Acessibilidade / Reportar erro

Do princípio de individuação [Ordinatio livro II, distinção terceira, parte primeira]: [Questão 1: se a substância material é individual ou singular por si mesma ou por sua natureza?]

TRADUÇÃO

Do princípio de individuação [Ordinatio livro II, distinção terceira, parte primeira]. [Questão 1: se a substância material é individual ou singular por si mesma ou por sua natureza?]

João Duns Escoto

Tradução: Cesar Ribas Cezar

Mestre em Filosofia - Unicamp - Campinas - SP

Introdução

João Duns Escoto, o Doutor Sutil, nasceu em 1265/1266 em Duns, condado de Berwirck, Escócia. Ingressou no convento franciscano de Dunfries em 1278/1279. Ordenou-se em 1291. De 1293 a 1296, estudou em Paris. Lecionou em Cambridge e Oxford de 1297 a 1301. Encontra-se em Paris entre 1302 e 1303, quando leciona como bacharel sentenciario, mas é obrigado a deixar a França por se recusar a aderir à causa do rei, no conflito entre Felipe, o Belo, e o papa Bonifácio VIII. Retorna a Paris em 1304. Em 1308 é enviado para Colónia, onde veio a falecer com 42 anos de idade.

O texto apresentado foi retirado da Ordinatio (comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo) e trata da noção de natureza comum.1 1 A tradução foi feita a partir do original latino das Opera Omnia, Studio et Cura Commissionis Scotisticae. Civitas Vaticana: Tipis Poly glottis Vaticanis. Para o "Doutor Sutil", a natureza de algo é anterior à singularidade e à universalidade. Por exemplo, a natureza de um homem, isto é, a "humanidade", em si mesma não possui nem a singularidade da coisa nem a universalidade do conceito. Ela é anterior tanto à coisa quanto ao conceito. Em outras palavras, a natureza é aquilo que há de comum entre a coisa singular e o conceito universal.

Esta idéia de uma natureza anterior à singularidade e à universalidade pode ser encontrada em Avicena (980-1037) e em Tomás de Aquino (1225/1226-1274). Duns Escoto inova ao atribuir à natureza uma unidade própria, distinta da unidade do indivíduo e da unidade do conceito. Sobre esta unidade da natureza, ele irá fundar a sua teoria do conhecimento, a qual irá influenciar, por exemplo, o filósofo americano CS . Peirce.

1 Acerca da terceira distinção deve-se pesquisar a respeito da distinção pessoal nos anjos. Mas, para ver a respeito desta distinção neles, em primeiro lugar, deve-se pesquisar a respeito da distinção individual nas substâncias materiais, a respeito da qual assim como diversos se pronunciam de maneiras diversas, conseqüentemente assim também a respeito da pluralidade dos indivíduos na mesma espécie angélica. E para que as diversas opiniões, as quais pesquisam a respeito da distinção ou da indistinção da substância material, sejam distintamente vistas, pesquiso um a um os diversos modos de responder, -

texto interpolado ["eis que foi mostrado" etc. Acerca desta terceira distinção, na qual o Mestre trata de como foram criados os anjos quanto a suas condições naturais, formula principalmente duas perguntas: primeiro, a respeito da distinção pessoal deles, segundo, a respeito do conhecimento natural deles; mas já que da distinção pessoal da substância material somos conduzidos para o conhecimento da distinção pessoal da substância espiritual, então deve-se ver primeiro a distinção individual na substância material e por último na substância espiritual. E, já que acerca da distinção individual na substância material há uma variedade de opiniões, então, segundo a variedade de opiniões, uma variedade de questões será formulada: pergunta-se, portanto, primeiro, se a substância material é individual ou singular por si ou por sua natureza; segundo, se é individual através de algo positivo intrínseco, terceiro, se é individual através da existência atual ou se alguma outra coisa é a razão da individuação; quarto, se através da quantidade; quinto, se através da matéria; sexto, se através de alguma entidade positiva que determina por si a natureza à singularidade; sétimo e último, se é possível existirem muitos anjos na mesma espécie.] - e primeiro, se a substância material é individual ou singular por si ou por sua natureza.

