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APRESENTAÇÃO: NOVAS ABORDAGENS DA OBRA DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Fernando Henrique Cardoso é um dos intelectuais brasileiros mais relevantes da segunda metade do século XX. Relevância acentuada, e por vezes obscurecida, pelo fato de ter ele se tornado um protagonista da vida política nacional. Talvez fosse inevitável que o senador, o constituinte, o ministro e o presidente eclipsassem o cientista social no debate público. Mas se há tantas razões para o ocasional empobrecimento do debate sobre sua obra intelectual, existem também tantas outras, e por vezes as mesmas, que impulsionam investidas interpretativas originais sobre os sentidos de seus trabalhos acadêmicos. Em suma, a dificuldade de acessar o Fernando Henrique Cardoso que existiu antes do FHC é um dos atrativos fundamentais para aqueles que se dispõem a tal empreitada. Parafraseando um de seus célebres ex-alunos: apesar de propício a deduções amalucadas, é um tema que merece reflexão.

Realizado entre os dias 7 e 10 de junho de 2021, o seminário “Fernando Henrique Cardoso, cientista social: modos de ler”, do qual o conjunto de artigos a seguir é resultado direto, propôs-se a promover reexames críticos de suas contribuições para as ciências sociais brasileiras, partindo do pressuposto de que fazer jus à obra de um autor relevante implica reconhecer os diversos modos pelos quais ela pode ser lida e relida. Modos de irredutível pluralidade, que podem criativamente combinar e dissociar múltiplas continuidades e descontinuidades, reiterando sua complexidade e precavendo-se do rotineiro inventário de coerências ou contradições. E modos críticos, posto que alheios a quaisquer pretensões hagiográficas ou expiatórias.

Expostas as premissas que conduziram a empreitada, cabe assinalar que a obra de Cardoso possui uma fortuna crítica qualificada desde antes de nossa iniciativa. Especialmente representativos de um primeiro momento da história de sua recepção foram Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação (1990Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.), de Daniel Pécaut, Intelectuais e transição: entre a política e a profissão (1999Lahuerta, Milton. Intelectuais e transição: entre a política e a profissão. Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: fflch-usp 1999.), tese de doutorado de Milton Lahuerta, e A construção intelectual do Brasil contemporâneo (2001Sorj, Bernardo. A construção intelectual do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), de Bernardo Sorj. Como os próprios títulos sugerem, os três autores, cada um à sua maneira, examinaram os processos sociais envolvidos no desenvolvimento das relações entre intelectuais e política no momento de consolidação do campo científico das ciências sociais brasileiras nos anos 1970, marcado pela ditadura militar e pelo início do processo de redemocratização do país. Tendo em vista sua liderança na organização do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e seu exitoso ingresso na política profissional, a persona de Cardoso emerge, nesses estudos, com indubitável destaque. Seu sucesso, de alguma forma, refletiria a formação do campo científico das ciências sociais e a capacidade delas de intervir nas principais arenas políticas nacionais.

Em diálogo com as questões levantadas por essa literatura, os textos a seguir operam deslocamentos analíticos que tematizam outras dimensões da atuação intelectual e política de Cardoso e mesmo do debate acerca de ambas. Desse prisma, o segundo momento da fortuna crítica sobre nosso autor-objeto é marcado por pesquisas que, embora com referências teórico-metodológicas diversas, seguem as pistas traçadas por Roberto Schwarz em “Um seminário de Marx”, originalmente publicado no Caderno Mais! da Folha de S.Paulo (8 out. 1995), três anos depois republicado nesta Novos Estudos Cebrap e recolhido no livro Sequências brasileiras (1999______. “Um seminário de Marx”. In: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 104-28.). Ali, o crítico literário chamava a atenção tanto para a socialização intelectual e política geracional do grupo do qual Cardoso fez parte como também, e principalmente, para a originalidade de sua interpretação a respeito da dinâmica mundial contemporânea (e do lugar que nela ocupa o Brasil).

Sublinhando a primeira das dimensões elencadas acima, Lidiane Soares Rodrigues, em tese de doutorado intitulada A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978), realizou uma prosopografia, orientada pelo arcabouço da sociologia dos intelectuais formulada por Pierre Bourdieu, a fim de indicar a congruência dos esforços dos seminaristas e suas consequências imediatas e futuras (Rodrigues, 2012Rodrigues, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese (doutorado em história social) - São Paulo: fflch-usp, 2012.). Ao se debruçar sobre o famoso seminário uspiano d’O capital, do qual fez parte Cardoso, no momento em que era orientando e assistente de Florestan Fernandes na cadeira de Sociologia i da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), a autora elabora uma biografia coletiva dos membros do seminário.

