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QUANDO A EDUCAÇÃO INFANTIL É NA ALDEIA: NARRATIVAS DE PROFESSORES INDÍGENAS EM FORMAÇÃO

WHEN EARLY CHILDHOOD EDUCATION OCCURS IN THE VILLAGE: NARRATIVES OF INDIGENOUS TEACHERS IN TRAINING

RESUMO

Este artigo visa refletir sobre a educação infantil no processo de formação de professores na educação escolar indígena. Tem como base as narrativas de professores no curso de Pedagogia Intercultural Indígena no Vale do Javari (AM), Brasil. Tais narrativas foram produzidas a partir das disciplinas “Infâncias e Escola Indígena” e “Estágio Supervisionado”, as quais foram organizadas em três procedimentos: as narrativas pessoais da própria infância; as narrativas por etnia, nas quais se destacaram a forma como as crianças vivem nas comunidades; e as narrativas sobre a criança nas escolas indígenas de educação infantil.

Palavras-chave
Infâncias indígenas; Educação infantil; Professores em formação

ABSTRACT

This article aims to reflect on infant school education during the process of training teachers for indigenous schools. It is based on the narratives of teachers in the Indigenous Intercultural Pedagogy course in Vale do Javari, AM, Brazil. Such narratives were produced from the class “Indigenous Children and School” and “Supervised teaching experience”, and were organized in 3 procedures: the personal narratives of childhood; the narratives according to ethnicity, which highlighted the way in which children live in communities; and narratives about children in indigenous infant schools.

Keywords
Indigenous childhoods; Infant education; Teachers in training

Introdução

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o papel da educação infantil no processo de formação de professores em terras indígenas, tomando como escopo central as narrativas de professores em formação no curso de Pedagogia Intercultural Indígena, oferecido no município de Atalaia do Norte, no Vale do Javari, extremo norte do estado do Amazonas. A pesquisa se deu no âmbito do Programa de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), no desenvolvimento das disciplinas “Infâncias e Escola Indígena” e “Estágio Supervisionado”.

A pesquisa se justificou pela necessidade de melhor conhecermos as diferentes noções/concepções de crianças e infâncias indígenas no Amazonas e qual o papel da educação infantil para esses povos. O estado congrega a maior população indígena do País segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (Brasil). Gráficos e tabelas. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Indígenas, 2020. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2.html. Acesso em: 06 ago. 2021.
https://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e...
), mas poucas são as pesquisas que têm se preocupado em compreender como os distintos povos originários do Amazonas concebem a infância e a educação infantil e como os professores em formação se enxergam nesse processo.

Nesse sentido, as narrativas dos professores foram fundamentais para que pudéssemos buscar um processo de reflexão sobre o papel da escola indígena para as crianças das comunidades. A partir das vozes dos professores, vislumbrou-se a consolidação das visões de infância que estejam vinculadas às tradições e aos costumes desses povos.

No curso de Pedagogia Intercultural, todos os acadêmicos são indígenas e 90% deles já atuam como professores em suas comunidades. Na turma, composta por 35 acadêmicos, existem quatro etnias, a saber: Marubo, Matis, Kanamary e Mayuruna. A organização dos grupos para a pesquisa se deu por etnias para que pudéssemos encontrar os elementos de integração entre os sujeitos e suas histórias de vida nas suas comunidades de origem.

Assim, a pesquisa foi feita através da coleta de três tipos de narrativas que foram construídas pelos professores indígenas em formação. Essa organização visou compreender como esses agentes sociais percebem o ser criança e o viver a infância na vida cotidiana de suas comunidades e como concebem suas práticas com as crianças nas escolas em que atuam.

A primeira narrativa abordou como tema a infância dos professores. Foi solicitado que todos relembrassem seu passado para escreverem um pequeno texto sobre como viveram a infância e quais as principais memórias que estão presentes nas suas vidas hoje. O objetivo foi resgatar suas histórias no intuito de comparar a infância de hoje e a infância na escola.

Na segunda narrativa, os acadêmicos foram agrupados de acordo com suas etnias para que, conjuntamente, discutissem como as crianças de suas comunidades vivem a infância e quais as principais características dessa etapa da vida para elas, destacando os elementos culturais, sociais e míticos que fazem parte do cotidiano de seus povos e que são transmitidos e vividos por elas. Cada grupo produziu um texto e os membros fizeram uma exposição oral dos pontos centrais por eles destacados.