2 Que sim:

O Filósofo prova, no livro VII da Metafísica - contra Platão - que "a substância de qualquer coisa é própria àquela da qual é, e não está em outra"; portanto etc. Portanto, a substância material por sua natureza, deixando de lado tudo o mais, -é própria para aquela coisa na qual está, de modo que por sua natureza não pode estar em outro; portanto por sua natureza é individual.

3 Contra:

Qualquer coisa que está por si em algo por sua razão, está nele, em qualquer que seja este algo; portanto, se a natureza da pedra de si fosse "esta", - em qualquer um em que houvesse a natureza da pedra, aquela natureza seria "esta pedra". O conseqüente é inaceitável, falando de singularidade determinada, a respeito do que trata a questão.

4 Além disso, àquilo a que de si convém um oposto, a ele de si repugna o outro oposto; portanto, se a natureza de si é una em número, a ela repugna a multidão numérica.

[I - Em relação à questão: A - Opinião de outros]

5 [Exposição da opinião] - Aqui se diz que, assim como a natureza é por si formalmente natureza, assim também é por si singular, de modo que não é necessário buscar outra causa da singularidade além da causa da natureza como se a natureza fosse antes - no tempo ou na natureza - natureza do que singular e, assim, através de um outro algo acrescentado fosse restringida a se tornar singular.

6 O que se prova por semelhança: pois, assim como a natureza por si tem um verdadeiro ser fora da alma, mas tem o ser na alma somente por outro, isto é, pela própria alma (e a razão é, porque o ser verdadeiro convém a ela simplesmente, - mas ser na alma é ser dela sob certo aspecto), assim também a universalidade não convém à coisa senão segundo o ser sob certo aspecto, a saber, na alma; a singularidade, porém, convém à coisa segundo o verdadeiro ser e, assim, por si e simplesmente. Deve-se, portanto, buscar a causa pela qual a natureza é universal (e deve-se dar o intelecto como causa), - mas não deve-se buscar alguma outra causa pela qual a natureza é singular, além da natureza da coisa, mediando entre ela própria e sua singularidade, mas as mesmas causas que são causas da unidade da coisa, são também da singularidade dela; portanto etc.

Segue-se texto interpolado: [Contra isto argumenta-se assim, primeiro da parte da comunidade da natureza: se de si é esta, repugna ser comunicada, como é evidente a respeito da essência divina, - e assim também nos anjos, se fosse de si esta. Prova-se, também, porque àquilo que por si convém um dos opostos, a ele repugna o outro; ora a comunicabilidade não repugna à natureza material. Além disso, se a natureza segundo aquilo que é na coisa, fosse de si esta, seria impossível inteligi-la universal, a não ser que fosse inteligida sob a razão oposta de inteligir tal objeto. Além disso, se na razão da natureza se inclui a singularidade, então repugna-lhe ser não-este (e assim ser universal), porque o que quer que repugna ao incluído, repugna também ao includente]

7 [Refutação da opinião] - Contra isto argumenta-se assim:

O objeto, na medida em que é objeto, é naturalmente anterior ao próprio ato, e naquele anterior - segundo tu - o objeto é de si singular, pois isto sempre convém à natureza não tomada sob certo aspecto ou segundo o ser que tem na alma; portanto, o intelecto inteligindo aquele objeto sob a razão de universal, intelige o mesmo sob a razão oposta de sua razão, pois, como precede o ato, é determinado de si ao oposto desta razão, a saber, de universal.

8 Além disso, se a unidade real, própria e suficiente do que quer que seja é menor que a unidade numérica, isto não é de si uno em unidade numérica (ou, não é, de si, isto); ora, a unidade própria, real ou suficiente da natureza existente nesta pedra é menor que a unidade numérica; portanto etc.

