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Comentário a “Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”

O artigo de Krieger (2022KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 193-214 2022.) tem o mérito de estabelecer uma convergência entre o pensamento de dois filósofos caracteristicamente distintivos. De fato, as filosofias de Friedrich Nietzsche e Ludwig Wittgenstein apresentam pontos de contato. Essa possibilidade de aproximação é explorada pelo autor via uma discussão clássica na epistemologia moderna, a saber, a interioridade do sujeito. Nietzsche posiciona o problema no advento da modernidade e trata-o como produto de uma interioridade caótica de conteúdo, traço marcante do homem moderno. Por certo, o pensamento de Nietzsche sintetiza a crise moderna dos grandes valores, como uma época de tensão e destruição. Entretanto, é na fecundidade da filosofia madura do austríaco Wittgenstein que importa ressaltar alguns aspectos relativos à questão da “interioridade”.

No artigo “Linguagem e denúncia de interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, o autor nos oferece um fio condutor que percorre os parágrafos 143 a 184 das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, qual seja, a discussão sobre “compreensão e habilidade”. Segundo Krieger (2022KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 193-214 2022., p. 14), Wittgenstein sustenta que a “compreensão” não pode ser resumida a um estado ou processo de ordem mental e, portanto, privado. “Compreender” remete mais a um tipo de habilidade em realizar ações futuras.

No mencionado bloco de parágrafos, é estabelecida uma discussão dialógica que revela um cuidadoso esforço em afastar a ideia de “compreensão” das ocorrências ou processos de natureza mental. Tal empenho decorre do descontentamento do filósofo austríaco frente a uma argumentação que resume o “compreender” a uma ocorrência interna e, por conseguinte, como um fenômeno de natureza mentalista. Nesse caso, vale a pena notar a importância estratégica do parágrafo 151, no contexto em discussão. No parágrafo indicado, é focalizado um modelo descritivo que correlaciona a autoatribuição exclamativa “agora compreendi!” a “algo que surge em um instante”, como uma “sensação” ou uma “leve e rápida aspiração”. Observe-se o trecho a seguir:

Agora, existe também este emprego da palavra “saber”: nós dizemos “Agora eu já sei!” - e, do mesmo modo, “Agora eu já consigo!” e “Agora eu já compreendo!”. Imaginemos este exemplo: A anota séries de números; B o observa e tenta encontrar uma lei na sequência de números. Ele consegue, e então exclama: “Agora eu posso prosseguir!” — Essa capacidade, essa compreensão, é, portanto, algo que ocorre em um instante. [...] Talvez ele tivesse uma sensação que se pode chamar de “isto é fácil!”. (Uma sensação como essa seria, por exemplo, uma ligeira e rápida retração da respiração, semelhante a quando se toma um leve susto.) (WITTGENSTEIN, 1997WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen/Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. 2. ed. Oxford: Blackwell , 1997., parágrafo 151).

A passagem indica a posição que Wittgenstein rejeita, repetidamente, em face do modelo explicativo mentalista de ocorrência de “compreensão”. Essa é uma visão herdada do modelo dualista clássico e precisa ser afastada. Da mesma maneira, há outros trechos (parágrafos 152, 153, 154), nos quais o filósofo austríaco reforça o quão enganadora é a versão mentalista de “compreensão”. Há uma forte inclinação no imaginário popular em supor que uma autoatribuição com função exclamativa (“agora compreendi!”; “agora eu já sei!”) é instantânea a uma “vivência” mental que corresponda à compreensão. Nesse sentido, é preciso ter em mente que a “experiência característica”, a qual, supostamente, acompanha o proferimento exclamativo, não é essencial nos esforços de caracterização.

Na ótica wittgensteiniana, o ponto de vista descrito acima está eivado de senso comum, o que acaba por afastar a possibilidade de um entendimento filosófico. Isso se deve à predisposição intuitiva em determinar uma relação entre a declaração de compreensão e uma ocorrência interna. É como se houvesse uma experiência mental característica, que, concomitante ao enunciado “agora eu já sei fazer!”, fosse capaz de representar a fonte do entendimento que o declarante afirma possuir. Para o filósofo vienense, mesmo que haja uma ocorrência privada que acompanha os casos nos quais o declarante autoatribui entendimento, isso não consiste na compreensão. Do mesmo modo, tal vivência não garante que o autoatribuidor tenha, efetivamente, compreendido a série numérica.

