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O PERFECCIONISMO POLÍTICO COMO POSSÍVEL CONCRETIZAÇÃO DO FATO DA MAIORIA: Uma alternativa em direção às sociedades bem-ordenadas

Political Perfectionism as a Possible Concretization of the Fact of Majority: An Alternative Towards Well-Ordered Societies

RESUMO

Liberalismo e perfeccionismo foram considerados posições incompatíveis por John Rawls. Essa incompatibilidade foi questionada por diversos autores. Partindo daí, o artigo propõe um liberalismo perfeccionista político como uma possibilidade promissora para que as democracias liberais possam enfrentar a tarefa de promover as virtudes políticas necessárias para sua reprodução.

PALAVRAS-CHAVE:
democracia; fato da maioria; virtudes políticas; liberalismo político; perfeccionismo político

ABSTRACT

Liberalism and perfectionism were considered incompatible positions by John Rawls. This incompatibility was questioned by several authors. Departing from this point, the article proposes a political perfectionist liberalism as a promising possibility for liberal democracies to face the task of promoting the political virtues necessary for its reproduction.

KEYWORDS:
democracy; fact of majority; political virtues; political liberalism; political perfectionism

INTRODUÇÃO

A filosofia política liberal contemporânea tem uma pretensão marcadamente normativa.1 1 “Com exceção da teoria política normativa, filósofos perderam sua competência especial para o sistema político” (Habermas, 2017, p. 229). É isso que John Rawls explicitou quando afirmou que sua concepção política de justiça, a justiça como equidade, é uma concepção moral, ou seja, “seu conteúdo é determinado por ideais, princípios e critérios e […] essas normas articulam certos valores que, nesse caso, são políticos” (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 13). Nessa formulação, ele rejeita a separação habitual entre moralidade e política. Para ele, aquilo que deve ser oposto às concepções políticas, que se limitam à pretensão de regular a estrutura básica das sociedades democráticas liberais, são as doutrinas abrangentes, aquelas que pretendem regular os mais diversos objetos, potencialmente todos (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 15). Assim, enquanto uma concepção política de justiça é concebida para regular normativamente apenas as principais instituições políticas, sociais e econômicas, combinadas em um sistema único de cooperação social, a chamada estrutura básica da sociedade (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 13), doutrinas abrangentes, religiosas, filosóficas e/ou metafísicas, por sua vez, pretendem não só regular a estrutura básica, mas também normatizar o mais amplamente possível a vida dos cidadãos, suas dimensões privada, social, espiritual etc.

No caso da justiça como equidade, sua normatividade, limitada ao âmbito político, situa-se ao longo de duas ideias de sociedade, da ideia fundamental da sociedade como um sistema equitativo de cooperação justa entre pessoas livres e iguais, de uma geração às seguintes, até chegar à ideia de sociedade bem-ordenada, aquela que seria efetivamente regulada por uma concepção política de justiça e que figura como ideal a ser alcançado pelas democracias existentes (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., pp. 16-7). Essa normatividade é frequentemente hipertrofiada pela crítica, que costuma acusá-la de excessivamente idealizada,2 2 Esse tipo de crítica pode ser encontrado desde a publicação de O liberalismo político: “Apesar de admiti-lo, seu relato até mesmo dos Estados Unidos da América, centro de sua concepção, parece desencarnado e idealista algumas vezes” (Williams, 2000). ainda que Rawls tenha declarado que a sociedade bem-ordenada não seria uma “sociedade de santos”, mas, sim, parte de nosso mundo humano ordinário, algo que não está fora de nosso alcance (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 64). Assim, ao tentar responder àquele tipo de crítica, ele enfatizou sua busca pela solução de conflitos concretos, um objetivo assumidamente prático: “O objetivo da justiça como equidade é, por conseguinte, prático: ela se apresenta como uma concepção de justiça que pode ser compartilhada pelos cidadãos como a base de um acordo político refletido, bem-informado e voluntário” (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 11).

Admitidos esses elementos de referência à concretude política, seria necessário empreender uma leitura tendenciosa e pouco amistosa para insistir naquela acusação de idealização excessiva. Todavia, essa ainda não é a resposta completa que pode ser dada a tal leitura, pois se deve incluir nela a referência à parte descritiva da teoria rawlsiana. Rawls elabora esse aspecto quando tenta esclarecer sua ideia de sociedade bem-ordenada, ao indicar o que poderia levar sua concepção de justiça ao fracasso, ou seja, a não conseguir conquistar o apoio dos cidadãos razoáveis (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., pp. 42-3). Isso deixa evidente sua preocupação de reunir, em um “acordo político” viável, suas concepções gerais idealizadas com os juízos particulares dos cidadãos concretos, mas ele vai ainda mais longe e propõe alguns fatos gerais que caracterizariam descritivamente a cultura política das sociedades democráticas existentes, entre eles: o fato do pluralismo razoável, o fato da opressão, o fato da maioria e o fato da cultura política (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., pp. 43-5).

O fato de o pluralismo razoável ser cuidadosa e constantemente abordado, enquanto fator crucial que levou ao notório e decisivo deslocamento da obra rawlsiana, de Uma teoria da justiça (daqui em diante, TJ) até O liberalismo político (daqui em diante, LP):

O fato de haver uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis, mas incompatíveis entre si - o fato do pluralismo razoável - demonstra que, tal como se emprega em Teoria, a ideia de sociedade bem-ordenada da justiça como equidade é irrealista. […] A ambiguidade de Teoria é agora eliminada, e a justiça como equidade passa a ser apresentada, desde o princípio, como uma concepção política de justiça (I, §2). (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. xvii)

O segundo fato geral, o da opressão, está logicamente vinculado ao primeiro, pois a única maneira de uma sociedade marcada por tal pluralismo se organizar em torno de uma doutrina abrangente, com sua pretensão de avaliar, hierarquizar e regular os mais diversos aspectos da vida, seria pela opressão. Assim, em sociedades plurais, “uma única doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente só pode ser preservada pelo uso opressivo do poder estatal” (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 44).

