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As condições para a saída do atraso* * Pipitone, Ugo (l994) La Salida dei Atraso: Um Estudio Histórico Comparativo. México: Fondo de Cultura Económica.

The conditions to get out of economic backwardness

RESUMO

O livro de Ugo Pipitone, La Salida del Atraso: Un Estudio Histórico Comparativo, é revisado. Sua principal ideia sobre a existência de apenas duas pré-condições para a modernização, a saber, a presença de um governo razoavelmente eficiente, que deveria estar livre da corrupção e de uma agricultura desenvolvida, está sujeita a críticas. Ressalta-se que outros fatores como o estágio de desenvolvimento cultural e educacional atingido pela sociedade em questão, bem como o nível de renda, a presença de mercados para bens manufaturados e a existência de uma infraestrutura adequada são igualmente importantes. Salienta-se que a ideia do autor, de que normalmente o processo de modernização dura no máximo duas gerações (cerca de 50 anos), é correta para a Inglaterra e alguns iniciantes como Alemanha e EUA, mas que isso não se aplicava à Itália ou ao Japão.

PALAVRAS-CHAVE:
Desenvolvimento econômica; resenha

ABSTRACT

Ugo Pipitone’s book La Salida del Atraso: Un Estudio Histórico Comparativo is reviewed. His main idea concerning the existence of only two preconditions for modernization, namely the presence of a reasonably efficient government which should be free from corruption and a developed agriculture, is subject to criticism. It is pointed out that other factors such as the stage of cultural and educational development attained by the society in question as well as the income level, the presence of markets for manufactured goods and the existence of an adequate infrastructure are equally important. It is pointed out that the author’s idea that typically the modernization process lasts at most two generations (about 50 years), is correct for England and some late starters as Germany and the U.S., but that this did not hold either for Italy or Japan.

KEYWORDS:
Economic development; book review

1. INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da Revolução Industrial, a partir de fins do século XVIII, que mudou radicalmente a face da sociedade e da economia da Inglaterra e a partir desta começou a se difundir pela Europa e pela América gerando aquilo que conhecemos como as sociedades modernas, pensadores sociais vêm se perguntando como tal transformação poderia ter ocorrido. Inicialmente, tais indagações só poderiam ter por base empírica a experiência inglesa e os primeiros ensaios europeus feitos na tentativa de reencenar o espetáculo britânico. A motivação por trás de tais indagações muitas vezes era de cunho prático, partindo de políticos ou burocratas, cientes das implicações político-militares do surgimento da indústria moderna, e que ansiavam por imitar o fenômeno inglês em seus respectivos países. Algumas vezes a motivação era mais de cunho acadêmico. Não obstante a grande engenhosidade envolvida em muitas dessas especulações, com o material empírico existente à época não era possível dar uma resposta adequada ao fenômeno. Mesmo nos nossos dias, transcorridos 210 anos desde que a Revolução Industrial se iniciou, ainda carecemos de uma resposta completamente convincente para a indagação proposta. Certamente sabemos muito mais do que se sabia à época de um List ou de um Marx ou, mesmo, de um Sombart, em fins do século XIX. Sabemos que alguns ingredientes muito importantes estiveram presentes, mas não temos certeza quanto ao seu peso relativo e nem se todos esses ingredientes foram absolutamente essenciais. A figura se complica um pouco mais, visto que alguns desses ingredientes foram, historicamente, sendo substituídos, à medida que as circunstâncias variavam de um país para outro. O que podemos concluir, tentativamente, do que foi exposto até agora, é que é muito difícil fazer teoria sem dispor de uma base empírica adequada. Assim, parece-nos que qualquer tentativa de explicar a Revolução Industrial, que pretenda ser minimamente válida, deverá ter por base um estudo histórico comparativo abrangente. É isso exatamente o que se propõe fazer Ugo Pipitone (1994PIPITONE, U. (1994) La Salida del Atraso: Un Estudio Histórico Comparativo. Mexico, Fondo de Cultura Económica. ) em sua obra La Salida del Atraso: Un Estudio Histórico Comparativo.

O projeto do referido autor é de, apoiado num levantamento de quatro países que tiveram uma transição para a modernidade com algum sucesso - Suécia, Dinamarca, Japão e Itália -, comparar essas quatro experiências com outras quatro de transição incompleta: Nigéria, Índia, Brasil e México. O projeto não é novo. Existem muitos trabalhos nessa linha, indo desde aqueles que comparam a industrialização inglesa com a americana, passando por aqueles que comparam a inglesa com a francesa, a japonesa com a russa, a brasileira com a coreana e assim por diante, até levantamentos mais completos como os da Fontana Economic History of Europe, os de Milward e Saul acerca do desenvolvimento da Europa Continental, os de Tom Kemp acerca da Revolução Industrial na Europa no século XIX e no mundo não-ocidental, e os trabalhos clássicos de Gerschenkron acerca das industrializações tardias, bem como alguns trabalhos comparativos com preocupações mais específicas, como os de Rondo Cameron, acerca da participação dos bancos em tais processos.