A outra dimensão, por sua vez, foi aprofundada por algumas teses de doutorado defendidas nos últimos anos, cujas contribuições permitem perceber uma preocupação com a localização da perspectiva de Cardoso diante do debate marxista. Não à toa, Pedro Luiz Lima (2015Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação (1955-1968). Tese (doutorado em ciência política) - Rio de Janeiro: Iesp-Uerj, 2015., p. 16) indica que procurou reabilitar Fernando Henrique Cardoso como um “elo relativamente perdido da história do marxismo no Brasil”. Ao discutir o livro Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, Lima (2015Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação (1955-1968). Tese (doutorado em ciência política) - Rio de Janeiro: Iesp-Uerj, 2015.) chama a atenção para a “inflexão dialética” operada por Cardoso em relação aos trabalhos de seu orientador. Já os trabalhos de Rodrigo Santaella Gonçalves (2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: fflch-usp, 2018.) e Leonardo Belinelli (2019Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: FFLCH-USP, 2019.) procuraram desenvolver esse tipo de localização da perspectiva de Cardoso, situando-o diante do debate mais amplo aberto por Bernardo Ricupero (2000Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.) a respeito da “nacionalização” do marxismo no Brasil. Se, de um lado, tendo em vista a relação entre teoria e prática, Santaella Gonçalves (2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: fflch-usp, 2018.) discutiu a obra de Cardoso na chave de uma “nacionalização do marxismo sui generis”, de outro, Belinelli (2019Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: FFLCH-USP, 2019.) efetuou a comparação entre as formulações do sociólogo egresso da cadeira de Sociologia i da usp e do crítico literário Roberto Schwarz, ressaltando suas continuidades e descontinuidades. Ou seja, a fortuna crítica mais recente vem contribuindo para a desestabilização de perspectivas mais correntes sobre a abordagem de Cardoso, que tendem a enquadrá-la, por exemplo, em uma vertente “reformista” (Kay, 2011Kay, Cristóbal. Latin American Theories of Development and Underdevelopment. Nova York: Routledge, 2011.) ou “weberiana” (Martins, 2011Martins, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.) do debate da dependência. Podemos destacar ainda o esforço de Alessandro Leme (2015Leme, Alessandro. “La centralidad de la política para pensar lo económico en Fernando Henrique Cardoso”. Revista Mexicana de Sociología, v. 77, n. 3, 2015, pp. 357-84.), que, no intuito de se debruçar sobre a centralidade da política nos trabalhos de Cardoso para a compreensão e explicação da esfera econômica, não deixa de assinalar o importante papel cumprido pela articulação entre Marx e Weber no pensamento do sociólogo. Já Karim Helayel (2019Helayel, Karim. Um sociólogo na periferia do capitalismo: a sociologia histórico-comparada de Fernando Henrique Cardoso. Tese (doutorado em sociologia) - Rio de Janeiro: ufrj, 2019.) procura situar Cardoso no rol de autores pertencentes ao campo da sociologia histórica, localizando suas proposições diante dos trabalhos de Reinhard Bendix e Barrington Moore Jr., seus coetâneos do hemisfério norte.

A despeito de suas diferentes abordagens e ênfases, esse conjunto de trabalhos procurava examinar a originalidade teórica do pensamento social e político de Cardoso e os modos pelos quais ele polemizava com tradições intelectuais nacionais e internacionais, sem jamais deixar de nutrir-se delas. Uma das consequências dessa orientação foi a valorização dos esforços intelectuais do autor, tanto no que diz respeito à (re)elaboração teórica de problemas, categorias e perspectivas como a seus impactos na prática social e política em que disputava espaços com outros autores e grupos. Em outras palavras, tratou-se de refinar a análise da relação entre teoria e prática, sem tomar a última como fator unilateral determinante. Composta por teses de doutorado defendidas na década de 2010, essa nova recepção da obra de Cardoso deve muito ao grau de especialização alcançado pelas pesquisas na área de pensamento social e político brasileiro. Mas não teria ela podido se desenvolver sem o distanciamento temporal da “era FHC” na política brasileira. São, portanto, cruciais os dez anos que separam o início dessa nova fase na interpretação da obra de Cardoso do período em que o autor ocupou a Presidência da República. Ainda que ele tenha permanecido como protagonista da vida política nacional, é lícito avaliar que apenas nos anos 2010 tornou-se possível estudar Cardoso para além das típicas distorções alimentadas pelo imediatismo dos afetos político-partidários atrelados à atuação de um ex-presidente.

O presente dossiê resulta dessa década de imersões nesse já não tão espinhoso terreno. Por um lado, trata-se de um efeito explícito dos acúmulos alcançados no período com a difusão de alguns de seus mais interessantes achados. Por outro, alcança-se aqui uma reflexividade crítica sobre o próprio desenrolar dessa nova recepção. Nesse sentido, longe de apenas veicular resultados de pesquisas desenvolvidas alhures nas teses de doutorado de seus autores, o dossiê aponta para importantes ajustes e nuances nos modos de ler a obra de Cardoso. Seus três artigos sugerem, ainda, novas angulações para velhos problemas de pesquisa e hipóteses com bom rendimento para investidas ulteriores.

