uma estabilização mais permanente irá requerer o estabelecimento de práticas orçamentárias (ex-ante) mais saudáveis, permitindo assim consolidar os ganhos obtidos no equilíbrio fiscal. Mas essa reforma mais permanente pode ser enfrentada no período subsequente à redução inicial da inflação elevada.

O Plano Real é uma tentativa engenhosa de romper com a inércia inflacionária sem o uso de controle de preços e salários, não obstante o fato de haver um governo politicamente fraco no poder. A ideia básica é uma introdução gradual de uma nova moeda com paridade fixa em relação ao dólar americano.13 13 Para uma exposição das bases conceituais do plano, v. Brasil, Ministério da Fazenda (1993). A fixação da nova moeda em relação ao dólar foi um dos pilares básicos nas fases um e dois do plano, mas tomou-se mais flexível na fase três. O plano reconhece corretamente que qualquer estabilização imediata da taxa de câmbio do cruzeiro não conduziria, por si só, à estabilização dos preços, dado que um dos canais da inércia dos preços se fazia pela indexação retroativa dos salários (e não pela dolarização, como nas hiperinflações da Argentina e da Bolívia, por exemplo).

Para superar esse obstáculo, o plano operou em três fases. Na primeira, durante janeiro/fevereiro de 1994, reforçou-se a disciplina fiscal com a aprovação por parte do Congresso de algumas medidas de emergência de contenção de despesas, permitindo projetar um déficit orçamentário próximo de zero para 1994. Na segunda fase, que começou em março, houve uma inovação interessante: os salários, preços e tributos foram redenominados em uma nova unidade de contas, a unidade real de valor (URV). Ao mesmo tempo, o uso da indexação nos contratos salariais em URV foi proibido pelos próximos 12 meses.

No período de março a junho de 1994, na prática a URV foi usada como a unidade de conta tipo dólar, posto que seu valor foi estabelecido em aproximadamente um dólar. A taxa de câmbio cruzeiro real/URV basicamente foi a taxa de câmbio do cruzeiro real/dólar. Todos os salários e diversos preços foram convertidos em URVs em março de 1994 (os preços em URVs não foram congelados, podendo mudar tanto antes como depois da fase 3 do plano), embora as transações efetivas continuassem a ser feitas em cruzeiros reais, baseadas na taxa de câmbio do mercado. A inflação em URV (i.e., em dólares) pode então ser calculada e oscilou em tomo de 2% ao mês entre março e maio.

Na terceira fase, iniciada em primeiro de julho de 1994, introduziu-se a nova moeda, o Real, também fixada ao dólar no seu início. Todos os preços em URVs foram convertidos em Real (uma URV sendo igual a um Real). A expectativa era de que a inflação iria cair da taxa de 50% ao mês (junho) em cruzeiros para a taxa de 2% em URVs. No entanto, a inflação em URV em julho foi de 7%, um valor acima do esperado, que se deveu, em grande parte, à elevação dos preços na semana que antecedeu o Real.

A principal questão é se a introdução do Real irá permitir uma estabilização duradoura ou uma mera queda das taxas inflacionárias, seguida de uma volta rápida das taxas elevadas. Do ponto de vista dos fundamentos, há chances para uma estabilização duradoura. O déficit público foi nulo ou muito pequeno (certamente menor que 2% do PIB, mesmo se problemas de mensuração forem levados em consideração), certamente dentro da faixa média dos países de inflação baixa da OCDE. Igualmente, a inércia da inflação alta foi truncada pela redenominação dos contratos em URVs, pela introdução da nova moeda e pela proibição da indexação salarial.

Há, entretanto, três riscos relacionados que ainda não foram plenamente enfrentados pelo plano. Eles podem ser caracterizados como fragilidade monetária que resulta da baixa demanda por base monetária no Brasil. Primeiro, e mais diretamente, após um período inicial de remonetização, pequenos aumentos na base monetária como fração do PIB podem sustentar grandes aumentos na inflação. Portanto, sem uma mudança nas regulações monetárias, o Brasil permanecerá vulnerável ao risco de que mesmo pequenos déficits podem deflagrar nova retomada da inflação. Ademais, posto que os agentes que fixam preços e salários sabem que a oferta monetária não é uma âncora efetiva (em parte devido à possibilidade de aumentos endógenos da oferta monetária), eles podem continuar a aumentar preços em antecipação à inflação renovada.