Por sua vez, o quarto fato geral, nomeado aqui “o fato da cultura política”, é mencionado apenas uma vez, embora seu conteúdo seja utilizado de maneira frequente e decisiva como a fonte última da já mencionada ideia normativa fundamental de sociedade:

acrescento um quarto fato geral […]. É o fato de que a cultura política de uma sociedade democrática, que tenha funcionado razoavelmente bem ao longo de um período considerável de tempo, normalmente contém, pelo menos de forma implícita, certas ideias intuitivas fundamentais a partir das quais é possível formular uma concepção política de justiça apropriada a um regime constitucional. (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 45)

O fato restante é o chamado “fato da maioria”: “um terceiro fato geral é que um regime democrático duradouro e estável […] tem de ser de modo livre e voluntário apoiado pelo menos por uma maioria dos seus cidadãos politicamente ativos” (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 44). Esse fato não volta a ser mencionado por Rawls e há pelo menos três razões para isso. A primeira é que ele parece uma mera platitude, algo a que se pode assentir sem refletir muito - afinal, a ideia de que as democracias são regimes majoritários, ainda que não apenas isso, parece óbvia. A segunda é a visão de Rawls sobre o futuro das democracias liberais, que parece agora injustificadamente otimista. Essa visão é exposta quando ele tenta responder a como o liberalismo político seria possível, ou, em outras palavras, como seria possível que os valores do âmbito político prevalecessem sobre valores conflitantes: “os valores do político são muito importantes e, por essa razão, não são facilmente superáveis: esses são os valores que governam a estrutura básica da vida social […] e especificam os termos essenciais da cooperação social e política” (Rawls, 2011Rawls, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 164). A terceira razão é que a melhor maneira de realizar aquilo que é exigido pelo fato da maioria seria por meio de algo que Rawls rejeitou de forma constante, a saber, o perfeccionismo, como modo de formar aquele tipo de maioria exigido.

Dessas três razões, a primeira possui pouco interesse filosófico, e a segunda, rejeitando o otimismo de Rawls, não pode mais ser considerada uma questão puramente teórica, diante do atual cenário de crise das democracias pelo mundo (cf. V-Dem Institute, 2022V-Dem Institute. Democracy Report 2022: Autocratization Changing Nature? Gotemburgo: V-Dem Institute, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf >. Acesso em: 29/10/2022.
https://v-dem.net/media/publications/dr_...
; Repucci; Slipowitz, 2022Repucci, Sarah; Slipowitz, Amy. “Freedom in the World 2022: The Global Expansion of Authoritarian Rule”. Freedom House, [s.d.]. Disponível em: <Disponível em: https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2022/global-expansion-authoritarian-rule >. Acesso em: 29/10/2022.
https://freedomhouse.org/report/freedom-...
). De fato, decorridos trinta anos desde que os mencionados fatos gerais foram apresentados, tornou-se evidente a situação de precariedade existencial das democracias liberais, acentuando aquela distância entre descrição e normatividade na teoria rawlsiana que foi apontada pela crítica. Quanto à terceira razão, será sustentado que justamente esse obscurecido fato da maioria contém elementos perfeccionistas capazes de diminuir essa distância e, ao mesmo tempo, apresentar uma possível saída rawlsiana para aquela situação de risco das democracias liberais.

Assim, considerando que o fato da maioria possui um conteúdo normativo que não se pode mais dizer que esteja totalmente concretizado na maioria das democracias liberais contemporâneas, a proposta deste artigo é mostrar que: 1) a possibilidade de adoção da normatividade política rawlsiana, da ideia de sociedade como sistema de cooperação justa entre pessoas livres e iguais, até a ideia da sociedade bem-ordenada, depende da concretização adequada do fato da maioria; 2) essa concretização impõe a necessidade de algo que Rawls sempre rejeitou explicitamente, a saber, o perfeccionismo, ainda que seja de um tipo que ele mesmo não concebeu, o perfeccionismo político. Para atingir tais objetivos, analisaremos a posição rawlsiana em relação ao perfeccionismo, especificando suas razões, que se modificaram ao longo de sua obra, para rejeitá-lo. Em seguida, mostraremos que ainda não há uma caracterização adequada de um perfeccionismo político, mesmo que Jonathan Quong (2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020.) e Collis Tahzib (2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78.) tenham dado passos importantes para sua definição, e não foram extraídas as consequências de tal perfeccionismo. Por fim, sustentaremos que apenas a assunção desse perfeccionismo político pode permitir a possibilidade de concretização do conteúdo normativo do fato da maioria e, em consequência, da realização do aspecto normativo geral da justiça como equidade, com a vigência de democracias que possam se aproximar do ideal de sociedade bem-ordenada.

RAWLS E O PERFECCIONISMO: CARACTERIZAÇÕES E OBJEÇÕES

Perfeccionismo e liberalismo têm ocupado lados opostos na filosofia política liberal contemporânea. Essa oposição foi paradigmaticamente estabelecida por Rawls em TJ e reforçada com a formulação de seu liberalismo político. Em TJ, ele buscou demonstrar que o perfeccionismo seria rejeitado como alternativa aos princípios da justiça como equidade; mais tarde, rejeitou-o pela ligação, que considerou constitutiva, entre perfeccionismo e doutrinas abrangentes. A seguir, serão analisadas as razões dessa rejeição ao perfeccionismo nas duas fases.

O perfeccionismo costuma ser associado com teorias éticas que relacionam o bem ao desenvolvimento da natureza humana, mas a transição de uma ética perfeccionista para o campo da política ocorre com frequência, pois quem se compromete com uma ética perfeccionista presumivelmente estará a favor de promovê-la a partir das instituições estatais e políticas públicas (Wall, 2019Wall, Steven. “Perfectionism in Moral and Political Philosophy”. In: Zalta, Edward N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford: Metaphysics Research Lab, Stanford University, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/sum2019/entries/perfectionism-moral/ >. Acesso em: 3/6/2020.
https://plato.stanford.edu/archives/sum2...
). É exatamente nessa transição que reside a preocupação de Rawls, para quem o perfeccionismo seria o princípio condutor de uma teoria teleológica que define as instituições sociais e os deveres e obrigações dos indivíduos para a maximização da excelência humana nas artes, na ciência e na cultura (Rawls, 1999Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999., pp. 285-6). Em TJ, Rawls delineia uma concepção de justiça, a partir de um modelo liberal contratualista, que rejeita concepções teleológicas baseadas no utilitarismo, no intuicionismo e no perfeccionismo (Rawls, 1999Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999., pp. 3 e 30). Assim, ele muda o foco das discussões sobre o perfeccionismo do campo da ética para o da política, e é essa a baliza que desde então vem conduzindo esse debate.

