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Cidades, trajetórias urbanas, políticas públicas e proteção social: questões em debate - entrevista com Vera Telles

Cities, urban trajectories, public policies and social protection: issues under discussion - interview with Vera Telles

ENTREVISTA

Cidades, trajetórias urbanas, políticas públicas e proteção social: questões em debate* * Entrevista publicada originalmente na Revista de Políticas Públicas, São Luis, v. 13, n. 1, p. 65 76, jan./jun. 2009.

Cities, urban trajectories, public policies and social protection: issues under discussion - Interview with

Entrevista com Vera Telles

Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1992); professora assistente doutora da Universidade de São Paulo; possui pós doutorado na École de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França (1999 2000)

Entrevistadoras: Maria Carmelita Yazbek e Raquel Raichelis

Realizada na PUC SP, em 27 de maio de 2009

É pesquisadora convidada (posto CNRS) nos quadros da Maison de Sciences de l'Homme Ange Guepin, Nantes, França (dezembro 2006 março 2007). Atua em Sociologia, com ênfase na Sociologia Urbana. Como resultado de seis anos de pesquisa desenvolvida em parceria com o Institut de Recherche pour le Developpement (Acordo CNPq IRD) publicou, em coautoria com Robert Cabanes, Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios (São Paulo: Humanitas, 2006). Atualmente é coordenadora da equipe brasileira em um programa de cooperação francobrasileiro (Acordo Capes Cofecub, 2007 11), com o projeto "Trajetórias, circuitos e redes urbanas, nacionais e transnacionais e o seu impacto sobre a arquitetura institucional democrática", tendo como parceiros pesquisadores do Centre Interdisciplinaire de Recherches Urbaines et Sociologiques (Ciruscers, Université de Toulouse II) e Centre d'Analyse et d'Intervention Sociologiques (Cadis Ehess, Paris).

O PERCURSO

Entrevistadora - Inicialmente, seria interessante você nos contar um pouco do seu percurso expresso nas suas pesquisas, na produção do conhecimento, na forma de enxergar e interpretar a realidade, enfim, que você veio nos brindando desde a sua tese de doutorado, lá pelos idos dos anos 1990, quando você excursionou pela periferia de São Paulo entrevistando famílias de trabalhadores. Trabalhadores que a gente chamaria hoje fordistas, da fábrica fordista, num momento da sociedade brasileira extremamente diferente daquele em que estamos vivendo hoje. De lá para cá, você desenvolveu vários estudos e, mais recentemente, pelas suas últimas publicações, observa se certo deslocamento (um termo que você usa) nas suas análises e especialmente nas suas referências teórico metodológicas. Então, começaríamos perguntando: Qual é o balanço que você faz da sua produção, tão conhecida e incorporada pelo Serviço Social, no âmbito da discussão dos direitos sociais, no campo da construção das formas de apropriação por parte da população de seus direitos, ou seja, que balanço você faz do seu percurso teóricometodológico, que lhe faz, hoje, rever muitos desses parâmetros?

Vera - Meu percurso tem vários momentos. Defendi meu doutorado em 1992. Foi uma tese, portanto, realizada com base em uma pesquisa iniciada nos anos 80. Como você colocou, era um mundo fordista. Era o mundo organizado em torno do trabalho. Claro, havia o desemprego, o sempre expansivo trabalho informal, havia pobreza, mas a referência (expectativas, sonhos, possibilidades) era o chamado "trabalho organizado": uma configuração social muito diferente do que iríamos conhecer no correr dos anos 90. A questão dos direitos era central e essa tese foi muito influenciada pela minha leitura de Hannah Arendt. A noção de espaço público e de "mundo comum", cuja medida seria dada pelo reconhecimento do "direito a ter direitos" pautou a maneira como eu tratei as questões que eu encontrava no meu trabalho empírico. E o que eu encontrava em minha pesquisa de campo era a fragilidade das relações de direito e as fragilidades dos arranjos familiares para enfrentar a instabilidade no trabalho, salários baixos, desemprego frequente etc. Quer dizer, toda uma configuração societária que parecia se desenhar no ponto de junção das limitações dos direitos do trabalho e dos direitos sociais.

Quando eu terminei o doutorado, aconteceu algo que suponho ocorrer com todos ou quase todos os doutorandos. Ficamos anos seguidos envolvidos na pesquisa, entre trabalho de campo e leituras e, depois, ao final, quando se olha para os lados, se percebe que o mundo está muito mudado. Pois, então, levei, vamos dizer, um susto. O meu espanto vinha da proliferação de espaços de participação popular, e que eu desconhecia. Mas a possibilidade de acompanhar essa experimentação política e refletir sobre ela não veio da pesquisa acadêmica.

Logo após a defesa de meu doutorado, Sílvio Caccia Bava, amigo e parceiro de longuíssima data, me convidou para compor a diretoria do Polis. Foi essa minha passagem pelo Instituto Polis que me abriu os horizontes, na medida em que pude então conhecer e acompanhar, um pouco que fosse, toda uma dimensão pública, política, da qual eu estava afastada. Isso foi em 1993. As datas são importantes. Muita coisa estava acontecendo no país naqueles anos. O Polis já era muito ativo na época. Boa parte do que eu escrevi nos anos 1990 sobre direitos e espaços públicos é muito devedora dessa minha experiência no Polis, alimentou se dessa experiência e da interlocução que eu tive na época e que me foi aberta no e pelo Polis. Foi um momento importante nesse meu percurso, também, porque me fez perceber o quanto a Universidade, no caso a Universidade de São Paulo, estava encapsulada em si mesma e pouco aberta ao que estava acontecendo no mundo social e no mundo político. O fato é que alguns dos textos que eu escrevi nesses anos, textos que circularam e que tiveram alguma ressonância na época, não foram derivados de meu doutorado, mas sim dessa experiência fora da Universidade. Talvez isso explique algo de uma ambivalência ou duplicidade que marca esse meu percurso intelectual, talvez uma ambivalência presente no próprio mundo social e que eu, de alguma forma, termino por registrar no registro de paradoxos, aporias sem saídas evidentes. De um lado, as pesquisas em torno dos mundos da pobreza, o bloqueio de perspectivas e a questão que sempre esteve no centro de minhas inquietações, a questão da liminaridade, de ordens de vida que se estruturam no fio da navalha, sempre a ponto de desabar por conta dos "azares" do destino. De outro lado, a potência dos espaços públicos e as possibilidades de construção de um "mundo comum". Na formulação de cada um desses lados, meu fio condutor sempre foram as reflexões de Hannah Arendt; esse talvez seja justamente o fio de tudo o que eu escrevi nesses anos. Mas a fenda aberta no mundo social, essa eu não poderia resolver, o descompasso entre o lado "luminoso" dos espaços públicos e esse persistente e sempre reposto bloqueio de possibilidades do mundo social. O fato é que eu sempre transitei entre esses dois lados, a junção desses dois lados não é nada evidente: um descompasso que faz parte do meu percurso, mas que, talvez, esteja alojado no mundo.

Retomando o fio da meada, o fato é que os meus textos sobre direitos e espaços públicos, escritos no correr dos anos 1990, alimentam se dessa aporia, se é possível dizer assim, mas são, sobretudo, devedores dessa minha passagem pelo Polis. E também da minha interlocução com vocês, do Serviço Social. Aliás, se não me falha a memória, afinal já se vai um bocado de anos, essa aproximação foi realizada através do Polis.

Acho importante lembrar e enfatizar isso. É algo que eu sempre digo de público e que eu gostaria, aqui, de reafirmar: tenho absoluta convicção de que as boas coisas que eu escrevi em todo esse período eu devo muito ao trabalho de vocês, do Serviço Social. Em particular, dois textos: "No fio da navalha..." e "A nova questão social brasileira", ambos publicados em 1998.1 1 . "No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos Programas de Renda Mínima no Brasil. In: CACCIA BAVA, Silvio. (Org.). Programas de renda mínima no Brasil. São Paulo, 1998. p. 43 54; "A nova questão social brasileira". Revista Praga, São Paulo, v. 6, p. 106 117, 1998 (depois publicado em Cidadania pobreza. São Paulo: Editora 34, 2001). No caso desses dois textos, mais ainda "A nova questão social", eu teria que dividir os créditos com a Carmelita e com a Raquel, que estão aqui me entrevistando neste momento.

