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Os fundamentos microeconômicos dos indicadores de desenvolvimento socioeconômico

The microeconomic elements of the socioeconomic development indicators

Resumo

Neste artigo, sugiro o uso de modelos não convencionais de escolha e produção, para sustentar a construção e o emprego de números de índice. Recomendo o uso do modelo de produção proposto por Georgescu-Roegen e um modelo de escolha que reconheça a existência de critérios irredutíveis. Também se destacam a distinção entre fluxo e estoque e entre serviços e fluxos de bens dos fundos, produzidos ou consumidos em atividades de transformação. Os fluxos podem frequentemente ser associados a atividades de produção. Portanto, pode-se aplicar princípios derivados da teoria da produção. As implicações correspondentes, com relação à escolha dos números de índice, são discutidas. Outra conclusão deste artigo é a necessidade de considerar números de índices, associados à satisfação de necessidades básicas, no desenho de programas sociais. Os índices de pobreza também são discutidos para ilustrar alguns dos pontos levantados no artigo.

Palavras-chave:
Indicadores de desenvolvimento; índice de pobreza de Sen; mensuração da pobreza

Abstract

In this paper, I suggest the use of non-conventional models of choice and production, to underlie the construction and employment of index numbers. I recommend the use of the model of production proposed by Georgescu-Roegen and a model of choice, that acknowledges the existence of irreducible criteria. Also stressed, are the distinction between flow and stock and between funds’ services and flows of goods, that are produced or consumed in transformation activities. Flows can frequently be associated to production activities. Therefore, one can apply principles derived from Production Theory. The corresponding implications, with respect to the choice of index numbers, are discussed. Another conclusion of this paper, is the necessity of considering index numbers, associated to the satisfaction of basic needs, in the design of social programs. Poverty indices are also discussed to illustrate some of the points raised in the paper.

Keywords:
Development indicators; Sen poverty index; poverty measurement

1. INTRODUÇÃO

Os indicadores econômicos e sociais têm a finalidade principal de permitir a avaliação da situação e evolução de uma comunidade em seus vários aspectos. É evidente que o uso de determinado indicador deveria ser precedido por uma tentativa de compreensão de seu significado e de suas limitações. Para isso, seria necessário que cada indicador seja analisado conforme sua fundamentação teórica e seus componentes principais.

Neste artigo, procurarei abordar esses temas, discutindo os fundamentos do processo de elaboração e utilização de indicadores. Os instrumentos básicos de análise deverão ser a teoria da escolha e a teoria da produção. Serão analisados também alguns dos conceitos básicos utilizados. Paralelamente, será apresentado o modelo mais apropriado para mostrar a relação entre fatores causais e indicadores de satisfação de objetivos. Com relação a estes últimos, procurarei também sugerir o modelo de escolha individual mais indicado em cada caso, o qual poderia fundamentar a escolha de indicadores e sua interpretação. Um ponto a ser destacado é que os modelos de produção e de escolha sugeridos, serão eventualmente, diferentes dos usuais.

De uma maneira genérica, podemos afirmar que os indicadores procuram medir o grau de atendimento de objetivos e o nível de realização de atividades. Conforme Costa (1975COSTA, T.C.N.A. (1975). “Considerações teóricas sobre o conceito de indicador social: uma proposta de trabalho”, Revista Brasileira de Estatística, 34.), um pressuposto implícito à utilização de indicadores, é o de que cada um esteja perfeitamente referido ao conceito que deve descrever. De acordo com Durkheim (citado por Costa, 1975COSTA, T.C.N.A. (1975). “Considerações teóricas sobre o conceito de indicador social: uma proposta de trabalho”, Revista Brasileira de Estatística, 34.) o indicador deve ser adequado ao estudo do conceito e ao mesmo tempo ser mensurável. Com respeito ao primeiro aspecto, devemos considerar o problema de encontrar um indicador que efetivamente sirva para descrever completamente o conceito. Quando este tem facetas múltiplas será muito difícil encontrar um único indicador que satisfaça esse requisito. Nesse caso será necessário empregar diversos indicadores, cada qual voltado para a descrição de uma particular dimensão do conceito em pauta. Temos aí, claramente, a necessidade de efetuar uma escolha entre a operacionalidade assegurada por um único indicador e o eventual ganho de informação assegurado pela utilização de múltiplos indicadores parciais.

Quanto à questão da mensurabilidade do indicador, deve-se ter o cuidado de interpretar corretamente essa noção. Como sabemos, há diferenças importantes quanto ao grau de mensurabilidade de determinado conceito. Há as chamadas medidas cardinais, as medidas quase cardinais e as medidas ordinais.

Evidentemente, a caracterização da classe de medida à qual corresponde determinado indicador é relevante quando se trata de utilizá-lo em comparações entre diferentes grupos sociais. Os indicadores econômicos e sociais (indicador social é uma “medida de fenômenos sociais que são transeconômicos. O indicador social é normativo e integrado num sistema de informação consistente” (Cazes, 1972CAZES, B. (1972). “The development of social indicators: a survey”, in SHONFIELD & SHAW (orgs.) Social indicators and social policy, SSRC.: 14, citado por Costa, 1971) e tem como uma de suas principais finalidades propiciar meios para formulação de objetivos e prioridades. Isto se segue naturalmente, tendo em vista que será através desses indicadores que se poderá concretizar a realização de um diagnóstico compreensivo da situação e evolução de determinado sistema econômico e social. Como é evidente, o cumprimento dessa função poderia ser facilitado se o indicador em questão tiver uma medida cardinal. Como exemplo das dificuldades impostas por uma medida ordinal, podemos mencionar a questão da comparação de medidas ordinais de bem-estar referentes a diferentes grupos sociais.