A questão, para Rawls, seria verificar se o princípio perfeccionista, em suas duas acepções, poderia ser compatível com princípios de justiça alcançados pelas partes na posição original. O princípio perfeccionista, em uma concepção mais estrita, poderia ser altamente demandante, como o ideal de Nietzsche de promoção dos grandes seres humanos, ou constituir uma doutrina mais moderada, como a variante aristotélica, na qual as demandas por excelência nas artes e na cultura são balanceadas com diversos outros princípios em uma teoria intuicionista. Para Rawls, é mais simples a objeção a uma doutrina perfeccionista mais estrita, em que há um único princípio teleológico orientador, pois as partes na posição original não teriam como alcançar um acordo sobre um singelo critério que poderia ser utilizado para desenhar as instituições sociais, e, assim, o mesmo argumento que conduz ao princípio da igual liberdade requereria a rejeição do princípio da perfeição. Portanto, o perfeccionismo não seria capaz de constituir um princípio político e só deveria ser perseguido nos limites da livre associação. Quanto à vertente intuicionista mais moderada, embora não se desvie tanto dos princípios de justiça decorrentes da posição original em suas consequências, ainda assim deveria ser rejeitada, pois não há uma base para o reconhecimento do princípio de perfeição como um padrão de justiça social, e os critérios de excelência perfeccionistas, fadados à instabilidade e à idiossincrasia, seriam por demais imprecisos para funcionar como princípios políticos (Rawls, 1999Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999., pp. 286-91).

Embora esses argumentos apresentados em TJ tenham sido acolhidos pela maioria dos comentadores, tornando-se parte da base da rejeição liberal ao perfeccionismo,3 3 “Debates entre concepções neutralistas e perfeccionistas da moralidade política continuam a ocupar um lugar preponderante na filosofia política contemporânea. O trabalho de Rawls está no centro deles. Tanto em seus primeiros trabalhos como nos últimos, Rawls expressou sua oposição a políticas estatais perfeccionistas em termos claros e rígidos” (Wall, 2013, p. 573). Rawls acrescentou em LP uma nova razão de recusa, relacionada com a ligação entre ele e as doutrinas abrangentes, que pode ser explicada pela relação entre dois fatos gerais. O fato do pluralismo razoável afirma a existência de uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis, mas conflitantes, enquanto o fato da opressão sugere que, diante do primeiro, só o uso opressivo do poder estatal permitiria a unificação da sociedade política em torno de uma doutrina abrangente, que não seria partilhada pelos cidadãos, mas cuja adoção seria supostamente necessária para a atuação de um Estado perfeccionista. Assim, essa análise vedaria a possibilidade de um Estado democrático liberal perfeccionista. Ao contrário da argumentação detalhada empregada em TJ, esse será o único argumento apresentado em LP. Rawls continua contando aqui com aquela argumentação anterior, que não vê necessidade de repetir, mas a suposta dependência do perfeccionismo em relação a uma doutrina abrangente já seria motivo suficiente para sua rejeição. Porém, ele não considerou imprescindível demonstrar essa vinculação necessária entre doutrinas abrangentes e o perfeccionismo, de modo que ela permaneceu como um pressuposto. Assim, é preciso avaliar se há alguma forma do segundo que seja independente de qualquer doutrina abrangente e, ao mesmo tempo, capaz de resistir às objeções apresentadas em TJ, como se pretende mostrar que é o caso do perfeccionismo político.

O PERFECCIONISMO POLÍTICO

Como mostrado, perfeccionismo e liberalismo são majoritariamente compreendidos como mutuamente excludentes. Todavia, há diversas tentativas convincentes de reconciliá-los, especialmente as elaboradas por Joseph Raz (1986Raz, Joseph. The Morality of Freedom. Nova York: Oxford University Press , 1986.), Thomas Hurka (1995Hurka, Thomas. “Indirect Perfectionism: Kymlicka on Liberal Neutrality”. Journal of Political Philosophy, v. 3, n. 1, 1995, pp. 36-57.), Simon Caney (1998Caney, Simon. “Liberal Legitimacy, Reasonable Disagreement and Justice”. Critical Review of International Social and Political Philosophy, v. 1, n. 3, 1998, pp. 19-36.), Steven Wall (1998Wall, Steven. Liberalism, Perfectionism and Restraint. Cambridge: Cambridge University Press , 1998.), Joseph Chan (2000Chan, Joseph. “Legitimacy, Unanimity and Perfectionism”. Philosophy and Public Affairs, v. 29, n. 1, 2000, pp. 5-42.) e Collis Tahzib (2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78.).4 4 Todos esses autores propuseram formas de perfeccionismo liberal influentes e, em nossa visão, persuasivas; todavia, o que pensamos que eles não fizeram foi formular um perfeccionismo liberal político, nos termos que pretendemos apresentar aqui. Essas formulações parecem capazes de resistir às principais objeções levantadas em TJ, na medida em que nenhuma se apresenta como uma forma de perfeccionismo estrito ou nietzschiano, contra o qual tais objeções são muito persuasivas, mas podem ser compreendidas como formas de perfeccionismos aristotélicos ou intuicionistas, que o próprio Rawls reconheceu serem mais difíceis de rejeitar (Rawls, 1997Rawls, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 359). Essas propostas estabeleceram um debate que foi exemplarmente descrito por Quong (2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020.), que busca atualizar o liberalismo político, renovando sua rejeição ao perfeccionismo. Não obstante, Quong apresenta questões relevantes no que se refere à possibilidade formal de um perfeccionismo político.5 5 Para uma análise da formulação de Quong, cf. Araujo et al. (2022). Posteriormente, Tahzib (2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78.) elaborou uma proposta de perfeccionismo político que representa um significativo avanço em relação à elaboração de Quong, embora permaneça incompleta quando comparada à proposta que será apresentada aqui. Assim, para os propósitos deste artigo, serão utilizadas a discussão de Quong sobre a possibilidade formal do perfeccionismo político e sua formulação efetiva, elaborada por Tahzib.

