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Sobre valor moral e correção intelectual no Sofista de Platão

On moral value and intellectual correction in Plato's Sophist

Resumo:

Platão, no diálogo Sofista, argumenta que a vergonha tem a capacidade de fazer que um indivíduo mude sua opinião. Além disso, a vergonha não opera apenas uma mudança qualquer, mas o abandono de uma opinião falsa, retirando-a do caminho que leva ao conhecimento. Contudo, é argumentado que o erro intelectual é corrigido pelo ensino e não por um valor moral. Pretende-se explicar como a vergonha pode ter essa função de uma positiva mutação mental, contribuindo desta forma para a obtenção do conhecimento. A interação entre valor moral e capacidade cognitiva é possibilitada pelo conceito de imagem e fealdade.

Palavras-chave:
Platão; Sofista; Vergonha; Imagem; Fealdade

Abstract:

Plato, in the Sophist, argues that shame has the capacity to change someone’s opinion. Moreover, shame not only works a whatsoever change, but she is the renoucement of false opinions to lift them from the path to the knowledge. However, it is argued that intellectual error is corrected by teaching and not by moral value. We intend to explain how shame can have this function of a positive mental mutation and contribute, in this way, to acquisition of knowledge. The interaction between moral value and cognitive capacity is made possible by the concept of image and ugliness.

Keywords:
Plato; Sophist; Shame; Image; ugliness

Introdução

Quando pensamos no diálogo platônico Sofista e o que foi produzido sobre essa obra, é indiscutível que muitos estudiosos demonstraram e demonstram substancial interesse na famosa “digressão ontológica”. Esse ponto central na obra concerne às discussões desenvolvidas sobre assuntos relativos à ontologia (a questão do ser e do não-ser, do estatuto ontológico da imagem etc.), à epistemologia (o problema do discurso verdadeiro e do falso) e à lógica (aplicabilidade do método da divisão e a dialética). Essa especial atenção, que se justifica por apresentar uma reviravolta fundamental no pensamento platônico - a qual, aliás, marca a característica do seu último período de produção intelectual -, obscurece outras questões relativas a outras esferas do saber, como é o caso das questões de ordem prática, que também existem nesse diálogo. Claramente, tais questões de ordem prática são abordadas no Sofista. Isto se evidencia na busca do próprio objeto de pesquisa que o Estrangeiro de Eleia propõe: a definição do sofista. Conhecido como mestre no ensino da virtude, falar sobre o sofista implica tratar de questões éticas e políticas.

O Sofista, além dessas problemáticas ontológicas, lógicas e epistêmicas, também expõe questões relativas à esfera prática, mas que aparentemente se empalideceram devido ao brilho do núcleo duro do diálogo. Inevitavelmente, para definir o sofista, é necessário tratar de suas competências e os domínios nos quais ele as aplica. Suas competências se apresentam nas mais múltiplas facetas e Platão não economiza, ao apresentá-las, em quase todos os seus tão conhecidos estereótipos, os quais, ao serem trazidos à baila, já dizem muito do que será tratado no diálogo.2 2 A questão relativa à política aparece de maneira mirrada e completamente indireta (PLATÃO, Sofista, 217a). Porém, as outras características, como interesseiro e caçador de garotos jovens, comerciante de conhecimento, já que cobra pelo ensino (e ensina sobre vários ramos do conhecimento), um erístico ou lutador nos discursos, um ilusionista e prestidigitador, são mais explicitamente tratadas no diálogo. Declaramos que foram quase todos os estereótipos por Platão não ter tornado muito evidente o papel do sofista enquanto um estadista, um político. Nessa miríade de formas do sofista, a qual inevitavelmente toca em questões da esfera prática, contudo, é na sexta definição que mostrará o papel de um determinado valor moral no ato da refutação.

1 Elenchos e vergonha

No momento da sexta definição do sofista, na parte inicial do diálogo, o Estrangeiro faz uma distinção entre dois males da alma, um deles de ordem moral (apresenta, como exemplo desses males, a injustiça, a intemperança e a covardia, que são três dos principais vícios elencados pelo pensamento grego antigo, diríamos três vícios cardinais) e um de ordem intelectual (o mal da alma é a ignorância).3 3 O uso do termo “ignorância” não é capaz de apreender a flutuação terminológica empregada por Platão. As escolhas dos termos, por parte do filósofo, merecem uma atenção redobrada que exige muito mais do que o presente artigo pretende. Por isso, o tipo específico de ignorância que interessa às pretensões platônicas é a amathía. Pela série de dificuldades que envolvem a precisão do termo, optaremos por mantê-lo transliterado. Alguns especialistas, porém, optaram por traduzi-lo: Gooch (1971) traduz por “stupidity”; Lott (2012) traduz por “lack of learning”; Notomi (1999) “inability to learn”. Nesse momento do argumento, o Estrangeiro observa, então, que a correção do erro intelectual se faz por uma técnica, um certo tipo de ensino. Para os outros males da alma, que são os vícios, a kolastikḗ, que é uma técnica corretiva/punitiva (no caso do diálogo, a justiça, díkē, enquanto uma lei externa, é um exemplo de correção) é a técnica que elimina esse tipo de mal da alma.

Parece se apresentar, nesse argumento, uma distinção entre mal intelectual e mal moral, o que poderia representar uma ruptura radical com o intelectualismo socrático.4 4 Solana (2013, p. 72) também supõe que Platão objetivou romper com o intelectualismo socrático: “Within the general context of the trilogy, Plato could have pursued certain objectives, the meaning of which escapes us. One such objective could have been that of modifying the Socratic doctrine known as moral intellectualism.” Para Sócrates dos primeiros diálogos platônicos, a correção ou guia da ação, assim como o furtar-se aos vícios, tem como condição necessária e suficiente o conhecimento da virtude. Parece correto afirmar que a correção dos vícios não se dá mediante o conhecimento, de acordo com a distinção proposta no argumento da sexta definição, pois, nele, não é o conhecimento que corrige, mas a reprimenda; já o mal intelectual, a ignorância, o qual é um erro cognitivo, é corrigido pela educação - ou, como é dito pelo estrangeiro, é a técnica que se faz pela palavra, o ensino pelo lógos (Sof. 229e). Muitos especialistas interpretam esse desdobramento contido no Sofista como uma ruptura, mas há indícios, no diálogo, de que a distinção feita por Platão não acarreta o fato de que os domínios não possuam qualquer contato, ao contrário, é possível mostrar que valor moral e valor intelectual possuem uma mútua implicação.

A cisão desses domínios é completamente aparente.5 5 Solana (2013, p. 79) considera que o método socrático opera em dois níveis: um intelectual e outro moral. Diríamos, inclusive, que intrinsecamente não é o que se revela nas obras de Platão.6 6 Gooch (1971, p. 126) assinala que a divisão tem importância ética: “My own reading of this section is that Plato, not popular opinion, is responsible for the division of evils into two branches, and that the division therefore cannot be considered unimportant for his ethics.” Se assim fosse, uma consequência necessária a admitir seria o abandono, por Platão, de todo o seu projeto político, tendo em vista que o filósofo que governa a multidão ignara deve governar, segundo Platão, mediante o convencimento e nunca pela violência. Se a palavra não fosse capaz de corrigir ou mudar os princípios de outros indivíduos, a correção só poderia ser condicionante por meio da força e violência. Nos escritos platônicos, até sua última obra, a persuasão é pautada como signo do governante. O estadista deve antes convencer a população e nunca impor suas decisões (MORROW, 1953MORROW, G. R. Plato’s Conception of Persuasion. The Philosophical Review, v. 62, n. 2, p. 234-250, 1953.; PLATÃO, Político, 303e; Leis, 690cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Ainda, e consideramos o ponto que seria o mais absurdo, é que essa cisão seria motivo de imensa contradição no pensamento platônico: os conteúdos cognitivos não poderiam influenciar a correção dos vícios e vice-versa, o que significa ainda, os males da alma não poderiam ser da alma.

No próprio texto do diálogo, é possível perceber que Platão reconhece que exista realmente uma interação entre conteúdo moral e intelectual. Dois momentos revelam isto e se encontram nas seguintes passagens, as quais denominamos P1 e P2, respectivamente:

[A] “não percebes que na alma dos ignóbeis o que diverge são as opiniões com os apetites, o ânimo com os prazeres, a razão com as dores e todas essas coisas umas com as outras?” E o Estrangeiro complementa: [B] “Indubitavelmente todas elas nasceram para serem congêneres necessariamente”.7 7 Todas as traduções aqui presentes foram feitas pelo próprio autor deste artigo. (PLATÃO, Sof. 228bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Pois, minha querida criança, os purificadores [da alma], [A] como os médicos em relação aos corpos, que têm por costume não poder beneficiar o corpo antes de ter recomendado o alimento até que os obstáculos internos não tenham sido retirados, o mesmo também pensaram para a alma, ela não terá a vantagem dos conhecimentos recomendados até que, pela refutação, [B] a pessoa refutada é levada a um estado de vergonha, livrando-se das opiniões que impediam o conhecimento. (PLATÃO, Sof. 230b-dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Temos que admitir que existe uma interação entre elementos da esfera intelectual e elementos da esfera moral. A citação P1[A] deixa clara a possibilidade dessa interação, já que a razão e a opinião (que são capacidades cognitivas) interagem com elementos da esfera moral, como os desejos, os apetites e as dores. A interação, nesse caso, se apresenta como uma divergência ou desacordo entre esses elementos arbitrários e capacidades cognitivas. Se uma capacidade cognitiva se opõe a uma paixão, por exemplo, significa que, de alguma forma, uma pode interferir na outra.

É provável que a explicação para a possibilidade dessa interação seja o que está declarado em P1 [B], que afirma a seguinte tese forte: todas essas coisas, sejam intelectuais, sejam arbitrárias, compõem o mesmo gênero (talvez possamos afirmar que compartilham a mesma natureza). Com base nessa tese da congeneridade dessas atividades, para que Platão conserve essa ruptura entre processo cognitivo e atividades da esfera arbitrária, basta que ele estabeleça que cada uma delas sejam espécies distintas de um mesmo gênero. Ser espécies de um mesmo gênero possibilita a diferença entre uma e outra atividade e, principalmente, viabiliza e explica a própria intervenção de uma atividade na outra.