Segundo, sem uma mudança no sistema monetário, o governo brasileiro irá continuar a ter pouca autodisciplina para evitar políticas anti-inflacionárias, posto que os principais detentores de riqueza estão protegidos das consequências inflacionárias do processo. (A propósito, esse é um exemplo específico de uma abordagem mais geral feita por Fischer & Summers, 1989FISCHER, S. & SUMMERS, L. “Should governments learn to live with inflation?”, American Economic Review , 79 (2), 1989. , de que a indexação leva a uma inflação maior porque enfraquece a resistência política a políticas inflacionárias.) Suponha, por exemplo, que o governo esteja considerando uma desvalorização da moeda a fim de alcançar uma dada meta de competitividade internacional (taxa de câmbio real). Em uma economia de baixa inflação, o governo iria se defrontar com fortes pressões políticas dos detentores de ativos para não fazer a desvalorização. No Brasil, como os detentores de riqueza se acham em larga medida protegidos da perda de capital induzida pela desvalorização, há muito menos pressão contra medidas desse tipo.

Terceiro, sob as condições do presente sistema, o valor nominal das contas do tipo FAF tende a aumentar rapidamente, como resultado direto de taxas de juros nominais elevadas (posto que as contas FAF pagam taxas de juros diárias). Suponha que a inflação seja efetivamente reduzida de modo drástico no início da estabilização, mas que a taxa de juros sobre os títulos públicos permaneça alta devido à expectativa de inflação futura. Os saldos nominais (e reais) das contas tipo FAF iriam crescer significativamente. Esse aumento nos saldos reais, por sua vez, estimularia o aumento nos gastos com consumo, levando (provavelmente) a uma rápida diminuição do saldo comercial. Esse aumento no consumo iria contribuir para o surgimento de novas pressões inflacionárias. Assim, a criação de moeda interna por parte do sistema bancário é uma ameaça à estabilidade dos preços.

Do mesmo modo, o rápido crescimento das contas tipo FAF iria levar a propostas de redução das taxas de juros através de operações de mercado aberto conduzidas pelo Banco Central. Ao mesmo tempo, o menor saldo comercial estimularia pressões da comunidade empresarial para desvalorizar o câmbio. Todas essas pressões seriam no sentido de relaxar a postura anti-inflacionária do Banco Central, com o resultado de que taxas de juros nominais altas podem tornar-se uma profecia autorrealizada, porque levam o governo a praticar políticas inflacionárias temidas pelos detentores dos títulos públicos. (Calvo, 1988CALVO, G. “Servicing the public debt: the role of expectations”. American Economic Review, 78 (4): 647-61, 1988. e 1994, desenvolve modelos teóricos que demonstram a possibilidade de taxas de juros altas induzirem profecias autorrealizadas de inflação elevada.)

Medidas para reforçar o Real

Em nossa opinião, o Plano Real oferece uma chance efetiva de estabilização da moeda sob duas condições principais. A mais óbvia é que o lado fiscal deve permanecer sob controle, embora haja fortes pressões para aumentar os dispêndios na conjuntura política que antecede uma eleição presidencial. Segundo, a regulação do sistema bancário deve ser ajustada de modo a permitir que o Banco Central possa recuperar o controle monetário e superar a presente fragilidade monetária que caracteriza o País. Oferecemos alguns pensamentos preliminares sobre o primeiro tema.14 14 Este texto foi escrito em junho de 1994; antes, portanto, do início da terceira fase dó Real. Um breve resumo das medidas adotadas em julho de 1994 é feito na próxima seção.

Recomendamos duas mudanças principais nos procedimentos bancários. Primeiro, as atuais contas classificadas como M2 no Brasil (itens 4 a 7 na Tabela 2) devem ser eliminadas (em seu caráter atual), permitindo-se que os saldos depositados sejam redirecionados voluntariamente para contas que não pagam juros (tipo Ml), para contas de poupança (M3), com maturidade de três meses ou mais, para CDBs ou para carteiras consolidadas de aplicação em dívida pública por aplicadores finais (eliminando-se as cartas de recompra). Indivíduos poderiam continuar a reter ativos líquidos em money market funds, mas esses fundos não seriam sacáveis prontamente via cheque, de modo a não atuarem como substitutos para saldos de transação no sistema bancário. Nossa suposição é de que uma fração substantiva das atuais contas M2 se transformaria em depósitos à vista, elevando a razão depósitos à vista/PIB dos atuais 0,8% para algo em tomo de 3-4%. Adicionalmente, suspeitamos que a eliminação dos depósitos tipo M2 iria aumentar a demanda por meio circulante, posto que as contas do tipo FAF têm permitido a substituição tanto dos depósitos à vista como de moeda em poder do público.