Stephen Mulhall e Adam Swift (1996Mulhall, Stephen; Swift, Adam. Liberals and Communitarians. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1996.) chamaram a atenção para o fato de que o debate bipolar entre perfeccionismo liberal e liberalismo político estava indevidamente estreitado. Segundo os autores, haveria dois tipos de considerações a serem feitas ao se abordar o perfeccionismo em um Estado liberal. A primeira seria concernente à esfera da política, aos tipos de considerações que seriam relevantes nas decisões sobre o uso do poder coercitivo do Estado. Nessa linha, uma doutrina liberal poderia ser perfeccionista ou antiperfeccionista. O segundo tipo de consideração estaria ligado à defesa ou justificação do papel do Estado, que poderia ser política ou abrangente. Baseados nessa distinção, Mulhall e Swift apresentam uma matriz de quatro células, representando as possíveis combinações entre as duas considerações. Ou seja, uma doutrina liberal poderia ser política e antiperfeccionista, abrangente e antiperfeccionista, abrangente e perfeccionista e, por fim, política e perfeccionista. Todavia, Mulhall e Swift não fornecem um exemplo de doutrina política e perfeccionista porque, segundo eles, não haveria nenhum teórico que pudesse ser identificado como um perfeccionista político, pois defensores de tal doutrina permitiriam que o Estado extraísse julgamentos sobre a boa vida das pessoas, mas excluiriam deles mesmos a possibilidade de recorrer a doutrinas abrangentes (Mulhall; Swift, 1996Mulhall, Stephen; Swift, Adam. Liberals and Communitarians. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1996., pp. 251-2).

Quong parte da matriz proposta por Mulhall e Swift, mas tenta estruturá-la por meio de duas questões-chave. A primeira é se a filosofia política liberal deveria se basear em algum ideal de vida boa (se seria abrangente ou política), e a segunda é se um Estado liberal poderia promover tais ideais (se seria um Estado perfeccionista ou antiperfeccionista):

(1) A filosofia política liberal deve ser baseada em algum ideal particular do que constitui uma forma de vida humana valiosa ou outras crenças metafísicas? (2) É permissível para um Estado liberal promover ou desencorajar alguns ideais, atividades ou modos de vida partindo de fundamentos relacionados a seus valores inerentes ou intrínsecos ou baseado em outras alegações metafísicas? (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 12)

Segundo ele, as quatro combinações possíveis de respostas “sim/não” gerariam quatro possibilidades de relação entre liberalismo e perfeccionismo, entre elas, o perfeccionismo político, que responderia “não” à primeira questão e “sim” à segunda (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., pp. 15 e 21). Todavia, embora enuncie explicitamente a possibilidade formal desse tipo de perfeccionismo, Quong parece torná-la inconsistente desde o início, pelo próprio modo como coloca a questão 2, que vincula intrinsecamente perfeccionismo e posições metafísicas. De fato, afirmar que a permissão concedida ao Estado liberal de promover ou desencorajar ideias, atividades ou modos de vida depende de “seus valores inerentes ou intrínsecos ou baseados em outras alegações metafísicas” significa considerar que aquela permissão depende sempre de alguma alegação metafísica, a qual deve ser lida no mínimo como parte de uma doutrina abrangente, que Rawls e Quong opõem às concepções políticas, tais como a justiça como equidade,6 6 Para constatar a equivalência/sobreposição rawlsiana entre alegações metafísicas e doutrinas abrangentes, ambas em oposição às concepções políticas, basta recordar o título do famoso artigo de transição entre TJ e LP: “Justice as Fairness: Political not Metaphysical” [Justiça como equidade, uma concepção política, não metafísica"] (Rawls, 1985). e que Quong deveria opor ao perfeccionismo político. Isso fica nítido quando ele procura definir o perfeccionismo político e apresentar exemplos de doutrinas que se encaixariam nessa definição.

O perfeccionismo político, para Quong, seguiria uma tese em que o liberalismo não estaria fundado em qualquer concepção de bem, mas o Estado liberal ainda assim poderia justificar suas políticas e leis em referência a crenças sobre o que seria a vida boa. Possíveis exemplos seriam os perfeccionismos de Joseph Chan e George Sher (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 20). Todavia, essa é uma definição equivocada, que herda um deslize conceitual de Mulhall e Swift, ao utilizar a distinção entre abrangente e político proposta por Rawls, ainda que adote um conceito de político diferente do formulado por Rawls. Esse equívoco acaba gerando um desnecessário paradoxo na caracterização do perfeccionismo político, pois confunde o que é político para Rawls com outros significados de político, como, por exemplo, quando Mulhall e Swift (1996Mulhall, Stephen; Swift, Adam. Liberals and Communitarians. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1996., p. 252) chegam a cogitar que talvez fossem perfeccionistas políticos os teóricos que defendem um ideal aristotélico de autorrealização por meio da atividade política, para, logo em seguida, concluir que esse ideal aristotélico seria abrangente para Rawls e, portanto, que não seria possível vislumbrar um perfeccionismo político.