Esses créditos têm que ser inteiramente partilhados porque, na verdade, eu me apropriei abertamente, explicitamente de coisas que vocês fizeram, de textos que vocês publicaram. Sempre digo, sempre reafirmo e o faço mais uma vez agora, o quanto eu sou devedora de tudo o quanto eu aprendo com os(as) profissionais e os(as) colegas do Serviço Social. Dívida intelectual também acompanhada por infinitiva admiração pelo trabalho que vocês realizam. Para ir direto ao ponto: vocês, as colegas e profissionais do Serviço Social, atuam ali onde está o nervo exposto do mundo social e, portanto, também no olho do furação de todas as turbulências que vêm atravessando as sociedades. É aquele ponto - ou aquele "posto de observação" (no caso de vocês, não observação passiva, mas campo de atuação) - que não permite fazer o "jogo do contente" ou o jogo do faz de conta (tão comum na cenografia política), é onde a equação não fecha, a fenda está aberta e sempre aberta, cada vez mais aberta, aquele ponto justamente que exige mais do que nunca a reflexão crítica e a atitude crítica perante o que se passa. E isso para mim é decisivo e foi decisivo em boa parte do que escrevi nesses anos.

Foram também os trabalhos e textos de vocês que me alertaram, antes de tudo, para um esgotamento da linguagem, da linguagem dos direitos, justamente na virada dos anos 1990. Essa é a questão central que eu tento trabalhar no "A nova questão social" e também no "Direitos, afinal do que se trata?", também publicado em 1998.2 2 . "Direitos, afinal do que se trata?" Foi publicado primeiramente na Revista da USP, v. 37, 1998 e, depois, na coletânea que leva o mesmo título publicada pela Editora UFMG, 1999. Na verdade, para mim foi importante escrever esses textos: marcaram um limiar justamente em meu percurso, um ponto de não retorno. Sem conseguir resolver (acho que ainda não consegui) a questão, são textos que falam de um ponto de virada no mundo que seria preciso entender, a "linguagem dos direitos" estava sendo ou já havia sido devorada pelos tempos, já não dizia muita coisa, já estava esvaziada de sentido. O ponto zero de sentido, como disse Paulo Arantes em um texto que trata justamente do esvaziamento das noções de direitos, de cidadania, de democracia.

NOVOS RUMOS

Vera - Nesse momento, eu dei uma parada. Viajei, passei um ano fora, um pós doutorado na França (1999 2000). Um tempo para um recuo necessário, repensar questões, abrir me a outras. O fato é que eu havia chegado a um limite que era preciso ultrapassar. Sobretudo, o esgotamento de um certo repertório de questões - questões políticas, questões teóricas, essas com as quais eu vinha trabalhando nos anos anteriores. Não apenas um problema teórico; era antes de mais nada um problema político. E também um problema cognitivo: quais os parâmetros para descrever, tematizar, problematizar as mutações em curso no mundo contemporâneo? Estávamos em plena reviravolta neoliberal, no Brasil e no mundo. Alguns anos mais tarde, cheguei a formular isso ainda de uma forma muito intuitiva, em um debate na Unicamp em torno de um livro então recém publicado sobre experiências de participação popular e espaços públicos: eu me perguntava, e lancei a questão ao debate, se toda essa discussão não estava beirando a retórica vazia em um momento em que a política deslizava para a gestão, um momento que tornava indeterminada a diferença entre política e gestão. O discurso gestionário estava, então, começando a capturar o espaço político e o espaço semântico da discussão. Por outro lado, toda a questão política e, para alguns teóricos, emancipatória, posta nos espaços públicos sob o signo da pluralidade e reconhecimento da alteridade estava também deslizando para outra coisa - um modo domesticado de lidar com as diferenças, reduzidas ao postulado liberal das diferenças de opinião ou, então, sob a forma de uma banalização radical, algo próximo a um manual de boas maneiras para se conduzir em fóruns públicos. Aliás, basta ver como a Teoria da Ação Comunicativa (Habermas) termina por ter alguns de seus postulados traduzidos como preceitos de um manual de management.

Entrevistadora - São os "deslizamentos semânticos" ou o que Evelina Dagnino denominou "confluência perversa", quando o discurso dos direitos, da cidadania e da participação parece diluir as diferenças de concepções e projetos políticos, envolto num aparente consenso a partir do qual a sociedade civil perde o sentido da crítica e do conflito que a caracterizou nos anos de 1980. É isso e mais do que isso. Eu me inquietava com a perda da dimensão transgressora da linguagem dos direitos. Essa é a questão que eu discuto no texto "Direitos sociais: afinal do que se trata?". É um texto bastante marcado pela leitura do livro de Rancière, La mésentente, então recentemente publicado na França (1995),3 3 . Tradução brasileira, O desentendimento (Editora 34, 1996). e que propõe justamente essa questão, o efeito desestabilizador da fala daqueles que não têm lugar, abrindo a fenda na ordem das coisas por efeito do "desentendimento" e do dissenso, que é a marca da política e a cifra da sua diferença com a gestão, gestão da ordem, gestão do que está posto como ordem e normatividade aceita. Essa foi uma leitura importante para mim: ao lançar a noção de dissenso e desentendimento, Jacques Rancière coloca a questão do conflito no centro do espaço público e da política, apresentando uma formulação fecunda que permitia contornar, digamos assim, a versão um tanto pacificada do espaço público em Hannah Arendt ou quase angelical de Habermas com sua teoria da ação comunicativa, que é justamente o que permitiria, depois, uma sua leitura empobrecida, esvaziada de potência teórica, beirando justamente o gestionário - a "ação comunicativa" mobilizada para a "boa gestão das coisas" ou, como diria Foucault em seus últimos textos, "como bem conduzir as condutas dos outros" ou como fazer a boa "gestão das liberdades" de cada um, de todos. A meu ver, isso apenas se confirmou no andamento das coisas. Não é preciso ler Rancière para ver isso.

Basta fazer um exercício teórico (e de memória), recuperando o sentido transgressivo de toda a movimentação política e também teórica que marcou boa parte dos anos 1980. Em torno da questão das mulheres (e do feminismo), dos negros, dos homossexuais e todas as outras ditas minorias, havia uma enorme ousadia política e ousadia teórica em uma espécie de experimentação e prospecção de novos territórios da experiência, para além do estabelecido pelo cânone acadêmico e, sobretudo, pelas normas sociais aceitas e sedimentadas por relações de poder. Quer dizer, era toda uma experimentação que desestabilizava justamente a geometria de poder estabelecida e, ao mesmo tempo, ampliava as referências cognitivas e normativas - outros modos de conhecer, de julgar, de interpretar o mundo, a sociedade e a própria história. O mesmo poderia ser dito em relação às várias figuras do trabalhador que irrompiam na cena pública, também desestabilizando o cânone político estabelecido.4 4 . A propósito, valeria ler ou reler o livro de Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena (Paz e Terra, 1988). Era uma dimensão transgressora que, sob vários registros, também se traduzia na prática da pesquisa e da reflexão teórica acadêmica, um esforço em prospectar outros campos, de fazer o exercício da experimentação teórica, alçar voo para além do já conhecido, sacramentado e assegurado.

Essa questão da desestabilização da geometria do poder e da ampliação das referências normativas e cognitivas inscrita na linguagem dos direitos é questão que eu discuto no "Direitos sociais: afinal do que se trata?". E essa é a referência pela qual me pauto para dizer que, no final dos anos 1990, a linguagem dos direitos havia perdido sua dimensão transgressora e estava capturada, domesticada sob o primado do gestionário, da gestão do estado das coisas. É um deslizamento que ganha, na verdade, toda uma tonalidade de coisas razoáveis a serem feitas, sob o primado e exigência da boa gestão de políticas públicas e programas sociais e que, no correr desses anos, passou a ditar a discussão política e também a pesquisa acadêmica. Se me permitem radicalizar o argumento, toda essa discussão, a pauta política e também a pauta da pesquisa, passou a ser feita sob a ótica do gestor, e também das ficções gestionárias e de seus chamados indicadores de avaliação. Claro, estou dando um salto no argumento, há mediações e passagens a serem consideradas, mas isso já seria uma outra discussão...