Por fim, a terceira narrativa objetivou compreender como os professores indígenas em formação concebem as crianças dentro das escolas, quais as principais atividades realizadas por elas, como ocorrem os processos de aprendizagem dessas crianças, como se dá o planejamento das atividades e quais relações existem entre elas e a vida cotidiana da comunidade.

O artigo está organizado de modo a contemplar essas narrativas, com o objetivo de articular como os saberes das experiências pessoais, das experiências comunitárias e das experiências educacionais dialogam com o processo de formação dos professores da educação infantil em exercício. Por tais razões, iniciaremos as nossas reflexões contextualizando o currículo do curso e como se deu a definição para que a educação infantil compusesse a estrutura curricular.

A Educação Infantil na Aldeia:Reflexões Necessárias a Partir do Currículo do Curso

Neste tópico abordaremos a organização do curso de Pedagogia Intercultural Indígena da UEA, que foi financiado pelo Parfor por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e se pautou pelos fundamentos da interculturalidade em todo seu desenvolvimento (SILVA; FERREIRA, 2001SILVA, A. L.; FERREIRA, M. K. L. (Orgs.) Antropologia, história e educação: A questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. (Série Antropologia e Educação).).

O currículo proposto (registrado no projeto pedagógico do curso) é o resultado de uma interlocução de culturas, conhecimentos, saberes e práticas que envolveram tanto a universidade quanto a comunidade indígena, numa perspectiva intercultural. O início de sua implementação foi em junho de 2016, no município de Atalaia do Norte, no Vale do Javari (Fig. 1).

Figura 1
Mapa do território etnoeducacional do Vale do Javari.

A metodologia de trabalho para a tessitura do currículo organizou-se a partir de consultas prévias feitas aos povos indígenas (mecanismo garantido pela Convenção 169), por meio de assembleias com professores indígenas das tribos Kanamari, Marubo, Matis e Mayuruna, feitas entre 2014 e 2016. Foram também consideradas, para a composição do currículo, discussões realizadas com as seguintes instituições parceiras: a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Secretaria Municipal de Educação de Atalaia do Norte (Semed) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

A Resolução CNE/CB 05/2012, que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, recomenda em seu Artigo 8º que:

A Educação Infantil, etapa educativa e de cuidados, é um direito dos povos indígenas que deve ser garantido e realizado com o compromisso de qualidade sociocultural e de respeito aos preceitos da educação diferenciada e específica. § 1º A Educação Infantil pode ser também uma opção de cada comunidade indígena que tem a prerrogativa de, ao avaliar suas funções e objetivos a partir de suas referências culturais, decidir sobre a implantação ou não da mesma, bem como sobre a idade de matrícula de suas crianças na escola.

(BRASIL, 2012BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 5, de 22 de junho de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Brasília: Diário Oficial da União, DF, Seção I, p. 7, jun. 2012.)

Dessa forma, por se tratar de um curso de pedagogia, que tem por natureza formar pedagogos e professores para atuarem na educação básica, foi debatido com os indígenas se a oferta do curso contemplaria a educação infantil, sendo que essa etapa da educação básica é facultativa aos povos indígenas, compreendendo que eles possuem formas próprias e comunitárias para educar as crianças (SILVA; MACEDO; NUNES, 2002SILVA, A. L.; MACEDO, A. V. L.; NUNES, Â. (Orgs.). Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002.). Contudo a decisão dos cursistas foi pela formação nessa etapa, uma vez que em várias aldeias a educação infantil já era realizada, inclusive alguns acadêmicos do curso já estavam em exercício.

Ressaltamos que as discussões estabelecidas no curso a respeito de crianças e infâncias pautaram-se na disciplina “Infâncias e Escola Indígena”, aprofundando a concepção de criança em cada um desses povos e os modos próprios de cuidado e educação em cada cultura. No Tópico Especial III “Organização das Sociedades Indígenas do Vale do Javari”, os acadêmicos detiveram-se a analisar como suas comunidades organizam-se do ponto de vista político e social (AMAZONAS, 2019AMAZONAS. Universidade do Estado do Amazonas. Resolução n° 62/2019-CONSUNIV/UEA. Aprova o Projeto Político Pedagógico do Curso de Pedagogia Intercultural indígena de Atalaia do Norte. Manaus, 2019.). Dessa forma, as análises voltaram-se também à maneira como elas educam e cuidam de suas crianças.