Quong (2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 274) constrói um paradoxo semelhante ao vislumbrar (embora discorde da proposta) que talvez pudesse ser defendida uma forma de perfeccionismo político compatível com uma “visão restrita” da ideia de razão pública, em tese abrindo a considerações perfeccionistas decisões políticas não essenciais (que não se aplicam ao domínio dos fundamentos constitucionais e das questões de justiça básica). Em outras palavras, o perfeccionismo político somente se aplicaria ao que não é essencialmente político para Rawls. Não por coincidência, os autores que Quong sugere como perfeccionistas políticos não restringem seu perfeccionismo ao escopo do que Rawls define como político, nem se autointitulam perfeccionistas políticos. Chan (2000Chan, Joseph. “Legitimacy, Unanimity and Perfectionism”. Philosophy and Public Affairs, v. 29, n. 1, 2000, pp. 5-42.), por exemplo, considera-se um perfeccionista moderado, assim como Franz Fan-Lun Mang (2013Mang, Franz Fan-Lun. “Liberal Neutrality and Moderate Perfectionism”. Res Publica, v. 19, n.4, 2013, pp. 297-315.). É certo que Chan traz o conceito de perfeccionismo político, mas não no sentido oposto ao de abrangente, como aplicado por Rawls. Para Chan, o perfeccionismo político (que seria distinto do perfeccionismo filosófico) tem um sentido de tomada de decisão coletiva (pelo Estado ou pelos cidadãos que em seu nome agem), em que as decisões sobre o que são os bens e os meios de vida valiosos não são tomadas com base em crenças sobre o que é a boa vida, mas a partir de procedimentos neutros em relação a questões substantivas, como as decisões de uma maioria democrática (Chan, 2000Chan, Joseph. “Legitimacy, Unanimity and Perfectionism”. Philosophy and Public Affairs, v. 29, n. 1, 2000, pp. 5-42.). O perfeccionismo de Chan, portanto, poderia ser chamado de moderado, como ele mesmo o denomina, ou democrático, mas não político no sentido rawlsiano. O perfeccionismo de Sher também não tem pretensões de ser político no sentido rawlsiano. Sher adota um perfeccionismo do tipo aristotélico, em que considerações perfeccionistas não são as únicas bases para as decisões políticas nem dominam todas as outras necessariamente, mas, ao mesmo tempo, não podem ser relegadas a um papel marginal (Sher, 1997Sher, George. Beyond Neutrality: Perfectionism and Politics. Cambridge: Cambridge University Press , 1997., p. 246). Desse modo, aplicando-se rigorosamente a terminologia rawlsiana, esses perfeccionismos não são políticos, mas abrangentes.

Assim, se associar o perfeccionismo político a alegações metafísicas significa tornar confusa e até mesmo inviabilizar sua possibilidade, temos a seguinte e decisiva questão: o perfeccionismo político seria em si mesmo paradoxal/inviável ou pode ser formulado de maneira clara e possivelmente útil para os propósitos das democracias liberais? A resposta a essa questão pode ser parcialmente encontrada no próprio texto de Quong, quando este apresenta uma definição de perfeccionismo: a visão de que uma das funções legítimas do Estado é promover diretamente ou encorajar as pessoas a viverem vidas mais significativas, por um lado, ou desencorajar os cidadãos a perseguirem atividades ou modos de vida sem valor, por outro (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 19). Partindo-se dessa formulação minimalista, que caracteriza de modo conceitualmente rigoroso a posição perfeccionista, é possível sustentar que as expressões “vidas mais significativas” e “modos de vida sem valor” não são necessariamente vinculadas a alegações metafísicas ou doutrinas abrangentes, como fez Quong na inadequada formulação da referida “questão 2”, em que ele adere irrefletidamente à vinculação rawlsiana entre perfeccionismo e doutrinas abrangentes. De fato, os perfeccionismos podem ser abrangentes na maior parte dos casos, mas isso não significa que não possa haver um perfeccionismo desvinculado de alegações metafísicas/doutrinas abrangentes, ou seja, político. Assim, partindo da definição minimalista do perfeccionismo, o perfeccionismo político poderia ser descrito, na melhor interpretação de Quong, como uma justificação das ações de promoção ou desencorajamento de atividades e/ou modos de vida feitas pelo Estado liberal, mas apenas a partir de valores estritamente políticos e constitutivos das democracias liberais, sem nenhum apelo a quaisquer doutrinas abrangentes.

Essa formulação do perfeccionismo político não é suficiente para os propósitos deste artigo, como se verá adiante. Não obstante, o próprio Quong reconhece a importância da temática do perfeccionismo político e lamenta a ausência de formulações sistemáticas sobre o tema, indicando o trabalho de Tahzib como uma recente tentativa nesse sentido (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. ix). Tahzib busca defender exatamente a possibilidade de um perfeccionismo político em seu artigo “Perfectionism: Political not Metaphysical” (Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78.). Todavia, aquilo que torna insuficiente a formulação de Quong é a mesma limitação que atingirá a proposta de Tahzib.

Segundo Tahzib, em uma concepção de perfeccionismo político, “os Estados podem promover alguns ideais do bem ou de florescimento humano (daí o perfeccionismo), mas devem basear suas visões no mesmo tipo de estrutura, geralmente contratualista e moralmente mínima, que a dos liberais políticos (daí o político)” (Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., p. 146). A proposta de Tahzib proporciona importantes insights sobre o perfeccionismo político, como o foco na justificação pública da ação estatal e a ideia de que um adequado uso do princípio da justificação pública requer certa idealização dos cidadãos a que ela se dirige (Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., p. 166). No entanto, o perfeccionismo político de Tahzib propõe mais do que se poderia justificar no âmbito do político, ao mesmo tempo que perde a oportunidade de desenvolver a mais importante face do perfeccionismo político.

Na verdade, o perfeccionismo político de Tahzib está mais para uma espécie de perfeccionismo moderado, como o de Chan (2000Chan, Joseph. “Legitimacy, Unanimity and Perfectionism”. Philosophy and Public Affairs, v. 29, n. 1, 2000, pp. 5-42.) - em que se admite a ação estatal para a promoção de certos aspectos da vida boa menos controvertidos -, do que para uma doutrina em que o Estado pode agir no âmbito do político. O perfeccionismo político de Tahzib não adere à demanda de neutralidade em relação ao conteúdo da boa vida, como exigiria o liberalismo político, guardando apenas uma sensibilidade às demandas que guiaram tal neutralidade (Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., p. 148), como seria o fato do pluralismo razoável. Assim, a proposta de Tahzib se enquadraria em um perfeccionismo intuicionista ou aristotélico do tipo delineado em TJ, que não prevê um fim único para cuja realização toda a sociedade deveria se voltar. De fato, parece que Tahzib adota a limitação proposta por Rawls em TJ, em que o perfeccionismo se volta para a busca da perfeição humana nas artes, ciências e cultura, e, portanto, o perfeccionismo político favoreceria políticas mais “espessas” do que os defensores do liberalismo político estariam aptos a aceitar. As virtudes promovidas pelo perfeccionismo político de Tahzib não se limitariam ao domínio do político, mas incluiriam ideais de direcionamento da conduta e da vida como um todo (Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., pp. 177-8), os quais foram expressamente rejeitados por Rawls em TJ e considerados abrangentes em LP.