O que geralmente distingue esses apanhados é, primeiramente, a abrangência e a riqueza do material empírico coletado e, em segundo lugar, mas certamente não menos importante, a leitura que seus autores fazem do material apresentado. Ambos os aspectos estão intimamente relacionados. O que era possível afirmar nos anos 40 acerca do desenvolvimento brasileiro, para se dar um exemplo, hoje seria totalmente inaceitável. Assim, desde os trabalhos pioneiros de Roberto Simonsen nos anos 30, seguidos pelos trabalhos de Caio Prado, nos anos 40, e de Celso Furtado, nos anos 50, uma massa excepcionalmente grande de material empírico acerca da modernização do Brasil foi coletada e analisada. Veja-se, por exemplo, a bibliografia elaborada pela Casa de Rui Barbosa sob a coordenação de Pôrto, Fritsch e Padilha: Processo de modernização no Brasil: 1850-1930 publicada em 1985, em que são relacionadas 2.053 obras, uma grande parte das quais publicadas após os anos 60. Desde então, esse volume só aumentou. De posse desse material, muitas das afirmações, feitas por Furtado, a título de ilustração, em meados dos anos 50, não se sustentam. Cito dois exemplos. Com os dados disponíveis quando escrevia a sua Formação Econômica do Brasil, Furtado fez uns cálculos da renda per capita brasileira em diferentes momentos da história do País, chegando a afirmar que se não tivesse o País estagnado durante a primeira metade do século XIX, teríamos chegado em 1950 com uma renda compatível com a dos países europeus no período (Furtado, 1959FURTADO, C. (1959) Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. , p. 178). Desde a publicação de sua Formação .... os cálculos da renda per capita pelos organismos oficiais melhoraram bastante, bem como vários estudiosos fizeram estimativas da evolução da renda brasileira, entre os quais citaria Haddad (1978HADDAD, C.L.S. (1978) Crescimento do Produto Real no Brasil 1900-1947. Rio de Janeiro, FGV. ) e Goldsmith (1986GOLDSMITH, R. (1986) Brasil 1850 - 1984. Desenvolvimento Financeiro sob um Século de Inflação. São Paulo, Harbra/Bamerindus. ), estimativas essas que nos permitem afirmar ser a colocação de Furtado otimista demais. Tivesse crescido nossa renda per capita a 1,5% por 50 anos adicionais, essa renda, hoje (1995), seria de US$ 6 mil, em vez dos US$ 3 mil atuais, o que ainda nos colocaria muito longe dos US$ 18 a US$ 20 mil dos países europeus. Mas, de qualquer forma, é o tipo de colocação que faz pouco sentido, visto sugerir uma possibilidade que historicamente inexistiu, qual seja de o país crescer a taxas altas quando isso, para esse país, como aliás reconhece o próprio Furtado, não era viável. É como afirmar que se a população brasileira tivesse crescido a 1% ao ano, desde meados do século XIX até os anos 90 deste século, em vez de crescer aos 2,15% historicamente observados, coeteris paribus, hoje teríamos uma renda per capita de quase US$ 15 mil, o que certamente nos colocaria entre as nações mais desenvolvidas do mundo. Historicamente, tal opção, para o Brasil, nunca existiu. Um outro exemplo de afirmação que hoje, provavelmente, não seria feita em função de levantamentos recentes, corresponde à “constatação” feita por Furtado de que a economia teria estagnado entre 1800 e 1850 em decorrência da estagnação das exportações brasileiras. Parece que esse não é bem o caso. Embora as exportações per capita, em termos reais, tenham permanecido constantes entre 1796 e 1840 (cerca de £ 0.75, em libras de 1913), parece que a economia interna teve uma certa expansão que independeu do mercado externo (Fragoso, 1992FRAGOSO, J. L. R. (1992) Homens de Grossa Aventura: Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional. , em especial pp. 234-42). Em outras palavras, a qualidade do material empírico estabelece limites para o que pode ser afirmado ou não acerca de um assunto. Mesmo assim, nas Ciências Sociais, mais que nas outras áreas, em função de nosso pouco conhecimento dos mecanismos envolvidos nos processos econômicos e sociais, existe uma margem muito grande para avaliações que não se coadunam com o material disponível. Um caso em questão é a avaliação de Hobsbawm (Hobsbawm, 1968HOBSBAWM, E. J. (1968) Industry and Empire. London, Weidenfeld and Nicolson. , p. 38) acerca da causa imediata da RI inglesa. Embora reconhecendo que o grosso da produção industrial fosse para o mercado interno, esse autor privilegia o mercado externo como detonador da industrialização inglesa (Hobsbawm, 1968HOBSBAWM, E. J. (1968) Industry and Empire. London, Weidenfeld and Nicolson. , pp. 25 e 32). A argumentação é mais ou menos a seguinte: a RI foi um processo explosivo, portanto só um outro fenômeno explosivo, qual seja o crescimento do mercado externo, poderia deflagrá-lo. Sem dúvida, para a RI inglesa, o mercado externo foi importante, absorvendo cerca de 22% da produção industrial entre 1780 e 1831 (Crafts, 1985CRAFTS, N.F.R. (1985) British Economic Growth During the Industrial Revolution. Oxford, Clarendon Press. , p.132), mas daí a elegê-lo como deflagrador do processo é um salto e tanto. Corresponde a querer forçar uma certa estrutura teórica sobre um corpo empírico estranho a essa estrutura. Esse tipo de argumentação deve fazer sentido para esse autor e, certamente, para seus correligionários, mas a mim parece mais um caso de posições ideológicas apriorísticas contrapondo-se ao peso da evidência. Feitas estas observações preliminares, voltemos ao tema principal.

2. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E O MUNDO MODERNO

O que sabemos hoje acerca dos processos de transformação que, começando com a RI inglesa, produziram aquilo que chamamos de mundo moderno? Primeiro que, tipicamente, esse processo de modernização se deu, como no caso inglês, como subproduto de uma industrialização capitalista. Mas devemos enfatizar a palavra tipicamente porque, como bem mostra Pipitone, a partir da análise do caso dinamarquês, a industrialização não é uma precondição para a modernização de uma sociedade. Na realidade, poderíamos, parodiando Jacob Viner, citado por Pipitone, afirmar que a industrialização pode ser considerada mais como consequência que como causa do grau de modernização de uma sociedade (p. 78). E aqui se coloca a pergunta: já que uma sociedade moderna não é necessariamente uma sociedade primordialmente industrial, o que seria uma sociedade moderna? Uma forma de defini-la seria perguntar o que seria o seu oposto, isto é, o que seria uma sociedade atrasada. A isso o autor responde: “ ... [o atraso é] fundamentalmente isto: uma situação de marginalidade com relação aos núcleos mundiais mais dinâmicos na ampliação das fronteiras da produção e da experimentação tecno-científica. Atraso, então, como conservação de estruturas socioeconômicas mais orientadas para a sua própria reprodução que para a promoção de energias sociais e culturais capazes de modificar estilos de vida, tecnologias, necessidades ou hierarquias sociais” (p. 13).

Sociedade moderna, por oposição, seria uma sociedade capaz de competir com as mais avançadas na transformação dos processos produtivos, com seu reflexo no consumo, bem como capaz de competir na experimentação tecno-científica, tendo incorporado a mudança ao seu modo de vida. Essa seria uma sociedade que poderíamos chamar de culturalmente sofisticada, em que a atribuição de funções se dá por competência e não em função de outros critérios, em que tipicamente a mobilidade social é alta e na qual a divisão social do trabalho atingiu patamares elevados. Alta divisão social do trabalho, ou especialização, quer dizer alto grau de interdependência social e necessidade de desenvolvimento de mecanismos integrativos sofisticados. Especialização implica geralmente, também, especialização espacial da produção. Em termos econômicos, pois, uma alta divisão social do trabalho pressupõe a necessidade de um sistema de mercado sofisticado, com a passagem do escambo para a moeda e da moeda para o crédito, ou seja, o surgimento de um sistema monetário e creditício cada vez mais complexo, bem como implica o surgimento de um sistema de transporte sofisticado, e estruturas de comercialização igualmente sofisticadas, e, mais importante, a capacidade de a sociedade integrar seu espaço geográfico em algo que poderíamos chamar de um mercado nacional. O desenvolvimento rápido da ciência e da tecnologia pressupõe, ainda, uma autonomia da cultura e da ciência em face das instituições políticas e religiosas, isto é, a laicização da ciência e da cultura. Em resumo, uma sociedade moderna pressupõe crescente mobilidade, especialização e laicização da ciência e da cultura (Boudon & Bourricaud, 1982BOUDON, R. & BOURRICAUD, F. (1982) Dicionário Crítico de Sociologia. São Paulo, Ática, 1993. Primeira edição francesa, 1982. , p.362).

Pela listagem feita dos elementos constitutivos de uma sociedade moderna podemos perceber que a passagem do atraso para a modernidade não deve dar-se muito facilmente nem, tampouco, em geral, automaticamente. Um dos problemas é que deve abranger toda a sociedade, o que muitas vezes tem implicado mobilizá-la em torno de um projeto de mudança radical, difícil de ser executado, justamente por envolver mudanças e a quebra das rotinas tradicionais. Quais são os elementos que viabilizariam tal transição? Segundo Pipitone seriam basicamente duas as precondições a ser preenchidas para que tal transição possa ocorrer: “uma agricultura moderna e eficiente ... parece ser uma conditio sine qua non para a saída do atraso econômico; a outra, um Estado que tenha alcançado níveis relativamente elevados de consolidação política interna e eficiência administrativa, ou, dito de outra forma, a saída do atraso não tem sido possível a estados envolvidos em recorrentes episódios de corrupção e baixos níveis de organização burocrática” (p.20). Ambos os aspectos levantados por Pipitone são dos mais importantes, já tendo sido objeto de elaborada discussão no passado. O primeiro, o papel desempenhado pela agricultura, foi amplamente analisado por, entre outros, Paul Bairoch (Bairoch, 1963BAIROCH, P. (1963) Revolución Industrial y Subdesarrollo. Mexico, Sigla Veintiuno Editores, 1967. Primeira edição francesa, 1963. ). O segundo por Hobsbawm, Gerschenkron e por todos os que se ocuparam das industrializações tardias, em especial da Rússia e do Japão. A esses dois elementos, curiosamente Pipitone adiciona uma terceira característica da transição, qual seja que a saída do atraso não corresponde, geralmente, a um processo lento de acumulação progressiva de circunstâncias favoráveis.

3. O PAPEL DO ESTADO

Quanto ao papel do Estado, exceção feita à Inglaterra e à Dinamarca, em que o Estado desempenhou mais um papel de apoio que de liderança no processo de modernização, o que historicamente tem-se verificado é que, tipicamente, em países ditos atrasados, um papel primordial tem sido reservado ao Estado nesse processo. Faz sentido, visto que, afora a religião, a instituição que mais tem capacidade de mobilizar a sociedade para objetivos os mais diversos, desde guerra, até caça às bruxas (Alemanha nazista), é o próprio Estado. E, como bem observou Gerschenkron, quanto mais atrasada a sociedade tão mais importante será o papel que o Estado irá desempenhar nesse processo. São bem conhecidos os casos clássicos das modernizações pré-industriais lideradas pelo Estado tipificados pela Rússia de Pedro, o Grande, a Prússia de Frederico, o Grande, a França de Colbert, até Portugal de Pombal. Mais recentemente temos a Turquia de Kemal Ataturk, o Egito de Nagib e Nasser e o Irã de Reza Pahlevi. Não seria de estranhar, pois, que dadas condições favoráveis, o Estado tenha desempenhado papel importante, por exemplo, nos processos de industrialização tardia, como foi o caso da Alemanha, no século XIX, da Rússia, nos séculos XIX e XX, e do Japão, desde a restauração Meiji, sem falar do caso do Brasil, onde o Estado sempre esteve presente, embora em intensidades variáveis, desde a época de D. João VI.