A definição de indicadores é condicionada pelos requisitos impostos para a descrição do conceito. Isso significa que cada indicador está colocado na dependência de um modelo teórico aceito para descrever determinado fenômeno. Exemplificando: um indicador de pobreza deverá refletir as propriedades impostas através de um modelo teórico apropriado. Um indicador como o de proporção de pobres, portanto, reflete a noção de que tal relação poderia representar a pobreza em uma certa comunidade. Outro indicador como o de Sen (1976SEN, A. (1976). “Poverty: an ordinal approach to measurement”, Econométrica, 44.), procura satisfazer os axiomas de monotonicidade e de transferência, que respectivamente consideram alterações de renda de pessoas pobres e transferências de renda entre elas. Portanto, um índice de pobreza é o resultado da concepção de um modelo teórico que explicita relações consideradas relevantes para compreensão do fenômeno de pobreza. Os axiomas que fundamentam o modelo podem evidentemente ser normativos, portanto, incorporando juízos de valor. Não é difícil perceber que quanto mais complexo o conceito que se está procurando descrever, tanto mais indispensável a especificação precisa de um modelo teórico que deve incluir de maneira explícita os postulados que o indicador procurado deverá satisfazer.

Como foi visto anteriormente, os índices econômicos e sociais devem servir inicialmente para realização de diagnósticos acerca da situação econômica e social de uma comunidade. Adicionalmente, devem permitir a identificação de possíveis pontos de estrangulamento no atendimento de necessidades sociais específicas. Essas observações têm relevância em relação ao objetivo central deste estudo: analisar os processos de escolha e produção como fundamentos teóricos essenciais subjacentes à definição de indicadores. Isso significa que para cada conceito que se pretende representar através de índices levam-se em conta seus principais determinantes. Em outras palavras, deve-se incorporar explicitamente, nos procedimentos de elaboração e interpretação dos índices relativos a determinados conceitos, os principais fatores envolvidos em sua definição. Portanto, é necessário, para cada conceito descrever e explicar sua determinação em termos de seus principais fatores causais.

Como exemplo podemos citar o caso da educação. Mesmo sem especificar a modalidade de educação em pauta, podemos considerar que seu nível de realização será determinado pela intensidade de utilização de fatores associados à oferta dos serviços de educação. Como é evidente, a especificação dos principais fatores explicativos, assim como a escolha da forma funcional mais apropriada, requer a realização de estudos por parte de especialistas da área em questão. Assim, no caso da educação, podem ser nomeados como possíveis fatores causais, o número de professores, número de salas de aula, quantidade ou valor dos livros e cadernos utilizados, grau de ocupação de professores e de salas de aula etc. Considerações similares poderiam ser feitas com respeito a outras atividades correspondentes a outros objetivos ou necessidades comunitárias. Neste artigo procurarei mostrar que, genericamente, a tarefa de escolha e utilização de indicadores, poderá ser facilitada por lições derivadas do uso de modelos apropriados de produção e de escolha. Um ponto que procurarei enfatizar é a necessidade de incorporação de cuidados técnicos básicos na elaboração e interpretação dos indicadores.

O restante do artigo está organizado como se segue. Na seção 2 é apresentada uma breve discussão acerca da caracterização de medidas de fluxo e de estoque. Na seção 3 é apresentada uma descrição sucinta do modelo de produção mais apropriado para fundamentar o processo de elaboração e interpretação de indicadores. A seção 4 é dedicada à discussão de questões referentes à distinção entre indicadores de objetivo e de atividade. A seguir, é abordada a relação entre essas classes de indicadores e a escolha de instrumentos de intervenção. Na seção 5 são abordados aspectos particulares associados à renda, entendida como medida de bem-estar. Finalmente, a seção 6 conclui o trabalho.

2. DISTINÇÃO ENTRE MEDIDAS DE FLUXO E DE ESTOQUE

Embora as noções de fluxo e de estoque tenham um conteúdo intuitivo aparentemente claro, observam-se frequentemente situações em que esses conceitos são empregados de forma equivocada. Uma definição muito difundida é a expressa por Fisher (citada por Georgescu-Roegen, 1971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: 22): “Estoque se refere a um ponto no tempo, fluxo a um período de tempo”(minha tradução). Outra definição encontrada na literatura associa a noção de fluxo à diferença entre os estoques de dada substância em dois momentos distintos (Georgescu-Roegen, 1971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: 221). Estas definições, entretanto, ocultam uma diferença conceitual fundamental entre ambos os conceitos: a ideia de fluxo está frequentemente ligada à de mudança, característica que pode ficar encoberta quando se utiliza uma das definições citadas acima. Tendo essa preocupação em mente, Georgescu-Roegen (l971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: 223,224) sugere relacionar o fluxo a apenas um estoque, propondo a seguinte definição: “fluxo é um estoque distribuído por um intervalo de tempo” (minha tradução). A representação analítica de fluxo seria dada pelo par (S,T), onde S é um estoque e T é um período de tempo. É esta definição de fluxo que adotaremos no restante deste trabalho.

Essa distinção entre as noções de fluxo e de estoque é relevante também para compreender a diferença existente entre conceitos representados por índices que descrevem mudanças observadas em dado intervalo de tempo e níveis atingidos por determinada variável. Por exemplo, o número de engenheiros existente em dado instante corresponde claramente a uma medida de estoque. O número de formandos em engenharia em dado ano é uma medida de fluxo. Os dados correspondentes ao número de salas de aula e número de professores em cursos de engenharia, assim como informações referentes ao seu grau de ocupação e tempo de utilização devem ser relacionados à variável fluxo (nº. de formandos) e não à variável estoque (nº. de engenheiros). Isso se deve evidentemente ao fato de aquelas variáveis serem associadas a um processo de mudança, no caso referente à “produção” de conhecimento.