Entrevistadora - Então... você considera que a linguagem dos direitos perdeu essa imensão transgressora na medida em que, vamos dizer, esses grupos foram conquistando, de alguma forma, algum reconhecimento de suas reivindicações por parte do Estado?

Vera - Não acho que seja assim, os efeitos colaterais das conquistas ou "os efeitos perversos" das conquistas. O problema é que muitas vezes a linguagem política (e também a linguagem sociológico acadêmica) reifica o que existe nesse jogo do instituinte e instituído, transforma o que existe como movimento e invenção histórica em "entidades" fixas e substantivadas, reificadas. Sob o risco de uma formulação talvez um pouco tosca, muito aquém da complexidade aí inscrita, eu diria o seguinte: em certo momento, a reivindicação da "autonomia" e do reconhecimento da capacidade de ação, de iniciativa e invenção dos sujeitos populares teve um sentido de contestação e ruptura com uma pesada tradição autoritária, tutelar, elitista, que vem do fundo de nossa história - tudo isso foi amplamente tematizado nos anos 1980, muitas páginas foram escritas sobre isso. A partir do momento em que essa capacidade hoje nomeada de protagônica dos sujeitos foi reconhecida e incorporada nos jogos políticos, ela passa a circunscrever o próprio campo da disputa política, o próprio campo das relações de força. E o problema é saber, hoje, como essa capacidade de ação e invenção é ativada, direcionada e, aí sim, talvez conduzida em certas direções. A questão está no centro do que o Foucault chama de governamentalidade: "conduzir as condutas", fazer os indivíduos agirem em uma certa direção, de tal modo que as relações de poder se fazem nessa espécie de "gestão das liberdades" que está, na visão do filósofo, no centro da racionalidade liberal. Talvez tenhamos aí uma pista a seguir.

Entrevistadora - Nessa perspectiva, seria então possível dizer que a linguagem transgressora dos direitos foi sendo enquadrada pela ótica gestionária da pobreza?

Vera - Essa é questão que ainda temos que entender melhor. Afinal, o que aconteceu esses anos? Essa é análise que ainda terá que ser feita. Talvez tenhamos que nos desvencilhar de uma avaliação equivocada que associa o neoliberalismo e o recuo do Estado no campo social. Na verdade, nos últimos anos, vimos uma verdadeira proliferação de programas sociais, muitas vezes sob a égide das parcerias com os poderes públicos, aqui e em todos os lugares. Robert Castel em seu Metamorfoses da questão social (publicado na França em 1995), já havia chamado a atenção para isso, para o fato de que nunca houvera, antes, tantos programas sociais voltados às situações ditas de pobreza e exclusão social. E ele enfatizava justamente a lógica que parecia, então, presidir essa proliferação: de um lado, a refilantropização da pobreza sob o primado dos programas locais e focalizados e, de outro, a "lógica do projeto" que acompanha as ditas parcerias. No caso francês, tudo isso acontece sob modalidades muito diferentes do que conhecemos aqui. Mas o fato é que o autor acertou o ponto em toda essa discussão. Por alguma razão essa é uma discussão que repercutiu pouco entre nós - talvez o impacto das duas primeiras partes do livro tenha sido tão grande, com a noção de desafiliação tão trabalhada nessas páginas, que se perdeu de vista a crítica aguda que Castel fez aos programas sociais então implementados, muitas vezes sob argumentos virtuosos e supostamente progressistas.

Tenho a impressão que essa é uma discussão que ainda não foi inteiramente feita entre nós. Essa questão diz respeito à "disputa por projetos" no expansivo campo do dito Terceiro Setor. Quer dizer: se credenciar perante as fontes de financiamento, apresentar um projeto, dar provas de competência, apresentar critérios de avaliação etc. etc. etc. E isso vale para tudo, como vocês bem sabem, desde os programas de distribuição de cesta básica (ponto importante da disputa entre associações ditas comunitárias) até os programas mais valorizados, como os de formação (informática e mais tudo e qualquer coisa...). Aos poucos, é toda uma outra dinâmica que vai tomando conta do que havia então sido, por exemplo, uma Associação de Moradores em uma determinada favela, que pretendia representar os moradores, cuja direção era eleita periodicamente em pleitos muitas vezes disputados por duas chapas, com um regime de atuação pautado por um estatuto também aprovado por todos etc. Essa lógica da representação vai sendo, a rigor, esvaziada e, ainda mais, descredenciada ou mesmo rejeitada por aqueles que passam a se pautar por um critério de "competência" que tem uma outra matriz. O importante não é ser representante dos moradores, mas ser credenciado e reconhecido pela agências financiadoras, pelas fundações, pelos organismos locais da prefeitura etc.

Entrevistadora - E as organizações sociais e populares passam a ser "parceiras" do Estado na execução de programas sociais, que são desenhados a partir de um novo ciclo de políticas públicas ditado por organismos internacionais. Ainda temos que aprofundar o debate sobre os efeitos sociais e políticos desse processo, não é mesmo?

Vera - É, além disso, há toda uma pauta de ação que, a rigor, não é mais definida pelos moradores, mas pelo organismo ou agência dita parceira. Quer dizer: aos poucos, a Associação de Moradores passa a funcionar como se fosse uma ONG. Os resultados nem sempre são muito animadores, como bem sabemos, mas o importante por ora, a enfatizar, é isso: esse deslizamento de sentidos, de práticas, de lógicas. Concretamente: o esvaziamento de um campo político e a lógica gestionária que passa a primar, deslocando a geometria de relações que articulam moradores, seus representantes e autoridades públicas. Da lógica da representação para a lógica do projeto: diria que essa é uma questão que ainda terá que ser mais bem aquilatada nos seus sentidos e nos seus efeitos. Com isso, mobiliza se essa capacidade de iniciativa, de atividade, de criatividade que, nos anos 1990, nos encantava e foi amplamente celebrada como "descoberta da sociedade civil". É toda uma capacidade de ação agora agenciada sob outra pauta, outra lógica.

Entrevistadora - É um deslocamento das responsabilidades do Estado para a sociedade civil, que vai delegando e colocando nas mãos das associações, da filantropia, da solidariedade da sociedade, de toda a rede filantrópica, responsabilidades que em princípio eram dele.

Como você analisa essa mudança, que atinge as políticas sociais no contexto de crise do Estado de Bem estar Social?

Vera - É que nessa transferência, a relação com o local se redefine; o potencial transgressor e reivindicativo é esvaziado na própria medida em que passa a ser mobilizado para gerir os projetos. Essa é a armadilha contida na lógica das parcerias. Uma capacidade de ação e iniciativa que é mobilizada, ativada e agenciada em uma espécie de superativismo próprio do que hoje é celebrado como empreendedorismo social, e que vai de projeto em projeto, de evento em evento, de programa em programa, sempre correndo atrás de algo que "ainda falta" ou que é "importante importantíssimo" fazer: um moto contínuo de resultados incertos, a não ser os efeitos de poder dessa espécie de coreografia política que, arriscaria dizer, por vezes coloca em ação um jogo do faz de conta que mobiliza atenções e holofotes (e recursos, além de prestígio), mas acaba travando a possibilidade, quem sabe, de encontrar um outro modo de estar no mundo e de imaginar as possibilidades do mundo.

Entrevistadora - Poderíamos transpor essa análise para discutir a trajetória dos movimentos sociais no Brasil e do seu estatuto político nos dias atuais. Você acha que a questão da "autonomia" e de uma "nova forma de fazer política" que esses movimentos anunciavam desde os anos 1980 está em xeque hoje?