9 A maior é patente por si, pois nada é de si "uno" em unidade maior que a unidade suficiente para si: com efeito, se a unidade própria - que, de si, é devida a algo - é menor que a unidade numérica, a unidade numérica não lhe cabe por sua natureza e de acordo consigo mesmo (de outro modo, precisamente por sua natureza, teria uma unidade maior e menor, as quais são opostas acerca do mesmo e de acordo com o mesmo - pois uma multidão oposta à unidade maior pode estar junto à unidade menor sem contradição, multidão que não pode estar junto à unidade maior, pois lhe repugna; portanto etc.)

10 Prova da menor: pois, se nenhuma "unidade real" da natureza é menor que a singularidade, e toda unidade "da natureza específica, distinta da unidade da singularidade" é menor que a unidade real, - então não haverá nenhuma "a unidade real" menor que a unidade numérica; o conseqüente é falso como provarei por cinco ou seis vias; portanto etc.

11 A primeira via é a seguinte:

Segundo o Filósofo, no livro X da Metafísica, "em todo gênero há um primeiro, que é metro e medida de tudo que está naquele gênero".

12 Esta unidade do primeiro mensurante é real, pois o Filósofo prova que a primeira razão de medida cabe ao "uno", e declara por ordem de que modo é "uno" aquilo a que cabe a razão de medir em todo gênero. Ora, esta unidade é de algo na medida em que é "primeiro" no gênero; é, portanto, real, pois os medidos são reais e são realmente medidos; ora, o ente real não pode ser realmente medido por um ente de razão; portanto é real.

13 Ora, esta unidade não é numérica, pois não há nenhum "singular" no gênero, que seja medida de todos aqueles que estão neste gênero, - pois de acordo com o Filósofo, no livro III da Metafísica, "nos indivíduos da mesma espécie, não é este anterior e aquele posterior".

14 Ainda que o Comentador explique o "anterior" como dizendo respeito ao "anterior" como constituinte do posterior, nada disso se refere à menor, pois o Filósofo pretende aí assinalar a razão pela qual Platão postulou uma razão separada da espécie e não no gênero, pois nas espécies há uma ordem essencial, por causa da qual o posterior pode ser reduzido ao anterior (e, assim, segundo ele [Platão] não é preciso postular uma idéia do gênero "por cuja participação as espécies são aquilo que são", mas a idéia da espécie, à qual todas as outras se reduzem); ora, nos indivíduos, de acordo com Platão e de acordo com o Filósofo, que o cita, não há tal ordem, quer um constitua o outro quer não; portanto etc.

15 Portanto, é aqui intenção do Filósofo concordar com Platão, que nos indivíduos da mesma espécie não há uma ordem essencial. Portanto, nenhum indivíduo é por si medida daqueles que estão em sua espécie, - portanto, nem unidade numérica ou individual.

16 Além disso, em segundo, provo que o mesmo conseqüente é falso: pois, de acordo com o Filósofo no livro VII da Física dá-se comparação na espécie átoma, pois é una em natureza, - mas não no gênero, pois o gênero não possui tal unidade.

17 Esta diferença não é de unidade de acordo com a razão, pois o conceito do gênero é também uno, em número, no intelecto, assim como o conceito da espécie; de outro modo, nenhum conceito seria dito qüiditativamente de muitas espécies (e, assim, nenhum conceito seria gênero), mas haveria tantos conceitos ditos das espécies quantos fossem os conceitos das espécies, e, então, em cada uma das predicações o mesmo seria predicado de si. Igualmente, a unidade do conceito ou do não-conceito, nada tem a ver com a intenção do Filósofo aí, a saber, em relação à comparação ou não. Portanto, o Filósofo pretende aí que a natureza específica é una na unidade da natureza específica; não pretende, porém, que a mesma é assim una em unidade numérica, pois, na unidade numérica não se dá comparação. Portanto etc.