Para que a mobilização patrocinada pelo Estado surta efeito, algumas condições devem ser satisfeitas, entretanto. Primeiramente, como enfatiza Pipitone, o Estado não pode estar muito envolvido em corrupção, como é o caso nigeriano, nem pode ser meramente predatório, como foi o Estado português nos séculos que se seguiram aos grandes descobrimentos. Em segundo lugar, os grupos que abocanharam o Estado não podem estar muito divididos entre si: precisa, no mínimo, haver uma unidade de propósito. Em terceiro lugar, não pode haver uma separação muito pronunciada entre esses grupos e o resto da comunidade, em termos de valores, língua, comportamento etc. É difícil conceber, numa Índia controlada por uma pequena burocracia inglesa, antes de sua independência, um processo de modernização liderado por essa burocracia, imaginando-se que esta tivesse tido um projeto semelhante a esse. Mesmo que os grupos governantes saiam da massa da sociedade, a mera proliferação de etnias complica demasiadamente o processo. É difícil conceber como um país como a Nigéria, fruto de meras conveniências administrativas britânicas, que abriga três grandes grupos étnico-linguísticos - os Hausas, os Ibos e os lombas - e uma dezena de outros grupos menores, em que as diferenças não são só linguísticas mas são também de religião (islamismo, cristianismo e animismo) e são visíveis até nos hábitos de vestir e comer, em que a desconfiança é a norma e, frequentemente, degenera em sangrentos confrontos tribais (a guerra de Biafra deixou um legado de mais de um milhão de mortos), possa ter um processo de modernização liderado pelo Estado que tenha algum sucesso. Como bem mostra Pipitone, numa sociedade desse tipo o Estado e seus cargos, tipicamente, são objeto de projetos individuais e grupais (tribais) de conquista para ter acesso às boas coisas da vida, que nada têm a ver com um amplo projeto de transformação de uma sociedade tradicional numa sociedade moderna.

Parece também claro que o projeto da elite que detém o poder, não só no julgamento desta, mas objetivamente, deve ser viável. Cito dois exemplos. Apesar de, no Brasil, o desenvolvimentismo ter sempre estado presente na mente dos que governaram o País desde, com certeza, 1937, a maneira proposta nem sempre parece ter sido a mais correta. Os diferentes governos que se sucederam durante todo esse período deram muita importância ao autarquismo, como se a solução de todos os males de um país atrasado estivesse na conquista da autarquia, especialmente da autarquia industrial. Em contrapartida deram muito pouca ênfase à educação das massas, para não dizer que a trataram com o mais absoluto desprezo; a educação das elites sempre foi objeto de grande preocupação e de tratamento especial, tratamento esse que ainda se vê hoje, com a insistência de garantir aos filhos dos detentores do poder educação superior gratuita, enquanto o sistema de ensino primário e secundário para a grande massa agoniza. Na percepção dessa elite certamente deve prevalecer a noção de que se pode construir um país moderno com parcelas significativas de sua população na mais total ignorância. Um outro exemplo. Desde a Revolução Cubana, os grupos que abocanharam o poder político naquela ilha mobilizaram quase que toda a população para um projeto que, afora alguns êxitos importantes, nas áreas da educação e saúde, culminaram por transformar o País num enorme cortiço, onde falta tudo: desde gasolina, cigarro, comida, roupa, produtos industriais dos mais simples, até livros, exceto os manuais didáticos e as obras “revolucionárias” que exaltam a elite governante e a pureza de seus propósitos bom-mocistas.

Admitindo-se que condições propícias estejam presentes para que o Estado possa liderar um tal processo, a pergunta que se faz é: quando é que as elites que detêm o poder do Estado se interessariam em promover um processo dessa natureza? A resposta que vamos encontrar em Rostow (Rostow, 1976ROSTOW, W.W. (1976) As Origens da Economia Moderna - Como Tudo Começou. São Paulo, Cultrix. ) é que as elites frequentemente embarcam nesse tipo de projeto quando sentem uma grande ameaça à sobrevivência nacional com a permanência do status quo. As preocupações de um Alexander Hamilton em acelerar, nos Estados Unidos de fins do século XVIII, uma industrialização pelo emprego de barreiras alfandegárias, estavam intimamente associadas à percepção que tinha das implicações econômico-militares que a RI inglesa estava provocando em termos de aumento do poderio militar da antiga metrópole, num período em que as relações políticas entre as duas nações estavam longe de ser tranquilas. Não muito depois, de fato, as duas se enfrentam num confronto militar (a guerra de 1812-1814) que teve entre seus fatos marcantes a tomada e queima de Washington pelos ingleses. A guerra da Criméia teve um efeito igualmente preocupante para a Rússia czarista, que embarca num projeto de reformas que, começando com a abolição da servidão e uma quase reforma agrária, incluirá a promoção de um sem-número de atividades industriais e de projetos ferroviários, indo culminar no megaprojeto da construção da Trans-Siberiana, e no povoamento da Sibéria com o excedente populacional da Rússia europeia, em princípios deste século. A abertura dos portos japoneses às “nações amigas” pelas canhoneiras do comandante Perry, em 1853, teve resultados igualmente traumáticos junto à burocracia japonesa de origem militar, que empreende o mais amplo projeto de que se tem conhecimento, de modernizar toda uma sociedade. O colapso do império otomano, depois da Primeira Guerra Mundial, foi fator determinante para que um grupo de jovens oficiais, liderados por Kemal Ataturk, embarcassem num amplo projeto de modernização do país, incluindo alguns· elementos que se tomaram mais costumeiros em tempos recentes, como o da limpeza étnica, das minorias gregas e armênias.