Outro momento importante do curso que possibilitou reflexões sobre a educação infantil nas aldeias foi o Estágio Supervisionado. Esse componente foi organizado em quatro disciplinas sequenciais a partir do quinto período, são elas: Estágio Supervisionado I, Estágio Supervisionado II, Estágio Supervisionado III e Estágio Supervisionado IV. As disciplinas foram ministradas por duas pedagogas e um linguista, especialista na língua da família Pano (a qual pertencem as línguas Marubo, Matis e Mayuruna).

Na Tabela 1, demonstramos a organização dos estágios e os produtos elaborados em cada um deles.

Tabela 1
Objetivos das disciplinas de estágio e seus produtos.

Em todos os estágios, os acadêmicos apresentaram uma preocupação com as crianças pequenas no que tange à manutenção de suas culturas, conhecimentos e aos modos próprios de educar. Vale ressaltar que há professores de educação infantil no grupo que são os mais velhos entre os demais e, em grande medida, são eles os sabedores dos seus povos. No terceiro tópico, nos deteremos um pouco mais sobre as atividades realizadas.

Infâncias e Crianças Indígenas: Culturas, Memórias e Trajetórias nas Narrativas dos Professores

No Brasil, a partir do final do século passado e, mais efetivamente, nos anos 2000, os povos indígenas e suas crianças também se revelaram uma temática fértil para produção de pesquisas (MUBARAC SOBRINHO, 2011MUBARAC SOBRINHO, R. S. Vozes Infantis Indígenas: As culturas escolares como elementos de (des)encontros com as culturas das crianças Sateré-Mawé. Manaus: Valer, 2011.). Porém uma análise mais específica sobre crianças indígenas e os processos de escolarização na educação infantil (até por se tratar de um fenômeno social relativamente recente) ainda é tímida, mas pode apontar perspectivas que são no mínimo animadoras.1 1 Em textos anteriormente publicados, trazemos essa discussão e a importância da efetivação de um campo de pesquisa específico com as crianças indígenas. Mubarac Sobrinho (2007a; 2008a; 2008b).

Cohn (2005, p. 30)COHN, C. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., ao explicitar alguns dos resultados da pesquisa feita com as crianças Xikrin, faz uma reflexão acerca da forma como as crianças participam e constroem significados para as relações nas suas sociedades.

Cada criança criará para si uma rede de relações que não está apenas dada, mas deve ser colocada em prática e cultivada. Elas não ‘ganham’ ou ‘herdam’ simplesmente uma posição no sistema de relações sociais e parentesco, mas atuam na criação dessas relações.

Dar visibilidade às narrativas dos professores indígenas acerca das noções/concepções de infância é, sem dúvida, criar a possibilidade de sedimentar um projeto educativo que seja construído com as crianças e para as crianças, o que contraria a visão adultocêntrica e burguesa que, historicamente, tem negado a presença delas enquanto construtoras de conhecimentos e de histórias. Assim, o discurso e a fala dos professores indígenas constituem elementos de destaque na construção dessa escola de educação infantil indígena, que esteja alinhada à cultura local de suas comunidades.

Nós povo Marubo estamos dividindo para ensinar as crianças, porque os meninos ensino pelos homens, as meninas ensina pelas mulheres. Nesta infância temos as regras. Infância da comunidade, respeitar a sociedade, respeitar os animais, rios, lagos, solo, floresta e mais outros. Ensinar as crianças, cantos, danças, lendas, mitos, crenças, instrumentos, arte, cultura Marubo. Ensinar as atividades dos homens na prática, festas, pescar, caçada, roça, arco, flecha, maloca e outros. Atividade das mulheres na prática, pinturas corporais, rede, cerâmica, comida, cantos. (Narrativa escrita por um professor Marubo).2 2 No intuito de preservar as narrativas, no caso específico das utilizadas neste artigo (textos escritos), produzidas pelos professores indígenas em formação, optamos por não as corrigir, reproduzindo-as da forma como foram escritas por eles.