18 Além disso, em terceiro:

De acordo com o Filósofo, no livro V da Metafísica, cap."Sobre a relação", o mesmo, o semelhante e o igual estão fundados sobre o "uno", de modo que, ainda que a semelhança tenha por fundamento a coisa do gênero de tal qualidade, a relação não é real a não ser que tenha fundamento real e a razão próxima fundante real; portanto, a unidade, que é requerida no fundamento da relação de semelhança, é real: ora, não é unidade numérica, pois nada uno e o mesmo é semelhante ou igual a si mesmo.

19 Além disso, em quarto:

Os dois primeiros extremos de uma oposição real são reais; ora, a contrariedade é oposição real (o que é claro, pois um corrompe ou destrói realmente o outro, deixando de lado toda obra do intelecto, e não é assim senão porque são contrários); portanto, cada um dos primeiros extremos desta oposição é real e "uno" em alguma unidade real: mas não é em unidade numérica, pois assim precisamente este branco seria o "primeiro contrário" a este negro (ou precisamente àquele branco) o que é inaceitável, pois haveria então tantas contrariedades primeiras quantos indivíduos contrários; portanto etc.

20 Além disso, em quinto:

O objeto de uma ação do sentido é uno segundo alguma unidade real; ora, não numérica; portanto, alguma unidade, distinta da unidade numérica, é real.

21 Prova da menor, pois a potência, que conhece o objeto assim (a saber, na medida em que é uno "nesta unidade"), conhece-o na medida em que é distinto do que quer que não é uno nesta unidade, - ora, o sentido não conhece o objeto na medida em que é distinto do que quer que não é uno naquela unidade numérica; o que é claro, pois nenhum sentido distingue que este raio do sol difere numericamente de outro raio, mesmo quando são diversos por causa do movimento do sol; se forem colocados de lado todos os sensíveis comuns (por ex. a diversidade de lugar e posição), e se fossem colocadas, pela potência divina, duas quantidades que fossem simultâneas, que também fossem em tudo semelhantes e iguais na brancura, - a visão não distinguiria que ali há dois brancos (se, no entanto, conhecesse um deles na medida em que é uno em unidade numérica, conheceria-o na medida em que é uno distinto em unidade numérica!).

22 Também se poderia argumentar, de acordo com isto, a respeito do primeiro objeto do sentido, que é uno em si, em alguma unidade real, pois, assim como o objeto "desta potência" - na medida em que é objeto - precede o intelecto, assim também de acordo com sua unidade real precede toda ação do intelecto. Mas, esta razão não conclui assim como a precedente: com efeito, pode-se sustentar que algum objeto primeiro - na medida em que é adequado à potência - é algo comum, abstraído de todos os objetos particulares, e assim não tem unidade senão de comunidade em relação àqueles vários objetos particulares; ora, não é dado negar, acerca do objeto uno de um ato uno de sentir, que tenha necessariamente uma unidade real e menor que a unidade numérica.

23 Além disso, em sexto:

Pois, se toda unidade real é numérica, então toda diversidade real é numérica. Mas, o conseqüente é falso, pois toda diversidade numérica, na medida em que é numérica, é igual, - e assim tudo seria igualmente distinto; e, então, segue-se que o intelecto não poderia mais abstrair algo comum de Sócrates e Platão, do que de Sócrates e da linha, e qualquer universal seria uma pura ficção do intelecto.

24 A primeira conseqüência se prova de dois modos:

Primeiro, porque uno e múltiplo, o mesmo e o diverso, são opostos (pelo livro X da Metafísica, cap.5); ora, quantas vezes se disser um dos opostos, tantas se dirá também o outro (pelo livro I dos Tópicos); portanto, a cada unidade corresponde sua própria diversidade.

25 Prova-se em segundo, pois cada extremo de qualquer diversidade é em si uno, e no modo pelo qual é uno em si, no mesmo modo parece ser diverso do outro extremo, de modo que a unidade de um extremo parece ser por si a razão da diversidade do outro extremo.