Essas considerações sugerem a execução de uma classificação cuidadosa das diversas variáveis que serão objeto do processo de construção de índices. Da mesma forma, a própria utilização destes deverá levar em conta a sua vinculação a uma noção de fluxo ou de estoque. Assim, por exemplo, uma escala de prioridades com referência a um conjunto de objetivos de política econômica e social deve, frequentemente, ser realizada em termos de indicadores de estoque. Será esta classe de índices que poderá mostrar o estágio de realização daqueles objetivos que se referem a um determinado ponto no tempo, como por exemplo, o número de alfabetizados, o estado nutricional de crianças, acesso à água tratada etc. Outros atributos que também contribuem para caracterizar a situação econômica e social de determinada comunidade, e que, portanto, também são relevantes para a elaboração de uma ordenação de prioridades, dizem respeito a variáveis de fluxo. Como exemplos podemos mencionar os indicadores de mortalidade infantil, os índices de morbidade, o PIB, o nível de investimento, o volume de poupança etc.

A importância de se distinguir as variáveis de fluxo das de estoque está relacionada principalmente ao levantamento dos principais fatores causais associados a cada conceito. Em outras palavras, a identificação dos principais estrangulamentos a obstruir a realização de determinado objetivo requer, antes de mais nada, que este seja associado a um indicador de estoque ou de fluxo. Somente a partir desse passo poderá ser empreendida a tarefa de relacionar cada objetivo com determinadas atividades e fatores associados à sua satisfação. Em particular, é preciso considerar que a noção de produção está ligada à de fluxo. Segue-se que os processos de produção daqueles elementos que podem ser associados a um conceito de fluxo, implicam uma caracterização específica dos indicadores que lhes estão associados.

Com relação àqueles elementos relacionados à noção de estoque, há dificuldades maiores quando se pretende estabelecer qualquer generalização. A evolução das medidas de estoque poderá depender de elementos institucionais, demográficos, jurídicos etc., além do comportamento das medidas de fluxo associadas. Exemplificando: o número de engenheiros ativos é afetado pelo número de formandos em determinado ano e nos anos anteriores. Adicionalmente, depende dos fluxos migratórios em cada período, assim como das regras de aposentadoria e número de óbitos.

3. A PRODUÇÃO DE SATISFAÇÃO DE OBJETIVOS

Para que o conjunto de indicadores de atividades, de objetivos e de fatores referentes a uma determinada comunidade tenha significado é preciso examinar o seu relacionamento funcional. Em particular, é necessário formular algo semelhante a uma função de produção de satisfação de cada um daqueles objetivos que podem ser interpretados como variáveis de fluxo. É necessário destacar que será somente com relação àqueles que poderemos formular relações funcionais parecidas com o conceito de função de produção. Isso implica, evidentemente, que para cada objetivo representável por uma variável de fluxo deveremos ter um modelo teórico bem definido. Embora esses modelos tenham características que dificultam a realização de um trabalho de generalização, é possível, não obstante, apresentar um conjunto de princípios básicos que devem nortear a tarefa de construção e interpretação dos indicadores correspondentes.

Antes de mais nada, é preciso levar em conta a existência de inter-relações complexas entre objetivos e atividades. Por exemplo, o objetivo representado pela mortalidade infantil poderia ser determinado por variáveis como nutrição das crianças e das mães, educação dos pais, saúde pública, condições de saneamento etc. Cada uma destas variáveis poderia representar por sua vez também um objetivo a ser atingido, sendo determinado por um, conjunto específico de fatores.

Cabe, em cada caso, ter o cuidado de traçar uma fronteira imaginária, para isolar o fenômeno em estudo. Voltando ao exemplo acima, se o interesse tópico for dado em relação à variável “mortalidade infantil”, poderíamos considerar a variável “educação dos pais” como exógena e estudar como ela interfere no mecanismo de determinação da variável “mortalidade infantil”, sem a preocupação de estudar seus próprios determinantes.

Para se estudar o processo de determinação do nível de determinado indicador de objetivo, convém empregar lições derivadas da teoria da produção. Podemos em particular, fazer uso de princípios expostos por Georgescu-Roegen (1971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: cap. 9) em sua crítica à função de produção neoclássica. Assim devemos distinguir duas classes de fatores, os fundos de serviços e os fluxos associados ao processo de produção. Os primeiros são os agentes do processo, não sendo nem produzidos, nem consumidos pelo mesmo. Como exemplo podemos citar a terra, a mão-de-obra, as edificações, os equipamentos. Os fluxos, relacionados a um processo de produção ou de mudança, dizem respeito àqueles elementos que são objeto de transformação pelo processo de produção. Como exemplos podemos relacionar as matérias primas, os recursos naturais, os resíduos e o próprio produto final do processo. Como é evidente, o papel desempenhado por essas duas classes de fatores, em qualquer processo de transformação, é radicalmente distinto. Esse fato também tem relevância em relação aos diversos índices econômicos e sociais. Em particular, isso tem implicações significativas quando se trata de empregar índices relativos a fatores específicos como “proxi”, de variáveis que representariam o nível de determinada atividade ou de atendimento de certo objetivo.