A opção por destacar as narrativas dos professores nesta pesquisa decorreu da percepção da sua importância para a identificação do papel da criança quanto à sua identidade cotidiana e escolar. Entendemos que a fala dos professores representa um aspecto fundamental e indispensável para a elucidação do mundo infantil indígena (TASSINARI, 2007TASSINARI, A. M. I. Concepções indígenas de infância no Brasil. Tellus, Campo Grande, ano 7, n. 13, p. 11-25, out. 2007.) e é, principalmente, um elemento fomentador de processos de fortalecimento de novas compreensões da realidade na qual esses sujeitos históricos estão inseridos.

Nesse sentido, para Sarmento e Cerisara (2004, p. 23)SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. (Orgs.). Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Edições ASA, 2004.:

O mundo da criança é um mundo heterogêneo, ela está em contacto com várias realidades diferentes, das quais vai aprendendo valores e estratégias que contribuem para a formação de sua identidade pessoal e social [...]. Esta aprendizagem é eminentemente interativa; antes de tudo o mais, as crianças aprendem com as outras crianças, nos espaços de partilha comum. Estabelecem-se desta forma as culturas de pares.

Romper com os conteúdos curriculares homogeneizadores e com uma prática, pretensamente universal, que recai sobre as crianças indígenas, e que acaba por justificar uma ação programada pela pedagogia sob o foco da idealização, constitui-se em um dos grandes desafios do curso. Ao nos contrapormos às diretrizes de formação estabelecidas, estamos nos pondo diante de uma luta de desiguais, onde os saberes legitimados pelos sacerdotes do poder (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.) passam a ser questionados e novas formas de compreender a educação, que não se limitam apenas aos espaços da escola, surgem das mais simples expressões do cotidiano.

Inegavelmente, o conhecimento indígena como forma de ciência indígena (SANTOS, 2007SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 15. ed. Porto: Afrontamento, 2007.), expressado nas narrativas dos professores, contribuiu para que pudéssemos enxergar esses caminhos.

A criança Mayuruna começa a aprender com os seus pais, quando ele tem 6 anos diante, começa a fazer atividades. Os meninos começam a fazer flecha para flechar os pássaros e começam a andar atrás dos pássaros no caminho, conforme a orientação dos seus pais, e também começam a pescar e caçar e a colher as frutas. Quando completa 14 anos, ele começa a fazer atividades sem precisar da orientação dos seus pais, por que ele aprendeu desde criança fazer atividades, como caça, pesca, flecha e o arco, fazer casa e outras atividades como conhecimento tradicionais. (Narrativa escrita por um professor Mayuruma).

Vamos, nessa seara, enveredar pela possibilidade de transgressão, onde as narrativas dos professores indígenas serão nosso maior aporte e, os seus jeitos de compreender o mundo, nossos argumentos. Ouçamos o que eles têm a nos dizer, aprendamos com eles a ver o mundo com outros olhos.

Desde criança, durante o dia brincávamos em diversas brincadeiras como nadar, correr, pular, brincar de queixada, anta, imitar o macaco, fazer esconderijo, matar passarinhos, peixes, acertar o alvo (txipavi), flechar calango entre outras. Nós Confeccionávamos o mini arco e flecha de babaçu para matar calangos, ratos, morcegos, grilos, aranhas e gafanhotos. E seguíamos no igarapé para flechar peixinhos, bodó, camarão, caranguejo entre outras. Acordávamos três horas da madrugada, fazíamos uma fogueira e tocar trocano. Durante a noite brincávamos de esconde – esconde, bater trocano, brincar de festas, danças entre outras. Nós crianças também, gostávamos de trabalhar ajudando os nossos pais na roça como derrubar, queimar, plantar e limpar. Nós ajudávamos nossas mães para carregar o cacho de banana, macaxeira, pupunha, milho, lenha e até mesmo frutas do mato como patuás, buritis, sabotas, bacuris entre outras. Tirávamos muitas pupunhas durante a nossa infância. (Narrativa escrita por um professor Marubo).