26 Confirma-se também de outro modo, pois, se só há nesta coisa a unidade real numérica, qualquer unidade que estiver nesta coisa é, por si, una em número; portanto, este e aquele, de acordo com toda a entidade neles, são primeiro diversos, pois são diversos que não se reúnem de nenhum modo em nada de "uno".

27 Confirma-se também, pelo fato de que a diversidade numérica é este singular não ser aquele singular, suposta, no entanto, a entidade de cada extremo. Ora, tal unidade cabe necessariamente ao outro extremo.

28 Além disso:

Por nada existente no intelecto, o fogo geraria o fogo e corromperia a água, e haveria alguma unidade real "do gerador para com o gerado" de acordo com a forma, por causa da qual a geração seria unívoca. O intelecto, com efeito, quando considera, não faz a geração ser unívoca, mas conhece que ela é unívoca.

[B - Opinião própria]

29 Portanto, em relação à questão, concordando com as conclusões daqueles argumentos (7 e 8), digo que a substância material por sua natureza não é de si esta, - pois assim, como o primeiro argumento deduz (7), o intelecto não poderia inteligi-la sob o oposto a não ser que inteligisse o seu objeto sob uma razão de inteligir que repugna à razão de tal objeto.

30 Assim também, como deduz o segundo argumento (8) (com todas as suas provas), alguma unidade real está na coisa, sem nenhuma operação do intelecto, menor que a unidade numérica ou que a unidade própria do singular, "unidade" que é da natureza de acordo consigo mesma, - e de acordo com esta "unidade própria" da natureza, na medida em que é natureza, a natureza é indiferente à unidade da singularidade; portanto, não é, de si, una, naquela unidade, a saber, na unidade da singularidade.

31 Mas, de que maneira isto deve ser entendido, pode, de alguma maneira, ser visto através do que Avicena diz no livro V da Metafísica, onde sustenta que "a eqüinidade é somente a eqüinidade, - não é de si una nem muitas, nem universal nem particular". Entendo: não é de "si una" em unidade numérica, nem "muitas" em pluralidade oposta àquela unidade; nem é "universal" em ato (a saber, no modo pelo qual algo é universal enquanto é objeto do intelecto), nem é de si "particular".

32 Com efeito, ainda que nunca seja realmente sem algum destes, de si não é algum destes, mas é naturalmente anterior a todos estes, - e de acordo com a prioridade natural é "aquilo que é" por si objeto do intelecto, e por si, como tal, é considerado pelo metafísico e é expresso pela definição; e as proposições "verdadeiras do primeiro modo" são verdadeiras em razão da qüididade assim tomada, pois nada é dito "por si no primeiro modo" acerca da qüididade a não ser o que está incluído nela essencialmente, na medida em que ela é abstraída de todos estes, que são naturalmente posteriores a ela.

33 Mas, a própria natureza não é somente de si indiferente a ser no intelecto e no particular, e, por isso, a ser universal e particular (ou singular), - mas ela própria também, tendo ser no intelecto, não tem primeiro por si a universalidade. Com efeito, ainda que ela seja inteligida sob a universalidade como sob o modo de a inteligir, a universalidade não é parte do seu conceito primeiro, pois não é conceito do metafísico, mas do lógico, (com efeito, o lógico considera as segundas intenções, aplicadas às primeiras de acordo com ele próprio). Portanto, a primeira intelecção é "da natureza", de maneira que não é co-inteligido nenhum modo, nem aquele que é seu no intelecto nem aquele que é seu fora do intelecto; ainda que a universalidade seja o modo de inteligir deste inteligido, não é o modo inteligido!