Vera - Tenho alguma dúvida de que as coisas possam ser colocadas nesses termos. Afinal, "novas formas de fazer política" em relação a quê? A questão fazia o maior sentido e era importante, relevante em um certo momento sócio histórico (anos 1980, início dos 1990). O que era então considerado "novo" passou a fazer parte do jogo político e das configurações sociopolíticas que se desenharam a partir daí. Claro, nessa passagem, do instituinte para o instituído, as dinâmicas passam a ser outras, outros imperativos, outras circunstâncias etc. Para ir direto ao ponto: acho que temos que saber quais as perguntas que, hoje, são importantes de serem feitas. Inventar outras perguntas, perguntas que não possam ser respondidas nos velhos termos. Assim, por exemplo, o que significa toda essa linguagem (ou retórica?) da participação popular, se nem mesmo temos clareza do que vem a ser os ditos espaços públicos a que essa retórica política se refere. Afinal, o que é, atualmente, o espaço público? Há pouca semelhança com a aposta que se fazia nos anos 1980, até meados dos 1990. Hoje, um espaço de gestão de políticas, muito longe da "explicitação do conflito" ou da "construção do mundo comum", para lembrar aqui algumas das chaves políticas pelas quais o espaço público era definido. Ainda teremos que entender melhor esses deslizamentos, pois isso tem a ver com a mudança dos tempos, com a virada neoliberal, o esvaziamento dos sentidos da política ou, como diz Chico de Oliveira, a anulação da política, a erosão da possibilidade da política como lugar do dissenso e do conflito. Ainda: sem cair em uma demonização fácil, entender a diferença entre a política e a gestão. Claro, queremos que os programas sociais sejam bem geridos, má gestão ou boa gestão faz diferença. Tudo bem, não se trata de recusar a boa gestão das coisas. O ponto da discussão não é bem este. Mas sim entender os jogos de poder, relações de poder e formas de controle, ou seja: campos de poder e, portanto, também os pontos de fricção e suas linhas de fuga. Teríamos que reabrir essa discussão e nos desfazermos dessa espécie de carapaça posta sob a égide da racionalidade ou da razoabilidade, do "bom senso" pragmático que hoje impera como lei maior, selando sob falso consenso toda e qualquer dissonância. Sobretudo: a razão pragmática que termina por obstruir a possibilidade de um exercício crítico que permita problematizar esse campo de intervenção e abrir um outro jogo de perspectiva para pensar suas questões e complicações.

Entrevistadora - Você não acha que esta discussão remete às "novas" estratégias de enfrentamento da questão social, particularmente no campo das organizações do chamado Terceiro Setor?

Vera - É, esta questão levanta uma outra situação que coloca uma série de perguntas que nos interpelam diretamente. Diz respeito, no caso, ao Jardim Ângela5 5 . Distrito situado na Zona Sul da cidade de São Paulo, às margens da represa Guarapiranga, que já foi considerado pela ONU e outros organismos internacionais como a região urbana mais violenta do mundo. que, como bem sabemos, se transformou em uma grande vitrine de experimentação do Terceiro Setor. Claro, o Jardim Ângela é apenas um exemplo possível, uma cena urbana (há outras) que permite explicitar algumas tantas questões. Conhecemos tudo o que foi ou está sendo realizado no Jardim Ângela nesse sentido: ONGs, o "Criança Esperança" da Rede Globo, parcerias variadas, polícia comunitária, "boas práticas" ganhadoras de prêmios, experiências "virtuosas", exemplos "edificantes" de garotos que escaparam do tráfico de drogas, que encontraram redenção em atividades culturais etc. etc. etc. Com isso, ampla celebração da queda dos índices de violência, em particular das mortes violentas. Para repetir o que eu já disse outras vezes quando a situação do Jardim Ângela entra na pauta: pois bem, podemos propor que se declare a república livre do Jardim Ângela e o resto... bem, o resto é resto. Para colocar em outro registro: o paradoxo de políticas inteiramente localizadas para lidar com problemas que não são locais. A questão da violência é uma delas. Bem sabemos que parte considerável das mortes violentas têm relação com o tráfico de drogas. Mas o tráfico não é um problema local,ganha formas territorializadas e configurações próprias em cada local, mas tem uma lógica outra que transcende o perímetro local. Há um duplo problema aí: até que ponto esse modo de agir na "comunidade" e através da "comunidade" não termina por introduzir um corte e recorte do social que cria a ficção do local como "comunidade", introduz algo como um curto circuito cognitivo em relação às dinâmicas urbanas e sociais que se territorizam sob certas modalidades em cada lugar; ao mesmo tempo é criada uma cenografia (um jogo do faz de conta? Será?) onde circulam recursos e jogos de poder, também novas formas de controle, sem que nada disso possa ser figurado como tal, tudo aparece no campo discursivo justamente do "protagonismo" e das "políticas de inserção", sob o axioma (não questionado e não refletido) de potência virtuosa dessas práticas. Axioma não questionado, não refletido, pois justamente a única coisa que importa são os tais critérios de avaliação e eficácia e que, por sua vez, mobilizam outros tantos dispositivos (discursos, práticas, recursos etc.) para serem medidos. Para provocar um pouco: não se trata de negar pertinência a esses programas. Longe disso. Ao contrário, talvez se tenha que levar mais a sério do que se tem feito até agora. Pois o que estamos testemunhando (e, talvez, protagonizando) é justamente a construção de outro social e, sendo assim, então será importante perscrutar esse social em construção: nos desvencilhar dessa ficção "virtuosa" e prospectar os sinais das relações de poder, dos pontos de fricção, campos de disputa, linhas de fuga, de resistência etc. E mais fundamentalmente: nesse social e suas figurações, o jogo do visível e invisível, do que é nomeado e pensável, dos seus modos de problematização e figuração e, nisso, os efeitos de poder e efeitos de real que podem aí estar se produzindo. Devo dizer a vocês que estou arriscando um bocado nessas formulações. São perguntas. Na verdade, para mim, são hipóteses de trabalho, e tenho tentado trabalhar com elas ou a partir delas.

Entrevistadora - Essa questão do local e da "boa focalização" das políticas sociais merece um debate maior, não é mesmo? Você não acha que isto deve ser pensado no âmbito da discussão que se faz hoje sobre território e a incorporação da perspectiva territorial pelas políticas e programas sociais? Ao mesmo tempo, esse conceito de território é outra categoria que também sofre um forte deslizamento semântico, como já comentamos. Como você vê essa questão? Você não acha que há riscos de um certo retorno ao "mito da comunidade"?

Sim, o mito da comunidade. Mas seria interessante averiguar como esse mito é produzido, os efeitos de real, como diria Bourdieu, de certas figurações que produzem suas próprias evidências e modos de validação, construindo um consenso cognitivo que sela esse modo de produção do real. Vejam, por exemplo, a ênfase nas "histórias de sucesso" e nos "exemplos edificantes": tem uma dimensão problemática, algo como uma recusa de pensar processos que transbordam amplamente o perímetro local e que haveriam de exigir justamente outro patamar de discussão - e de intervenção pública. E também: algo como uma regressão ou quase regressão, quando se discute, por exemplo, os chamados indicadores de vulnerabilidade, a partir de critérios. Ademais, a meu ver, duvidosos, mas que terminam por construir as figuras de uma pobreza cativa dos males do mundo. Pois bem, passamos boa parte dos anos 1970 e 1980 questionando isso. Essa focalização nos micropontos de vulnerabilidade acaba criando uma espécie de versão branda (e bem intencionada) da criminalização da pobreza por conta de seus atributos sóciodemográficos e por conta dos "efeitos do meio" da ecologia urbana local. E acaba criando algumas ficções sobre a tal vulnerabilidade dos ditos grupos de risco. Essa é uma ficção estatística! É um feixe de indicadores construídos a partir de algumas pressuposições dadas como objetivas ou simplesmente "existentes" no mundo, quando na verdade foram construídas em um trabalho de composição estatística. Esclareço: nada contra o trabalho estatístico, tampouco contra os indicadores. Mas é sempre bom lembrar: com o perdão da tautologia, os indicadores apenas indicam, nada mais do que isso. E nem mesmo está posto como evidente em si mesmo isso que é indicado. A questão da violência é particularmente interessante (e importante) para discutir isso. Alba Zaluar, em um de seus textos, colocou a coisa de um modo preciso: a tal família dita quebrada, portadora dos indicadores de vulnerabilidade, pode dar lugar, no máximo, à criança de rua, o que é grave, com certeza, mas não explica e nem está na matriz da violência em nossas cidades, sobretudo na sua associação com o tráfico de drogas que passa por outros condutos.

