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Comentário a “História da ciência, epistemologia e dialética”: ciência, ontologia e realidade: Marx para além da dialética

Instado por Trans/form/ação a produzir um breve comentário a “História da Ciência, Epistemologia e DialéticaSILVA, Edson Pereira; ARCANJO, Fernanda Gonçalves. História da ciência, epistemologia e dialética. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 149 - 174.”, apresenta-se aqui um conjunto de glosas, cujo mote é tanto registrar algumas observações críticas ao artigo quanto explicitar sucintamente os lineamentos que nortearam a leitura, o estudo e a crítica daquele trabalho.

Inicialmente, questiona-se a tentativa de conversação aproximativa entre Marx e Bachelard. Em que sentido poderia uma aproximação dessa natureza ser pertinente e autorizada pelos pressupostos de ambos os autores?

Em Marx, temos uma propositura científica de caráter analítico e materialista, a qual parte da pressuposição de que as categorias são formas de ser, determinações da existência (Daseinsformen, Existenzbestimmungen) (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos econômicos de 1857-58: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2011., p. 59), de que cientificamente reproduzem o referente como concreto pensado. No crítico francês da epistemologia, tem-se a independência relativa do objeto do conhecimento, conceitualmente elaborado, em relação à realidade mesma. O objeto de conhecimento é desconectado do existente, é um produto da operatividade técnico-conceitual da atividade científica, não ponderável pela realidade. Num, o pressuposto ontológico da objetividade finito tornado objeto. Noutro, o conceito como produto de uma atividade que não é a rigor parametrizada pela objetividade, nem da totalidade real, nem do recorte experimental.

Ademais, partindo do entendimento do materialismo marxiano e de seu “estatuto ontológico” (CHASIN, 2009CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 39-86), julga-se igualmente pertinente tecer uns comentários acerca de outro aspecto problemático do texto: existiria um paradigma científico do “materialismo histórico-dialético”? Um esquema de inteligibilidade cunhado por Marx e Engels, a partir da apropriação crítica que supostamente fizeram da dialética hegeliana? Este é um tema de questionamento recorrente tanto nos círculos marxológicos quanto fora deles, interna ou externamente à tradição marxista. Aliás, é importante ressaltar que a formulação de tal padrão de referência é algo jamais enunciado por Marx e somente bem depois de sua morte, na passagem do século XIX para o XX, encontra elaboração (CERQUEIRA, 2015CERQUEIRA, Hugo E. A. da G. Breve história da edição crítica das obras de Karl Marx. Revista Brasileira de Economia Política, v. 35, n. 4, 2015, p. 821-844., p. 826).

Marx jamais manejou os elementos da dialética como um conjunto de regras metodológicas ou lógicas, e sim como nome geral de aspectos que objetivamente podem ser flagrados, discernidos e compreendidos na analítica do objeto. Afora isso, como encadeamento das categorias enquanto processo transitivo de desenvolvimento, modo de apresentação por meio do qual se expõe o evolver do processo. Portanto, a dialeticidade existente no Forschungsweise não é necessariamente a mesma do Darstellungsweise (MARX, 2013MARX, Karl. O capital - crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo , 2013., p. 90) e, por sua vez, a do Daseinsweise é diferente simultaneamente de ambos os modos pelos quais o existente finito realmente existente é apreendido e exposto (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos econômicos de 1857-58: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2011., p. 54-55).

O caráter materialista de Marx se formula pela crítica do fundamento especulativo (a identidade entre Ser e Ideia) que propriamente apenas ao logicismo, algo que preocupava mais a Engels, na tentativa de encontrar à cientificidade moderna uma ancoragem em supostas leis universais da dialética. Acerca disso, veja-se em Dialética da Natureza, por exemplo, a indicação, para cada relação natural objeto das ciências, um princípio dialético que estaria cosmicamente nelas pressuposto (ENGELS, 1979ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979., p. 34-40). Algo deveras diferente da forma como Marx toma a questão; não “provar” as leis da dialética, por meio da cientificidade corrente. Quando muito, assinalava que diversos insights hegelianos, originalmente expressos especulativamente, quando despidos de seu caráter lógico-idealista, acabavam sendo confirmados por diferentes investigações das variadas ciências.

À especulação hegeliana Marx produz uma crítica de caráter ontológico, a recusa da identidade entre racionalidade e realidade. Para Marx, o real não é “racional”, no sentido de uma lógica de raison d’être. Certamente, não é um caos, possui uma dada configuração ou concatenação de determinações, mas estas não necessariamente se coadunam ou se identificam com apriorismos lógicos ou teoréticos. Marxianamente, não se trata de traduzir a lógica hegeliana em termos materialistas, nem de “convertê-la ao materialismo”, porém, de encontrar a “lógica” específica da coisa específica, de reproduzir conceitualmente, por meio da “transposição” e da “tradução” em categorias, a malha categorial que in rebus que constitui o por-si do que se estuda, em sua independência aos atos pelos quais pode ser modificado ou conhecido.