34 E assim como, de acordo com este ser, a natureza não é de si universal, mas a universalidade advém a esta natureza segundo sua primeira razão, segundo a qual é objeto, - assim também na coisa exterior, onde a natureza está com a singularidade, esta natureza não é, de si, determinada à singularidade, mas é naturalmente anterior à própria razão que a restringe àquela singularidade, e, na medida em que é naturalmente anterior àquilo que a restringe, não lhe repugna ser sem aquilo que a restringe. E assim como o objeto no intelecto teve verdadeiro ser inteligível de acordo com esta anterioridade dela e a universalidade, assim também na coisa a natureza tem um verdadeiro ser real externo à alma de acordo com aquela entidade, - e de acordo com aquela entidade tem uma unidade que lhe é proporcional, que é indiferente à singularidade, de tal modo que não repugna de si àquela unidade que seja colocada com qualquer unidade de singularidade (logo, entendo deste modo que "a natureza tenha uma unidade real menor que a unidade numérica"); e ainda que não a tenha de si, como se fosse interna à razão da natureza (pois "eqüinidade é somente eqüinidade", de acordo com Avicena no livro V da Metafísica), aquela unidade é uma afecção própria da natureza de acordo com sua primeira entidade, e, por conseguinte, nem é por si "esta" intrinsecamente, nem de acordo com a entidade própria necessariamente incluída na própria natureza de acordo com a primeira entidade dela.

35 Mas, parece haver duas objeções contra isto (34):

Uma, pois parece sustentar que o universal é algo real na coisa (o que é contra o Comentador, no comentário 8 sobre o livro I do De Anima, que diz que "o intelecto faz a universalidade nas coisas, de modo que não existe senão pelo intelecto", e assim é somente um ente de razão), - pois, esta natureza é, pelo que foi dito, indiferente a este singular e àquele, na medida em que é nesta pedra, mas é naturalmente anterior à singularidade desta pedra.

36 Além disso, Damasceno no cap.8: "É preciso saber que uma coisa é ser considerado na coisa e outra na razão e no pensamento. Portanto, e em particular, certamente em todas as criaturas, considera-se a divisão das hipóstases na coisa (na coisa, com efeito, Pedro é considerado separado de Paulo), - mas considera-se a comunidade e reunião, só no intelecto, pela razão e pelo pensamento (com efeito, inteligimos no intelecto porque Pedro e Paulo são de uma única natureza e possuem uma única natureza comum)"; "Com efeito, estas hipóstases não são em si recíprocas, mas cada uma é individualmente partida, isto é, separada segundo a coisa". E depois: "De fato, na santa e supersubstancial Trindade ocorre o contrário: com efeito, lá considera-se na coisa um único comum", "mas depois no pensamento, o dividido".

37 Em relação ao primeiro, digo que universal em ato é aquilo que tem alguma unidade indiferente, de acordo com a qual o mesmo está em potência próxima para ser dito de qualquer subordinado, pois, de acordo com o Filósofo, no livro I dos Analíticos Posteriores, "universal" é aquilo que é uno em muitos e de muitos. Com efeito, nada - de acordo com qualquer universalidade - na coisa é tal que, de acordo com aquela unidade precisa, esteja em potência próxima em relação a qualquer subordinado para uma predicação que diga "isto é isto", pois, ainda que não repugne a algo existente na coisa ser em uma singularidade distinta daquela na qual é, não pode ser dito verdadeiramente de qualquer inferior o seguinte: que "qualquer um é ele"; com efeito, isto somente é possível acerca do objeto numericamente o mesmo, considerado em ato pelo intelecto, - o qual, "na medida em que é inteligido", possui também a unidade numérica do objeto, de acordo com a qual o mesmo é predicável de todo singular, no dizer que "isto é isto".

38 Disto, fica claro a refutação do dito que "o intelecto agente faz a universalidade nas coisas", pelo fato de que pode ser dito de toda "qüididade" [quod quid est] existente na imagem que é tal que não lhe repugna estar em outro, e pelo fato de que desnuda a "qüididade" [quod quid] existente na imagem, - pois, em qualquer lugar que esteja antes de ter o ser objetivo no intelecto possível, seja na coisa seja na imagem, tenha ser certo ou deduzido pela razão (e, assim, não por alguma luz, mas sempre seja tal natureza por si à qual não repugna ser em outro), ainda não é tal ao qual caiba em potência próxima ser dito do que quer que seja, mas só está em potência próxima no intelecto possível.