Segundo, recomendamos a introdução de reservas bancárias (sem o pagamento de juros) sobre as contas de poupança, de modo a reconstruir a base monetária e ajudar a retomar o controle da oferta de moeda. A exigência de reserva bancária contra os depósitos à vista deveria ser reduzida gradualmente do nível atual de 50%, paralelamente à introdução dessa exigência sobre as contas de poupança. Supondo que se estabeleça uma taxa única de compulsório de 20% sobre todos os depósitos (e supondo que M2 seja canalizado para contas de M1 ou M3), as reservas bancárias atingiriam algo como 3% do PIB, e não o mísero 0,2% do final de 1993.15 15 O valor de M3 era de 15,4% no final de 1993. Subtraindo-se amoeda em poder do público, o saldo bancário de M3 foi de 14,9% do PIB. Uma exigência de reserva bancária uniforme da ordem de 20% representaria um saldo equivalente a 3% do PIB.

Essas mudanças seriam difíceis de introduzir em um período de inflação alta; contudo, elas podem ser colocadas em prática nos primeiros meses após a introdução do Real, quando a inflação estiver baixa. Portanto, é importante que o governo use a oportunidade permitida pela redução de curto prazo da inflação para consolidar o controle sobre a oferta de moeda.

Em adição a essas medidas reguladoras, recomendamos ações que aumentem a confiança na nova moeda, no momento de seu lançamento. Primeiro, a suspensão da indexação salarial por um ano é apropriada no contexto de um plano consistente de estabilização. Recomendamos que o mesmo princípio seja estendido para outros tipos de indexação durante os próximos doze meses. (É claro, supondo que a estabilização seja bem-sucedida, a proscrição da indexação pode tomar-se permanente, como na Constituição Alemã de 1949). Segundo, com respeito à indexação dos ativos financeiros, recomendamos a eliminação da indexação em todos os papéis com maturidade inferior a três meses.

Terceiro, para aumentar a confiança é necessário remover o maior grau possível de poder discricionário da condução da política monetária. Cremos que o governo deveria anunciar um compromisso firme de manter a taxa de câmbio fixa pelos primeiros seis meses após a introdução do Real, a ser seguida por algum tipo de minidesvalorização ou de uma banda flutuante (crawling band); neste último caso, a taxa de câmbio é mantida dentro de um intervalo em tomo de uma taxa de referência central, enquanto a taxa de referência em si é ajustada por meio de minidesvalorizações.

Quarto, é altamente desejável introduzir medidas legais para conferir um grau substantivo de independência ao Banco Central. Essa lei especificaria que o principal objetivo do Banco Central deve ser a estabilidade monetária; também estabeleceria uma diretoria que fosse independente do governo e do Congresso, com um mandato fixo. A lei estabeleceria ainda que as operações do Banco Central seriam conduzidas de modo independente do governo, embora em consulta com este. A supervisão do Banco Central por parte do Congresso seria limitada à aprovação congressual de metas gerais anuais para o Banco e à verificação periódica do progresso alcançado na implementação dessas metas.

Regras monetárias e a taxa de câmbio com o real

Em primeiro de julho de 1994 começou a terceira fase do plano, com a substituição da moeda velha pelo Real. Embora a taxa de conversão entre o cruzeiro real e o Real tenha sido estabelecida em CR$ 2.750,00 para R$ 1,00 (um Real sendo igual a uma URV), o que tomou um pouco complicadas as comparações entre as duas moedas, a substituição do meio circulante transcorreu sem maiores problemas. Houve uma queda substancial da inflação inercial e o plano conquistou um amplo apoio político entre a população.