Tahzib parece preocupado em apresentar uma doutrina que não seja vista como mera aplicação do liberalismo político (cf. Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., p. 174). Se, por um lado, podemos reconhecer na proposta de Tahzib o mérito de tentar expandir o alcance do que seria uma ação estatal publicamente justificável em uma sociedade democrática liberal, por outro lado, ela continua sendo uma forma de perfeccionismo liberal abrangente que, embora moderadamente abrangente e muito menos controvertida, ainda estará sujeita às mesmas críticas aplicáveis aos perfeccionismos liberais. Além disso, se o que o perfeccionismo de Tahzib adiciona ao escopo do que é político são apenas questões ligadas à perfeição nas artes, ciências e cultura, Rawls (2001Rawls, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Harvard University Press , 2001., pp. 151-2) já teria uma resposta pronta, indicando que esses valores poderiam ser buscados no âmbito do processo legislativo democrático.

O maior problema do perfeccionismo de Tahzib, no entanto, não é o que ele propõe além do escopo do político, mas o que fica aquém do que um perfeccionismo político pode e deveria alcançar. Não que Tahzib rejeite que certos ideais de bem e florescimento aplicáveis às pessoas enquanto cidadãos não possam ser compreendidos como parte de um perfeccionismo político, mas não é sobre esse domínio que ele se debruça (cf. Tahzib, 2019Tahzib, Collis. “Perfectionism: Political not Metaphysical”. Philosophy and Public Affairs , v. 47, n. 2, 2019, pp. 144-78., p. 146, nota 15) e, tentando ampliar sua doutrina, acaba perdendo o foco no que é mais importante. De fato, um perfeccionismo político completo, vigoroso e útil para a concretização do aspecto normativo do fato da maioria precisa contar não apenas com um tipo político de justificação, mas também com o caráter político daquilo cuja promoção busca justificar, a saber, as virtudes políticas necessárias para a formação, o desenvolvimento e a estabilidade de uma sociedade democrática liberal que possa se aproximar do ideal de sociedade bem-ordenada. Resta definir, portanto, o conteúdo desse perfeccionismo.

PERFECCIONISMO POLÍTICO COMO CONCRETIZAÇÃO DO FATO DA MAIORIA

A análise dos trabalhos de Quong e Tahzib nos permite estabelecer que não há problemas formais quanto à afirmação do perfeccionismo político. O Estado liberal democrático pode promover ou desencorajar certas atividades ou modos de vida justificando-se com princípios, valores ou virtudes limitadas ao âmbito do político. Porém, resta demonstrar que o perfeccionismo político vai além de uma mera possibilidade formal e descrever os traços de sua configuração mais profícua para tratar os problemas das democracias liberais.

Primeiro, precisamos lembrar que, para Rawls, o que é político em uma concepção de justiça é apenas aquilo que constitui um quadro básico para reflexão e decisão, permitindo que os cidadãos alcancem um acordo sobre os fundamentos constitucionais e as questões básicas de justiça. Em suma, uma concepção política de justiça é aquela que permite a existência e a estabilidade das bases sociais de cooperação (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., pp. 156-7). Assim, o domínio do político aponta para a estrutura básica da sociedade, e seu escopo não abarca os ideais e valores próprios de concepções abrangentes totais ou parciais (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., pp. 10-3). O político, para Rawls, todavia, não se forma no vácuo. Um regime constitucional democrático e liberal só é possível quando os cidadãos possuem certas virtudes de cooperação política que, quando satisfatoriamente presentes na sociedade, formam um verdadeiro capital político. Rawls usa o termo “capital” precisamente por considerar que essas virtudes são lentamente construídas ao longo do tempo, dependendo para sua existência das instituições sociais, da experiência e do conhecimento do passado por parte de seus cidadãos, e, tal como outros tipos de capital, estão sujeitas à depreciação e precisam ser constantemente renovadas e reafirmadas (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., p. 157). O conteúdo das virtudes políticas não é tratado de forma sistemática por Rawls, mas ele lista algumas delas: por exemplo, a “virtude da tolerância”, a disposição de chegar a um acordo com outras pessoas, a “virtude da razoabilidade e o senso de justiça”, a “disposição de cooperar em termos políticos que cada um pode publicamente aceitar” (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., pp. 157 e 163).7 7 Sobre as virtudes políticas em Rawls, cf. James Boettcher (2014). As virtudes políticas “são virtudes de uma pessoa enquanto cidadã” e, diferentemente das virtudes ligadas a teorias abrangentes, não buscam especificar “um ideal de pessoa humana como um todo” (Lessa, 2017Lessa, Jaderson Borges. “Virtudes políticas e neutralidade ética em John Rawls”. In: Orben, Douglas João et al. (orgs.). A invenção da modernidade: as relações entre ética, política, direito e moral. Porto Alegre: Fi, 2017. pp. 85-101., p. 90). Assim, as virtudes políticas são idealizadas para a manutenção de um sistema de cooperação social, sem o qual o modelo de sociedade democrática não tem condições de se manter. Portanto, as virtudes políticas não deixam de ser um ideal de perfeição ou florescimento humano que, sem estarem relacionadas a concepções abrangentes, podem ser promovidas por um Estado liberal democrático.

Tendo demonstrado que o perfeccionismo político não é uma mera possibilidade formal, mas possui um conteúdo próprio capaz de ser promovido por um Estado liberal democrático, precisamos abordar se a concepção de perfeccionismo político aqui proposta tem alguma autonomia teórica em relação ao liberalismo político. Sobre esse ponto, é necessário lembrar que o liberalismo político não é um monólito teórico. Não só existem diferentes autores que propuseram suas próprias versões de liberalismo político, tal como Charles Larmore (1996Larmore, Charles. The Morals of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.), mas a própria obra de Rawls permite múltiplas leituras, e, por decorrência, liberalismos políticos que podem variar em conteúdo e propostas. Não obstante, o liberalismo político que tomamos como base de comparação é aquele descrito por Quong (2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020.), retratado como um liberalismo antiperfeccionista.