Para exemplificar as considerações acima, podemos tomar o caso em que o número de professores de primeiro grau, ou a relação professor-aluno, seriam tomados para representar o nível da atividade de educação de primeiro grau. Os professores poderiam ser tomados como agentes do processo de “produção” de educação. Sendo assim, sua contribuição a esse processo seria dada pelos serviços prestados. Estes, por sua vez seriam determinados pelo produto da quantidade de professores pelo seu tempo de utilização. Portanto, a participação dos professores no processo de educação de primeiro grau seria afetada pela existência de eventual desemprego desse fator, assim como pela sua jornada de trabalho.

Considerações semelhantes poderiam ser feitas com respeito ao papel desempenhado, por exemplo, pelas salas de aula ou por equipamentos vinculados ao processo de educação em pauta. A lição que deve ser extraída dessas considerações é que o número de professores, quantidade de salas de aula, área construída das escolas etc., são insuficientes para representar o nível da atividade de ensino. Isso se deve à omissão do tempo de utilização, o qual é absolutamente essencial para completar a especificação da intensidade de emprego desses fatores e, portanto, para representar o nível da atividade em questão.

Há ainda uma razão adicional, para se rejeitar a utilização da quantidade de determinados fundos de serviço, a fim de representar o nível de determinada atividade. Esta tem a ver com a própria caracterização do processo de produção em tela. Assim, poderíamos ter o caso da existência das chamadas “limitacionalidades” na especificação de determinado processo. Isto é, poderemos ter uma situação em que determinado fator seria redundante em relação a determinada atividade pela falta de uma quantidade suficiente de um fator complementar. Este caso é típico dos processos de produção com coeficientes fixos, quando o nível de execução de certa atividade requer determinados fatores, numa proporção pré-determinada. Nesta circunstância, um aumento na quantidade disponível de determinado fator, na ausência de outros, não representaria necessariamente um acréscimo no nível da atividade que estaria sendo considerada.

Diferente do exposto acima, seria o relacionamento entre o nível de determinada atividade e a quantidade utilizada de elementos que seriam objeto de transformação pelo processo em pauta. Assim, por exemplo, a quantidade de certa matéria prima, consumida em certo processo, poderia representar eventualmente seu nível de realização. Mesmo assim, seria necessário estar atento a possíveis alterações na eficiência com que seria conduzido determinado processo, frente a mudanças em sua intensidade.

Como é evidente, a identificação dos elementos que são transformados através do processo em pauta e dos que funcionam como agentes desse mesmo processo obedece a um critério relativo. Será o intervalo de tempo associado à “produção” de uma unidade, ou ao nível unitário da atividade em questão, que poderá nos auxiliar na tarefa de distinguir os fundos de um processo dos elementos de fluxo do mesmo. Será, portanto, através da comparação entre aquele intervalo de tempo e o período de vida útil dos diversos fatores que poderemos determinar uma linha divisória, na definição das duas classes de elementos.

Vale ressaltar também que a questão da depreciação física de fatores, como por exemplo dos equipamentos, pode ser contornada com o artifício da consideração de serviços e fluxos de manutenção que seriam introduzidos no processo, para manter intacta a capacidade de utilização dos fundos de serviços (Georgescu-Roegen, 1971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: 230). Uma lição adicional também importante que pode ser derivada da teoria da produção diz respeito à definição do chamado processo elementar (Georgescu-Roegen, 1971GEORGESCU-ROEGEN, N (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge University Press, Cambridge.: 235 e 236). Este diz respeito ao processo de produção de uma unidade. O processo elementar estaria assim associado a um intervalo de tempo pré-determinado. Qualquer sistema de produção seria então concebido como uma composição de processos elementares.

Um exemplo que pode nos auxiliar a esclarecer esse ponto se refere à “produção” de educação. O processo elementar de “produção” de um secundarista envolveria um intervalo de tempo de pelo menos oito anos. Mesmo assim, podemos fazer referência a um fluxo anual de “produção” de secundaristas porque os processos elementares são arranjados em linha. Isto é: não é necessário esperar oito anos após o início de determinado processo elementar, para iniciar outro. Podemos fazê-lo já, após o primeiro ano e sucessivamente ano após ano e assim contar em cada ano com turmas que estariam no seu primeiro, segundo, terceiro ... anos de aprendizado.

Essa característica tem implicações também para interpretação e uso dos índices que refletem a atividade de ensino de primeiro grau. Para aumentar o fluxo de “produção” de secundaristas poderá ser insuficiente incrementar unicamente a atividade de ensino para alunos da oitava série. Poderá, possivelmente, ser necessário ajustar o nível de atividade em cada uma das séries precedentes para se atingir um novo nível de equilíbrio da atividade de “produção” de secundaristas. Considerações semelhantes podem também ser feitas com relação ao ensino universitário. Portanto, um aumento de “produção” de bacharéis, poderia eventualmente, exigir um esforço dirigido no sentido de se obter um aumento nos níveis de atividade desenvolvidos com relação aos ensinos de primeiro e segundo graus. Assim, por exemplo, a menos que haja um excedente de formandos do segundo grau que não encontram vaga nas universidades, teremos que esperar pelo menos quinze anos para obter um aumento no fluxo de “produção” de bacharéis.

Podemos perceber, portanto, com clareza, que esse enfoque poderá ser útil no emprego dos índices conhecidos e para propor a elaboração de outros. A identificação de pontos de estrangulamento para obtenção de maiores níveis de determinadas atividades, ou alcance de maiores graus de atendimento de certos objetivos, poderia assim ser facilitada pela compreensão da relação entre fundos de serviços e fluxos de insumos transformados por cada processo, assim como pela consideração do fator tempo. Por outro lado, como vimos, a própria adequação de determinados indicadores, para representar do nível atingido por atividades ou objetivos específicos, poderá ser mais bem aferida mediante a utilização desse instrumental de análise.