4. OS PAPÉIS DA AGRICULTURA E DA EDUCAÇÃO

É fácil perceber por que uma agricultura moderna deveria ser uma precondição importante para o sucesso na transição. Se esta se fizer via industrialização, não só a agricultura irá desempenhar as funções tradicionais que viabilizarão tal processo, como liberação de mão-de-obra, geração de mercado para produtos industriais, geração de capital para o setor emergente e produção de matérias-primas para a indústria nascente, como, mais importante, em se tratando de uma sociedade agrícola, como geralmente são as sociedades tradicionais, o fato de a agricultura ser moderna, nos moldes de uma Inglaterra, no século XVIII, ou de uma Dinamarca, no século XIX, indica que a sociedade como um todo já atingiu uma grande sofisticação em termos de aplicação de novas técnicas; indica que a inovação já faz parte do cotidiano de quase todos, e que, forçosamente, a atividade empresarial (no sentido que Schumpeter reserva ao termo) já envolve parcelas significativas da população. Não é de estranhar que as duas sociedades que, no século XVIII, apresentavam as agriculturas mais modernas para a época, Inglaterra e Holanda, fossem as duas sociedades pré-industriais em que as taxas de alfabetização de adultos eram as mais elevadas. A Inglaterra entre 1754-1762 tinha uma taxa de adultos alfabetizados da ordem de 51%. Essa taxa pula para 54% entre 1799-1804. Para Amsterdam uma taxa de 63% foi observada para o período 1729-1730 e de 74% para 1780 (Cipolla, 1969CIPOLLA, C. (1969) Instrução e Desenvolvimento no Ocidente. Lisboa, Ulisseia. , pp. 63- 7). Só para o leitor poder aquilatar o que isso significava, basta dizer que tais taxas de alfabetização de adultos só foram atingidas, no Brasil após 1950, isto é, só após 210 anos com relação à Inglaterra! Em 1832, na província de São Paulo, que na época englobava o que hoje seria o estado do Paraná, somente 4% a 5% da população adulta sabia ler. Não é de estranhar que as técnicas agrícolas aí empregadas eram das mais primitivas (Albuquerque, 1987ALBUQUERQUE, M.C.C. & NICOL, R. (1987) Economia Agrícola. São Paulo, McGraw-Hill. , pp.141-4). Nunca é demais lembrar a importância de uma população adequadamente instruída em qualquer processo de industrialização. As industrializações do século XVIII e de princípios do século XIX podem ter usado técnicas simples, se comparadas com as de hoje, mas tais técnicas não tinham nada de primitivas - certamente eram bastante complexas para as sociedades de então. Se tiver alguma dúvida acerca do assunto, convido o leitor a dar uma olhadela nas gravuras que retratam os processos industriais usados na Europa pouco antes da RI e que podem ser encontradas na Enciclopédia de Denis Diderot (Diderot, 1763DIDEROT, D. (1763) A Diderot Pictorial Encyclopedia of Trades and Industry (485 plates selected from l’encyclopedie of Denis Diderot). Nova York, Dover, 1959. Primeira edição francesa, 1763. ).

Qual a implicação de altas taxas de analfabetismo num processo de modernização? Primeiramente, a falta de um pool adequado de empresários em potencial. Atividades como a agrícola e a industrial são atividades cujo sucesso depende das decisões (acertadas) de milhares de empresários que, no mínimo, para poder inovar precisam, como bem enfatizou Schumpeter, ter conhecimentos técnicos adequados. Numa sociedade tradicional tais conhecimentos são absorvidos num lento processo de aprendizado de ofícios, no qual a alfabetização talvez tenha pouco peso. Numa sociedade em mudança, as coisas novas terão de ser aprendidas em livros, manuais, cartas, plantas e projetos. Tudo isso pressupõe a capacidade de ler e fazer contas. O analfabetismo, em segundo lugar, implica a inexistência de mão-de-obra qualificada para viabilizar esse processo de modernização. Isso quer dizer que este dificilmente deslanchará. Vale a pena aqui lembrar que as tentativas governamentais de implantar uma indústria siderúrgica “moderna” no Brasil que começaram no governo de Dª Maria I, passando por D. João VI, Pedro I e Pedro II, tiveram resultados quase que nulos, não por falta de empenho dos governantes, nem tampouco por falta de apoio financeiro (a fábrica de Ipanema, só para citar o caso mais conhecido, funcionou, com algumas interrupções, por mais de 70 anos até ser desativada pelos primeiros governos republicanos), mas por problemas de três naturezas: (i) estreiteza do mercado, (ii) dificuldades de transporte e (iii) problemas técnicos relacionados primordialmente com a falta de mão-de-obra adequada (Eschwege, 1833ESCHWEGE, W. L. (1833) Pluto Brasiliensis. Belo Horizonte, Itatiaia, 1979. Primeira edição alemã, 1833. , vol. 2., pp. 257-61, Gomes, 1983GOMES, F.M. (1983) História da Siderurgia no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia . , p. 34). As tentativas feitas nesse sentido, no século passado, tipicamente contaram com o concurso de técnicos e de mão-de-obra especializada provenientes da Suécia, da Alemanha e da França, entre outros países, recrutada a peso de ouro, e não somente no setor siderúrgico, como também nos demais setores industriais. Os maquinistas, bem como outros operários especializados nas tecelagens brasileiras do período, eram estrangeiros (Libby, 1988LIBBY, D.C. (1988) Transformação e Trabalho em uma Economia Escravista. São Paulo, Brasiliense. , p.238). Cito um outro exemplo bem esclarecedor. A Imperial Brazilian Mining Association, com mineração de ouro em Gongo Soco, Minas Gerais, empregou, entre 1826 e 1837, uma média de 636 operários, dos quais 136 (21,4%) eram estrangeiros (Libby, 1988LIBBY, D.C. (1988) Transformação e Trabalho em uma Economia Escravista. São Paulo, Brasiliense. , p. 297). Esses chamados “técnicos estrangeiros” encareciam, e muito, toda a atividade empresarial e não eram garantia de sucesso. Apesar de todos os esforços, o produto feito por uma fábrica como a de Ipanema sempre foi de baixa qualidade quando comparado com o produto estrangeiro.