P2 [A] retoma a analogia entre as técnicas de purificação para o corpo e para a alma, que foi feita anteriormente em 227a, quer dizer, a medicina e a correção são técnicas aplicadas para a doença do corpo e a doença da alma, respectivamente, enquanto a ginástica e a educação são aplicadas para a fealdade do corpo e da alma, respectivamente. Nessa passagem, em vez de manter a analogia anterior, a saber, a de que o purificador da fealdade da alma seria o professor de ginástica, o Estrangeiro declara ser a atividade médica análoga à atividade que purifica a fealdade da alma. Tal passagem por si só não é suficiente ainda para concluir que a cisão não é radical, como alguns comentadores o fazem, não obstante, atesta que a interação existe e que, portanto, Platão a admite.8 8 Gooch (1971, p. 129) enfatiza que a amathía é tanto uma doença quanto uma fealdade: “Stupidity, it appears, must be a diseased as well as a deformed state of soul.”

A segunda parte dessa passagem (P2 [B]) apresenta um conteúdo mais evidente, que é o próprio objeto de interesse da discussão aqui contemplada. Segundo a passagem, a refutação é a técnica de ensino que purifica a fealdade na alma e é ainda o mais eficaz meio de purificação desse mal. Especificamente, o mal que a refutação expurga da alma é a amathía, um certo tipo de ignorância que pode significar uma carência de aprendizado ou conhecimento, um erro cognitivo, uma espécie de engano9 9 No Sofista, 260c, Platão afirma que, se há falsidade, há engano. , uma imprecisão etc. Com efeito, a refutação é um processo que à la base é puramente intelectual, pois seu procedimento, tão somente negativo, visa a mostrar uma série de opiniões contraditórias sustentadas pelo indivíduo que se deixa passar pelo exame refutativo.

Ademais, a refutação, ao mostrar que certas opiniões são inconsistentes umas com as outras, por serem contraditórias, além de desobstruir o caminho para o conhecimento, pois, uma vez demonstradas a inconsistências entre elas, se torna difícil a possibilidade de o refutado ainda albergá-las, gera também o desejo de saber a verdade e conjuntamente um sentimento que contribui de maneira igual para a retirada desses obstáculos, que é a vergonha. Quer dizer, a clivagem intelectual ocorre igualmente pela influência de elementos extracognitivos, como a passagem deixa bem claro. É por demais evidente, pela passagem, que um sentimento como a vergonha, o qual é elemento da esfera moral, pode influenciar em conteúdos intelectuais.

O que nos interessa, por fim, é saber como esse valor moral aparece no momento em que se efetiva uma refutação. Contudo, antes de entrarmos na exposição do argumento no Sofista, é necessário fazer um acautelamento: o sentimento de vergonha, como ordinariamente o compreendemos, significa o desconforto causado pela externalização de vulnerabilidade, fraqueza ou o que pode macular a dignidade e a honra de alguém. Compreender a vergonha apenas por esses parâmetros causa-nos estranhamento, quando nos deparamos com as considerações platônicas acerca desse sentimento. Platão não se limita a entender a vergonha apenas como um sentimento de reprovação pelo olhar do outro e, com isso, o desejo, de quem foi sujeitado à exposição pública, de ficar ocultado, escondido, fora dos olhares.10 10 Lott (2012, p. 43) compreende a vergonha como “sense of feeling oneself to be exposed”. É certo que a vergonha representa esse estado de coisas, porque Platão deixa a entender no Sofista essa compreensão. Mas defendemos que não é apenas dessa forma que se deve compreender a vergonha como Platão a concebeu.

O tipo de mal na alma que está ligado à vergonha é uma espécie de engano: para o caso particular do diálogo, o sofista é representado como alguém que tem convicção vaidosa de sua própria sabedoria, porém, é apenas aparente, pois ele está enganado de que é realmente um sábio. Quando se revela realmente a sua própria verdade, o sofista, ou o indivíduo que acaba por reconhecer que não sabe o que jactava, passa a ter vergonha. Há ainda um outro ponto que nos faz pensar que, para Platão, o sentido de vergonha é mais amplo: se ela for compreendida apenas como regulação pelo olhar do outro, o experimento mental do anel de Giges não teria sua razão de ser. O argumento, na República, que se utiliza desse mito é relativo aos casos de indivíduos que agem justamente apenas para evitar a vergonha ou a punição. Se não existir o olhar do outro, não existe nem punição nem vergonha, de tal maneira que se provaria que fazer justiça não é um bem buscado por si mesmo, mas que é feito por causa das consequências.

A partir das colocações de Glauco e Adimanto, no início do Livro II da República, todo o restante do diálogo até o Livro X é uma exposição para demonstrar que a justiça vale a pena ser praticada, independentemente de suas consequências. A justiça é um bem que apenas por si mesmo é desejado de maneira completamente apartada de suas consequências, não importa que de sua prática o agente obtenha recompensas ou se esquive de um prejuízo (passar vergonha por ter cometido uma injustiça e/ou ser punido por isso). O homem justo, nesses parâmetros, nunca cometeria uma injustiça, mesmo possuindo o anel de Giges, pois existem princípios regulatórios da ação que lhes são internos e que o impedem de cometer desmedidas.

O argumento iniciado no Livro II da República tem como objetivo mostrar que nossas ações não precisam ser condicionadas por influências alheias, como as consequências delas, inclusive mesmo para se praticar ações virtuosas. Nesse contexto, a fonte reguladora da ação é a própria razão que trabalha no sentido de fazer com que os mais diversos impulsos concorram em harmonia para alcançar os verdadeiros bens para a vida humana. Por vezes, a razão não é suficiente para promover esse concurso, gerando assim os conflitos internos, ou seja, o curso dos impulsos flui em direções opostas. Um princípio interno regulador de nossas ações, de acordo com Platão, pode ser desenvolvido pela educação, por exemplo. Esse princípio regulador interno, uma vez desenvolvido, dispensa todo e qualquer fator externo: as consequências e a interdição de outros indivíduos não são mais necessárias para uma boa regulação da ação. Logo, quando a razão não é suficiente e o agente não está sob o olhar de testemunhas, ainda assim é possível que a vergonha regule a ação humana. Nesse caso, trata-se de uma vergonha internalizada, cujo olhar é do próprio agente e que o impede de cometer ações viciosas. A vergonha cumpre esse papel de princípio regulador que se contrapõe a tudo que não é nobre, sem ordem e assimétrico.

Se tomarmos os dois casos de vergonha, o que ocorre sob olhar de testemunhas e a internalizada, com o intuito de compreender tanto o que ela é quanto a sua causa, devemos proceder no exame do caráter comum presente nesses dois casos. A orientação, nesse contexto, já é dada pelo próprio Platão, que nos faz compreender que a vergonha (aiskhýnē) se liga à fealdade (aíkhos, 288a).11 11 No Banquete, em 201a, o termo é usado como oposto ao belo. Tanto a vergonha da exposição pública quanto a internalizada são reações à fealdade, e a manifestação delas é uma contraposição a esse conteúdo que se apresenta como feio.

É preciso atentar para o fato de que a divergência ou desacordo entre vergonha e fealdade tem por base uma orientação lógica, que interpretamos ser a lei da contrariedade. Ao elaborar o argumento da vergonha que acompanha a refutação, temos a hipótese de que Platão tem em mente a aplicação do Princípio de Não-Contradição da forma, como fora apresentado na República, e a base dessa contrariedade é da maneira descrita em 437b-c, nesse mesmo diálogo. A vergonha e a fealdade são contrários que se excluem mutualmente, de tal maneira que a vergonha é a aversão à fealdade.

Consideramos que este é o caso, por dois fatores: 1) o princípio de não-contradição é aplicado no argumento da divisão da alma na República e no processo de purificação descrito no Sofista; 2) na passagem P1 [A] logo acima, o ignóbil experimenta uma divergência interna. As divergências elencadas enumeram exatamente os três elementos que correspondem às três partes da alma como foram denominadas na República, a saber: o apetite, o ânimo (thymós) e a razão. Por conseguinte, quando o sentimento de vergonha é despertado, uma divergência está ocorrendo entre um princípio que se contrapõe ao seu contrário. Neste artigo, apresentaremos mais à frente que a fealdade é uma assimetria no corpo e na alma, logo, é diante de formas de assimetria que o sentimento de vergonha se opõe. Se a vergonha se opõe a um certo tipo de assimetria, falta de medida, desproporção, por conseguinte, ela deve ter alguma participação no conceito de medida, de ordem etc. A base para acreditarmos que a vergonha tenha essa participação está declarada em República 560a; aqui, Platão sugere que o sentimento de pudor, tomando o pudor como sinônimo de vergonha12 12 Chantraine (1999, p. 40): sobre a vergonha compreendida como pudor. , contribui para restaurar a ordem. Portanto, é um certo tipo de desordem que entra em conflito com um certo tipo de ordem. Valendo-se disso, fica mais compreensível por que se dar conta de um engano intelectual tem como consequência o sentimento de vergonha.

Fica estabelecido, por conseguinte, que elementos extracognitivos, como paixões, emoções, desejos, têm capacidade de influenciar ou serem influenciados por elementos cognitivos, como opiniões e conhecimentos. Especificamente, trabalharemos com a relação entre a vergonha, que é um valor moral, e a amathía, que é um certo tipo de ignorância, portanto, uma capacidade cognitiva. Para tanto, resta-nos agora saber o que é a amathía. De antemão, estamos aqui tratando do tipo de ignorância que ocupou Platão desde seus primeiros escritos, o tipo em que o ignorante pensa que sabe sobre o assunto que na realidade não sabe - é o erro intelectual de pensar que algo X é Y, quando, na verdade, é algo X que é W.