Há, portanto, na coisa um "comum", que não é de si este, e, por conseguinte, não lhe repugna de si o não-este. Mas, tal comum não é universal em ato, pois falta aquela indiferença de acordo com a qual o universal é, de uma maneira completa, universal, de acordo com a qual, a saber, o mesmo, por alguma identidade, é predicável de qualquer indivíduo, de tal modo que qualquer um seja ele.

39 Em relação à segunda objeção - de Damasceno - digo que do modo pelo qual na divindade o "comum" é realmente uno, deste modo o comum não é realmente uno nas criaturas. Lá, com efeito, "comum" é singular e individual, pois a própria natureza divina é de si esta, e deste modo fica claro que nenhum universal é realmente uno nas criaturas; pois sustentar isto, seria sustentar que alguma natureza criada não-dividida é predicada de muitos indivíduos por uma predicação que diz "isto é isto", assim como se diz que o Pai é Deus e o Filho é o mesmo Deus. Nas criaturas, porém, há algum comum uno em unidade real, menor que a unidade numérica, e este "comum" não é assim um comum que seja predicável de muitos, ainda que seja assim um comum que não lhe repugna ser em algo distinto daquilo no que é.

40 É, portanto, duplamente claro de que modo a autoridade não está contra mim: primeiro, porque fala da unidade da singularidade na divindade, - e, deste modo, nas criaturas, não somente o "universal criado" não é uno, mas também o "comum"; segundo, porque fala do comum predicável, e não precisamente do comum que é determinado de fato (ainda que não lhe repugne ser em outro), precisamente tal "comum" que pode ser colocado nas criaturas realmente.

[II - Em relação ao argumento principal]

41 E pelo que foi dito, fica claro em relação ao argumento principal, pois o Filósofo refutava aquela ficção que atribui a Platão, a saber, que "este homem" existente por si - o qual é considerado como "idéia" - não pode ser por si universal para todo homem, pois "toda substância existente por si é própria àquilo da qual é", isto é: ou é por si mesma "própria", ou "é tornada própria" por algo que a restringe, restringente que tendo sido posto não pode estar em outro, ainda que não lhe repugne de si estar em outro, - e esta explicação também é verdadeira, falando-se da substância na medida em que é tomada como natureza; e assim segue-se que a idéia não será substância de Sócrates, pois nem sequer é natureza de Sócrates, - pois, não é por si própria, nem apropriada a Sócrates, de tal modo que esteja somente nele, mas também está em outro, de acordo com o mesmo [Platão]. Mas se se toma a substância como substância primeira, então é verdade que qualquer substância é, por si, própria àquilo do que é e, então, segue-se muito mais que aquela idéia - que é posta como "substância existente por si" - não pode ser substância de Sócrates ou de Platão deste modo; ora o primeiro membro é suficiente a este propósito.

[III - Para a confirmação da opinião]

42 Para a confirmação da opinião, é claro que a comunidade e a singularidade não estão para a natureza como o ser no intelecto e o ser verdadeiro fora da alma, pois a comunidade cabe à natureza fora da alma, e semelhantemente a singularidade, -e a comunidade cabe por si à natureza, mas a singularidade cabe à natureza por algo que a restringe na coisa; mas a universalidade não cabe à coisa por si. E assim concedo que se deve procurar a causa da universalidade, mas não se deve procurar outra causa da comunidade além da própria natureza; e tendo sido colocada a comunidade na própria natureza de acordo com sua própria entidade e unidade, é preciso necessariamente buscar a causa da singularidade, que adiciona algo àquela natureza da qual é.

  • 1
    A tradução foi feita a partir do original latino das
    Opera Omnia, Studio et Cura Commissionis Scotisticae. Civitas Vaticana: Tipis Poly glottis Vaticanis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1996
    Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
    E-mail: transformacao@marilia.unesp.br