Começamos por ouvi-los acerca de dois elementos que consideramos essenciais para compreender os jeitos de viver a infância: o ser criança e o brincar. Antes, porém, é preciso que fique claro que a concepção de infância para cada povo indígena é definida pela existência de ritos e elementos culturais que demarcam de forma muito clara o mundo infantil e o mundo adulto. Segundo Cohn (2005, p. 9)COHN, C. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., “[...] não podemos falar de crianças de um povo indígena sem entender como esse povo pensa, o que é ser criança e sem entender o lugar que elas ocupam naquela sociedade”.

As narrativas a seguir, extraídas da pesquisa, representam um pouco do olhar dos professores sobre a infância que se constrói no seu cotidiano.

Gostam de flechar calangos, se embalança no cipó perto da roça, flechar com o canudo, pular da árvore dentro do igarapé e no rio, escorrega no barranco para cai dentro da água, quem fica mais tempo debaixo da água, gosta de imitar a caçar e a caçada. Subir nas árvores para imitar os macacos e também os cânticos dos animais, mais também gostam de pinta o corpo de acordo com seu clã. (Narrativa escrita por um professor Mayuruna).

Nós crianças também gostávamos de trabalhar ajudando os nossos pais na roça como derrubar, queimar, plantar e limpar. Nós ajudávamos nossas mães para carregar o cacho de banana, macaxeira, pupunha, milho, lenha e até mesmo frutas do mato como patuás, buritis, sabotas, bacuris entre outras. Tirávamos muitas pupunhas durante a nossa infância. E também nós limpávamos o capim no terreiro da maloca, caminho da roça, e outros caminhos que liga a malocas vizinhas. Nós também gostávamos de caçar com nossos pais e ajudando a carregar animais que nossos pais matavam. Vendo isso, nós aprendemos como caçar. E também, nos pescávamos muito flechando pequenos peixes nos igarapés, jogando timbó e uaca (poikama). (Narrativa escrita por um professor Kanamary).

A infância, evidenciada nas narrativas, é um grande universo de aprendizagens, de liberdade, de escolhas e, sobretudo, de possibilidade de viver as mais diversas expressões do cotidiano (COHN, 2006COHN, C. Relações de diferença no Brasil central: Os Mebengokré e seus outros. (Tese de Doutorado em Antropologia) – São Paulo. Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo, 2006.). Os professores falam das crianças com um respeito que nos faz desejar aprender a lidar com o mundo infantil da maneira deles.

A Educação Infantil como Elemento de Produção de Culturas: Experiências e Narrativas da Docência

Para que o processo de pesquisa ocorresse de modo a nos aproximarmos das narrativas de docência na infância e estabelecermos com eles uma participação mais efetiva nas suas atividades do estágio supervisionado, foi necessário entrar nos seus cotidianos e deixar fluir os aspectos do contexto no qual suas atividades docentes estavam inseridas.

Foram muitos os momentos vivenciados no período do estágio. Porém, para esta análise, iremos utilizar aqueles nos quais os professores se mostraram mais envolvidos com a educação infantil e também aqueles que fizeram parte das atividades diárias que as crianças realizavam nas escolas e na comunidade.

Na organização de atividades e materiais didáticos próprios, identificamos que, na educação infantil, e nos anos iniciais do ensino fundamental os professores participantes da pesquisa trabalham exclusivamente com a língua indígena. Especificamente na educação infantil, as atividades giram em torno das brincadeiras, cantos, pinturas e contação de histórias. Nesta mesma direção, deu-se a produção do material didático específico.

A oralidade e o desenho são as práticas mais utilizadas pelos professores para contar as histórias de seus povos, seus costumes, seus grafismos, assim como as atividades de pesquisa em campo para conhecer as árvores, os rios, os peixes etc. Nessas atividades, a vida se mistura com a aula e está plenamente vinculada ao ethos do povo (NASCIMENTO; AGUILERA URQUIZA; VIEIRA, 2011NASCIMENTO, A. C.; AGUILERA URQUIZA, A. H.; VIEIRA, C. M. N. A cosmovisão e a representação das crianças indígenas Kaiowá e Guarani: o antes e depois da escolarização. In: Criança indígena: Diversidade cultural, educação e representações sociais. Brasília: Liber, 2011. p. 21-44.).

As atividades fora da escola, realizadas no campo, no rio, na casa de festa, na maloca, enfim, nos diferentes espaços da aldeia, também vão demarcando a vinculação com o território. A vida do povo se organiza no território, sendo este um elemento extremamente importante para a sua produção, suas vivências e organização.