Os exemplos desse tipo de ignorância, exemplos de amathía, são inúmeros em Platão. Seus primeiros diálogos, principalmente, expõem de maneira reiterada o erro do interlocutor de Sócrates que sempre acha que sabe a matéria que lhe é questionada, porém, depois do exame socrático, revela-se como ignorante nesse assunto; ainda temos outros exemplos dessa espécie de ignorância, como na Apologia: aqui, a amathía é apresentada como o medo da morte (temer a morte é a pretensão de saber o que ela é (PLATÃO, Apologia, 29a-bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), quando, na verdade, nenhum ser humano sabe); no Protágoras, esse tipo de ignorância é anunciado momento antes do argumento que visa a demonstrar que a coragem é uma ciência, porque muitos acreditam saber o que a coragem e a covardia são, mas acabam confundindo uma com a outra; no Sofista, a discussão é pautada na ideia de o sofista ser visto pela multidão como um sábio e assim por diante.

2 Amathía e opinião falsa

Tendo estabelecido essas bases, passemos ao exame da amathía, no Sofista. Sobre a amathía e a vergonha, é na busca da definição do sofista, mais precisamente a sexta definição, que tal questão é levantada. Após um curto prólogo, no início do diálogo, o Estrangeiro de Eleia inicia juntamente com Teeteto um exame cujo método opera por uma divisão de um gênero em espécies até se obter a definição do objeto investigado. Após a ilustração desse método, no caso do pescador, o Estrangeiro se lança na busca da definição do sofista, porém, sua procura se mostra bem mais complexa do que a anterior e, posteriormente, revelará dificuldades ainda maiores, apresentadas na “digressão ontológica”. Temos ao todo seis definições do sofista alcançadas por esse método empregado pelo Estrangeiro, porém, todas elas frustradas. É depois da sexta definição que as grandes questões do diálogo serão estabelecidas, pois é necessário dar uma definição definitiva para o sofista, mas que só será possível após um longo détournement. Da mesma forma, esse desvio também será necessário para entendermos o que é a amathía.

O método da divisão aplicado na sexta definição do sofista toma como gênero, primeiramente, a arte de separar (diakritikḗ) (PLATÃO, Sof. 226cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), que deverá ainda ser dividido, pelo Estrangeiro, em duas espécies: a que separa o melhor do pior e a que separa o semelhante do semelhante. Para a segunda espécie não existe um nome, mas a primeira, a arte de separar o melhor do pior é chamada de técnica da purificação (kathartikḗ) (PLATÃO, Sof. 226ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). A purificação também se distingue em duas espécies: existe a purificação dos corpos e a purificação da alma. O que interessa aqui é essa segunda espécie de purificação, relativa à alma, já que a atividade dos sofistas diz respeito ao convencimento de seus ouvintes. De qualquer modo, os sofistas trabalham com o discurso, e sua influência é sentida diretamente na alma e não no corpo. Dado isto, a purificação deve separar da alma aquilo que lhe for o pior e deixar o que for o melhor, em outras palavras, expurgar o mal que há nela.

A purificação da alma também se divide em mais duas espécies, pois existem dois tipos de males na alma, portanto, duas formas de extirpá-los. Para falar deles, Platão estabelece uma similaridade entre os males psíquicos e os males do corpo, dividindo em dois cada um deles - tanto o corpo como a alma possuem dois tipos de males: a doença e a fealdade. O corpo que adoece tem a doença como um dos seus males e, similar à doença no corpo, existe uma doença que se dá na alma; outro mal do corpo é a fealdade e similarmente também existe uma fealdade da alma. Por existir dois males do mesmo gênero, mas que possuem espécies diferentes, por se aplicarem a coisas diferentes, ou seja, à alma e ao corpo, é necessário que existam duas artes de purificação: duas para purificar o corpo e duas artes de purificação para a alma. Para o corpo, a arte criada para suprimir a doença é a medicina e, para suprimir a fealdade, é a ginástica.13 13 É inevitável aqui ver uma referência ao Górgias, 464b e sequência. Para os males da alma existem igualmente duas técnicas de purificação, todavia, sua determinação é dependente da classificação dos tipos de males que existem nela, ou melhor, é ainda necessário saber quais são esses males da alma, que são uma espécie de doença e uma espécie de fealdade, e, por fim, qual deles é o tipo de mal que o purificador, que, nessa definição, é o sofista, pretende eliminar.

Assim, como estabelecido, a enfermidade no corpo corresponde à enfermidade na alma, a qual, nesse caso, é chamada de stásis14 14 Mesma terminologia usada na República; ver, por exemplo, 440e. (στάσις: dissensão, discórdia, desunião, luta interna). No Sofista, é dada a seguinte definição de stásis: “[...] ora, não considera que a stásis não é outra coisa do que a ruína pela dissolução do que é naturalmente congênere.” (PLATÃO, Sof. 228aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Os exemplos de stásis são os conhecidos conflitos internos à alma (PLATÃO, Sof. 228bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.); não é exposto como conflito entre suas partes, apesar da correspondência possível com o argumento da República, mas que são apresentados como direcionamentos que se opõem um ao outro: a opinião se opõe aos apetites, o ânimo se opõe aos prazeres, a razão se opõe às dores. A alma conflituosa é essa espécie de mal, de doença na alma que dissolve a unidade (componente natural da alma). À fealdade da alma, o Estrangeiro diz ser uma ametría (ἀμετρία: assimetria, desproporção (PLATÃO, Sof. 228aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

É à fealdade da alma que o sofista-purificador aplica a sua técnica de purificação, entretanto, para aplicá-la, é necessário ainda explicar como ocorrer esse tipo de assimetria na alma. Primeiramente, ele explica o que é a assimetria em geral, ao indagar: “E isto? Quando algo participa do movimento e tenta acertar o alvo, errando-o em cada uma das tentativas quando tenta acertá-lo, diríamos que isso acontece por uma proporção mútua ou, pelo contrário, por uma assimetria?” (PLATÃO, Sof. 228cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Em sentido restrito, particularmente, a assimetria da alma é um movimento de busca da verdade, porém, quem a procura não a encontra por sofrer um engano nesse percurso (PLATÃO, Sof. 228c-dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Com base nessa definição de assimetria, o Estrangeiro define a ignorância: “Certamente, ignorância é quando a alma busca a verdade, mas se desvia do entendimento, o que não seria outra coisa do que um vaguear da mente.” (PLATÃO, Sof. 228c-dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). A definição de ignorância15 15 Palumbo (2013, p. 275): “[…] ignorance is nothing other than the incapacity to distinguish an object from its false images.” aqui também é em sentido amplo; os sentidos restritos serão os tipos de ignorância de que trataremos logo em seguida.

Uma vez que os males da alma foram determinados, o Estrangeiro elenca quais técnicas são necessárias para expurgá-los. Para o primeiro mal, considerado como uma doença na alma, a stásis, Platão diz que se aplica uma técnica corretiva (a kolastikḗ) (PLATÃO, Sof. 229aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Para a assimetria na alma, que é a ignorância (agnoia, ἀγνοία)16 16 Nesse caso, a ignorância aqui é um termo geral que contempla duas espécies, sendo uma delas a amathía. , a técnica que expurga tal mal é o ensino (didaskalikḗ, διδασκαλική). Ao encontrar essa técnica que elimina a ignorância, que é a fealdade da alma, o Estrangeiro ainda questiona se ela se divide em mais espécies ou não. Se for mais de uma espécie de ignorância17 17 Aqui fica claro por que Platão opta pelo termo agnoía, em vez de amathía, pois entende que a amathía é um tipo de agnoía: Καὶ δὴ καὶ τούτῳ γε οἶμαι μόνῳ τῆς ἀγνοίας ἀμαθίαν τοὔνομα προσρηθῆναι. (Sof. 229a). que acomete a alma, temos, portanto, que diferenciar quais tipos de ensino se aplicam a cada uma delas. Platão dá um nome para, pelo menos, uma dessas ignorâncias, que ele considera tão grande que equivale a todas as outras, qual seja: nada saber e crer que sabe. O ensino que corresponde a essa ignorância é a instrução (paideía), a outra parte do ensino, Platão diz ser a arte dos demiurgos ou instrução técnica (demiurgikḗ). Portanto, a didaskalía se divide em demiurgikḗ e paideía.

No decorrer da exposição, Platão passa a falar de lógois didaskalikếs, o ensino pelo lógos (PLATÃO, Sof. 229ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), em vez de paideía, dando a entender que são a mesma coisa; assim, essa parte do ensino é feita exclusivamente pelo discurso. Porém, a paideía também se divide em duas espécies: a admoestação (nouthetētikḗn), mais rude e provavelmente menos eficiente, e a refutação (elénkhos). O Estrangeiro explica que a refutação, ao contrário da admoestação, é a melhor forma de purificação da fealdade da alma, mais importante e a mais eficaz, pois é ela que garante, por exemplo, a obtenção da felicidade.18 18 Gooch (1971, p. 129) dá a seguinte explicação para a superioridade da refutação em relação à admoestação: “[...] the Eleatic’s remarks at 230ab suggest rather that cross-examination transcends admonition. It is a superior method of education because it deals, as admonition does not, with the problem of involuntary conceited ignorance.” Recapitulemos: a didaskalía se divide em demiurgikḗ e paideía, a paideía se divide em admoestação e refutação, cabendo à refutação a purificação da fealdade da alma, na sua forma de ignorância conhecida como amathía.

Com isto, chega-se à sexta definição do sofista: um especialista em expurgar a amathía da alma pela refutação. O procedimento de purificação da fealdade da alma pelo sofista consiste em lançar perguntas para o seu interlocutor, determinar se suas respostas possuem algo de valor (o que se verifica pela natureza errante de suas opiniões), para, em seguida, fazer com que tais opiniões se contraponham umas às outras, já que o caráter errante dessas opiniões é causa inevitável da contradição, mostrando que, em relação ao mesmo objeto e ao mesmo tempo, elas são mutuamente contraditórias (PLATÃO, Sof. 230b-cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Ao se revelar essa contradição interna no grupo de opiniões que os interlocutores sustentam, demonstra-se a fragilidade de suas opiniões, gerando-se, de acordo com Platão, o sentimento de vergonha.