Quong poderia objetar à nossa comparação que, segundo sua definição, como vimos, o perfeccionismo exige que o Estado atue com base em alguma forma de valor ou pretensão metafísica (Quong, 2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 15). Portanto, o que estamos propondo não afetaria sua defesa do antiperfeccionismo. Essa objeção poderia ser respondida de três formas. Primeiro, a pergunta definidora do perfeccionismo, proposta por Quong, padece de um erro de formulação ao embutir o caráter metafísico do valor perseguido pelo Estado, o que inexoravelmente conduz qualquer resposta positiva a uma forma de perfeccionismo abrangente. Segundo, Quong rotula sua proposta teórica como antiperfeccionista e reiteradamente reafirma essa qualidade. Porém, se tomarmos por base a definição minimalista de perfeccionismo de Quong (2020Quong, Jonathan. Liberalism without Perfection. Nova York: Oxford University Press, 2020., p. 12), ele teria de retirar a objeção à autonomia teórica do perfeccionismo político, ou então assumir que sua versão do liberalismo político também tem uma face perfeccionista. Finalmente, embora afirmemos a autonomia teórica do perfeccionismo político ora proposto, não enxergamos um problema (como parece ter havido para Tahzib) no fato de os defensores do liberalismo político não apresentarem objeções à nossa proposta. Aliás, um dos méritos da proposta desse perfeccionismo político é apontar para uma legítima forma de ação do Estado liberal que, aparentemente, não encontraria objeções advindas do liberalismo político ou do perfeccionismo liberal abrangente.

É certo também que o próprio Rawls, sempre que se referiu a perfeccionismo, procurou explicitar que sua teoria não levava a uma forma de perfeccionismo (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., pp. 194-5). Porém, essa leitura antiperfeccionista de sua própria obra decorre do fato de que Rawls não vislumbrava uma forma de perfeccionismo que não fosse abrangente, o que não impede uma leitura de Rawls que defenda o perfeccionismo político. Um cuidadoso estudo deixa explícito que, em diversas passagens, ele propõe que o Estado promova as virtudes políticas.8 8 Por exemplo, quando Rawls afirma que, “se um regime constitucional dá certos passos para fortalecer as virtudes da tolerância e da confiança mútua, digamos, desencorajando vários tipos de discriminação religiosa e racial (de modo consistente com as liberdades de consciência e expressão), ele não se torna, desse modo, um Estado perfeccionista do tipo encontrado em Platão ou Aristóteles […]. Ao contrário, ele está tomando medidas razoáveis para fortalecer as formas de pensamento e os sentimentos que sustentam a cooperação social justa entre seus cidadãos, considerados livres e iguais” (Rawls, 2005, p. 195). Assim, não seria uma especulação exagerada afirmar que, se estivesse vivo e engajado na produção teórica atual, Rawls faria uma defesa ainda mais enfática da promoção das virtudes políticas. As democracias liberais vêm enfrentando grande pressão nos últimos anos. Além de ter diminuído em quantidade, com várias delas sofrendo revezes e transformações de caráter autocrático, a qualidade da vida democrática naquelas que resistiram foi prejudicada. De fato, mesmo sociedades democráticas que pareciam estáveis e consolidadas têm sofrido perdas nos mais diversos indicadores democráticos, tais como liberdade de associação, liberdade de expressão, extensão do sufrágio, censura da mídia, independência dos tribunais etc.

Organizações como V-Dem Institute (2022V-Dem Institute. Democracy Report 2022: Autocratization Changing Nature? Gotemburgo: V-Dem Institute, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf >. Acesso em: 29/10/2022.
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) e Freedom House (cf. Repucci; Slipowitz, 2022Repucci, Sarah; Slipowitz, Amy. “Freedom in the World 2022: The Global Expansion of Authoritarian Rule”. Freedom House, [s.d.]. Disponível em: <Disponível em: https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2022/global-expansion-authoritarian-rule >. Acesso em: 29/10/2022.
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), que produzem relatórios e análises teóricas a partir de enormes bases de dados, apresentam um cenário desolador. Até mesmo aquele que foi considerado um dos mais otimistas teóricos das democracias liberais admite que elas estão ameaçadas: “O liberalismo está em perigo. Os fundamentos das sociedades liberais são tolerância à diferença, respeito pelos direitos individuais e o Estado de direito, que estão todos sob ameaça enquanto o mundo sofre o que pode ser chamado de uma recessão democrática ou mesmo uma depressão” (Fukuyama, 2022Fukuyama, Francis. “A Country of Their Own: Liberalism Needs the Nation”. Foreign Affairs, v. 101, n. 1, 2022, pp. 80-91. Disponível em: <Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/ukraine/2022-04-01/francis-fukuyama-liberalism-country >. Acesso em: 29/10/2022.
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, p. 80).

Esse acúmulo de dados e análises teóricas sobre o declínio quantitativo e qualitativo das democracias liberais mostra sua fragilidade como um estado de coisas que não parece mais contestável. É essa situação contingente que Rawls não teve tempo de observar, já que sua última posição publicada sobre o liberalismo político data de 1998 (Rawls, 2005Rawls, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005., p. 437). Assim, se levarmos em consideração essa cronologia dos acontecimentos, talvez seja adequado sustentar um possível sexto fato geral, o fato do declínio: sem um projeto consciente e consistente de estabilização e desenvolvimento, as democracias liberais declinam. Esse “fato” está diretamente ligado ao descumprimento da exigência normativa do fato da maioria e pode ser razoavelmente pensado como um fato rawlsiano, ou seja, como algo que é compatível e sustentavelmente consequente de outras posições teóricas suas.

Entretanto, se essa ligação entre tais fatos for aceita, o próximo passo seria definir o que seria um projeto consciente e consistente de estabilização e desenvolvimento das democracias liberais, algo capaz de concretizar as exigências normativas do fato da maioria e, ao mesmo tempo, evitar o fato do declínio. Para isso, é preciso não ignorar que as virtudes políticas não se reproduzem inercialmente, mas, pelo contrário, declinam consideravelmente quando são entregues à própria sorte no conflito com tendências contrárias. Ademais, parece inegável que o único modo capaz de promover e desenvolver amplamente aquelas virtudes, atingindo toda a sociedade política, seria pela ação estatal. Assim, parece inevitável que o perfeccionismo político seja pensado como a solução mais promissora de um ponto de vista rawlsiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria da justiça de Rawls apresenta uma normatividade exigente; todavia, ele não a considera inexequível, enfatizando firmemente o objetivo prático da justiça como equidade. Nesse sentido, ele não apresenta apenas ideias normativas, mas também fatos gerais por meio dos quais pretende descrever a cultura política das democracias existentes. O fato da maioria, que não se reduz ao aspecto descritivo, mas também possui normatividade, faz uma mediação entre a ideia intuitiva fundamental, a da sociedade como sistema de cooperação justa entre pessoas livres e iguais, e o ideal de sociedade bem-ordenada, enquanto realização daquela ideia. Tal mediação se realiza na medida em que o fato da maioria, para que essa realização possa acontecer, estabelece que uma maioria de cidadãos politicamente ativos deve ser politicamente virtuosa, ou seja, deve possuir determinadas virtudes políticas que possibilitem a sustentação das democracias liberais.