Entrevistadora - Mas Vera, teríamos então que aprofundar a análise sobre o protagonismo social, a partir de outras referências teórico críticas que não as que foram capturadas pela programática liberal ou neoliberal. Você não acha esse um grande desafio quando falamos de sujeitos políticos e de espaços públicos que possam vocalizar direitos e demandas sociais das classes subalternas?

Vera - Em princípio sim. Mas para isso será preciso, antes, entender melhor a lógica que preside esse jogo de relações. Se for possível um protagonismo portador de outros sentidos e conduzido em outras direções, isso haverá de ser engendrado e produzido de forma situada, em campos de conflito, campos de poder. Daí a importância de se tentar captar, apreender os sinais que sugerem pontos de fricção, campos de tensão, linhas de fuga.

Acho o caso da favela de Paraisópolis,6 6 . Paraisópolis é uma favela na zona sul paulistana com uma população estimada em 80 mil pessoas. Em 2005, foi iniciado um processo de urbanização e regularização dos imóveis construídos irregularmente, com grandes investimentos do poder público (municipal e estadual) e da iniciativa privada. Em 2008, alguns fatos ganharam destaque na imprensa: em março de 2008 delegações internacionais de vários países visitaram diversas favelas de São Paulo, e Paraisópolis foi um dos destaques, sendo muito elogiada pelos urbanistas estrangeiros, os quais chegaram à conclusão de que a favela é "incomparável" a qualquer outra no mundo. Outro fato curioso é que em novembro de 2008, Paraisópolis recebeu a primeira filial da loja das Casas Bahia em uma favela. em São Paulo, emblemático para essa discussão: é recente e diz respeito a essa espécie de rebelião ocorrida no início do ano (fevereiro 2009) por razões ainda nebulosas, mas que tem um ponto de convergência no protesto contra a ação violenta da polícia. Pois bem, como isso foi possível? Uma manifestação com queima de carros, protesto na rua. Uma favela que é ou parecia ser, eu arriscaria dizer, a mais domesticada possível por conta de uma incrível malha de programas sociais, de ONGs, de organizações filantrópicas etc. Como o Jardim Ângela, um verdadeiro laboratório de experimentação do chamado Terceiro Setor, com seus programas premiados, suas "histórias de sucesso", seus "exemplos edificantes" e tudo o mais, como manda o figurino. Pois bem, como foi então possível uma manifestação que lembra, na forma e no seu lado expressivo, as émeutes francesas. E isso não é irrelevante. É um tipo de ação e de manifestação que não faz parte do repertório corrente em nossas periferias. Pois então, nesse território inteiramente governamentalizado, como foi possível essa explosão? Qual a fenda? Até que ponto isso pode nos dar alguma pista sobre o que escapa ou vaza dessas práticas de governamentalização? Quais os pontos de resistência ou de fuga? O que podemos aprender com esses acontecimentos? O que podem nos sugerir e indicar das relações de força e poder que vem se configurando na atualidade, e seus pontos de resistência, suas linhas de fuga? O que transborda, escapa dos jogos de poder traçados nesses campos de intervenção social?

Bem, explode esse tumulto e, na sequência, entra em ação a dita Operação Saturação, que é também sinal das novas pautas de políticas sociais regidas pela chamada "gestão de riscos" e que, por isso mesmo, termina por ser conduzida pelos imperativos da "segurança". Isso também deveria entrar em nosso ponto de mira crítica, entender a lógica e efeitos desse tipo de intervenção. Pois então, o que me chamou a atenção foi a cenografia de uma entrevista dada pelo chefe da operação policial, de ocupação. Não sei a patente, mas era ele quem falava em nome da corporação e em defesa do lado militar policial da operação, ocupação e saturação militar. Sabemos - e pudemos ver isso - que a operação foi acompanhada com efetivos militares, cachorros, helicópteros, a entrada daqueles veículos de "combate" (a versão paulista do "caveirão" do Bope, no Rio), muitas prisões, invasão de casas (há inúmeros relatos), revista generalizada etc. Enfim, uma ocupação militar. Pois bem, nesse cenário o chefe da operação assim falava, em uma reportagem de tevê, em nome da "comunidade", para a proteção da "comunidade", enfatizando a importância de se ter o apoio da "comunidade" e de se fazer um trabalho social para a "comunidade".

Uma conversa "mansa" que mais parecia um agente de alguma ONG atuante na região: a mesma linguagem, a mesma lógica, o mesmo repertório - e em tudo e para tudo, a referência normativa à "comunidade". Quanto ao lado da operação policial militar, o objetivo era "limpar" a região, proteger a "comunidade" dos "marginais". Um discurso evidentemente higienista militar, como se coubesse à ação policial fazer a partilha clara e evidente entre o lado do mal e o lado do bem, o certo e o errado.

Bem sabemos, de longa data, como acontecem as intervenções policial militares nas regiões populares, o modo como os limites não são respeitados, as casas são invadidas, as pessoas são humilhadas etc. A diferença é que, agora, tudo é repaginado nessa dupla, ação militar e ação social, proposta pela Operação Saturação: primeiro, a limpeza e a proteção da "comunidade" e com o suposto apoio da "comunidade"; depois, o trabalho social para a prevenção contra os riscos da violência.

QUESTÕES PARA UMA NOVA PAUTA DE PESQUISA

Entrevistadora - Falando sobre "a comunidade": se por um lado, esse coronel mobiliza o discurso de proteção da comunidade, o pessoal do tráfico, as organizações do tráfico de drogas, protegem (?) a população por meio de pactos com os moradores, buscando partilhar com eles, inclusive, condutas reconhecidas ou denominadas ilícitas. Não há uma junção da comunidade em torno de todos eles? Eles se protegem mesmo ou será que essas organizações eliminam os que apresentam alguma ameaça? Então, fica muito difícil separar o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, como você trabalhou tão bem na atividade programada ministrada no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC SP em 2008. E essas questões são particularmente importantes para os assistentes sociais e demais trabalhadores sociais que atuam junto à população nas diferentes políticas e programas e sociais.

Vera - Essas questões estão no centro das pesquisas que eu (e um coletivo de pesquisa) venho desenvolvendo nos últimos anos. Na verdade, é uma questão que se impôs a nós, dessas evidências das quais não se podia escapar, e que acabou pautando nossas questões de pesquisa. Mas então, o seguinte: as fronteiras entre o legal e ilegal, lícito e ilícito são muito porosas, as atividades estão muito embaralhadas nas coisas da vida, e os critérios de julgamento e partilha moral não correspondem, muito pelo contrário, a tipificações jurídico policiais. Para tomar um exemplo menos comprometedor: vender CD pirata é ilegal, é crime do ponto de vista jurídico policial, mas não é isso o que os moradores de periferia (não só eles, claro está) acham: nem as miríades de ambulantes que os vendem, tampouco as multidões de seus compradores, muito menos os que, nesses lugares periféricos, ganham a vida com esses pontos de venda e distribuição. Em relação aos pontos de venda da droga nos bairros periféricos, as ambivalências são inúmeras.

É possível encontrar, por exemplo, os membros de toda uma família, a mãe inclusive, que passam as noites enrolando os papeluchos de cocaína, sem que por isso se vejam e sejam vistos como traficantes, muito menos criminosos ou gente perigosa. Ganham algum dinheiro com isso, mas há também um lado forte da sociabilidade local, das cumplicidades familiares, das lealdades de vizinhança, tudo isso que faz parte dos jogos da reciprocidade popular. O morador de periferia sabe muito bem do que se trata, sabe dos riscos disso tudo, sejam os riscos vindos da polícia (podem ser presos), sejam os riscos vindos dos próprios negócios da droga (acertos de conta, por exemplo). Podem entrar no jogo ou não entrar, podem entrar e podem sair depois, desde que não haja pendências e dívidas com o "patrão". Podem recusar uma aproximação maior por razões morais e outras, mas poderão estar todos juntos, por exemplo, no dia do campeonato da várzea, nas quermesses de junho, na distribuição de presentes promovido por alguma ONG ou pela própria "firma" local (esse o termo utilizado para designar o negócio local da droga) no Dia da Criança ou nos festejos de fim de ano. Poderíamos passar horas aqui, comentando as mais variadas situações como essas, desse embaralhamento do legal ilegal, lícito ilícito. São fronteiras porosas. Aqui e em qualquer lugar do mundo, pois esse também é um fenômeno transversal a todos os lugares, e diz respeito a problemas hoje postos no mundo contemporâneo.