A partir dessas considerações sobre a técnica de purificação da alma que suprime a amathía e sua relação com a vergonha, percebe-se que a refutação parece ser uma condição necessária para o êxito da técnica, mas não parece ser uma condição suficiente. A percepção de estar equivocado faz com que o refutado se sinta envergonhado (PLATÃO, Sof. 230dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.) e experimente esse sentimento, ao notar a assimetria nas ideias que sustentava. Tomando ainda a tese platônica sobre o éros descrita no Banquete, o desejo é sempre pelo que é belo e nunca pelo o que é feio; e, por conseguinte, não temos aversão pelo que é belo, mas sim pelo que é feio. Perceber o engano faz com que as opiniões que antes se albergavam na alma do interrogado sejam abandonadas, já que se revelaram equívocas, evidenciando que o interrogado, na verdade, é ignorante em tal assunto. Logo, o interrogado abandona essas opiniões equívocas, porque naturalmente temos aversão ao que é feio.19 19 Banq. 201 a: “[...] pois éros não seria do feio.” (αἰσχρῶν γὰρ οὐκ εἴη ἔρως). Retirar os equívocos, os enganos, as ilusões e tudo o mais afim abre o caminho para a ciência, necessariamente. Por conseguinte, não é apenas o ato de refutar que opera uma mutação mental, seja intelectual, seja moral: a percepção do equívoco faz com que, naturalmente, ele seja abandonado, porque é da natureza humana buscar o que é belo e ter aversão ao que é feio.

Do que o interlocutor sente vergonha ou identifica como feio? Seguindo o argumento apresentado nessa parte do diálogo, fica claro que o feio, nesse caso, é sua ignorância, como já fora mostrado anteriormente (PLATÃO, Sof. 228dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). É sua ignorância que faz com que o interlocutor experimente a vergonha. Relembremos que a ignorância é uma assimetria e que a assimetria é desviar-se do fim buscado. Para o caso da ignorância, a alma a experimenta, quando busca a verdade, mas se desvia desse fim (LOTT, 2012LOTT, M. Ignorance, Shame and Love of Truth: diagnosing the sophist’s error in Plato’s Sophist. Phoenix, v. 66, n. 1/2, p. 36-56, 2012., p. 41). Nosso passo de agora em diante é saber como essa assimetria acontece e por quê.

Ao fim da sexta definição, o sofista é um tipo de purificador: aquele que purifica a alma ignorante de sua amathía. Por causa dessa prática de purificação, o sofista é dito ser de uma linhagem nobre (PLATÃO, Sof. 231bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.)20 20 Para uma discussão sobre o assunto, Kerferd (1954) argumenta que a sofística está representada nessa sexta definição. Contrário a esse estudioso, Trevaskis (1955) rejeita essa interpretação. Solana (2013) trata do tema, ressaltando que a questão platônica é axiológica e normativa. Contra aqueles que consideram que a descrição do elenchos, nessa passagem, não corresponde ao apresentado nos primeiros diálogos, cf. ZAKS (2018). . Além das múltiplas formas em que o sofista apareceu, ao longo da exposição que tentou defini-lo, ele também se assemelha ao próprio filósofo21 21 Bernabé (2013) faz uma abordagem da sexta definição, indicando como Platão aproxima o sofista do filósofo, em vários pontos de contato, os quais são principalmente por termos religiosos. Essas aproximações podem levar, portanto, a uma confusão entre ambos. - no diálogo, o Estrangeiro não faz uma referência direta ao filósofo como o próprio purificador de almas; principalmente, pela circunstância de a descrição assemelhar-se bastante com a figura de Sócrates, que foi desenhada por Platão, ao longo de suas obras, como um refutador que torna melhor quem dele se aproxima. Mas isto revela que diferenciar um do outro não é realmente tarefa simples. As delimitações que separam o sofista do filósofo já eram meio opacas em Platão, desde os primeiros diálogos: em Protágoras, 314d, Sócrates vai com Hipócrates à casa de Crítias, para apresentá-lo a Protágoras. Ao baterem na porta, o escravo exclama: “Ah! Outros sofistas!” Talvez tal fala do escravo não represente essa dificuldade de delimitação, mas é curioso que Platão tenha optado por fazer essa representação de Sócrates; no Banquete, Diotima, ao descrever o deus Éros, diz que ele é um incansável caçador, tecedor de tramas, desejoso da prudência, filósofo, encantador e sofista (PLATÃO, Banq. 203d-ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Sócrates afirma ainda que Diotima, sua mestra nos assuntos relativos ao amor, está entre “os perfeitos sofistas” (PLATÃO, Banq. 288cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Até mesmo para a época, a noção do que era um sofista não parecia algo muito bem delimitada para os indivíduos em geral. Por exemplo, Aristófanes representa para a plateia Sócrates como um sofista, na comédia As Nuvens. E, no decorrer do argumento do Sofista, em 253c, a semelhança entre o sofista e o filósofo é tão aproximada que, ao se procurar um, encontra-se o outro. Não podemos deixar de mencionar igualmente que, em 217b, o Estrangeiro já havia declarado que o filósofo, o sofista e o político constituem três tipos que não são fáceis de se determinar o que é cada um. Por esse motivo, independentemente de que o sofista de linhagem nobre seja Sócrates ou os que tentavam imitar a prática socrática, como alguns defenderam, parece que o uso da refutação é o ponto de intersecção que assemelha o sofista e o filósofo. Interpretamos que a imagem que o sofista cria de si mesmo imita essa característica do filósofo e, com isso, ele parece ser sábio.22 22 Palumbo (2013, p. 277-278): “The sophist wants to appear as a sophos to his interlocutors. He is the image of a sophos, and since every image is a kind of derivative reality, his name too is derived from that of the sophos.”

As múltiplas facetas nas quais o sofista se apresenta, que o assemelham até mesmo ao seu oposto, induzem uma recomendação por parte do Estrangeiro: “[...] é necessário estar firme sobre todas as coisas e, mais ainda, em relação às semelhanças, devemos estar sempre vigilantes: pois é um gênero escorregadio.” (PLATÃO, Sof. 231aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Teeteto se encontra em aporia depois disso e a sua dificuldade diz respeito aos inúmeros aspectos que o sentido de sofista carrega, porque impede uma definição segura, verdadeira e que corresponda ao ser que é o sofista. A tentativa inicial de definir o sofista demonstrou ser uma listagem dos seus vários aspectos e não uma unidade que abarque todos eles. Em cada momento quando se acreditou ter apreendido o sofista, era apenas uma certa perspectiva dele que se mostrava.

Com base nos inúmeros aspectos do sofista, o Estrangeiro afirma:

[...] veja, então, quando alguém aparece (phaínētai) sabendo muitas coisas, mas passa a ser chamado por uma única arte, esta aparência (phántasma) não é muito salutar, pois não podemos decifrar o ponto que contempla todos estes tipos de conhecimento, e é por esta razão que ele passa a ter vários nomes em vez de um? (PLATÃO, Sof. 232a, grifo nossoPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Aqui ocorreram os termos phaínetai (aparecer) e phántasma (aparência), utilizados por Platão na sua ligação com o que é imagem e cópia. Temos aqui o início de uma discussão sobre imagem e aparência que serão definidoras do núcleo duro da investigação, já que o que é cópia ou imagem também pode ser entendido como o falso e é exatamente a possibilidade do falso que leva às questões atinentes à relação entre ser e não-ser.

Para entrar na discussão relativa à imagem e à aparência, o Estrangeiro retoma a quinta definição: o sofista é um contraditor. A dificuldade expressa por Teeteto quanto aos inúmeros sentidos encarnados pelo sofista, que seria exatamente encontrar o ponto focal ao qual todos conhecimentos convergem23 23 Sofista, 232b: “[...] pois, para mim, é algo uno que diz mais revelá-lo.” (ἓν γάρ τί μοι μάλιστα κατεφάνη αὐτὸν μηνῦον). , como foi declarado na passagem 323a, cria a necessidade de uma definição mais precisa. O ponto focal na arte do sofista, ao qual todos os tipos de conhecimento convergem, é a antilogía, a arte de controverter, de contestar, de argumentar contra, porque é uma arte que tem a capacidade de contra-argumentar sobre todas as coisas habilmente. Munido dessa habilidade, o sofista consegue discorrer sobre os mais diversos assuntos: das coisas divinas e invisíveis, das coisas visíveis (fenômenos que ocorrem na terra e na abóboda celeste), sobre o devir e o ser, sobre questões particulares e de ordem pública e, por fim, sobre toda e qualquer arte.

O sofista tem a capacidade de discorrer sobre todas as coisas, todos os assuntos, todas as ciências, graças à sua arte. Aquele que aparece com essa capacidade, parece ter o conhecimento de todas as coisas: esse indivíduo tem a aparência de possuir o conhecimento de todas aquelas coisas que anteriormente foram listadas. Em 233c, o Estrangeiro conclui: “[...] logo, eles parecem ser sábios sobre todos os conhecimentos” (Πάντα ἄρα σοφοὶ τοῖς μαθηταῖς φαίνονται) - grifos nossos. Nos relatos sobre os sofistas que se encontram na obra de Platão, a figura deles é apresentada em alguns momentos como esse conhecedor de todas as coisas; por exemplo, Dionisodoro, no Eutidemo, 294 a, afirma que apenas basta saber uma única coisa para sabermos todas as outras; no Menon, em 70c, Sócrates relata uma prática curiosa de Górgias, o qual clamava em praça pública saber discorrer sobre tudo; e, em Górgias, 447c, a personagem homônima do diálogo afirma que a sofística tem uma resposta para tudo. Assumir de antemão que tal fato é uma aparência do que é sábio e não o que realmente seria um não incorre em erro, visto que o Estrangeiro toma por base o postulado de que é impossível ao ser humano saber de tudo. Logo, a sofística só pode ser um fingimento, uma enganação.

A argumentação seguinte trabalha com uma analogia: o sofista é tal qual um pintor. A fim de estabelecer essa analogia, o Estrangeiro observa que toda técnica que pretende dar conta do todo, sem ter a ciência de todas as coisas de que trata, é uma técnica da imitação (mimētikḗ) (PLATÃO, Sof. 234bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). A arte da pintura é um exemplo de mimética: o pintor consegue representar todas as coisas, porém, somente aquelas que podem ser representadas por meio de imagens visuais; ora, o pintor imita todas as coisas que apreendemos visualmente e as reproduz enquanto imagens visuais (NOTOMI, 1999NOTOMI, N. The Unity of Plato’s Sophist: Between the Sophist and the Philosopher. New York: Cambridge University Press, 1999., p. 126).