Feitas essas colocações, acho difícil concordar com Pipitone no sentido de que as precondições para um processo de modernização seriam as duas que cita e que, tipicamente, o processo de modernização não corresponde a um lento acúmulo de pré-requisitos. Historicamente é verdade que a transição de sociedades tradicionais para sociedades modernas ocorreu rapidamente em muitos países, especialmente quando tal transição se deu através de um processo de industrialização. Se tomarmos a data de 1783, sugerida por Rostow, como data inicial da RI inglesa, temos que por volta de 1851, quando da realização de sua Grande Exposição, a Grã-Bretanha era certamente a grande potência industrial do mundo de então. Se tomarmos 1820 como a data inicial da RI americana, temos que 70 anos mais tarde os Estado Unidos já tinham ultrapassado a Inglaterra como a grande nação industrial do mundo. No caso alemão, a transição parece ter-se processado ainda mais rapidamente: em cerca de 40 a 50 anos. Se essa foi a experiência desses países, o mesmo não pode ser dito do Japão ou da Itália. Poderíamos chamar essas duas nações de industrialmente maduras às vésperas da Segunda Guerra Mundial? Tenho minhas dúvidas. Para encaminhar uma resposta, faço a seguinte pergunta. Estavam essas duas nações em condições de competir com os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou, mesmo, com a Alemanha em termos de desenvolvimento de equipamento bélico de ponta (para a época), como os artefatos nucleares, os motores a jato, as bombas voadoras, ou os processadores numéricos? Creio que não. Embora o Japão tivesse tido um grande sucesso na incorporação de tecnologia estrangeira, sua capacidade de desenvolver tecnologia própria, à época, era ainda meio limitada. Seu desenvolvimento tecnológico, no período, chega a ser interessante, sem ser assombroso (Unesco, 1971UNESCO (1971) Technological Development in Japan. Paris, Unesco. , pp. 38-41). O mesmo provavelmente valia para a Itália. Essa certamente não era a situação da Alemanha. Embora tivesse iniciado sua industrialização meio tardiamente, a ciência moderna fazia parte de seu cotidiano há quase tanto tempo quanto na Inglaterra ou na França. A ciência e a tecnologia modernas só chegaram ao Japão com os canhões de Perry. A incorporação da ciência e da técnica modernas a uma sociedade atrasada leva tempo. Exige, no mínimo, a criação de instituições de ensino e pesquisa, com seus respectivos corpos de docentes e pesquisadores e a manutenção dessas instituições por algumas gerações, até criarem raízes e começarem a gerar conhecimento próprio. Essa não é uma tarefa das mais fáceis. Até pode ser fácil para um país atrasado criar, pelo menos no papel, instituições dessa natureza, como expressão dos desejos dos governantes do momento. O difícil é viabilizá-las a longo prazo. A Estatística, creio que todos concordam, é uma das áreas mais importantes para qualquer sociedade moderna, sendo essencial desde para o controle de processos industriais até para os levantamentos de popularidade de programas de TV. Como área semiautônoma da Matemática Aplicada já existe há mais de um século. Nesse período seria de esperar que as sociedades modernas tivessem tido tempo para incorporá-la, com sucesso, aos seus programas de ensino e pesquisa. Esse parece não ter sido o caso. Afora o mundo anglo-saxônico, onde teve origem e se desenvolveu rapidamente, a sua absorção por outras sociedades tem sido lenta. Testemunho disso são as contribuições originárias dessas outras sociedades. São poucos os nomes de alguma expressão em Estatística que não são originários do mundo anglo-saxônico ou de suas áreas de influência cultural, incluindo-se, aí, a Índia.