Rawls considerou que os valores do político não seriam facilmente superáveis por valores contrários; porém, não viveu para testemunhar o declínio quantitativo e qualitativo das democracias liberais, o que sugere certo fracasso no cumprimento das exigências normativas do fato da maioria, com as virtudes políticas democráticas, como tolerância, respeito mútuo, civilidade, razoabilidade e senso de justiça, sendo muitas vezes superadas por valores, tendências e posições contrárias. Isso sugere que as virtudes políticas não se reproduzem de modo inercial, mas precisam ser ensinadas e fomentadas pela ação estatal a fim de superar as tendências contrárias a elas, o que configura uma exigência perfeccionista.

Ocorre que a combinação entre o fato do pluralismo e o fato da opressão fez Rawls rejeitar completamente toda forma de perfeccionismo, que ele entendeu como necessariamente dependente de uma doutrina abrangente particular. Porém, um perfeccionismo político liberal sustenta apenas que os Estados democráticos liberais devem promover determinadas virtudes políticas básicas, desencorajando aquelas contrárias, sem recorrer a doutrinas abrangentes particulares para legitimar tais ações perfeccionistas, mas justificando-as a partir de concepções exclusivamente políticas, partilhadas pela ampla maioria dos cidadãos, porque suas ideias fundamentais estão enraizadas na cultura pública das sociedades democráticas. Rawls negou que abrir espaço para essas virtudes levaria ao Estado perfeccionista - o qual resultaria da adoção de uma doutrina abrangente -, mas tal objeção depende da vinculação feita por ele, que não é necessária, entre perfeccionismo e doutrinas abrangentes. Isso não significa que Rawls cometeu uma contradição ingênua, já que o tipo de perfeccionismo em questão, o político, não foi pensado por ele e não é atingido por suas consistentes objeções aos perfeccionismos abrangentes.

Assim, diante da experiência política recente, torna-se cada vez mais claro que a exigência normativa do fato da maioria está longe de sua concretização, de modo que um perfeccionismo político liberal pode ser considerado uma possibilidade promissora para que as democracias liberais possam enfrentar a dura tarefa prática de promover as virtudes políticas necessárias para sua reprodução, sua estabilização e seu aperfeiçoamento, buscando, assim, a desejável aproximação do ideal de sociedade bem-ordenada.

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  • Williams, Bernard. “A Fair State: Political Liberalism by John Rawls”. London Review of Books, v. 15, n. 9, 1993, pp. 7-8.
  • 1
    “Com exceção da teoria política normativa, filósofos perderam sua competência especial para o sistema político” (Habermas, 2017Habermas, Jürgen. Postmetaphysical Thinking II. Essays and Replies. Cambridge: Polity, 2017., p. 229).
  • 2
    Esse tipo de crítica pode ser encontrado desde a publicação de O liberalismo político: “Apesar de admiti-lo, seu relato até mesmo dos Estados Unidos da América, centro de sua concepção, parece desencarnado e idealista algumas vezes” (Williams, 2000Williams, Bernard. “A Fair State: Political Liberalism by John Rawls”. London Review of Books, v. 15, n. 9, 1993, pp. 7-8.).
  • 3
    “Debates entre concepções neutralistas e perfeccionistas da moralidade política continuam a ocupar um lugar preponderante na filosofia política contemporânea. O trabalho de Rawls está no centro deles. Tanto em seus primeiros trabalhos como nos últimos, Rawls expressou sua oposição a políticas estatais perfeccionistas em termos claros e rígidos” (Wall, 2013Wall, Steven. “Rawlsian Perfectionism”. Journal of Moral Philosophy, v. 10, n. 5, 2013, pp. 573-97., p. 573).
  • 4
    Todos esses autores propuseram formas de perfeccionismo liberal influentes e, em nossa visão, persuasivas; todavia, o que pensamos que eles não fizeram foi formular um perfeccionismo liberal político, nos termos que pretendemos apresentar aqui.
  • 5
    Para uma análise da formulação de Quong, cf. Araujo et al. (2022Araujo, Ricardo C. et al. “Uma crítica às formulações do perfeccionismo político de Joseph Chan e Jonathan Quong: do equívoco do perfeccionismo moderado à inconsistência da possibilidade formal”. Revista Dissertation, n. 55, 2022, pp. 111-31.).
  • 6
    Para constatar a equivalência/sobreposição rawlsiana entre alegações metafísicas e doutrinas abrangentes, ambas em oposição às concepções políticas, basta recordar o título do famoso artigo de transição entre TJ e LP: “Justice as Fairness: Political not Metaphysical” [Justiça como equidade, uma concepção política, não metafísica"] (Rawls, 1985).
  • 7
    Sobre as virtudes políticas em Rawls, cf. James Boettcher (2014Boettcher, James. “Political Virtues”. In: Mandle, Jon; Reidy, David A. (orgs.). The Cambridge Rawls Lexicon. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. pp. 631-4.).
  • 8
    Por exemplo, quando Rawls afirma que, “se um regime constitucional dá certos passos para fortalecer as virtudes da tolerância e da confiança mútua, digamos, desencorajando vários tipos de discriminação religiosa e racial (de modo consistente com as liberdades de consciência e expressão), ele não se torna, desse modo, um Estado perfeccionista do tipo encontrado em Platão ou Aristóteles […]. Ao contrário, ele está tomando medidas razoáveis para fortalecer as formas de pensamento e os sentimentos que sustentam a cooperação social justa entre seus cidadãos, considerados livres e iguais” (Rawls, 2005, p. 195).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2022
  • Aceito
    29 Nov 2022
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