Outras considerações são pertinentes quando se trata de analisar indicadores de satisfação de objetivos sociais. Será interessante incorporar lições derivadas da teoria da escolha. Se o objetivo final da atividade econômica é a “produção” de bem-estar, é necessário interpretar cuidadosamente esse conceito.

Inicialmente é preciso levar em conta que variáveis subjetivas como “bem-estar” dificilmente podem ser observadas diretamente. Como as principais restrições materiais dos indivíduos são dadas pela renda e pelos preços dos bens e serviços, pode-se compreender a sugestão quase óbvia, de medir o bem-estar material das pessoas por seu principal fator determinante, que seria a renda real. A dicotomia central associada a indicadores agregados de bem-estar, baseados na renda, diz respeito à composição de medidas de renda agregada e de sua distribuição.

São conhecidas as limitações de indicadores baseados na renda como indicadores de bem-estar. Uma razão importante, e que é raramente mencionada, é a tentativa de utilizar um conceito de bem-estar derivado da noção de utilidade. Admitindo a existência de objetivos irredutíveis a orientar o comportamento individual, haveria vantagens claras em se fazer uma análise diretamente em termos dos critérios de escolha (Hersztajn Moldau, 1993HERSZTAJN MOLDAU, J. (1993). “A model of choice where choice is determined by an ordered set of irreducible criteria”, Journal of Economic Theory, 60.) para apresentação de um modelo de escolha desenvolvido diretamente em termos de critérios subjetivos de escolha. Conforme diversos autores (por exemplo, Georgescu-Roegen, 1954; Chipman, 1960; Encarnacion, 1990) poderia haver critérios irredutíveis de escolha que não permitiriam a definição de uma função real e contínua representativa das preferências.

Essa observação seria particularmente relevante para o caso da satisfação das chamadas necessidades básicas, como alimentação, saúde, moradia etc. Admitindo ainda que essas necessidades sejam semelhantes entre indivíduos (veja, por exemplo, Georgescu-Roegen, 1968GEORGESCU-ROEGEN, N. (1968). “Utility”, in SILLS, D.H. (org.) The international encyclopedia of the social sciences, vol. 16 (pp. 236-67) Macmillan and The Free Press.), podemos interpretar melhor a utilização dos chamados índices de pobreza. Isso significa que a renda como indicador de bem-estar poderia ter alguma justificativa quando utilizada na construção dos indicadores de pobreza. A linha de pobreza poderia então ser definida em cada comunidade a um nível de renda que permitiria a satisfação das necessidades básicas de sobrevivência (é claro que estas podem dar alguma margem de discussão). Esse nível de renda seria então menor ou maior, em função da maior ou menor disponibilidade de serviços básicos oferecidos pelo poder público e que satisfazem algumas das necessidades básicas da população. É importante destacar, porém, que mesmo assim será importante estabelecer indicadores específicos voltados à determinação do atendimento de cada necessidade básica como saúde, educação, moradia etc. Isso seria de importância para orientar uma política voltada ao atendimento de necessidades prioritárias. Exemplificando: poderíamos ter uma situação em que duas comunidades apresentam igual índice de pobreza, sendo que em uma delas haveria maior insuficiência em saúde e na outra em moradia. Admitida a existência de uma hierarquia na importância das diferentes necessidades uma ou outra comunidade poderia estar em pior situação.

Dificuldades maiores surgem, porém, quando se considera níveis de renda per capita mais elevados. Neste caso, se está admitindo a possibilidade de satisfação de critérios subjetivos de ordem superior, que não são uniformes entre indivíduos. Daí, a dificuldade maior de realizar comparações de bem-estar entre diferentes comunidades, com base unicamente na renda.

4. INDICADORES DE OBJETIVO E DE ATIVIDADE

O estabelecimento de um sistema de indicadores e a montagem de uma estrutura voltada para a coleta de informações estarão de certa forma condicionados ao grau de intervencionismo governamental, com relação às diversas dimensões econômicas e sociais associadas a uma certa comunidade. A escolha dos indicadores a serem levantados dependerá necessariamente da resolução dada a essa questão. Admitindo-se um sistema econômico e social sujeito à intervenção governamental, será necessário distinguir as variáveis “objetivo”, das variáveis “meio” ou “instrumento”. A escolha de indicadores estará então condicionada pela explicitação de objetivos e pela especificação dos mecanismos de intervenção, voltados para a realização dos objetivos propostos. Haverá então, de um lado, indicadores voltados para a medição do nível de determinadas atividades e, de outro, indicadores voltados para a descrição do grau de atendimento de objetivos previamente estipulados. A discriminação entre essas duas classes de indicadores permite, então, distinguir entre medidas de eficiência e eficácia no que diz respeito à execução de políticas de intervenção governamental. As primeiras estariam associadas ao custo relativo a determinada atividade. Medidas de eficácia por sua vez permitiriam especificar a relação entre custos e o nível atingido por certos indicadores que representariam o atendimento de objetivos pré-estabelecidos. Exemplificando: considere o objetivo representado pela redução da taxa de mortalidade infantil. Uma atividade instrumental para seu atendimento poderia ser a de distribuição de leite para famílias de baixa renda. Uma medida de eficiência seria a relação de custo por unidade de leite recebida pela população alvo. Essa medida poderia ser empregada para comparações com medidas correspondentes a outras formas de intervenção. Uma medida de eficácia seria dada pela relação de custo por unidade de alteração do indicador do objetivo, o qual, neste caso, seria representado exatamente pelo índice de mortalidade infantil. Esse exemplo serve para ilustrar o caso em que o objetivo é definido de forma precisa e não ambígua e em que, ao mesmo tempo, um único indicador é suficiente para representá-lo. Por outro lado, nesse exemplo, também temos representado um caso em que os indicadores, tanto de atividade como do objetivo, são dados por medidas cardinais. Evidentemente, teríamos uma situação diferente se o objetivo especificado fosse, por exemplo, o de melhoria de saúde da população. Este é um exemplo de um objetivo complexo que incorpora dimensões múltiplas. Correspondentemente a estas, teríamos diversos indicadores, que representariam as várias formas de manifestação de morbidade. A utilização de um único indicador somente seria suficiente, se houvesse perfeita correlação entre os indicadores referentes a todas as dimensões de saúde.