Um dos materiais produzidos pelos professores em formação tinha o objetivo de contar a história da comunidade. Foram várias páginas de ilustrações belíssimas feitas somente com desenhos. A partir da contação feita pelo professor, com apoio desse material, as crianças reproduziram a história de forma oral e depois a desenharam. Igualmente em desenhos, também reproduziram a aldeia, sua organização, seu rio, a mata e os outros espaços que a compõem.

As brincadeiras também ocupam um lugar importante na vida das crianças e, consequentemente, isso se estende à escola. Os professores assim narraram sobre as brincadeiras:

Gostam de brincar com mangara de banana para fazer comida. E também descer no barranco sendo ele seu escorrega. Puxando a capemba do patuá como uma Envira sendo ela a sua canoa. Carrega gravetos como se fosse lenha de verdade para fazer seu fogo. Gostam de flechar calangos, se embalança no cipó perto da roça, flechar com o canudo, pular da árvore dentro do igarapé e no rio, escorrega no barranco para cai dentro da água, quem fica mais tempo debaixo da água, gosta de imitar a caçar e a caçada. Subir nas árvores para imitar os macacos e também os cânticos dos animais, mais também gostam de pinta o corpo de acordo com seu clã, participam do ritual do madiwin, brincadeira da tora da bananeira. (Narrativa escrita por um professor Matis)

Brincar de circo amarrado na cintura como se fosse um cabo de guerra elas acham que é um barco grande, gostam de brinca de esconde, esconde, dentro de casa e fora de casa e também gosta de imitar os mais velhos fazendo casa com folha de banana e ficam pedindo para seus tios que tragam um filhote de animal para seus irmãos não chorarem. Mais também gostam de pinta o corpo de acordo com seu clã, junto de suas panelas de barros para imitar as cerâmicas feita pelos mais velhos. (Narrativa escrita por um professor Mayuruna).

Essas diversas brincadeiras narradas pelos professores nos remetem a uma dupla possibilidade de ver a realidade: tanto são vivenciados os elementos da cultura do seu povo como são vivenciadas as situações presentes no cotidiano da escola (NUNES, 2003NUNES, Â. M. “Brincando de ser criança”: Contribuições da etnologia indígena brasileira para a antropologia da infância. 2003. Tese (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Antropologia, Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal, 2003.).

Pensar nesse espaço das brincadeiras como fundamental para a construção de uma cultura coletiva é, sem dúvida, uma tarefa de importância ímpar, pois, segundo os professores, as crianças parecem compreender de forma muito clara a constituição objetiva desse espaço. Brincar é uma prática que se remete diretamente às atividades diárias vividas pelos adultos e possibilita às crianças interferirem nessa realidade de forma dialógica e relacional (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), construindo, assim, papéis sociais e suas formas de interpretar a realidade.

Nessas comunidades indígenas, as crianças são membros ativos da sociedade. Elas compreendem a infância como uma etapa da vida que se sustenta no convívio coletivo e respeitoso, ou seja, a educação indígena é um fator fundamental nesse processo, como afirma Melià (1999, p. 12)MELIÀ, B. Educação Indígena na escola. Cadernos Cedes, Campinas, v. 19, n. 49, p. 11-17, 1999. https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000200002
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Os povos indígenas sustentaram sua alteridade graças a estratégias próprias, das quais uma foi precisamente a ação pedagógica. Em outros termos, continua havendo nesses povos uma educação indígena que permite que o modo de ser e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas também que essas sociedades encarem com relativo sucesso situações novas.

Considerações Finais

A compreensão das narrativas dos professores nos permitiu estabelecer uma reflexão acerca das suas práticas nas escolas indígenas, contribuindo para que, no seu processo de formação, os sentidos das infâncias pudessem ser ressignificados. Isso contribuiu efetivamente para a ampliação da visão que enxerga as crianças como sujeitos sociais ativos que devem participar efetivamente de todo o processo escolar e social no qual estão inseridas (NUNES, 1997NUNES, Â. M. A sociedade das crianças A’uwé-xavante: Por uma antropologia da criança. 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, 1997.).