Igualmente, o sofista imita todas as coisas e produz imagens delas, contudo, diferentemente do pintor, as imagens produzidas pelos sofistas são o que o Estrangeiro nomeou de “imagens faladas”. Ele afirma, em 234c-d, que, para o caso dos discursos, existe também uma outra técnica, a qual afasta ou desvia os jovens de alcançarem as coisas verdadeiras (τῶν πραγμάτων τῆς ἀληθείας ἀφεστῶτας), iludindo-os e fascinando-os através de palavras (διὰ τῶν ὤτων τοῖς λόγοις γοητεύειν), mostrando imagens faladas sobre todas as coisas (δεικνύντας εἴδωλα λεγόμενα περὶ πάντων). Em outro momento, o Estrangeiro alude a aparências no discurso (ἐν τοῖς λόγοις φαντάσματα) (PLATÃO, Sof. 234ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), que podemos considerar como correspondentes às imagens faladas - se levarmos em conta que eídōla (imagens) são phantásmata (aparências).

Podemos sustentar, portanto, que a mimética se divide em imitação que produz imagens visuais e faladas.24 24 Algo semelhante é argumentado no Crátilo 423b: aqui é dito que o nome é uma imitação pela voz. Porém, a divisão efetuada na arte mimética ocorre entre dois tipos de imitação. A primeira é chamada de eikastikḗn (εἰκαστικήν: arte da cópia) (PLATÃO, Sof. 235ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.): é a arte que reproduz a devida proporção do modelo, copiando exatamente a largura, o comprimento e a profundidade, aplicando as devidas cores nas partes convenientes - seu produto é um eikōn (cópia). O outro tipo de imitação não se preocupa com a reprodução fiel das proporções do modelo, pois, se o fizesse, não produziria o efeito esperado. Esse tipo de imitação deve se preocupar em representar a proporção relativa ao belo apreciado no objeto original (ἀποδιδοῖεν τὴν τῶν καλῶν ἀληθινὴν συμμετρίαν) (PLATÃO, Sof. 236aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). O que se mostra (phainómenon), nesse tipo de reprodução, como semelhante ao belo é uma aparência (phántasma), por isso, essa arte é chamada de phantastikḗn (φανταστικήν: arte das aparências). É nessa modalidade de arte da imitação, a arte de imitar aparências, que se localiza o sofista.

As aparências produzidas pela phantastikḗn podem ser visuais e faladas. Na esfera do discurso, o parecer que diz a verdade, parecer que fala com justiça e dizer uma falsidade são exemplos de phántasma. Admitir que a técnica da sofística produz esses exemplos de phántasma significa afirmar que o falso pode ser falado e pensado. Mas isso ainda não é suficiente para mostrar o real problema dessa implicação, pois os exemplos concretos de falar e pensar o falso são inúmeros. O real problema é que um dos grandes princípios ontológicos da tradição deve ser negado, para que seja possível falar o falso ou dizer que o falso existe. É evidente que nós falamos coisas que são falsas, contudo, esse dado, para ser explicado, necessita admitir algo demasiado embaraçoso para a tradição filosófica: é preciso admitir que o não-ser é - o Estrangeiro enfatiza não existir outra forma para explicar o falso, isto é, nada de falso é possível, sem essa condição (PLATÃO, Sof. 237aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Mas a estratégia platônica requer que entendamos que o não-ser não tem que ser compreendido como não-ser absoluto (τὸ μηδαμῶς ὂν: “o que não é de modo algum”) (PLATÃO, Sof. 237bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), admiti-lo é o grande problema.

Essa premissa é fundamental para todo o argumento do Sofista, principalmente para entendermos a noção de imagem, pois dizer o falso é problemático, se tomarmos como pressuposto que o não-ser não é absolutamente. Porém, dizer não importa o que seja ou falar qualquer coisa já é admitir que se fala de algo, é dizer um ti (algo ou alguma coisa). Já o não ser absoluto é a negação absoluta de qualquer algo que seja, de qualquer ti. Portanto, desta perspectiva do não-ser absoluto, não seria realmente possível dizer o falso, porque seria falar absolutamente nada.

Para se compreender a possibilidade do discurso falso, é necessário descobrir em que sentido algo que é falso não o é realmente. Todavia, algo que não é tem participação no não-ser, mas é preciso que o não-ser não seja compreendido como o que ficou estabelecido pela tradição parmenidiana, já que acarreta contradições absurdas. Tratar do não-ser é imprescindível, pois é o que torna possível a existência de um discurso falso; se ele é possível, o negativo que o compõe não pode ser o não-ser absoluto. Isto é revelado também no momento em que Teeteto dá a definição de imagem,25 25 Estamos em total acordo com Notomi (1999, p. 156): embora o argumento do Estrangeiro tenha caráter aporético, a definição não é negada. O caráter aporético do argumento, no entanto, é devido à dificuldade relativa à questão do não-ser, o qual precisa ser bem delimitado - o que ainda não foi o caso. em 240a, onde ele define: “[...] uma outra coisa feita semelhante à coisa genuína.”26 26 Adotamos a tradução do termo como foi pensada por Notomi (1999), por considerarmos a mais eficiente na transmissão da ideia que a frase quer passar. O termo que traduz coisa genuína é alēthinós (ἀληθινός: verdadeiro, fiel), que alguns tradutores optaram por traduzir por “objeto verdadeiro”. A questão é que o termo “verdadeiro” não apreende o sentido do que se contrapõe ao que é falso no que diz respeito a não ser original, que é exatamente o que significa genuíno. Palumbo (2013, p. 271) também chama de genuíno o objeto original. Com base nessas definições, o Estrangeiro procede elencticamente ao estilo propriamente socrático.27 27 Zaks (2018) faz uma exposição sobre o papel da refutação no diálogo Sofista, tendo papel importante na obra para além da sexta definição. Ele faz com que Teeteto assuma as seguintes premissas: P3: coisa genuína é aquilo que realmente é; P4: a coisa não-genuína é contrária à coisa genuína. Se o genuíno é aquilo que é realmente e o não-genuíno o seu contrário, o não-genuíno é aquilo que não é.

No texto, Teeteto afirma que esse outro objeto similar não é o objeto genuíno, ele é o não-genuíno, que ele afirma ser um eoikos (semelhante, similar). Teeteto assumiu que todo não-genuíno é contrário ao genuíno e que o genuíno é realmente um ser, por conseguinte, o não genuíno só pode ser um não-ser. A conclusão real que se quer chegar é que o eoikos, que é algo ou alguma coisa, é um algo (ti) não-genuíno, logo, ele é um não-ser. Com base nisto, o que essa definição de imagem revelou? Em um primeiro momento, a imagem é admitida como algo, portanto, é alguma coisa. Posteriormente, depois da definição elaborada por Teeteto, já é admitido que a imagem é também um não-ser. Ser uma imagem significa comportar em si mesma uma combinação difícil de ser compreendida de ser e não ser. A argumentação mostrou, até então, que o conceito de imagem carrega em si o conceito de não-ser.

Ora, compreender o não-ser de acordo com a tradição é supor que a negação do ser signifique o oposto ao ser. Mas o oposto do ser é o nada e, por isso mesmo, falar e pensar o não-ser é impossível, de acordo com Parmênides, visto que só podemos falar e pensar sobre alguma coisa. A negação, que representa o não-ser da tradição, assume a negativa da própria coisa, significa dizer que a própria substancialidade da coisa é negada. A solução platônica para esse problema é pensar uma negação que não seja da própria coisa, solucionando isto, transferindo da coisa para o que é atribuído a ela. Significa afirmar um predicado que não se liga à coisa, como é o exemplo clássico de sustentar que a diagonal é comensurável. Dessa maneira, Platão pode estabelecer o não-ser como diferença ou alteridade.

O que resta, no momento, é explicitar a base cognitiva que está envolvida em todo esse processo, pois o sofista se apresenta como alguém que sabe de tudo, que conhece muitas coisas e que sabe discursar sobre todas elas. Além disso, as imagens que o Sofista produz são audíveis, já qie ele trabalha com imagens faladas. É necessário determinar o que é isto que o sofista sabe, pois, mesmo que não seja real, como, aliás, já foi argumentado anteriormente, sendo estabelecido como evidente que é impossível ao homem saber de tudo, ele consegue persuadir, impressionar a audiência e ensinar algo aos jovens. Embora suas produções sejam aparências, ele é capaz de produzir algo no mundo. O Estrangeiro explica que esses efeitos são possíveis, por causa da técnica sofística: por ser uma técnica que se serve de phantásmata, a sofística, ao produzi-los, faz com que se imprimam na alma de seus ouvintes juízos falsos ou que eles opinem falsamente (PLATÃO, Sof. 240dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). As crenças produzidas aqui fazem com que qualquer um que tenha contato com a sofística, seja como ouvinte, seja como propriamente um sofista, desvie e erre o alvo, o qual é a verdade buscada. Aqui, tais indivíduos cometem um engano, porque acreditam que realmente atingiram a verdade, no entanto, é uma aparência da verdade que eles obtiveram.

O aparato cognitivo é aqui trazido para o argumento, surgindo como explicação para o engano que o sofista produz, na alma dos jovens, uma aparência da verdade. Como essa aparência não é visual, ela é formulada proposicionalmente, ou seja, a aparência produzida pelo sofista se dá na forma de uma opinião falsa. Um engano criado com base em uma aparência, que traz em si a noção de não-ser. Valendo-se disso, é formulada uma definição de opinião falsa: julgar o contrário das coisas que são (PLATÃO, Sof. 240dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Acrescenta-se ainda, e é expresso como uma declaração conclusiva por causa da partícula ἄρα (logo, então), que ter uma opinião falsa é julgar que certas coisas que são não são, por exemplo: o justo pune, o rico é feliz, o prazer é bom, o corajoso teme a morte etc. Por fim, algo é falso, quando se declara que coisas que são algo não sejam esse algo, ou que coisas que não são algo, sejam esse algo (PLATÃO, Sof. 241aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Com isso, o estrangeiro afirma: “[...] quando, em relação à aparência, dizemos que ele engana e que sua técnica é a técnica do engano, então diremos que a nossa alma opina falsamente por causa dessa técnica.” (PLATÃO, Sof. 240dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). O sofista engana seu ouvinte e faz com que sua alma opine falsamente. O engano que produz a opinião falsa na alma do ouvinte é fruto de um phántasma. A falsidade da aparência tem a capacidade de gerar uma opinião falsa, contudo, ainda é preciso saber o que é o falso.