Essas considerações nos levam, portanto, a concluir que a definição de indicadores está intimamente associada à especificação dos objetivos de política econômica e social. Quanto mais desagregados e específicos os objetivos, tanto mais precisos poderão ser os indicadores a eles associados. Segue-se que a função de planejamento requer como pré-condição para seu efetivo monitoramento a especificação detalhada de objetivos. Esta, por sua vez, deverá ser seguida pela definição de uma escala de prioridades associada a esses objetivos. É importante destacar que esta última será condicionada pela possibilidade de execução de um diagnóstico adequado, do grau de atendimento daqueles objetivos. Portanto, podemos perceber que um esforço significativo no sentido de detalhar os objetivos de política econômica e social poderá ser recompensado por uma maior viabilidade na própria condução de determinado plano de intervenção. De qualquer forma, os indicadores sociais e econômicos deverão ser instrumentos indispensáveis na execução de diagnósticos e estabelecimento de prioridades.

O emprego de indicadores não está, evidentemente, ligado exclusivamente à função de planejamento. Mesmo em economias que funcionam predominantemente com a adoção do regime de mercado, há o emprego de indicadores. Estes têm, então, a função básica de permitir a descrição da situação e evolução de determinados aspectos da economia. Isso permitiria, então, uma administração mais segura dos principais instrumentos macroeconômicos de controle, como os referentes à política fiscal e monetária. Neste caso, cabem também algumas das observações já feitas com referência à definição das variáveis relevantes.

5. A RENDA COMO INDICADOR DE BEM-ESTAR

O objetivo final de qualquer organização econômica é sem sombra de dúvida a promoção do maior bem-estar possível de sua população. A avaliação de seu sucesso deveria então ser empreendida preferencialmente através de indicadores que possam refletir o grau de alcance de bem-estar por parte da população. Dada sua importância, o conceito de bem-estar é útil para ilustrar diversos aspectos envolvidos na tentativa de elaboração de indicadores.

Como já foi mencionado na seção 3, há problemas sérios envolvidos na definição de um indicador representativo do bem-estar. Podemos fazer referência à ampla literatura que trata da dificuldade de obter uma medida agregada de bem-estar. Como pudemos constatar, há ainda duas classes de dificuldades. Em primeiro lugar, há o problema de encontrar um indicador único que seja suficiente para representar o conceito. Em segundo lugar, há o problema associado à agregação das medidas individuais de bem-estar. Como vimos acima, um indicador que tem merecido grande atenção é a renda. Este indicador serve como exemplo para identificar as dificuldades acima mencionadas. Inicialmente, é claro que a renda, mesmo a individual, é insuficiente para representar todas as dimensões associadas à noção de bem-estar. Adicionalmente percebe-se com clareza a necessidade de obter uma medida de distribuição da renda que incorpore adequadamente esse aspecto. Portanto, à característica de multidimensionalidade do conceito de bem-estar individual, é forçoso acrescentar-se a multidimensionalidade do próprio processo de agregação.

A dicotomia acima mencionada, relativa aos dois aspectos segundo os quais poderemos observar ambiguidade no uso da renda como indicador de bem-estar, é ilustrada pelos trabalhos de Rocha (1990ROCHA, S. (1990). “Indicadores de pobreza para as regiões metropolitanas nos anos oitenta”, Estudos Econômicos, 20.) e Rocha e Vilela (1990ROCHA, S. & VILELA, R. (1990). “Caracterização da subpopulação pobre metropolitana nos anos 80 - resultados de uma análise multivariada”, Revista Brasileira de Economia, 44.). Podemos ainda mencionar trabalhos que trataram de aspectos específicos associados ao emprego da renda como indicador de pobreza (veja Sen, 1976SEN, A. (1976). “Poverty: an ordinal approach to measurement”, Econométrica, 44.; Kakwani, 1980KAKWANI, N. (1980). “On a class of poverty measures”, Econométrica, 48. e Thon, 1983THON, D. (1983). “A note on a troublesome axiom for poverty indices”, The Economic Journal, 93.) assim como textos que abordaram a questão da determinação de indicadores de desigualdade (uma síntese dos seus principais aspectos pode ser encontrada em Sen, 1973SEN, A. (1973). On economic inequality, Oxford: Clarendon Press.).

Os índices de pobreza representam um exemplo significativo das dificuldades encontradas para que um índice represente determinado conceito. Assim, vamos no que segue descrever com mais detalhe esses indicadores para ilustrar nossa análise. Podemos considerar os seguintes quatro índices de pobreza sugeridos na literatura (veja Rocha, 1990ROCHA, S. (1990). “Indicadores de pobreza para as regiões metropolitanas nos anos oitenta”, Estudos Econômicos, 20.): (a) proporção de pobres; (b) quociente de insuficiência de renda; (e) coeficiente de Gini da subpopulação pobre; (d) índice de Sen.

A proporção de pobres é um índice obtido através do quociente entre o número de pobres e a população total. Fazendo m = número de pobres, n = população total, a proporção de pobres é dada por H = m/n.