Em “A parte maldita: Fernando Henrique Cardoso e as histórias do marxismo no Brasil”, Pedro Luiz Lima busca inverter a lógica habitual de tratamento da clássica questão acerca do marxismo de Cardoso. Em vez do esforço para demonstrar a pertinência da inclusão de sua obra no rol dos marxismos pátrios, e em lugar da tentativa de delimitar seu tipo específico de marxismo, Lima interroga-se como o cânone brasileiro do marxismo desenvolveu mecanismos de exclusão que terminaram por descaracterizar e desqualificar o componente marxista da obra de Cardoso. Vemos, aqui, como os destinos de sua recepção foram determinados por uma dinâmica complexa de delimitações canônicas que não se explica pela balança de afinidades e inimizades políticas, ainda que não lhe seja de todo indiferente. Ser marxista, pertencer ao panteão dos marxistas brasileiros, aparece, afinal, mais como um efeito combinado do jogo de reconhecimento ou desprezo entretecido pelo campo do marxismo do que como algo que decorre de atributos endógenos da obra.

O artigo de Leonardo Belinelli e Karim Helayel, intitulado “Teoria, história e política em Fernando Henrique Cardoso”, dá ênfase ao período de 1969 a 1978 e discute a hipótese de que a articulação entre teoria e história na sociologia do autor parece ter sido forjada tendo em vista, sobretudo, a intervenção na realidade. Como argumentam os autores, a relação entre teoria e história encontrará uma inflexão particularmente contundente em seus trabalhos nos anos 1970, posto que a relação entre Estado e sociedade é tratada por Cardoso com base na interação de teoria, história e prática política. Assim, tal combinação, na perspectiva de Cardoso, particularmente no que se refere aos seus trabalhos dos anos 1970, não se esgota na compreensão e explicação da formação social brasileira, proporcionando-lhe subsídios para uma intervenção consequente na realidade.

Por fim, no terceiro artigo do dossiê, “Fernando Henrique Cardoso nos Estados Unidos da América: a obra de um scholar, um scholar como obra”, Lidiane Soares Rodrigues busca reconstruir o itinerário das escolhas, estratégias e tomadas de posição que asseguraram a Cardoso um status absolutamente ímpar no ambiente acadêmico norte-americano. O raro e improvável sucesso de um sociólogo brasileiro naquele contexto é explicado por uma confluência de perspicácia analítica, astúcia na gestão da carreira e boa dose de capital social. Algumas décadas antes da emergência do horizonte acadêmico globalizado em que ora nos encontramos, a consagração de um intelectual periférico no centro do establishment norte-americano revela os meandros de uma trajetória singular em que detêm centralidade as estratégias de filiação e rivalidade com outros scholars e com certas escolas de pensamento. Trata-se de perscrutar como Cardoso teve reconhecimento nos Estados Unidos precisamente por antagonizar com os “dependentistas” rivais, enquanto oscilava entre a crítica a uma suposta escola “dependentista” e a ocupação de espaços como o expert nas “situações de dependência”.

Esperamos que todos tenham uma agradável leitura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: FFLCH-USP, 2019.
  • Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: fflch-usp, 2018.
  • Helayel, Karim. Um sociólogo na periferia do capitalismo: a sociologia histórico-comparada de Fernando Henrique Cardoso. Tese (doutorado em sociologia) - Rio de Janeiro: ufrj, 2019.
  • Kay, Cristóbal. Latin American Theories of Development and Underdevelopment. Nova York: Routledge, 2011.
  • Lahuerta, Milton. Intelectuais e transição: entre a política e a profissão. Tese (doutorado em ciência política) - São Paulo: fflch-usp 1999.
  • Leme, Alessandro. “La centralidad de la política para pensar lo económico en Fernando Henrique Cardoso”. Revista Mexicana de Sociología, v. 77, n. 3, 2015, pp. 357-84.
  • Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação (1955-1968). Tese (doutorado em ciência política) - Rio de Janeiro: Iesp-Uerj, 2015.
  • Martins, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
  • Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.
  • Rodrigues, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese (doutorado em história social) - São Paulo: fflch-usp, 2012.
  • Schwarz, Roberto. “Um seminário de Marx”. Novos Estudos. n. 50, 1998, pp. 99-114.
  • ______. “Um seminário de Marx”. In: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 104-28.
  • Sewell Jr., William. Lógicas da história: teoria social e transformação social. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • Sorj, Bernardo. A construção intelectual do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022
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