Houve duas áreas em que as políticas adotadas diferiram das que se esperavam anteriormente. Primeiro, a taxa de câmbio entre o Real e o dólar não foi fixada rigidamente em um para um. Em vez disso, o Banco Central anunciou que venderia dólares por um Real, mas deixou a taxa de compra flutuando livremente no mercado. Essa taxa (i.e., a taxa pela qual os exportadores vendem seus dólares) caiu para R$ 0,91 em julho e R$ 0,86 em agosto, representando uma apreciação da moeda local (na fase dois, uma URV valia cerca de um dólar). Dado o montante expressivo de reservas internacionais do Banco Central e a oferta líquida de dólares nos mercados cambiais, tal apreciação deve manter-se pelo restante de 1994.

Para refrear a entrada de capitais, instituiu-se uma taxa de 5% sobre as aquisições de divisas, e a tomada de empréstimos externos por empresas estatais foi suspensa por 90 dias. Como resultado, os fluxos de capital diminuíram substancialmente no primeiro mês após o plano. Contudo, preservou-se um diferencial de juros fortemente positivo, posto que se julgou necessário manter a taxa de juros doméstica elevada para evitar uma expansão muito forte do consumo. Mas, dado o diferencial dos juros, os influxos de capital podem voltar a crescer nos próximos meses.

Segundo, na área monetária o governo declarou que iria seguir uma programação monetária rigorosa, e estabeleceu tetos nominais para o valor da base monetária, válidos para setembro, dezembro de 1994 e março de 1995 (tais metas podem ser ultrapassadas em até 20% se houver uma necessidade justificada). A meta para setembro foi estabelecida em R$ 7,5 bilhões, que é cerca do dobro do valor da base em junho. Ademais, o Banco Central impôs a exigência de 100% de reservas bancárias sobre o crescimento dos depósitos à vista e uma taxa de reservas de 20% sobre as contas de poupança, contas do FAF e depósitos a prazo.

Tais medidas tiveram a intenção de representar uma espécie de âncora monetária ao plano. Elas apontaram na direção certa, mas teriam sido mais convincentes se tivessem estabelecido metas para o M2, porque M1 é uma fração muito pequena dos fundos líquidos designados como M2. O dilema apontado anteriormente - ou seja, de que a existência da moeda interna criada pelo sistema bancário toma possível que a economia brasileira opere com baixos níveis de M1 - ainda persiste. Ademais, o curto prazo com que os títulos públicos são refinanciados - aproximadamente quatro semanas - e as complicações que isso representa para a gestão monetária também apresentam problemas importantes que aguardam solução.

Dada a aceleração das remarcações de preços nas últimas semanas de junho e as taxas de juros elevadas, não houve um boom de consumo. Mas os aumentos de preços no final de junho e a subida dos preços de alimentos e serviços em julho representaram uma inflação ao consumidor de 7% no primeiro mês do plano. No período subsequente espera-se que a inflação caia para cerca de 2% ao mês. O teste quanto à necessidade de regras monetárias mais tradicionais far-se-á então.

4. CONCLUSÃO

As sugestões de política delineadas aqui não são exaustivas, tendo em conta tanto limitações de tempo como o escopo de um texto acadêmico. O principal objetivo aqui foi o de estabelecer uma interpretação alternativa da inflação elevada do Brasil nos anos 90, fazer uma avaliação concisa do Plano Real e defender mudanças nas práticas monetárias.