No decorrer do texto, procuramos destacar as falas dos professores em formação para que tivéssemos a possibilidade de compreender as visões de educação infantil que estão presentes nas suas práticas, tanto como membros da comunidade como professores indígenas em exercício. A organização do texto se deu pela ordem das narrativas já anteriormente descritas, com o intuito de criarmos uma tessitura que nos permitisse compreender, a partir dos professores em formação, quais noções/concepções de infância estão presentes nos seus modos de pensar e fazer educação com e para as crianças.

As narrativas dos professores, por destacarem as diversas formas das crianças de se expressarem, representam um riquíssimo acervo que nos ajuda a chegarmos à compreensão dos seus jeitos de viver a infância. A organização pedagógica, realizada juntamente com as crianças, mostra que as práticas docentes interferem diretamente na forma como a educação escolar indígena contribui para os processos socioculturais de seus povos.

Ao optarem pela oferta da educação infantil às suas aldeias, os professores indígenas ressignificam a proposta pedagógica numa feição indígena que se alinhe aos seus modos próprios de educar e cuidar. Esse é o desafio para a instituição formadora: sair dos seus modelos já prontos e aprovados para se lançar nessa construção de um novo fazer que se abra à interculturalidade e às diferentes culturas e formas de viver e estar neste mundo.

No entanto sabemos que não é algo que se constrói de forma aligeirada ou imediatista. São processos de aprendizagem dos formadores, dos professores em formação e da própria universidade enquanto instituição que deve primar pela pluralidade.

Nesse sentido, nada mais rico do que aprender com eles a olhar o mundo. Nada mais fascinante do que caminhar pelos seus imaginários. Nada mais instigante do que ter a possibilidade de chegar a um destino onde o caminho não está dado e que precisa ser construído num processo constante de interações. Aos que se encorajarem nessa aventura, o caminho é sem volta, felizmente, pois ao escutarmos o que eles têm a nos dizer, jamais seremos os mesmos. O convite está lançado.

Notas

  • 1
    Em textos anteriormente publicados, trazemos essa discussão e a importância da efetivação de um campo de pesquisa específico com as crianças indígenas. Mubarac Sobrinho (2007aMUBARAC SOBRINHO, R. S. Crianças indígenas “urbanas”: Aproximações a uma historiografia na Amazônia. EcooS, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 467-488, jul./dez. 2007a. https://doi.org/10.5585/eccos.v9i2.1092
    https://doi.org/10.5585/eccos.v9i2.1092...
    ; 2008aMUBARAC SOBRINHO, R. S. Crianças indígenas “urbanas”: Contribuições da pesquisa para a sedimentação de um campo cientifico. In: ANAIS DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CIDADANIA: NOVAS PERSPECTIVAS DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO, João Pessoa. Anais... João Pessoa: Editora da UFPB, 2008b.; 2008b)MUBARAC SOBRINHO, R. S. Crianças indígenas “urbanas”: Contribuições da pesquisa para a sedimentação de um campo cientifico. In: ANAIS DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EDUCAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CIDADANIA: NOVAS PERSPECTIVAS DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO, João Pessoa. Anais... João Pessoa: Editora da UFPB, 2008b..
  • 2
    No intuito de preservar as narrativas, no caso específico das utilizadas neste artigo (textos escritos), produzidas pelos professores indígenas em formação, optamos por não as corrigir, reproduzindo-as da forma como foram escritas por eles.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Número temático organizado por: Rodrigo Saballa de Carvalho, Bianca Salazar Guizzo e Arianna Lazzari
  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Disponibilidade de Dados de Pesquisa

    Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

Referencias

  • AMAZONAS. Universidade do Estado do Amazonas. Resolução n° 62/2019-CONSUNIV/UEA Aprova o Projeto Político Pedagógico do Curso de Pedagogia Intercultural indígena de Atalaia do Norte. Manaus, 2019.
  • BOURDIEU, P. O Poder Simbólico 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
  • BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 5, de 22 de junho de 2012 Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Brasília: Diário Oficial da União, DF, Seção I, p. 7, jun. 2012.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (Brasil). Gráficos e tabelas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Indígenas, 2020. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2.html Acesso em: 06 ago. 2021.
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Editores Asociados:

Alessandra Arce Hai e Juan Manuel Sánchez

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2021
  • Aceito
    25 Mar 2022
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