Da mesma forma, o filósofo vai rechaçar uma variação do mesmo argumento, ou seja, a caracterização da “compreensão” agora como um processo mental. Ocorre que Wittgenstein oferece argumentos bem próximos daqueles já mencionados na fracassada tentativa de redução da ideia de “compreensão” a uma ocorrência instantânea, por outras palavras, nenhuma experiência mental característica é logicamente necessária, ou essencialmente condicionada à compreensão. No caso de uma ocorrência processual em desdobramento na mente do indivíduo, os mesmos problemas de ordem lógica se impõem: como identificar o processo? Como comparar o “meu” processo mental de compreensão com aqueles que se dão em outras (e insondáveis) mentes?

Há, nos parágrafos 152 e 153, uma boa mostra da inquietação que esse traçado argumentativo causa, ocasião na qual o filósofo alerta: mesmo que algo (instantâneo ou processual) supostamente aconteça na mente de um falante, que, repentinamente, entende uma série numérica, não faz sentido comparar se o que acontece na mente de um é o mesmo que ocorre na mente de todos os outros. Segundo Wittgenstein, “[...] mesmo supondo que tenha encontrado algo que acontecesse em todos aqueles casos de compreensão - por que isto seria a compreensão?” (parágrafo 153). É um erro supor que a “compreensão” possa, simplesmente, ser resumida a tal ocorrência. Da mesma maneira, é enganoso supor que haja um “processo mental” (seelische Vorgänge), ou um “processo oculto” (Vorgang versteckt)2 2 Nos parágrafos 152 e 153, o filósofo alude, ainda, a “fenômenos/acompanhamentos ocultos” (Begleiterscheinungen versteckt) ou “processos concomitantes” (Begleitvorgäng), “manifestações” (Äusserung). , por trás da evidência externa comportamental da compreensão.

Por certo, não poderia ser exaustivo, quanto à perspectiva do Wittgenstein das Investigações Filosóficas, com o espaço de que disponho neste comentário. A intenção é, de fato, destacar que o posicionamento mentalista rechaçado pelo austríaco é produto de uma confusão cujas raízes estão fundamentalmente conectadas à tradição filosófica. Além disso, o senso comum fortalece demasiadamente essa visão, em virtude da disposição natural em procurar atribuir uma relação de correspondência entre dimensões distintas (física e mental). É como se o mesmo tratamento semântico dispensado à realidade objetiva pudesse ser estendido à pura subjetividade. Em resumo, os tratamentos instantaneísta e processual-mental rejeitados por Wittgenstein são equívocos que procuram resumir a ideia de “compreensão” a vivências de natureza mental.

Referências

  • ALONSO JÚNIOR, S. Contribuições da ideia de “autoridade epistêmica” na viabilidade de uma linguagem privada na filosofia de Wittgenstein. Peri. Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 1 - 17, 2019.
  • BAKER, G. P.; HACKER, P. M. S. Wittgenstein: understanding and meaning (part II - Exegesis). V. 2. Oxford: Blackwell, 2005.
  • BUDD, M. Wittgenstein’s Philosopy of Psychology. 2. ed. Padstow: Routledge, 1993.
  • HACKER, P. M. S. Wittgenstein: mind and will. Oxford: Blackwell , 2000.
  • KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 193-214 2022.
  • WITTGENSTEIN, L. Remarks on the Philosophy of Psycology I. Oxford: Basil Blackwell, 1980a.
  • WITTGENSTEIN, L. Remarks on the Philosophy of Psycology II. Oxford: Basil Blackwell , 1980b.
  • WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen/Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. 2. ed. Oxford: Blackwell , 1997.
  • 2
    Nos parágrafos 152 e 153, o filósofo alude, ainda, a “fenômenos/acompanhamentos ocultos” (Begleiterscheinungen versteckt) ou “processos concomitantes” (Begleitvorgäng), “manifestações” (Äusserung).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Aceito
    05 Out 2021
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