A discussão central do Sofista, matéria de amplo debate e grande interesse para os estudiosos desse diálogo, tem como um dos objetivos dar uma explicação para a falsidade. A tentativa de definir o sofista colocou a necessidade dessa discussão central, não apenas para poder defini-lo, mas também para escapar do contra-ataque sofístico: firmado na concepção de não-ser absoluto e que leva ao absurdo de que é impossível dizer o falso, de tal forma que tudo pode ser verdadeiro e real (PLATÃO, Sof. 260ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Muitas questões são enfrentadas no Sofista, de sorte que a preocupação não é apenas de uma reorganização da estrutura ontológica pela admissão do não-ser enquanto alteridade ou diferença; não seria também apenas uma resposta às armadilhas e evasivas sofísticas, entretanto, é a própria possibilidade do discurso ou diálogo, pois todo discurso é um entrelaçamento dos gêneros (PLATÃO, Sof. 259ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Da mesma forma que o não-ser pensado por Parmênides traz consigo enormes problemas, o ser também é problemático. É autorizado somente falar e pensar o que é, porque é impossível pensar e falar o não-ser; essa máxima assume um princípio de identidade forte, de maneira que o ser é ser e não pode não-ser. Uma das consequências da lógica desse princípio de identidade é que só é possível fazer proposições tautológicas. Dizer que a “justiça é não ultrapassar o limite” é identificar a justiça com o que ela não é, de acordo com o que determina o pensamento de Parmênides.

Com base nisso, o discurso, o diálogo, o pensamento, a ciência estão comprometidos. Não é possível entrelaçar termos, não é possível ligar justiça ao belo, ao bem, ao limite etc. Só é possível discurso como a justiça é justiça, o bem é o bem e assim por diante. Justamente, o princípio que possibilita o entrelaçamento, que enseja, por sua vez, o discurso, é a admissão de que o não-ser é, compreendido enquanto alteridade ou diferença. As formas desse entrelaçamento, todavia, podem ser de duas maneiras: α) existem certos tipos de gêneros que podem ter combinação com todos os outros (como é o caso do ser, não-ser, o Mesmo e o Outro), e há β) os gêneros que combinam apenas com β’) alguns e não com β”) outros. Os gêneros α constituem o ponto de ligação que permite atribuir β’ a β”, é o que faz com que o inconciliável se concilie. É por essa participação nos gêneros supremos que predicados impossíveis de atribuição a determinadas coisas podem ser entrelaçados.

Um dos objetivos do Estrangeiro foi alcançado até o momento: ele declara isto com todas as palavras: “[...] nós descobrimos que o não-ser está na classe do ser, permeando todas as coisas.” (PLATÃO, Sof. 260bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). O passo seguinte é examinar se o não-ser se associa com a opinião e o discurso - é essa associação que possibilita a opinião e o discurso falsos (no texto, ainda são acrescentadas a diánoia e phantasía, pensamento e aparência, capacidades cognitivas que também podem ser falsas). Com essa explicação em mãos, elucida-se, por fim, o engano, já que assim se pode saber como ele ocorre, como se produz e como se desfazer ou se livrar dele - isto quer dizer que podemos saber como a alma enganada pode ser purificada do engano. Está reconhecido que o engano está ligado à imagem e à cópia, isto é, de modo geral, à phantasía.28 28 Seguimos a sugestão de Notomi, admitindo que o καὶ na frase deve ser entendido como adicional e explicativo, devido ao fato de ter uma assimetria gramatical: εἰδώλων e εἰκόνων estão no genitivo plural, que contrasta com φαντασίας, no genitivo singular. Porém, é comum que o termo phantasía seja traduzido por aparência, pois parece que Platão está retomando os conceitos de imagem, cópia e aparência (phántasma), os quais foram já tratados anteriormente. Aqui, três exemplos: Ambuel (2007): “[...] things must be full of images and likenesses and appearances”; Codero (1993): “[...] tout est plein, nécessairement, d’images, de copies, d’illusions”; Murachco, Maia e Santos (2011): “[...] é necessário que todas as coisas estejam cheias de simulacros, de imagens e de aparências.” O fato de esses termos terem sido justapostos faz pensar que Platão estaria tratando indiferentemente phántasma e phantasía. Traduzir ambos os termos por aparência é incorrer em erro: phántasma é um tipo de imagem que não representa as reais proporções do objeto genuíno; já phantasía é a capacidade cognitiva. Essa ressalva é importante, porque a fonte da verdade e da falsidade está na capacidade cognitiva.

O que produz o engano, portanto, é alguma aparência que pode ser uma imagem ou uma cópia resultante de um processo cognitivo. As atividades cognitivas aqui elencadas são a diánoia, o lógos, a dóxa e a phantasía, que o Estrangeiro declara serem todas congêneres (τούτων τῷ λόγῳ συγγενῶν ὄντων, 264b). Por esse motivo, o que é afirmado do lógos é afirmado das outras capacidades cognitivas.

Assim, (1) todas essas capacidades devem ser sobre algo (PLATÃO, Sof. 262ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.); caso não sejam, é impossível haver qualquer capacidade cognitiva. É necessário compreender que esse algo expresso pelas capacidades cognitivas não é simplesmente qualquer emissão oral, ele deve ter sentido e deve formar alguma combinação entre dois elementos, um sujeito e algo que se predica desse sujeito. Dizer cavalo, pedra, pau, correr, nadar e voar não constitui um discurso. É necessário que esses elementos se entrelacem, para que haja capacidade cognitiva; assim, o cavalo corre é um discurso.

(2) Não é o ato de atribuir nomes, denominar, apontar ou descriminar simplesmente em uma listagem de itens que faz com que uma capacidade cognitiva seja o que é, mas sim a apreensão das coisas que são e tudo que se relaciona ao ser dessas coisas, a saber: sofrer ou produzir um efeito, a essência e sua negação, vir a ser e perecer (PLATÃO, Sof. 262cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Por sua vez, o ser, que apreendemos pelas capacidades cognitivas, não é apenas uma forma dada em uma estrutura lógica ou linguística, porém, representa, sobretudo, uma estrutura metafísica: essa unidade complexa que liga “nome” e “verbo” é o ser, a essência ou não-ser de algo. As capacidades cognitivas, apreendem, por conseguinte, algo complexo, representam um estado de coisas dadas no mundo que atende minimamente ao critério de ligar um nome a um verbo, que é a condição de possibilidade para o discurso e derivativamente para as outras capacidades cognitivas.

(3) Por fim, cada uma delas deve ser de um certo tipo ou qualidade: ou são verdadeiras ou são falsas (PLATÃO, Sof. 263bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). O critério para determinar a verdade ou falsidade de uma capacidade cognitiva é a correspondência: o Ser representado pela combinação de nome e verbo é verdadeiro, quando corresponde ao que se encontra dado no mundo; é falso, quando não corresponde. Quando os seres que estão no mundo são apreendidos, o indivíduo que o apreende professa um discurso que corresponda a eles: este discurso é verdadeiro por causa dessa correspondência e, caso não exista correspondência, é falso. O Estrangeiro declara: “[...] quando outras coisas são ditas como as mesmas e coisas que não são como o que são […] o discurso é falso.” (PLATÃO, Sof. 263bPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Estabelecidos os critérios que determinam uma capacidade cognitiva, é necessário diferenciá-las uma das outras: diánoia e lógos são a mesma coisa, a diferença é que a diánoia é um discurso (diálogo) interno à alma sem voz e lógos é esse mesmo discurso emitido oralmente. Por exemplo, se o indivíduo internamente pensa “x é y”, seu lógos é a emissão oral que anuncia “x é y”. Quanto à dóxa, é assumida como a conclusão da diánoia e é um discurso em que se afirma ou nega. Ou seja, a dóxa é discurso interno silencioso, por ser uma conclusão da diánoia, que nega ou afirma algo. A phantasía é o discurso que não é por si mesmo, mas por intermédio de uma sensação. A dóxa e a phantasía são também a mesma coisa, ambas são juízos, a distinção é que uma é um juízo puro (por si mesmo) e a outra é um juízo perceptual (a percepção seria apenas o meio pelo qual o juízo se formaria).29 29 Sobre discussões similares acerca do lógos, diánoia e dóxa, ver Teeteto 189e-190a e Filebo 38a-40e. Todas essas capacidades cognitivas, por tal natureza, podem ser verdadeiras ou falsas, quando o que representam corresponde ou não às coisas que estão dadas no mundo.

Voltando à definição do sofista como purificador da alma, relembremos que seu trabalho se resume a desobstruir o caminho para verdade. A desobstrução é feita pela retirada das opiniões falsas que enganam os indivíduos e fazem com que o alvo não seja atingido. Em Sofista, o Estrangeiro explica como mudamos de opinião:

A maioria dos ouvintes, Teeteto, tendo vivido muito e envelhecido, vai certamente estar mais perto do ser, pois são forçados pelas afecções ao claro contato com ele. Assim, eles mudarão de opiniões que anteriormente aceitavam, tais como as coisas pequenas que pareciam ser grandes, as difíceis que pareciam fáceis, e todas as aparências nos discursos que foram subvertidas pelo trabalho acumulado da ação. (PLATÃO, Sof. 234d-ePLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Essa questão sobre a mudança de opinião tem semelhança com a passagem 412e-413d da República, onde Sócrates lista três causas para a mudança de opiniões: o roubo, o fascínio30 30 Mesmo termo em Rep. 234c-d. e a violência. A opinião é considerada “roubada”, quando sofre efeito da ação do tempo (é o caso do esquecimento) ou de um raciocínio (o indivíduo foi persuadido); o indivíduo muda de opinião “violentamente”, quando passou por uma dor ou sofrimento; e o fascínio tem o poder de fazer a opinião mudar sob o charme do prazer e sob o terror de alguma dor. A passagem do Sofista parece encaixar esses três tipos de mudança de opinião: a passagem faz referência aos indivíduos maduros que já viveram muito e, por causa disso, estão mais próximos dos seres reais e sofreram a ação forçada das afecções (que são dores e prazeres). Isto explica por que os sofistas caçam os jovens rapazes, pois as pessoas mais vividas são difíceis de persuadir.