São coisas que caminham junto com as próprias mutações do trabalho e a redefinição dos seus sentidos. Na verdade, há uma evidente transitividade entre o ilegal o informal e o ilícito, e esse é um fenômeno contemporâneo, posto a sul e norte da linha do Equador. É a situação do indivíduo que ajuda a enrolar os papelotes de cocaína à noite, vai trabalhar no dia seguinte no mercado formal, faz um bico esporádico com a venda de CDs piratas e, vez e outra, tenta a sorte vendendo algum produto de origem "duvidosa" e que lhe chegou às mãos por vias também obscuras.

São as chamadas "mobilidades laterais" que, em boa medida, é a marca, hoje, do trabalhador urbano em São Paulo e em todas as grandes metrópoles. Essas são questões com as quais tenho trabalhado, eu e meu coletivo de pesquisa.7 7 . Para quem se interessar, vale citar artigo escrito em coautoria com Daniel Hirata, "Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito". Estudos Avançados, n. 61, 2007. Mais recentemente, Telles, Vera S. "Ilegalismos urbanos e a cidade". Novos Estudos, Cebrap, n. 84, agosto (no prelo). Ambos os artigos estão disponíveis para download no Scielo.

Entrevistadora - Você investiu muito tempo nesse tipo de pesquisa e mais recentemente voltou a uma região que já conhecia. Evidentemente não encontrou as mesmas pessoas, mas havia uma familiaridade que você recuperou através da reconstrução das trajetórias e deslocamentos dessa população. Temos discutido muito no âmbito não só do Serviço Social, mas das políticas públicas, de maneira geral, a seguinte questão: se pretendemos que as políticas sociais sejam respostas a necessidades sociais, é preciso conhecer como se produzem essas necessidbades, quem são esses sujeitos, o que eles pensam, como vivem os desafios do cotidiano. Enfim, qual é o significado que tem essa intervenção social na vida das famílias das periferias das cidades. Estou colocando a questão a partir do ângulo de quem está trabalhando no terreno das urgências, mas também dos direitos, o nosso campo. Considerando esse quadro sociopolítico que você veio problematizando de modo tão instigante, como poderíamos considerar as políticas públicas hoje? Quais são os seus limites e possibilidades diante de uma realidade tão complexa a ser criticamente desvendada? Qual é a agenda que temos que construir para avançar nesse campo?

Vera - Eu não saberia responder isso. Na verdade, é uma questão a ser discutida, uma pauta necessária de discussão. Seria importante uma discussão sobre o conjunto dessas intervenções sociais hoje proliferantes em nossas periferias. Há, com certeza, muitos programas e muitas experiências interessantes, com gente da maior qualidade, com propósitos dos mais louváveis. Mas não é esse o ponto da discussão. Não se trata de avaliar cada qual, até porque isso já é feito por inúmeros dispositivos e faz parte justamente da racionalidade própria à lógica dos projetos. Mas, sim, colocar em perspectiva uma certa construção do social que vem sendo feito nesses últimos tempos (duas décadas, talvez). Talvez uma pista: todos esses programas não têm um sentido em si mesmos, nos seus efeitos, sucessos ou limitações.

Mas em seu conjunto estão construindo propriamente um outro social, diferente do que vigorava tempos atrás, uma lógica não fordista ou pós fordista, para retomar o início de nossa conversa. Um outro social, quer dizer: atores e operadores, mediações e recursos, sujeitos, discursos, práticas, protocolos. Dispositivos de práticas, de discursos, de recursos, de protocolos que constroem propriamente o social. Talvez uma outra "invenção do social", para lembrar aqui o livro do Donzelot,8 8 . Jacques Donzelot. Invention du social: Essai sur le déclin des passionspolitiques. Fayard, 1984. porém em um sentido diferente do processo que o autor buscou reconstruir e que resultou no Estado Previdência, tal como foi concebido e praticado em meados do século XX.

Talvez tenhamos que fazer esse exercício teórico político, de traçar o desenho desse social que vem sendo construído. Para retomar sua questão: tentar construir uma chave teórico política para pensar e problematizar o sentido dessas práticas. Talvez um nosso problema hoje - e o "nosso" tem aqui um sentido forte, não apenas uma conveniência pronominal - seja também um esgotamento do repertório crítico para pensar isso tudo, o que envolve também os dispositivos cognitivos, quer dizer: como descrever, como colocar em perspectiva, como problematizar esse campo social construído nesses últimos tempos e tentar identificar os jogos de poder e resistência que, talvez, estejam se configurando nesses terrenos de intervenção.

Entrevistadora - Temos mesmo que fazer esse diálogo, porque, a partir de uma perspectiva teórico crítica, nós estamos envolvidas com o bom funcionamento de determinadas políticas sociais públicas, para que elas possam constituir respostas, ainda que contraditórias, parciais e insuficientes, a necessidades e direitos sociais da população. E, no entanto, tudo isso pode caminhar na direção da governamentalidade que você está apontando. Então, de fato, estamos no fio da navalha...

Vera - Talvez seja isso. Diria mesmo que talvez essa seja uma pista a ser seguida.

PROBLEMATIZANDO EXPERIÊNCIAS RECENTES DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Entrevistadora - Mas a rigor não é possível falar de políticas públicas de modo tão genérico, uma vez que há hoje um debate e uma disputa de significados, um campo de luta hegemônica que envolve diferentes, e por vezes antagônicas, concepções sobre o conteúdo e o desenho que elas devem assumir.

Vera - Por exemplo, apenas para lançar uma discussão: seria importante, um dia, avaliar a experiência dos CEUs que a Marta Suplicy montou nas periferias durante sua gestão na Prefeitura de São Paulo. Não sei como vocês avaliam isso. Falo de um ponto de vista muito desinformado sobre os avatares das políticas sociais no governo Marta e outros. Mas era um equipamento impressionante, e que impactou de modo muito forte os moradores do entorno, e outros que puderam usufruir desses espaços. Bem sei que há e deve haver uma batelada de críticas a esse programa, sua concepção e também sua realização devem estar carregadas de problemas. Mas vendo a coisa pelo outro lado, não dá para negar o impacto desses programas: o morador que entrava naquele espaço, se percebia acolhido por um espaço que oferecia várias alternativas, todas elas de qualidade. Penso nisso e não consigo deixar de me lembrar do drama de um entrevistado de nossa pesquisa, que não conseguia se encaixar em nenhum dos programas focalizados, ditos de inserção social. Aliás, programas também colocados em prática na gestão Marta Suplicy. No caso, eram os programas de emprego e renda, também o Bolsa Família. Era um homem de quarenta anos, desempregado e desesperado. Mas não preenchia nenhum dos requisitos: não tinha cinquenta Martha anos e não podia, portanto, entrar no programa "Começar de Novo"; a mulher era faxineira, tinha alguma renda e ela não podia ser aceita em outro programa, cujo nome já me esqueci, também não estava "qualificada" para o Bolsa Família e assim por diante - os seus percursos desenhavam o trajeto de uma verdadeira via crucis, sem sucesso, e a cada momento o desconcerto e a desesperança eram ainda maiores, pois os critérios de triagem eram opacos e incompreensíveis e, para ele, absolutamente injustos, quando não cruéis.

Quer dizer: esse homem não conseguia se tornar "público alvo" de nada. Não era mais trabalhador (desempregado) e não era público alvo; caía em um limbo no qual só lhe restava a desesperança.