Todos os passos sugeridos são política e administrativamente possíveis. A maioria das ações na área monetária pode ser alcançada por medidas administrativas. Tais passos, combinados com a introdução da nova moeda, podem estabelecer as fundações para um período prolongado de inflação baixa. O teste real, entretanto, certamente se fará na arena política. Um primeiro teste será evitar uma expansão fiscal no período até a eleição. Haverá pressões fortes para se elevarem salários públicos, ajudar os exportadores, microempresas e bancos comerciais que perderam os ganhos que tinham com a inflação elevada. É absolutamente crucial resistir a esses pleitos. O teste mais amplo virá após a eleição presidencial, quando o governo precisará partir para ações mais amplas visando consolidar os ganhos iniciais na luta contra a inflação. Qualquer governo com o interesse real do Brasil em mente procurará consolidar os ganhos do Plano Real, em vez de iniciar ainda outro experimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • ZINI JR., A. “Capital flows, monetary instability, and financial sector reform in Brazil”. Working Paper Series nº 196. Washington, DC, Inter-American Development Bank, 1994.
  • 1
    Os dados da Tabela I são a melhor medida disponível do déficit público no Brasil, seguindo uma metodologia acordada com o FMI. O conceito de déficit operacional tenta estimar o déficit real, isto é, descontado da correção monetária paga aos títulos públicos. O leitor interessado em uma discussão mais detalhada dos números fiscais nos anos 90 deve consultar Barbosa & Giambiagi (1994)BARBOSA, F. & GIAMBIAGI, F. “O ajuste fiscal de 1990-93: uma análise retrospectiva”, 1994. Revista Brasileira de Economia, em fase de publicação. . Mesmo admitindo-se que possa haver alguns pontos de desvio em relação ao possível déficit “verdadeiro”, um fato gerado pelas dificuldades de mensurara déficit quando a inflação é alta e crescente, ainda assim os números seriam relativamente pequenos. No Apêndice, conduz-se um teste à consistência desses números através da decomposição dos usos da senhoriagem e verifica-se que os números do déficit são basicamente consistentes.
  • 2
    Esse aspecto foi observado anteriormente por Zini (1989ZINI JR., A. “Fundar a dívida pública”, Planejamento e Políticas Públicas nº 2, 1989. , 1993ZINI JR., A. “Reforma monetária, intervenção estatal e o Plano Collor”. In A. Zini Jr., org. O mercado e o Estado no desenvolvimento econômico nos anos 90. Rio de Janeiro, IPEA, 1993. e 1994ZINI JR., A. “Capital flows, monetary instability, and financial sector reform in Brazil”. Working Paper Series nº 196. Washington, DC, Inter-American Development Bank, 1994. ), embora de modo
  • 3
    Em algumas circunstâncias, entretanto, a mudança para financiamento via endividamento pode não ser suficiente para eliminar a inflação contemporânea, mesmo se se eliminar a senhoriagem corrente. Se se espera que o endividamento público seja seguido por maior recurso à senhoriagem no futuro, a expectativa de maior senhoriagem pode aumentar a velocidade da moeda no presente e, assim, causar inflação no presente. Essa é a famosa lição de Sargent e Wallace, denominada “a desprazerosa aritmética monetarista” (v. Sargent & Wallace, 1981SARGENT, T. J. & WALLACE, N. “Some unpleasant monetarist arithmetic”. In R. Lucas & T. Sargent, orgs., Rational Expectations and Econometric Practice. University of Minesota Press, 1981. 2 vols. ).
  • 4
    Bruno & Fischer (1990)BRUNO, M. & FISCHER, S. “Seignorage, operating rules, and the high inflation trap”, Quarterly Journal of Economics, maio, 1990. analisam as propriedades desses dois equilíbrios inflacionários. Bruno (1993)BRUNO, M. Crisis, Stabilization, and Economic Reform. Oxford, Oxford University Press, 1993. e Sachs (1994)SACHS, J. “Russia’s struggle with stabilization: conceptual issues and evidence”. Annual Bank Conference on Development Economics, World Bank, April 1994. examinam outros casos de equilíbrios múltiplos em inflações altas.
  • 5