Porém, o ponto que interessa aqui é o conteúdo que muda na mudança de opinião. No exemplo da passagem 234d-e do Sofista, esse conteúdo é uma relação de contrários. O juízo que antes atribuía o termo “pequeno” a certo algo, passa agora a atribuir a esse algo o termo “grande”, a mesma operação para o exemplo do que era difícil e agora é opinado como fácil. O que a passagem dá a entender é que a pessoa madura que mudou de opinião e que está mais próxima do próprio do ser, da verdadeira realidade, opina verdadeiramente. O juízo que esse indivíduo, em sua maturidade, contém em sua alma agora atribui um predicado corretamente, algo que não fazia anteriormente, quando mais jovem. Um certo algo X que se acreditava pequeno, em realidade, é grande; um certo Y que se acreditava difícil é, na verdade, fácil. Esse indivíduo, quando era mais jovem, tinha opiniões falsas sobre X e Y, as quais eram falsas, porque julgavam o contrário das coisas como elas realmente são (PLATÃO, Sof. 240dPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).

Foi apresentada, no Sofista, como discutimos anteriormente, uma definição para a opinião falsa: afirmar que tais coisas são o caso, sem que elas sejam o caso. Dizer “o sofista é sábio”, “é justo fazer mal aos inimigos”, “ter riquezas é ser feliz” ou “Sócrates é um sofista” (como foi declarado na comédia As Nuvens) são exemplos de opinião falsa. Isto nos leva ao erro e, portanto, nos engana. Em vez de falar com acerto, dizer a verdade, nós erramos o alvo e expressamos uma falsidade. Não atingimos a verdade, porque essas opiniões serviram de entrave para os olhos e não enxergamos a realidade das coisas no mundo tal como elas são.

A consequência de ter opiniões falsas na alma, como vimos, é que elas são um entrave ou um obstáculo para a busca do conhecimento e da verdade, o que foi declarado em 230b-d. Ir em direção a um objetivo e errar esse alvo foi definido como uma assimetria, em 228c. Também foi declarado que a assimetria encontrada na alma é uma ignorância, logo, dizer que algo é sem o ser é uma ignorância. Se a assimetria na alma é uma ignorância, que significa declarar algo que seja sem o ser o caso, declarar algo que é sem que ele seja o que é declarado é o mesmo que emitir uma opinião falsa. Logo, a ignorância é uma opinião falsa. Isso já era reconhecido por Platão, em outros diálogos, por exemplo: no Protágoras (PLATÃO, Sof. 358cPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.), ele afirma que a amathía é a opinião falsa; na Apologia, a amathía é crer que sabe o que não sabe; na República, em 444 a, a alma desequilibrada é uma forma de injustiça e a amathía é a opinião que preside esse estado.31 31 Essa passagem da República deixa claro que existe uma capacidade cognitiva envolvida nos vícios.

Se a ignorância, a qual é uma opinião falsa, é uma assimetria na alma, podemos ainda concluir que ela, por ser uma assimetria, é a fealdade que a alma apresenta. Ora, se as opiniões que os sofistas incutem na alma de sua audiência fossem feias, eles não causariam fascínio na multidão. Nada é mais grandioso do que a ilusão para causar encanto, pois faz aparecer e ressalta o mais brilhante e colorido das belas proporções do objeto genuíno e realiza sua empresa, criando um discurso que se assemelhe ao que tem de belo no objeto original imitado. Porém, o que se apresenta é somente uma certa perspectiva, reproduzindo apenas um certo aspecto pelo qual o objeto original pode se apresentar. Os sofistas fazem esse ofício, assumindo que essa perspectiva é o próprio objeto genuíno, mas, na verdade, é apenas uma imagem, porque ele produz uma semelhança.

As múltiplas relações de similaridade e semelhanças são possíveis, porque existem gêneros supremos que se entrelaçam em todos os outros gêneros, principalmente o não-ser. Dado que as coisas no plano sensível se apresentam tanto semelhantes a si mesmas quanto dessemelhantes por causa da natureza de esse plano estar sempre em constante mudança, significa que o que apreendemos pelas nossas sensações aparece por perspectivas as mais diversas. Este é o material com o qual o sofista trabalha e os juízos que ele cria são fundamentados nessas aparições sensíveis. Logo, os juízos criados pelos sofistas estão misturados com os dados que aparecem sob certa perspectiva, ou seja, a capacidade cognitiva envolvida na produção do discurso sofístico é a phantasía. Nesse sentido, os juízos produzidos pelos sofistas são aparências, phantásmata, eles imitam determinados aspectos das coisas genuínas, atribuindo-os a outras coisas aos quais esses aspectos não estão naturalmente entrelaçados. Os sofistas produzem, portanto, opiniões falsas. Um exemplo de aparência ou opinião falsa é dizer que o sofista é um sábio. Por isso, essa imagem do sofista é produzida associando ao sujeito “sofista” um predicado que não se liga naturalmente a ele; nesse caso, o predicado sábio. Então, ele imita o que mais aparece como evidentemente belo, no sábio. Ora, como o sábio aparece para a multidão? Podemos listar duas formas: quem sabe sobre todas as coisas é sábio e também é aquele que sabe derrotar qualquer adversário, em um debate. O contestador possui ambas as características, pois parece saber de tudo quem refuta qualquer pessoa.

Por meio da imitação, produzindo imagem dos objetos genuínos, os sofistas podem fazer produtos com os mesmos nomes dos originais, tendo que ressaltar principalmente em cores intensas o que mais agrada ou atrai sua audiência, se quiserem ter êxito na caça aos jovens. A imagem tem esse poder, primeiramente, porque toda imagem pode ser apreciada como bela, louvável, nobre - e essas qualidades nos atraem e seduzem. E segundo, essa sedução e fascínio que a imagem cria esconde o que ela realmente é (uma cópia, imitação), porque confunde e engana. A imagem borra a diferença entre o que é real e aparente. O engano e a confusão são produzidos, porque a imitação é vista como o próprio original, já que a imitação tem em si aqueles elementos que o original também possui e que os caracteriza de imediato.32 32 PALUMBO (2013, p. 271).

Todavia, esse imitador necessita exorbitar esses traços, pois, se não o fizer, a cópia seria deformada e perderia sua beleza (PLATÃO, Sof. 235e-236aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). A consequência disso é um desvio da verdade, conforme Platão deixa claro, na seguinte passagem: “[...] por acaso, não se deparar com o verdadeiro (οὐ χαίρειν τὸ ἀληθὲς) é o que agora permite aos artesãos produzirem nas imagens (τοῖς εἰδώλοις), não as reais proporções (οὐ τὰς οὔσας συμμετρίας), mas as que parecem ser belas (τὰς δοξούσας εἶναι καλὰς)?” (PLATÃO, Sof. 236PLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.). Essa passagem evidencia a relação entre falsidade, assimetria, imagem e opinião, a qual já fora anunciada na sexta definição e é fundamental para as pretensões deste artigo.

Considerações Finais

Para concluir, tomemos alguém que pense que sabe o que é a justiça e exprime a opinião de que “justiça é fazer mal aos inimigos”. Esse indivíduo crê que isto define o que é justiça, pois uma das formas pelas quais a justiça se apresenta é enquanto uma restituição. É justo restituir o que foi dado. Tomando o caso do inimigo e o que ele dá, é crível que ele dê um mal. Assentado isto e o que se entende por justiça vulgarmente, fica a ideia de que é justo restituir a mesma coisa que inimigo deu, ou seja, é justo fazer mal aos inimigos. Esta é a semelhança ou a imagem que é reproduzida na seguinte opinião: “justiça é fazer mal aos inimigos”.

Mas, vejamos: ao mesmo tempo, este mesmo indivíduo sustenta a crença de que a justiça é um bem. Acontece que não é próprio de um bem produzir o mal (justiça não é fazer o mal, muito menos a um inimigo), apontando dessa forma uma contradição entre as opiniões que esse indivíduo suportava. Essa opinião em realidade é falsa, pois diz da justiça o que ela não é como algo que é. Ou seja, a opinião que diz ser justo fazer o mal ao inimigo é falsa. Tal opinião revela, por sua vez, uma assimetria, pois mirava a verdade da justiça, mas se desvias dessa verdade. O indivíduo que sustenta essa opinião é, na verdade, um ignorante nos assuntos relativos ao justo e injusto, revelando assim a fealdade na alma.

Por esse motivo, esse indivíduo que percebe sua ignorância experimenta o sentimento de vergonha. Evidentemente, devemos compreender que é um sentimento que se aciona na nossa alma, ao nos depararmos com certo tipo de desordem, desarmonia, assimetria, que se opõe ao que é louvável ou belo, porque, consequentemente, o que se opõe ao belo e louvável é feio e ignóbil. Deparar-se, portanto, com uma fealdade e falta de nobreza em si mesmo gera assim o sentimento de vergonha.

Por fim, o papel da vergonha na clivagem intelectual implica uma mudança do indivíduo no seu todo, pois ela tem influência na nossa própria formação, no que diz respeito ao que realmente somos. A força do argumento refutativo que produz a vergonha atinge camadas da alma humana em que o argumento por si só não é suficiente. Por esses motivos, o auxílio deste sentimento garantirá que tal fealdade, a amathía, seja expurgada da alma e provavelmente nunca mais volte a albergá-la, pois passamos a ser outros e mais excelentes.