Quanto aos CEUs, era uma outra lógica: a porta aberta para todos. Equipamentos de primeira qualidade. Sensação de estar entrando em um lugar bonito, cuidado, planejado para oferecer o melhor. Pode ser que tenha havido diferenças grandes entre uns e outros, que nem sempre a coisa era assim. Mas era esse o comentário, era isso o que se ouvia dos moradores, das famílias e de todos que chegaram a desfrutar desses espaços.

Entrevistadora - Não era "política pobre para pobre", como tem sido tão comum na trajetória das políticas sociais em nosso país.

Vera - Não é coisa pobre para pobre. Mas foi tudo desativado, virou outra coisa. Acho, no entanto, que seria interessante recuperar um pouco dessa experiência. O Sesc segue esse padrão, em outro sentido. Mesmo as unidades de periferia são impressionantes: a qualidade dos equipamentos, a oferta de serviço e atividades etc. E sempre cheio de gente. Quando se vai ao Sesc Belenzinho, aí na boca da periferia, impressiona justamente a presença marcante de gente que veio da periferia leste da cidade. Tudo isso para dizer o seguinte: talvez seja necessário repensar o que se está entendendo por vulnerabilidade. Claro, é importante, importantíssimo, o atendimento e o Serviço Social no local - saúde, educação, serviços sociais, atendimentos etc. Com certeza, o território é importante e tem que ser incorporado por políticas e programas sociais. É mesmo na ponta que as coisas podem ser mobilizadas, as ações podem ser desenvolvidas etc. Mas eu diria que o ponto da discussão não é esse. A questão é: o mundo social não se encerra no perímetro estreito do local. Aliás, território não é a mesma coisa que "comunidade" - esse termo cria ficções perniciosas; em outro momento seria interessante passar também pelo crivo da crítica essa noção que é hoje, bem sabemos, moeda corrente em todos os campos discursivos, para todos os lados. Território: é feito de vasos comunicantes com a cidade. É feito de conexões com outras dimensões da vida. Afinal, a cidade, e em particular uma metrópole, não é a mesma coisa que um vilarejo, justamente porque é feita de circulação, passagens, bifurcações, comunicações. Trabalhei essas questões no nosso livro Nas tramas da cidade, desenvolvi lá toda uma noção de cidade e território que busca justamente se contrapor a essa noção do local comunidade.9 9 . Telles, Vera S. e Cabanes, Robert. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo. Humanitas, 2006. O texto comentado é o Capítulo 3, "Trajetórias urbanas: fios de uma descrição da cidade". Esse e outros capítulos do livro estão disponíveis para download no link: < http://www.fflch.usp.br/ds/veratelles/artigos.html>.

É por referência a essa noção de cidade e de território que faz sentido a pergunta: para lembrar aqui um belo texto programa da Aldaíza Sposati, quais os "desejos de cidade"? Foi pensando nisso que aqui me lembrei da curta (e controvertida, bem sei) experiência dos CEUs, mas também do Sesc, ao menos tal como suas unidades são construídas e geridas na cidade de São Paulo, em particular nas regiões populares e mesmo periféricas. Pode até ser que eu esteja equivocada em relação a esses dois exemplos. Meus comentários aqui são intuitivos e desinformados. Apenas impressões. Mas fica valendo, eu diria, a direção dos comentários, e que tem a ver com essa questão que estamos aqui discutindo. Uma noção de território que não se confunde com "comunidade" e que abarque a dinâmica da própria cidade. E isso muda também o modo de pensar justamente o "local" - o local como território ou o local como "comunidade"? Mas o que é, a rigor, "comunidade"? Estamos falando de cidades, cidades do século XXI e, no caso de São Paulo, de uma megametrópole. E o "mundo" está cifrado nas mínimas coisas que compõem a vida local. Aliás, o exemplo da moça em busca de saídas para um drama familiar é também elucidativo nesse sentido. É uma história de pobreza extrema que acontece em um lugar também pobríssimo. No entanto, a moça está no mundo, transita no mundo e sabe lidar com seus códigos e mobilizar seus recursos, incluindo o modo de lidar com os "meninos" e a chamada "lei da favela". Os jovens sabem disso, os adultos também. E mobilizam os recursos do "mundo" o tempo todo em seus percursos, nos seus dramas, e também em seus "desejos de cidade", mesmo quando tudo vem cravejado de coisas complicadas, sejam as ficções do consumo, sejam os sonhos de prestígio e poder, muitas vezes mobilizados em torno dos negócios do tráfico de drogas, sejam outras tantas coisas que hoje fazem parte do mundo.

Entrevistadora - De fato esse é um debate fundamental. A questão social hoje é essencialmente uma questão urbana, e diz respeito ao direito de todos à cidade, à mobilidade urbana, à circulação e relação com os seus mais diferentes territórios, especialmente com as áreas centrais das cidades, que concentram riqueza social e bens culturais que a cidade oferece a seus cidadãos (e que hoje são objeto de políticas higienistas de "limpeza urbana"). Mas que também devem ser estendidos para as periferias da cidade, onde vive a maioria da população.

Vera - Acho que aí há duas questões. A primeira está relacionada com o que eu venho trabalhando: a experiência e relação com o espaço em um mundo, hoje, muito conectado. E isso não é uma metáfora. Mesmo para o garoto que está lá no fundo da Zona Leste, a informação circula. Circula porque tem celular, porque tem lan house, porque tem a televisão. Achar que o mundo dele se reduz ao perímetro de seu local de moradia é não entender nada do que anda acontecendo na cidade e também no local. Cada qual opera como se fosse uma antena, algo como um terminal de conexões. As pessoas estão hoje muito conectadas, isso redesenha os horizontes da imaginação e os circuitos do mundo em que as pessoas transitam. É certo que há nisso tudo as diferenças de geração.

Mas o jovem adulto ou então o já não tão jovem adulto de trinta anos, se lançou na vida ativa em um momento no qual o mundo já estava muito alterado em relação a décadas passadas. Diria, portanto, que será importante entender como essa informação - informação do mundo - circula, e levar a sério que o "local" não se encerra em si mesmo, como se fosse um mundo confinado. Ou então um vilarejo camponês. A segunda questão remete ao que anda acontecendo no centro da cidade. Uma das pesquisas que estou coordenando é sobre o comércio informal no centro da cidade. É impressionante a vitalidade desses circuitos comerciais. É impressionante a extensão do perímetro que esse comércio informal abrange. É impressionante o volume de mercadorias transacionadas nessas regiões. E é impressionante a massa humana que se concentra nessas ruas: gente vinda de todos os lugares da cidade, também do interior de São Paulo, de outros estados, dos países do cone sul, até os angolanos que mobilizam, por sua vez, verdadeiras agências de viagem para garantir a passagem do Atlântico, a estadia e os procedimentos para embalar as mercadorias de volta para Angola. No entanto, tudo o que se diz e fala sobre o centro é a Cracolândia.10 10 . Cracolândia (por derivação de crack) é a denominação popular de um setor central da cidade de São Paulo, onde se desenvolve intenso tráfico de drogas e prostituição, e que a partir da gestão Serra Kassab vem sendo alvo de políticas de "requalificação" urbana condensadas no Projeto Nova Luz, que expulsa a população local para a implantação de megaoperação imobiliária apoiada na lógica da parceria público privada.