5. CONCLUSÃO

O que estou querendo dizer com tudo isso é que existe uma série de outras precondições que levam tempo para se concretizar, e sem as quais o processo de transição está fadado a ser lento. O Brasil é um caso em questão. Em princípios do século passado era um país pobre. As estimativas mais otimistas colocam a renda per capita brasileira da época em tomo de 1/7 da renda inglesa. Além de pobre, era um país, culturalmente, atrasadérrimo. A política cultural portuguesa com relação à colônia tinha sido das mais obscurantistas. Diferentemente das colônias espanholas, que, desde cedo, tinham tido a instalação de escolas de ensino superior, aqui no Brasil o surgimento dessas instituições havia sido obstaculizado, só se dando o seu aparecimento a partir da liberalização política, econômica e cultural promovida pela vinda da família real para o Brasil em 1808. Só a partir de 1808 é que surge, também, a possibilidade de se imprimirem livros no País. A europeização da sociedade só se torna viável a partir do mesmo evento que abriu os portos do País às “nações amigas”. As técnicas produtivas eram das mais primitivas, estando solidamente ancoradas numa ignorância monumental. A taxa de alfabetização, como já mencionei acima, andava por volta dos 4% da população adulta, só melhorando, um pouco, talvez, em centros urbanos, como o Rio de Janeiro ou Salvador. O padrão de vida pouco tinha a ver com os padrões europeus. Para dar um exemplo, as casas que carinhosamente chamamos de coloniais eram pardieiros de chão batido raramente cobertas de telhas, com pouquíssimos móveis: uma mesa com uma ou duas bancadas, um baú para guardar a roupa domingueira, algumas redes e umas esteiras para dormir no chão. O que se chamava de cozinha era um canto da sala onde se fazia fogo, cuja fumaça escapava pelo teto, cobrindo de fuligem o aposento. O vidro, como elemento de construção civil, era praticamente desconhecido. As janelas eram fechadas por rótulas que tomavam o interior das casas excepcionalmente escuro (Nizza da Silva, 1993NIZZA DA SILVA, M.B. (1993) Vida Privada e Quotidiano no Brasil (na época de Dª Maria I e D. João VI). Lisboa, Editorial Estampa. , pp. 205-16). Essa era uma realidade que nada tem a ver com a versão de Hollywood do passado colonial latino-americano que alguns historiadores parecem ter incorporado ao seu imaginário, e, segundo os quais, a partir da independência, tudo era possível. Segundo esses historiadores, também, se as coisas aqui não ocorreram nos moldes norte-americanos deve ter sido por efeito do imperialismo britânico e da subserviência das elites locais ao capitalismo internacional. Não foi nada disso. Esse país, desprovido de educação, de livros, periódicos, de técnicas mais ou menos modernas, de um mercado minimamente integrado e de um mercado de trabalho livre, mesmo que tivesse tido uma elite das mais sapientes do mundo, uma elite partidária do Iluminismo e cultora das forças do progresso, no melhor estilo condorcetiano, teria encontrado dificuldades monumentais a superar rumo à modernização. Não tinha como opção nenhum processo de industrialização nem a curto nem a médio prazo. Tinha, sim, que esperar o crescimento, como sensatamente observou Furtado, do mercado internacional para algum produto tropical para, a partir deste, com o passar do tempo, viabilizar o preenchimento dos pré-requisitos que tomariam sua transição rumo à modernidade viável. E, quando esta se inicia, não poderia se dar senão de uma forma parcial, geradora da sociedade dual observada por Pipitone. A industrialização, quando começa a ocorrer, dá-se de forma lenta, não por falta de apoio governamental, mas por falta de condições técnico-econômicas adequadas. Diferentemente de outros países, que podem ter tido períodos de livre-cambismo que, à semelhança da Itália, podem ter prejudicado seu desenvolvimento industrial, desde a reforma tarifária de Alves Branco (1844) o Brasil nunca teve um período de baixas tarifas alfandegárias. Entre 1870-1875 e 1907-1913 estas cresceram, em termos reais, mais de 100% (Versiani, 1980VERSIANI, F.R. (1980) “Industrialização e economia de exportação: a experiência brasileira antes de 1914”. Revista Brasileira de Economia, 34, jan./mar. 1980. , p. 24). Elas sempre cresceram, quer por crença de seus proponentes na necessidade do protecionismo para viabilizar a indústria nacional (as tarifas Wanderley, de 1857-1858, Rio Branco, de 1870, Assis Figueiredo, de 1879, Belisário de Sousa, de 1887, Rui Barbosa, de 1890, e assim por diante, eram nitidamente protecionistas), quer por imperativos fiscais relacionados com as necessidades do governo central em arcar com as despesas crescentes de intervenções externas (Argentina/Uruguai - 1851-1852, Uruguai - 1864-1865) e de uma guerra (Guerra do Paraguai - 1864-1870), bem como de problemas internos (a Revolução Federalista de 1892, a Revolta da Armada de 1893, e a Guerra de Canudos de 1897), quer pela total incapacidade de gerar recursos que não através da tributação do setor externo.

Diferentemente de outras nações em que se acreditava em algo como nos benefícios do mercado, livre de intervenções governamentais, no Brasil, desde D. João VI, sempre se acreditou no efeito milagreiro dos incentivos e do apoio governamental. É assim que se tenta estabelecer uma indústria siderúrgica no País: com recursos governamentais. É assim que se processa a modernização da indústria açucareira nordestina, no governo de Pedro II: com recursos do governo central. É assim que o grosso das ferrovias é implantado: com garantia do Governo quanto a um retorno de 5% a 7% ao ano sobre o capital empatado. É assim que muitas indústrias têm sua viabilidade garantida: com subsídios dados pelo governo imperial, que se interessa em prestar esse tipo de auxílio desde os anos 40 do século passado (Lobo, 1978LOBO, M.L. (1978) História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro, IBMEC. , vol. 1, p.116). Apoio governamental também não faltou para viabilizar a importação de máquinas e matérias-primas com taxas alfandegárias praticamente nulas. Apoio governamental também não faltou na criação de um mercado financeiro moderno. O primeiro banco brasileiro é um banco estatal (Banco do Brasil - 1808).