Não significa uma adequatio e sim uma aproximação reprodutiva de caráter categorial. Conhecer é uma atividade humana peculiar, um conjunto de atos social e historicamente determinados e possibilitados por condições societárias materiais e espirituais, as quais dependem dos modos pelos quais os seres humanos vivos e ativos operam na realidade e produzem seus meios de existência. Transpor e traduzir são dois pôres que constituem a apreensão como pensamento daquilo que está-aí, do Dasein, do existente. São aproximações efetivadas, cumulativamente ou não, pelas quais o mundo, em sua diversidade, é apropriado mental e conceitualmente. Ou seja, trata-se do capturar a espessura ontológica dos processos finitos em sua especificidade, sua differentia specifica. Nunca do acomodar a diversidade da realidade dentro de um molde ou esquema genérico explicativo a priori, seja este de talhe formal ou “dialético”. O que, ressalte-se, nada tem de empirismo, pois os conceitos não são resultado de meros decalques ou impressões produzidas por um mundo obscuro e/ou caótico, em nossas condições transcendentais ou neuronais de percepção.

Resulta daí que, no contexto da elaboração marxiana, o conhecimento não tem uma resolução epistêmica ou metodológica, mas sim ontológica. Consequentemente, a dialética não é nem sustentação metodológica tampouco um suposto princípio racional a atravessar o mundo e a consciência que o faceia. Marx não “lê dialeticamente” a realidade econômica ou histórica, nem pressupõe ser “a” contradição o elemento essencial, “a verdade” do mundo. A contradição é, antes, aspecto apreendido na análise, no escrutínio de relações e processos. Não por azar, uma das imagens mais recorrentes utilizadas por Marx para caracterizar seu padrão teórico é a do anatomista, como se observa a partir de meados de 1843 até os seus últimos manuscritos (ALVES, 2015aALVES, Antônio J. L. A metáfora do anatomista e a possibilidade do conhecimento objetivo da realidade social em Marx. Princípios - Revista de Filosofia. UFRN, Natal, v. 22, n. 38, maio/ago. 2015a, p . 201-232., p. 201-232).

Finalizando, considera-se agora o modo como o teor ontológico das proposituras marxianas é tratado no artigo comentado. A determinação do pensar as coisas pelo seu ser não é sequer referida explicitamente. O “aspecto” ontológico da prática científica é desnaturado como uma mera metacrítica externa ao processo de produção do conhecimento, como um sociologismo do conhecimento. Consequentemente, reduz-se a espessura do real que continua a existir fora da cabeça de quem a pesquisa, e a se impor como metro da aproximação, a uma expressão direta dos limites da sociabilidade, o que empobrece igualmente o entendimento das relações entre cientificidade e sociedade e da vida social como objeto de pesquisa em Marx.

Esse equívoco se explicita inclusive como as citações marxianas são apostas ao texto, sem remetimento ao contexto original. Tome-se, por exemplo, a da página 55 da edição usada. Diferentemente do que é discutido no parágrafo, não se trata lá da questão da determinação social do pensamento, tema igualmente importante para a discussão das formações ideais (ALVES, 2015bALVES, Antônio J. L. Ontologia, Standpunkt e ideologia: para além das teorias do falso. In: TORRIGLIA, Patrícia L. (org.). Ontologia e crítica do tempo presente. Florianópolis: Editoria Em Debate - UFSC, 2015b, p. 231-246., p. 231-246.). É acerca da determinação do conceito pela efetividade: situa-se a sociedade aqui na posição de objeto da economia política e não de condição à cientificidade. Por isso, Marx emprega o termo Subjekt, sujeito, que equivale a referente concreto e finito das categorias da economia política e de sua crítica da economia política (MARX, 2011MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos econômicos de 1857-58: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2011., p. 55).

Ademais, parece não se atinar existam, pois, “dois concretos” em jogo: 1) o finito tal este é, em sua forma de existência - social - objetiva, sejam os produtos do trabalho humano como mercadoria, seja a população como totalidade contraditoriamente articulada de suas classes e estratos; 2) a concretude “re-produzida” como concreto pensado, produção de formas ideais exprimindo a seu modo, conceitualmente, a articulação das Daseinsformen na realidade social. Caso contrário, ou bem teríamos Hegel e a concretude como produto do ato de pensá-la, ou bem Weber e as abstrações razoáveis reduzidas a tipos ideais que formatam no, e para o, pensamento uma realidade por si absolutamente caótica e sem concatenação imanente. Que a imanência seja contraditória, não resulta daí que esta seja um caos de indeterminação, mas sim que a articulação que os elementos apresentam entre seus predicados mais importantes um caráter de contradição imanente e dinâmico, no desenvolvimento de seu peculiar modo de existência de articulação das formas de ser que a perfazem.

Referências

  • ALVES, Antônio J. L. A metáfora do anatomista e a possibilidade do conhecimento objetivo da realidade social em Marx. Princípios - Revista de Filosofia. UFRN, Natal, v. 22, n. 38, maio/ago. 2015a, p . 201-232.
  • ALVES, Antônio J. L. Ontologia, Standpunkt e ideologia: para além das teorias do falso. In: TORRIGLIA, Patrícia L. (org.). Ontologia e crítica do tempo presente. Florianópolis: Editoria Em Debate - UFSC, 2015b, p. 231-246.
  • CERQUEIRA, Hugo E. A. da G. Breve história da edição crítica das obras de Karl Marx. Revista Brasileira de Economia Política, v. 35, n. 4, 2015, p. 821-844.
  • CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
  • MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos econômicos de 1857-58: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2011.
  • MARX, Karl. O capital - crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo , 2013.
  • SILVA, Edson Pereira; ARCANJO, Fernanda Gonçalves. História da ciência, epistemologia e dialética. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 149 - 174.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2020
  • Aceito
    19 Set 2020
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