Todos os holofotes estão centrados nisso. É como se o centro da cidade fosse apenas lugar de "noias" e prostitutas, de um lado e, de outro, a Sala São Paulo.11 11 . Antiga estação ferroviária, foi inteiramente restaurada para instalar a Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), construída dentro dos mais avançados padrões acústicos internacionais. Basta abrir o mapa da região para ver que essa região do comércio popular, a começar da tão celebrada rua Santa Ifigênia, está tudo lá encostado, ao lado, quando não dentro mesmo desse perímetro, hoje foco das atenções públicas sob o efeito do tão midiatizado Projeto Nova Luz. Para mim, uma dupla inquietação: o sentido dessa espécie de autismo de classe de projetos que colocam todos os holofotes em cima de um par de ruas onde os drogados estão concentrados, com todo o espetáculo de degradação humana e social que isso envolve, deixando na sombra, como se não existisse, uma dinâmica urbana que não se reduz a edifícios degradados, loucos, drogados e prostitutas. Como bem sabemos, problemas graves, no que diz respeito ao modo como se vem lidando com a população de rua e a chamada Cracolândia: projetos e programas que mal escondem o hoje repaginado higienismo urbano, de triste memória. Mas em torno disso e sob a pirotecnia midiática em torno da Cracolândia, uma disputa feroz por esses espaços da cidade - disputa de classe, ousaria dizer, envolvendo pesadíssimos interesses imobiliários (obs.: basta ver a planta dessa região, a infinidade de prédios velhos ou então de velhos galpões industriais hoje vazios, tudo lá à espera de serem colocados abaixo pelas incorporadoras imobiliárias) e que envolvem, na outra ponta, todos os atores desse comércio que opera nas fronteiras incertas do legal ilegal, formal informal, mas que mobiliza um mundo social, de evidente extração popular (mas não só), que ocupa essas ruas, com seus ruídos e seus modos, uma "desordemordenada" que faz, a rigor, circular um volume imenso de mercadorias de origem as mais diversas.

No entanto, tudo isso some na cenografia política e pirotecnia midiática. E quando um secretário municipal diz que é preciso revitalizar a rua 25 de Março ninguém acusa o escândalo dessa formulação. Revitalizar? Como assim? Há algo mais vitalizado do que esse comércio popular que ocupa toda essa região? Revitalizar ou simplesmente expulsar os ambulantes em nome de um sentido de ordem e modernidade que responde a outros tantos interesses?

A segunda inquietação deriva dessa primeira: pois esse corte e recorte do mundo social em torno da cena da Cracolândia acaba também definindo uma pauta acadêmica de pesquisa. E toma se como evidência que o centro é lugar de drogado e degradação urbana, apenas e tão somente, e o "resto", que na verdade está ali ao lado, nos limiares, fica como um leve roçar de folhas que mal chama a atenção e de toda forma não é considerado, pois isso envolveria mudar os parâmetros para pensar o drama inclusive da dita Cracolândia e da disputa urbana que hoje se trava em torno do tal Projeto Nova Luz. Radicalizando o argumento, e sob risco de injustiça contra uns ou outros, eu diria o seguinte: fala se em revitalização do Centro, e mesmo quando se tem uma preocupação crítica em relação a isso, "compra se o pacote" todo, quer dizer: um certo corte da realidade, um certo modo de problematizar e objetivar os problemas ditos do Centro da cidade e, sendo assim, alimenta se o mesmo dispositivo discursivo e de práticas que circunscrevem o problema "o centro da cidade": a revitalização urbana (assunto para os arquitetos e especialistas) e a cracolândia (problema dos assistentes sociais e tema de pesquisa dos antropólogos e sociólogos). Para lidar com essa realidade toda, seria preciso deslocar os parâmetros para recolocar a cidade sob outra figuração em pauta, desenhar outra cartografia da cidade e seus problemas. Do contrário, ficamos cativos de um jogo de poder pesado, sem mesmo entender as questões que estão em pauta.

Entrevistadora - Essa análise tão arguta com que você nos brindou, sobre a complexa trama social das cidades contemporâneas, aponta ao mesmo tempo para a dinâmica complexa da política e para sua impossibilidade e anulação. Então quais são os caminhos possíveis? Para você, quais seriam as tarefas prioritárias de uma agenda teórica e política a ser perseguida?

Vera - Bem sabemos nós o quanto a perspectiva gestionária passou a pautar a pesquisa social; pesquisas feitas tendo em mira (muitas vezes sob encomenda) a avaliação de políticas públicas. O resultado é que o debate ficou cada vez mais empobrecido. E o mais complicado: cativo da pauta definida por esses programas e essas políticas.

Talvez a tarefa que temos pela frente é tentar um diagnóstico disso tudo, disso que falei de um modo um tanto apressado, muito intuitivo, regido pelas inquietações, mas que exigiria uma análise mais fina, cuidadosa. Eu estou convencida de que temos, nós todos e todas, que atualizar o nosso repertório crítico, que nos permita sair do círculo de giz traçado entre a crítica moral ideológica pautada por critérios já deslocados, beirando a retórica vazia e, de outro lado, a justificativa pragmática pautada pelas urgências do presente imediato, jogando tudo para os critérios ditos de competência e "avaliação de resultados". O fato é que temos um repertório crítico ainda pautado pelas questões dos anos 1980, meados dos 1990. Aí ficamos. Ficamos, então, desmunidos para lidar com essas realidades mutantes e não se deixar capturar pelo critério gestionário, que não nos ajuda, na verdade bloqueia a capacidade de entender o que se passa no mundo social, as relações de força, as formas de controle e seus pontos de fuga, as complicações do mundo, enfim.

Artigo recebido em ago./2010

Aprovado em ago./2010

  • *
    Entrevista publicada originalmente na
    Revista de Políticas Públicas, São Luis, v. 13, n. 1, p. 65 76, jan./jun. 2009.
  • 1
    . "No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos Programas de Renda Mínima no Brasil. In: CACCIA BAVA, Silvio. (Org.).
    Programas de renda mínima no Brasil. São Paulo, 1998. p. 43 54; "A nova questão social brasileira". Revista
    Praga, São Paulo, v. 6, p. 106 117, 1998 (depois publicado em
    Cidadania pobreza. São Paulo: Editora 34, 2001).
  • 2
    . "Direitos, afinal do que se trata?" Foi publicado primeiramente na
    Revista da USP, v. 37, 1998 e, depois, na coletânea que leva o mesmo título publicada pela Editora UFMG, 1999.
  • 3
    . Tradução brasileira,
    O desentendimento (Editora 34, 1996).
  • 4
    . A propósito, valeria ler ou reler o livro de Eder Sader,
    Quando novos personagens entram em cena (Paz e Terra, 1988).
  • 5
    . Distrito situado na Zona Sul da cidade de São Paulo, às margens da represa Guarapiranga, que já foi considerado pela ONU e outros organismos internacionais como a região urbana mais violenta do mundo.
  • 6
    . Paraisópolis é uma favela na zona sul paulistana com uma população estimada em 80 mil pessoas. Em 2005, foi iniciado um processo de urbanização e regularização dos imóveis construídos irregularmente, com grandes investimentos do poder público (municipal e estadual) e da iniciativa privada. Em 2008, alguns fatos ganharam destaque na imprensa: em março de 2008 delegações internacionais de vários países visitaram diversas favelas de São Paulo, e Paraisópolis foi um dos destaques, sendo muito elogiada pelos urbanistas estrangeiros, os quais chegaram à conclusão de que a favela é "incomparável" a qualquer outra no mundo. Outro fato curioso é que em novembro de 2008, Paraisópolis recebeu a primeira filial da loja das Casas Bahia em uma favela.
  • 7
    . Para quem se interessar, vale citar artigo escrito em coautoria com Daniel Hirata, "Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito".
    Estudos Avançados, n. 61, 2007. Mais recentemente, Telles, Vera S. "Ilegalismos urbanos e a cidade".
    Novos Estudos, Cebrap, n. 84, agosto (no prelo). Ambos os artigos estão disponíveis para
    download no Scielo.
  • 8
    . Jacques Donzelot.
    Invention du social: Essai sur le déclin des passionspolitiques. Fayard, 1984.
  • 9
    . Telles, Vera S. e Cabanes, Robert.
    Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo. Humanitas, 2006. O texto comentado é o Capítulo 3, "Trajetórias urbanas: fios de uma descrição da cidade". Esse e outros capítulos do livro estão disponíveis para
    download no
    link: <
  • 10
    . Cracolândia (por derivação de
    crack) é a denominação popular de um setor central da cidade de São Paulo, onde se desenvolve intenso tráfico de drogas e prostituição, e que a partir da gestão Serra Kassab vem sendo alvo de políticas de "requalificação" urbana condensadas no Projeto Nova Luz, que expulsa a população local para a implantação de megaoperação imobiliária apoiada na lógica da parceria público privada.
  • 11
    . Antiga estação ferroviária, foi inteiramente restaurada para instalar a Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), construída dentro dos mais avançados padrões acústicos internacionais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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