Volto a repetir, se a indústria não deslanchou em moldes germânicos no Brasil do século XIX, não foi por falta de amparo governamental, nem devido à adoção de políticas econômicas visivelmente equivocadas, como na Itália pós-unificação. Foi, antes de mais nada, devido à ausência de elementos técnico-econômicos que viabilizassem um surto industrial nos moldes da Alemanha. Em que podemos criticar os governos do século passado? Talvez por não terem feito mais do que fizeram. Talvez por terem atrasado o surgimento de um mercado de trabalho livre. Mas aí tenho minhas dúvidas. O Governo fez o que era viável dentro das limitações orçamentárias de um país pobre e dentro das restrições políticas de um país escravagista. O processo de abolição da escravidão, começando em 1850, terminou em 1888. No mesmo período, a Rússia, que iniciara seu processo de abolição da servidão por volta de 1861, no entanto, só terá terminado o referido processo por volta de 1905. A escravidão no País terminará 27 anos depois de ter sido abolida nos Estados Unidos, sem a perda das 700 mil vidas que a Guerra Civil causou. A única perda, no caso do Brasil, foi a do trono pela Casa de Bragança.

O ponto de partida

Disso tudo o que podemos concluir? Que o ponto inicial das políticas de modernização de uma sociedade é crucial na determinação de seu curso. O processo de modernização foi um processo de transformação (e de europeização das sociedades não-europeias) que, começando em fins do século XVIII, na Inglaterra, vai-se alastrando geograficamente, atingindo as demais sociedades em momentos diferentes de sua evolução, isto é, em diferentes condições de poder absorver e digerir as mudanças em curso. Algumas, como o Brasil, eram muito atrasadas para poder absorver a totalidade das mudanças que viabilizariam o surgimento de uma sociedade moderna. Nessas sociedades, as transformações só poderiam ser parciais e lentas, levando ao surgimento de sociedades duais (com todos os prejuízos e custos sociais implícitos nessa situação), caracterizadas pela coexistência de um setor razoavelmente moderno e de uma massa mais ou menos grande da sociedade presa a formas tradicionais de organização da vida econômica. O problema que surge a partir dessa situação é de como integrar esses “remanescentes” tradicionais da sociedade ao mundo moderno. Aqui, acredito que Pipitone tem razão em apontar a falha de sociedades como a brasileira, a mexicana e a indiana em não promover, quando se fazia necessário, reformas de base, em especial uma reforma agrária em moldes japoneses, reforma esta que, no momento apropriado (digamos, a partir dos anos 30, no Brasil), poderia ter viabilizado o surgimento de um mercado de massas para produtos industriais, suavizado a maciça migração campo-cidade que achatou os salários dos trabalhadores não-especializados, levando ao surgimento de disparidades absurdas na distribuição de rendas nesses países, bem como minimizado a urbanização caótica que se instalou nas grandes cidades desses países. Tivesse a burocracia do Estado acreditado mais na educação das massas, também o crescimento populacional teria começado a cair mais cedo, sem as consequentes pressões sobre as cidades e sobre os salários mais baixos.1 1 Mas isso, para o Brasil, seria pedir demais. A classe média, que de assalto tomou conta dos aparelhos do Estado desde os anos 30, nunca acreditou muito na educação das massas, como também nunca viu com bons olhos uma redução acentuada nas taxas de fertilidade das classes mais baixas, vendo as poucas tentativas que foram feitas nesse sentido por órgãos como a Benfam como uma inaceitável interferência dos países ricos e de instituições como a Fundação Ford nos assuntos do País. Em contrapartida essa mesma burocracia, como observei acima, sempre foi muito zelosa em garantir toda a sorte de privilégio para si e para seus filhos, inclusive um boa educação superior totalmente financiada pelos cofres públicos e, é claro, nunca acreditou na racionalidade de muitos filhos para si.

Isso dito, o que podemos dizer do livro de Pipitone? Que certamente este levanta uma série de pontos que dão margem a divergências, como seria de esperar num tema como esse. Entretanto, a forma de abordar o problema é correta, a abrangência em termos comparativos é adequada, a bibliografia consultada é atualizada e os elementos essenciais do processo de modernização são corretamente identificados pelo autor. No todo é um livro de cuja leitura muito proveito se pode tirar. É uma adição importante à literatura existente que será muito bem recebida pelos estudiosos da área. No que vale meu testemunho, muito apreciei e muito aprendi com sua leitura.

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    Mas isso, para o Brasil, seria pedir demais. A classe média, que de assalto tomou conta dos aparelhos do Estado desde os anos 30, nunca acreditou muito na educação das massas, como também nunca viu com bons olhos uma redução acentuada nas taxas de fertilidade das classes mais baixas, vendo as poucas tentativas que foram feitas nesse sentido por órgãos como a Benfam como uma inaceitável interferência dos países ricos e de instituições como a Fundação Ford nos assuntos do País. Em contrapartida essa mesma burocracia, como observei acima, sempre foi muito zelosa em garantir toda a sorte de privilégio para si e para seus filhos, inclusive um boa educação superior totalmente financiada pelos cofres públicos e, é claro, nunca acreditou na racionalidade de muitos filhos para si.
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    Pipitone, Ugo (l994) La Salida dei Atraso: Um Estudio Histórico Comparativo. México: Fondo de Cultura Económica.
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    JEL Classification: Y30; O10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1995
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