    Rossi (1994)ROSSI, J. “O modelo hiperinflacionário da demanda por moeda de Cagan e o caso do Brasil”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 24 (1): 73-96, 1994. apresenta estimativas econométricas que dão suporte a esse postulado. A tabela abaixo também sugere essa ideia.
  • 6
    A taxa de juros nominal nessas contas é prefixada (ou voltada para a frente), antecipando-se à taxa corrente de inflação; os rendimentos são creditados diariamente nas contas. Desde 1991 as retiradas nos primeiros 15 dias úteis após um depósito nas contas do FAF pagam um imposto sobre o rendimento nominal que é inversamente proporcional ao número de dias do depósito.
  • 7
    A notação pode ser um pouco confusa devido à existência de variáveis de estoque e de fluxos. D, F e NB são fluxos de crédito. R é o estoque de reservas internacionais e M é o estoque da base monetária. Portanto, a mudança na base monetária é igual à soma dos fluxos de D e F mais a mudança no estoque de R.
  • 8
    Como mostramos no Apêndice, os recursos amealhados pela senhoriagem no período recente foram usados para reduzir o nível geral de endividamento público, e não para financiar déficits.
  • 9
    Com o processo de liberalização das contas externas de 1991-93, a conta de capital é quase que plenamente aberta no Brasil no presente.
  • 10
    Esses números também corroem o mérito de outro argumento, a saber: sempre se pode argumentar que mesmo um déficit pequeno e decrescente pode causar uma inflação alta quando a oferta de poupança privada ao setor público encolhe mais rapidamente que o déficit. Essa explicação não cabe no presente caso, como fica evidenciado pelo grande aumento das reservas internacionais (fluxo voluntário de capital privado).
  • 11
    Mesmo com um nível constante ou zero de D/Q, é possível haver uma fuga espontânea da moeda, com a velocidade em crescimento contínuo. Da equação (3) vemos que uma “bolha” inflacionária espontânea seria governada pela equação dinâmica πt=[v(πt+1)v(πt)]/v(Pt)+v(Pt+1)D/Q .
  • 12
    Desejamos ser claros quanto à necessidade de disciplina fiscal como um requisito para qualquer estabilização bem-sucedida. Como é bem conhecido pelos analistas brasileiros, os números relativamente baixos para o déficit em 1990-93 foram alcançados, em certa parte, por práticas ad hoc precárias. A inflação alta e em elevação também exerceu um papel na redução do valor real das despesas governamentais, como Bacha (1993)BACHA, E. “O fisco e a inflação: uma interpretação do caso brasileiro”. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, mimeo, 1993. sublinhou. Entretanto, isso não é uma novidade, nem é único ao caso brasileiro. As hiperinflações “clássicas” dos anos 20 erodiram fortemente o valor dos soldos pagos aos pensionistas e veteranos de guerra, os salários dos servidores públicos e, mais importante, os desembolsos reais com a dívida pública. Esses fatores, que estão bem documentados, contribuíram para tornar esses episódios mais conflituosos. No caso brasileiro presente, não há dúvida de que uma estabilização mais permanente irá requerer o estabelecimento de práticas orçamentárias (ex-ante) mais saudáveis, permitindo assim consolidar os ganhos obtidos no equilíbrio fiscal. Mas essa reforma mais permanente pode ser enfrentada no período subsequente à redução inicial da inflação elevada.
  • 13
    Para uma exposição das bases conceituais do plano, v. Brasil, Ministério da Fazenda (1993)BRASIL, Ministério da Fazenda. “O Plano de Estabilização: Exposição de Motivos 395, 7 de dezembro de 1993”. In Banco Central do Brasil, Brasil Programa Econômico nº 39, dezembro, 1993. . A fixação da nova moeda em relação ao dólar foi um dos pilares básicos nas fases um e dois do plano, mas tomou-se mais flexível na fase três.
  • 14
    Este texto foi escrito em junho de 1994; antes, portanto, do início da terceira fase dó Real. Um breve resumo das medidas adotadas em julho de 1994 é feito na próxima seção.
  • 15
    O valor de M3 era de 15,4% no final de 1993. Subtraindo-se amoeda em poder do público, o saldo bancário de M3 foi de 14,9% do PIB. Uma exigência de reserva bancária uniforme da ordem de 20% representaria um saldo equivalente a 3% do PIB.
  • JEL Classification: E31; E52.