Referências

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  • PLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.
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  • ZAKS, N. Socratic Elenchus in the Sophist Apeiron, v. 51, n. 4, p. 371-390, 2018.
  • 2
    A questão relativa à política aparece de maneira mirrada e completamente indireta (PLATÃO, Sofista, 217aPLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.).
  • 3
    O uso do termo “ignorância” não é capaz de apreender a flutuação terminológica empregada por Platão. As escolhas dos termos, por parte do filósofo, merecem uma atenção redobrada que exige muito mais do que o presente artigo pretende. Por isso, o tipo específico de ignorância que interessa às pretensões platônicas é a amathía. Pela série de dificuldades que envolvem a precisão do termo, optaremos por mantê-lo transliterado. Alguns especialistas, porém, optaram por traduzi-lo: Gooch (1971GOOCH, P. W.. Vice Is Ignorance: The Interpretation of Sophist 226A-231B. Phoenix, v. 25, n. 2, p. 124-133, 1971.) traduz por “stupidity”; Lott (2012LOTT, M. Ignorance, Shame and Love of Truth: diagnosing the sophist’s error in Plato’s Sophist. Phoenix, v. 66, n. 1/2, p. 36-56, 2012.) traduz por “lack of learning”; Notomi (1999NOTOMI, N. The Unity of Plato’s Sophist: Between the Sophist and the Philosopher. New York: Cambridge University Press, 1999.) “inability to learn”.
  • 4
    Solana (2013SOLANA, J. Socrates and ‘Noble’ Sophistry (Sophist 226b -231c). In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.) Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 72) também supõe que Platão objetivou romper com o intelectualismo socrático: “Within the general context of the trilogy, Plato could have pursued certain objectives, the meaning of which escapes us. One such objective could have been that of modifying the Socratic doctrine known as moral intellectualism.”
  • 5
    Solana (2013SOLANA, J. Socrates and ‘Noble’ Sophistry (Sophist 226b -231c). In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.) Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 79) considera que o método socrático opera em dois níveis: um intelectual e outro moral.
  • 6
    Gooch (1971GOOCH, P. W.. Vice Is Ignorance: The Interpretation of Sophist 226A-231B. Phoenix, v. 25, n. 2, p. 124-133, 1971., p. 126) assinala que a divisão tem importância ética: “My own reading of this section is that Plato, not popular opinion, is responsible for the division of evils into two branches, and that the division therefore cannot be considered unimportant for his ethics.”
  • 7
    Todas as traduções aqui presentes foram feitas pelo próprio autor deste artigo.
  • 8
    Gooch (1971GOOCH, P. W.. Vice Is Ignorance: The Interpretation of Sophist 226A-231B. Phoenix, v. 25, n. 2, p. 124-133, 1971., p. 129) enfatiza que a amathía é tanto uma doença quanto uma fealdade: “Stupidity, it appears, must be a diseased as well as a deformed state of soul.”
  • 9
    No Sofista, 260c, Platão afirma que, se há falsidade, há engano.
  • 10
    Lott (2012LOTT, M. Ignorance, Shame and Love of Truth: diagnosing the sophist’s error in Plato’s Sophist. Phoenix, v. 66, n. 1/2, p. 36-56, 2012., p. 43) compreende a vergonha como “sense of feeling oneself to be exposed”.
  • 11
    No Banquete, em 201a, o termo é usado como oposto ao belo.
  • 12
    Chantraine (1999CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris: Klincksieck, 1999., p. 40): sobre a vergonha compreendida como pudor.
  • 13
    É inevitável aqui ver uma referência ao Górgias, 464b e sequência.
  • 14
    Mesma terminologia usada na República; ver, por exemplo, 440e.
  • 15
    Palumbo (2013PALUMBO, L. Mimesis in the Sophist. In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.). Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 275): “[…] ignorance is nothing other than the incapacity to distinguish an object from its false images.”
  • 16
    Nesse caso, a ignorância aqui é um termo geral que contempla duas espécies, sendo uma delas a amathía.
  • 17
    Aqui fica claro por que Platão opta pelo termo agnoía, em vez de amathía, pois entende que a amathía é um tipo de agnoía: Καὶ δὴ καὶ τούτῳ γε οἶμαι μόνῳ τῆς ἀγνοίας ἀμαθίαν τοὔνομα προσρηθῆναι. (Sof. 229a).
  • 18
    Gooch (1971GOOCH, P. W.. Vice Is Ignorance: The Interpretation of Sophist 226A-231B. Phoenix, v. 25, n. 2, p. 124-133, 1971., p. 129) dá a seguinte explicação para a superioridade da refutação em relação à admoestação: “[...] the Eleatic’s remarks at 230ab suggest rather that cross-examination transcends admonition. It is a superior method of education because it deals, as admonition does not, with the problem of involuntary conceited ignorance.”
  • 19
    Banq. 201 a: “[...] pois éros não seria do feio.” (αἰσχρῶν γὰρ οὐκ εἴη ἔρως).
  • 20
    Para uma discussão sobre o assunto, Kerferd (1954KERFERD, G. B. Plato’s Noble Art of Sophistry (Sophist 226 a-231 b). Classical Quarterly, v. 4, n. 1-2, p. 84-90, 1954.) argumenta que a sofística está representada nessa sexta definição. Contrário a esse estudioso, Trevaskis (1955TREVASKIS, J. R. The Sophistry of Noble Lineage (Plato, “Sophiste 230a5-232b9”). Phronesis, v. 1, n. 1, p. 36-49, nov. 1955.) rejeita essa interpretação. Solana (2013SOLANA, J. Socrates and ‘Noble’ Sophistry (Sophist 226b -231c). In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.) Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013.) trata do tema, ressaltando que a questão platônica é axiológica e normativa. Contra aqueles que consideram que a descrição do elenchos, nessa passagem, não corresponde ao apresentado nos primeiros diálogos, cf. ZAKS (2018ZAKS, N. Socratic Elenchus in the Sophist. Apeiron, v. 51, n. 4, p. 371-390, 2018.).
  • 21
    Bernabé (2013BERNABÉ, A. The Sixth Definition (Sophist 226a- 231c): Transposition of Religious Language. In: Plato’s Sophist Revisited. Ed. por Beatriz Bossi e Thomas M. Robinson. Berlim-Boston: De Gruyter, 2013.) faz uma abordagem da sexta definição, indicando como Platão aproxima o sofista do filósofo, em vários pontos de contato, os quais são principalmente por termos religiosos. Essas aproximações podem levar, portanto, a uma confusão entre ambos.
  • 22
    Palumbo (2013PALUMBO, L. Mimesis in the Sophist. In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.). Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 277-278): “The sophist wants to appear as a sophos to his interlocutors. He is the image of a sophos, and since every image is a kind of derivative reality, his name too is derived from that of the sophos.”
  • 23
    Sofista, 232b: “[...] pois, para mim, é algo uno que diz mais revelá-lo.” (ἓν γάρ τί μοι μάλιστα κατεφάνη αὐτὸν μηνῦον).
  • 24
    Algo semelhante é argumentado no Crátilo 423b: aqui é dito que o nome é uma imitação pela voz.
  • 25
    Estamos em total acordo com Notomi (1999NOTOMI, N. The Unity of Plato’s Sophist: Between the Sophist and the Philosopher. New York: Cambridge University Press, 1999., p. 156): embora o argumento do Estrangeiro tenha caráter aporético, a definição não é negada. O caráter aporético do argumento, no entanto, é devido à dificuldade relativa à questão do não-ser, o qual precisa ser bem delimitado - o que ainda não foi o caso.
  • 26
    Adotamos a tradução do termo como foi pensada por Notomi (1999NOTOMI, N. The Unity of Plato’s Sophist: Between the Sophist and the Philosopher. New York: Cambridge University Press, 1999.), por considerarmos a mais eficiente na transmissão da ideia que a frase quer passar. O termo que traduz coisa genuína é alēthinós (ἀληθινός: verdadeiro, fiel), que alguns tradutores optaram por traduzir por “objeto verdadeiro”. A questão é que o termo “verdadeiro” não apreende o sentido do que se contrapõe ao que é falso no que diz respeito a não ser original, que é exatamente o que significa genuíno. Palumbo (2013PALUMBO, L. Mimesis in the Sophist. In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.). Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 271) também chama de genuíno o objeto original.
  • 27
    Zaks (2018ZAKS, N. Socratic Elenchus in the Sophist. Apeiron, v. 51, n. 4, p. 371-390, 2018.) faz uma exposição sobre o papel da refutação no diálogo Sofista, tendo papel importante na obra para além da sexta definição.
  • 28
    Seguimos a sugestão de Notomi, admitindo que o καὶ na frase deve ser entendido como adicional e explicativo, devido ao fato de ter uma assimetria gramatical: εἰδώλων e εἰκόνων estão no genitivo plural, que contrasta com φαντασίας, no genitivo singular. Porém, é comum que o termo phantasía seja traduzido por aparência, pois parece que Platão está retomando os conceitos de imagem, cópia e aparência (phántasma), os quais foram já tratados anteriormente. Aqui, três exemplos: Ambuel (2007AMBUEL, D. Image and Paradigm in Plato’s Sophist. Las Vegas, Zurique, Atenas: Parmenides, 2007.): “[...] things must be full of images and likenesses and appearances”; Codero (1993PLATON. Le Sophiste. Tradução, introdução e notas por Nestor-Luis Cordero. Paris: GF Flammarion, 1993.): “[...] tout est plein, nécessairement, d’images, de copies, d’illusions”; Murachco, Maia e Santos (2011PLATÃO. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.): “[...] é necessário que todas as coisas estejam cheias de simulacros, de imagens e de aparências.” O fato de esses termos terem sido justapostos faz pensar que Platão estaria tratando indiferentemente phántasma e phantasía. Traduzir ambos os termos por aparência é incorrer em erro: phántasma é um tipo de imagem que não representa as reais proporções do objeto genuíno; já phantasía é a capacidade cognitiva. Essa ressalva é importante, porque a fonte da verdade e da falsidade está na capacidade cognitiva.
  • 29
    Sobre discussões similares acerca do lógos, diánoia e dóxa, ver Teeteto 189e-190a e Filebo 38a-40e.
  • 30
    Mesmo termo em Rep. 234c-d.
  • 31
    Essa passagem da República deixa claro que existe uma capacidade cognitiva envolvida nos vícios.
  • 32
    PALUMBO (2013PALUMBO, L. Mimesis in the Sophist. In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.). Plato’s Sophist Revisited. Berlim-Boston: De Gruyter , 2013., p. 271).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2019
  • Aceito
    17 Maio 2020
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