O quociente de insuficiência de renda (poverty gap ratio) considera a diferença entre a renda média dos pobres e a renda que corresponde à linha de pobreza, como proporção desta última. A linha de pobreza, por sua vez, é definida em termos da renda necessária para atender as necessidades básicas da família. O quociente é definido como se segue (conforme Rocha, 1990ROCHA, S. (1990). “Indicadores de pobreza para as regiões metropolitanas nos anos oitenta”, Estudos Econômicos, 20.: 443):

I = ( z - y * ) / z ,

onde

  • z = valor da linha de pobreza

  • y* = renda média dos pobres.

O índice de Sen corresponde a uma média ponderada das insuficiências de renda dos pobres. Os pesos são definidos em termos da posição dos indivíduos numa escala ordinal e interpessoal de bem-estar. Neste ponto, portanto, está sendo admitida como axioma a noção de que o peso atribuído a determinada pessoa pobre está relacionado à sua posição relativa em termos de bem-estar e que, quanto mais desfavorável a situação relativa de certa pessoa, maior seu peso na composição do índice. Esta concepção implica, evidentemente, uma dificuldade considerável para se obter uma medida empírica de bem-estar.

A solução encontrada por Sen foi introduzida através de um axioma adicional, com o efeito de fazer com que a renda seja tomada como medida de bem-estar. Um outro axioma considerado por Sen para a construção do índice que leva seu nome é um axioma de normalização, através do qual se assume que aquele índice é igual ao produto dos índices dados pela proporção dos pobres e pelo quociente de insuficiência de renda, quando todos os pobres têm a mesma renda.

O índice de pobreza de Sen para m grande é então dado pela seguinte expressão:

P = H { I + ( 1 - I ) G } ,

onde G representa o coeficiente de distribuição de renda dos pobres e P corres­ponde ao índice de Sen.

O índice de Sen inclui, então, os índices parciais de pobreza dados por H e I. Uma crítica feita ao índice de Sen é a de que pode haver incompatibilidade entre cada um desses índices parciais e o indicador composto P. Isto é, pode ocorrer que haja aumento na proporção de pobres e ao mesmo tempo redução de desigualdade entre eles se as pessoas incorporadas à subpopulação de pobres tiverem renda que leve a aumento em sua renda média ou à redução de desigualdade entre os pobres. Desta forma, o aumento na proporção de pobres pode levar à redução no valor de P (conforme Rocha,1990ROCHA, S. (1990). “Indicadores de pobreza para as regiões metropolitanas nos anos oitenta”, Estudos Econômicos, 20.: 443). Haveria assim uma incompatibilidade teórica entre propriedades consideradas desejáveis para expressar o conceito de pobreza. Em outras palavras, haveria uma violação da propriedade de correlação positiva entre os três índices de pobreza incluídos na formulação de Sen. Esse resultado, na verdade, decorre da própria construção do índice de Sen em que os índices parciais H e I poderiam participar de forma multiplicativa. Implícita é a ideia de que quando H e I variam em sentidos opostos poderia existir uma taxa de conversão entre ambos que permitiria determinar seu efeito final em relação a P.

Essa dificuldade do índice de Sen pode ainda ser ilustrada pelo fato de que o efeito de um aumento em I ou H em relação a P é o mesmo, independente dos seus respectivos valores. Portanto, um aumento em I, quando existe aguda insuficiência de renda, tem o mesmo efeito em relação a P do que quando as necessidades básicas dos pobres estão quase satisfeitas.

Uma maneira de eventualmente contornar essa dificuldade seria estabelecer uma hierarquia entre os indicadores parciais, de modo a definir o valor do índice de pobreza, predominantemente, pelo valor do indicador considerado mais importante. A importância relativa dos indicadores, por sua vez, seria em principio variável em função de seu nível de alcance. Assim, por exemplo, em situações em que a intensidade de pobreza fosse particularmente grave, I poderia ser determinante para definição do índice de pobreza. Esse procedimento resultaria da presunção de que havendo uma situação com aguda insuficiência de renda, a redução da intensidade de pobreza, medida por I, se tomaria o objetivo predominante. Observando-se então níveis muito elevados de I, comparativamente a H, aquele elemento seria determinante para a definição do índice de pobreza.

A dificuldade básica dos índices de pobreza, como o de Sen, é a hipótese implícita de que existe um denominador comum para as diversas dimensões associadas à pobreza. A restrição envolvida por essa suposição representa o preço que deve ser pago pela conveniência analítica associada a um indicador unidimensional. Seguindo o modelo de escolha proposto por Hersztajn Moldau (1993HERSZTAJN MOLDAU, J. (1993). “A model of choice where choice is determined by an ordered set of irreducible criteria”, Journal of Economic Theory, 60.), poderíamos admitir critérios múltiplos irredutíveis e assim sugerir a apresentação de indicadores associados àqueles sob a forma de um vetor, em que os elementos componentes não seriam agregados através de pesos. Caberia então estabelecer uma ordem de prioridade para destacar os critérios mais importantes para uma eventual ação intervencionista.

Convém lembrar que o emprego de vetores de indicadores para caracterizar índices de pobreza poderá requerer a explicitação de juízos de valor a respeito de sua importância relativa. Isso, na verdade, poderia talvez ser até interpretado como um aspecto positivo, considerando que os indicadores usuais eventualmente subentendem juízos de valor colocados de forma implícita, inerentes à agregação de índices parciais (a menos que sejam correlacionados entre si). Isso pode então traduzir uma falsa ideia de objetividade.