APÊNDICE

A noção de que o déficit público possa ter sido pequeno no Brasil no passado recente geralmente é recebida com ceticismo, porque a inflação foi elevada. Mas pode-se checar a consistência dos números mostrados na Tabela 1, examinando-se a senhoriagem obtida pelo Banco Central e as mudanças nas dívidas públicas. O teste permite verificar ainda que a senhoriagem coletada pelo governo nos últimos anos foi basicamente utilizada para acumular reservas externas e reduzir o nível do endividamento público total.

O financiamento do setor público obedece à seguinte restrição orçamentária, expressa em termos nominais:

( G T ) + iB + ei * B * = M + B + eB * A (11)

em que (G) é a soma dos dispêndios públicos não financeiros, inclusive gastos parafiscais, (T) são os tributos e tarifas arrecadados, (B) é o estoque da dívida interna líquida do governo, (B*) é o estoque líquido da dívida pública externa (em dólares), (i) é a taxa de juros nominal doméstica, (i *) é a taxa de juros internacional, (e) é a taxa de câmbio nominal, (A) é o estoque de ativos públicos à venda nas privatizações e (M) é a base monetária. Para simplificar, suponha que (A) seja nulo ou que esteja agregado a (B) -no caso presente, por exemplo, as receitas líquidas obtidas com as privatizações foram pequenas e estão colocadas à parte. A dívida externa líquida (B*) pode ser decomposta na dívida bruta (BG *) e no estoque de reservas internacionais (R). Ou seja, (B*=BG*R).

Em tempo contínuo, um apóstrofo sobre uma variável indica a derivada instantânea com relação ao tempo (B=αB/αt). Dividindo os dois lados da identidade (11) pelo índice de preços, representando o valor real de cada variável por letras minúsculas (x = X/P), utilizando (ir) para indicar a taxa de juros real (ir=iP/P) e observando que [x=X/P(P/P)x], obtém-se:

( g t ) + i r b + ei r * b * = S + b + eb * (12)

em que (S) representa a senhoriagem, isto é, valor dos recursos reais capturados pelo governo em virtude de seu poder de emitir moeda (S = M’/P). O lado esquerdo de (12) representa o déficit operacional consolidado do setor público. Usando (d) para representar esse déficit real, (R) para designar o estoque de reservas (r = R/P), e (f) para indicar o endividamento público total, pode-se escrever:

d = S + f em que f = b + eb * G er (13)

Assim, em um dado ano, o déficit operacional pode ser financiado ou através de senhoriagem (S), ou por aumento no endividamento líquido.

Agora, suponha que o governo mantenha seu endividamento externo bruto constante (b*’G = 0), então os recursos advindos da senhoriagem podem ser usados ou para financiar o déficit operacional, ou para reduzir a dívida interna líquida, ou para acumular reservas (ou uma combinação dos três):

S = d b + er (14)

A Tabela 7 mostra as estimativas feitas em Zini (1994)ZINI JR., A. “Capital flows, monetary instability, and financial sector reform in Brazil”. Working Paper Series nº 196. Washington, DC, Inter-American Development Bank, 1994. para essas variáveis, supondo que a dívida externa do governo seja constante (essa, de qualquer modo, foi a informação tornada pública por ocasião da renegociação da dívida externa brasileira com o comitê de bancos credores; note que se trata da dívida do governo).

Tabela 7:
Financiamento inflacionário e acumulação de reservas (em US$ bilhões)
Tabela 8:
Brasil: reservas externas (US$ bilhões)

Os números mostram que a senhoriagem representou uma receita de US$ 12 bilhões para o governo em 1992. Esse saldo, mais US$ 8 bilhões de aumento da dívida interna, foi usado para financiar um déficit orçamentário de US$ 7 bilhões e acumular US$ 14 bilhões de reservas. Em 1993, a receita de US$ 12 bilhões da senhoriagem mais US$ 1 bilhão de superávit público foram usados para acrescentar US$ 8 bilhões às reservas internacionais e para abater US$ 5 bilhões da dívida interna.

Embora esses números sejam apenas indicativos, devido à natureza indireta do cálculo apresentado, eles trazem como implicação que os dados apresentados na Tabela 1 são consistentes. Um teste básico consiste em verificar se a soma das colunas 2, 3 e 4 é igual à coluna 1 da Tabela 7. Embora os valores dessas quatro colunas venham de fontes distintas, de fato essa igualdade se verifica. A conclusão é que, se o déficit operacional tivesse sido maior, ele teria que ser financiado de algum modo, mas isso não aparece nas variáveis de financiamento.

A Tabela 7, contudo, aponta para um esquema perverso: em 1992-93 (continuando no primeiro semestre de 1994), o governo usou um tipo regressivo de taxação para financiar sua acumulação de reservas (e, por extensão, para reduzir a dívida externa líquida). Em outras palavras, a senhoriagem foi usada para reduzir o endividamento líquido do governo, em vez de financiar déficits. Assim, tem-se um resultado inesperado: a elevada inflação brasileira dos anos 90 serviu para pagar dívidas antigas, em um contraste nítido com a erosão da dívida pública ocorrida na hiperinflação “clássica” da Alemanha nos anos 20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1995
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