6. CONCLUSÃO

Neste trabalho procuramos abordar questões genéricas, referentes à concepção e utilização de indicadores. Devemos inicialmente destacar que a definição de determinado indicador será tanto mais ambígua quanto mais complexo o conceito que se pretende descrever. A utilização de indicadores para representar conceitos relativamente complexos dependerá, então, de procedimentos fundamentados em modelos teóricos e/ou calcados na especificação de juízos de valor. Alternativamente, teríamos aparentemente a opção da utilização de um número maior de indicadores mais simples, que então representariam conceitos menos complexos. Mesmo assim, não será possível, via de regra, deixar de efetuar juízos de valor. Estes se farão necessários, de qualquer maneira, por ocasião da utilização dos indicadores mais simples obtidos.

A questão da explicitação de juízos de valor pode ser mais bem compreendida, considerando-se que a formulação de indicadores requer a especificação das propriedades a serem satisfeitas por aqueles, para representar o conceito. Como é evidente, quanto mais complexo o conceito a ser representado, tanto mais necessária a existência de uma estrutura completa de requisitos a serem cumpridos pelo indicador. Essas propriedades podem ser associadas a um conjunto de axiomas que passaria a fundamentar o conceito desejado. Alguns desses axiomas poderão então servir para formalizar juízos de valor a serem cumpridos pelo indicador. Assim, por exemplo, quando se trata de elaborar um índice sintético de renda nacional que incorpore aspectos ligados à distribuição de renda, poderemos incluir o axioma de que o peso atribuído à renda dos indivíduos está relacionado à sua posição relativa na escala de distribuição de renda. Há também hipóteses que refletem modelos teóricos formulados para explicação de determinado fenômeno. Assim, por exemplo, quando o objetivo é a elaboração de um índice para representar o estado nutricional de crianças, a utilização da relação peso-altura irá refletir uma particular concepção teórica desse conceito.

Neste artigo também foram discutidos alguns conceitos básicos que fundamentam a construção e utilização de índices. Assim, foi dado destaque à distinção entre as noções de fluxo e de estoque e, principalmente, às lições derivadas da teoria da produção e da teoria da escolha. Foi então considerada a necessidade de caracterizar as relações funcionais que fundamentam os conceitos descritos por cada indicador. Importante, neste particular, é a identificação daqueles fatores que são fundos de serviços e daqueles elementos que são transformados no processo, associados a determinada atividade. Como foi discutido, essa distinção é importante para encontrar indicadores representativos de uma atividade específica.

Um índice de pobreza, por exemplo, dado por uma medida de estoque seria determinado pela renda dos pobres, que é uma medida de fluxo. A questão que surge naturalmente é a de como “produzir” um aumento na renda dos pobres. A curto prazo seria talvez o caso de concentrar a atenção em medidas de redistribuição. A longo prazo, deveríamos, possivelmente, abordar a “função de produção” da renda dos pobres e identificar os fatores limitacionais, como educação, saúde etc.

Índices de estoque como por exemplo, peso e altura de crianças, ou número de pobres sugerem que mudanças desses índices envolvem um intervalo de tempo, portanto, estão associadas a fluxos. Será em relação a esses fluxos que se poderá atuar. Quanto mais desagregados os indicadores de fluxo, mais explícito o modelo teórico e mais claras as sugestões de política para alteração de determinado índice numa direção mais favorável. Os fluxos envolvem sempre um processo de transformação e assim, frequentemente, um modelo de produção. Mesmo índices de preços, correspondendo a fluxos, envolvem mudança. Daí a sugestão quase óbvia de pesquisar modelos teóricos que expliquem o processo de alteração nos preços.

A representação completa de certo conceito poderá requerer um vetor de índices. Esses componentes poderiam então qualificá-lo melhor, propiciando uma indicação melhor de seus atributos. Por exemplo, um indicador de educação básica deveria incluir não apenas o número de crianças formadas em cada ano, mas também o número de professores, número de bibliotecas, material de apoio, merenda etc. Assim teríamos mais informações para descrever a qualidade do processo de educação e, paralelamente, mais instrumentos para a adoção de medidas concretas de intervenção.

Neste estudo foram também destacadas as dificuldades associadas à utilização de uma medida agregada de bem-estar. Foram igualmente discutidos problemas relacionados ao emprego de um indicador como a renda.

O reconhecimento da existência de necessidades básicas irredutíveis sugere a insuficiência de medidas agregadas de pobreza. Em outras palavras, a constatação de um número significativo de pessoas abaixo da linha de pobreza implica que será necessário estabelecer indicadores específicos, associados ao atendimento de cada necessidade básica, como saúde, educação, alimentação etc. Somente assim será possível estabelecer uma linha de ação voltada ao atendimento de critérios prioritários. Essa sugestão decorre da crítica à ideia de existência de uma função de utilidade em nível individual. Isso nos levaria, portanto, a reexaminar o próprio significado da utilização dos conhecidos índices de pobreza. Estes pressupõem a existência de um denominador comum para as diversas dimensões associadas à pobreza. Portanto, podem implicar a existência de pesos, que em alguns casos poderiam representar juízos de valor implícitos ao processo de agregação de indicadores de aspectos específicos de pobreza.

Uma implicação adicional desta linha de raciocínio poderia ser a busca de uma eventual resolução de uma das dificuldades encontradas na aplicação do índice de pobreza de Sen. Esta diz respeito à possível violação da propriedade de correlação positiva entre os índices dados pela proporção de pobres, o quociente de insuficiência de renda e o próprio índice de Sen. Pode-se eventualmente sugerir que aqueles indicadores sejam empregados para compor um vetor de índices. A sua utilização seria então condicionada pela explicitação de juízos de valor a respeito de sua importância relativa em cada particular situação observada.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    JEL Classification: B41; O10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1998
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