A literatura social e pedagógica produzida nas últimas três décadas evidencia um crescente interesse por estudos sobre educação patrimonial. A partir de abordagens temáticas ampliadas e formulações teórico-metodológicas de variado alcance, tal literatura vem explicitando as novas configurações que a educação patrimonial assume como prática social, ação pedagógica ou experiência formativa em diversos ambientes sociais.
Em primeiro lugar, ao acompanhar uma tendência à ampliação dos sentidos de cultura e patrimônio cultural transcorrida em perspectiva internacional, verifica-se uma pluralização da ideia de educação patrimonial. Há uma presença significativa de múltiplas expressões culturais em programas de educação patrimonial, considerando-se dinâmicas identitárias mestiças e formações culturais instituídas por hibridismos, reinvenções ou reelaborações simbólicas (SILVA, 2019SILVA, R. M. D. Perspectivas atuais para a pesquisa em educação patrimonial. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 24, p. 251-265, 2019. https://doi.org/10.52780/res.11203
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). Esse movimento também dinamiza articulações produtivas entre patrimônios materiais, imateriais e ambientais, em detrimento de perspectivas monumentalistas pretéritas que acentuavam exclusivamente a tangibilidade física do patrimônio.
Em segundo lugar, observa-se uma transformação na seleção dos ambientes nos quais programas de educação patrimonial incidem. Além de museus e espaços culturais institucionalizados, a educação patrimonial expande-se para escolas, projetos sociais, organizações não governamentais e associações comunitárias em periferias urbanas. Ao mesmo tempo, engendra experiências formativas em ambientes digitais e redes sociais na Internet. Tal ampliação explicita uma tendência a suas redefinições conceituais, como experiência educativa ampliada. No Brasil, particularmente, essa mudança é muito expressiva, tendo em vista que a origem de suas discussões esteve fortemente atrelada a metodologias de ensino de História.
Em terceiro lugar, a literatura nos mostra que há uma inversão na lógica da demanda por educação patrimonial. Hoje, as demandas por processos de patrimonialização cultural e educação patrimonial não partem exclusivamente do Estado, como agente público de seleção cultural, mas se originam de pautas públicas mobilizadas por atores da sociedade civil, organizações comunitárias e movimentos sociais e culturais. Assim, faz-se necessário conhecer as experiências desses atores demandantes dessa forma educacional, sejam professores atuantes na escolarização básica, sejam funcionários públicos municipais, lideranças locais ou outros agentes.
O presente dossiê temático visa revisitar experiências em educação patrimonial e atualizar discussões teóricas e conceituais acerca da temática em perspectiva internacional. Nesse início de século XXI, importa atualizar as relações simbólicas e políticas estabelecidas entre educação, identidades e patrimônios culturais, a partir da contribuição analítica de diversos pesquisadores atuantes na América Latina e na Europa. Esse esforço intelectual também objetiva sistematizar e propor avanços conceituais e metodológicos para estudos futuros sobre a temática.
A proposta foi construída por pesquisadores e pesquisadoras especialistas em educação patrimonial, o que nos permite demonstrar a difusão desse conhecimento entre universidades internacionais, bem como seu alto nível de contribuição científica, configurando uma mescla de autores europeus e latino-americanos, com diversas inserções acadêmicas, o que favorece a criação de uma comunidade científica em torno da educação patrimonial e de temáticas correlatas. Na presente proposta editorial, apresentamos sete artigos para apreciação e exame dos leitores de Educação & Sociedade.
No primeiro artigo, intitulado “Procesos de patrimonialización de la memoria histórica. El caso del profesorado en formación”, Janire Castillo, Iratxe Gillatte, Ursula Luna e Alex Ibañez-Etxeberria dedicam-se ao exame dos processos de patrimonialização da memória histórica sobre a guerra civil, o Franquismo e a transição política realizada no País Basco, na Espanha. O artigo analisa 85 narrativas de estudantes em processo de formação para a docência na escola primária. Seus resultados evidenciam que a adesão patrimonial ocorre por motivos relacionados a referências bélicas, principalmente quando há relações afetivas a protagonistas nos conflitos, porém sem confrontar o relato oficial e escolhendo um repertório de patrimônios culturais que fundamentem suas recordações. O estudo nos oferece chaves importantes para o aprimoramento de programas de formação docente e sua pertinência histórica quando desenvolvido em contextos de conflito.
O segundo artigo intitula-se “Educação, patrimônios e comunicação intercultural em escolas públicas no Sul do Brasil”. De autoria de Rodrigo Manoel Dias da Silva, o texto orienta-se pela hipótese de que a educação patrimonial possa converter-se em ferramenta conceitual e metodológica para a comunicação intercultural em contextos escolares. O autor fundamenta sua abordagem na análise de entrevistas realizadas com professores atuantes nos anos iniciais da escolarização no estado do Rio Grande do Sul, região sul do Brasil. Ao considerar um movimento de pluralização de histórias, territórios e identidades no contexto regional, recupera o caráter problemático da educação patrimonial. Contudo, demonstra sua pertinência para a desconstrução e a problematização de traços coloniais, seletivos e eurocêntricos presentes nas práticas pedagógicas examinadas.
O terceiro, “Experiências relacionales en la educación patrimonial”, escrito por Roberto Marcelo Falcón e Apolline Torregrosa, propõe uma reflexão sobre mutações sociais emergentes nas relações entre educação e patrimônio cultural, com efeito observadas no deslizamento de identidades fixas a dinâmicas societais de identificação. Do ponto de vista conceitual, afirma que a educação patrimonial consiste em uma experiência relacional e deve ser cotejada considerando-se, como tal, suas dimensões relacionais. Recomenda que, na construção de estudos sobre a temática, sejam reconhecidas as experiências das pessoas envolvidas em educação patrimonial, indo além do reconhecimento de nacionalismos, símbolos nacionais ou de fixismos identitários.
A seguir, Helena Pinto, no artigo “A educação patrimonial num mundo em mudança”, reitera que todas as formas de patrimônio cultural se originam de situações e sujeitos que lhes atribuem um significado. Adverte, porém, que tal significação convive com muitas interpretações acerca de um bem patrimonial, tendo em vista a diversidade de quadros conceituais que emolduram os patrimônios como fenômeno social. Sua análise reforça que a consideração pública do patrimônio nos leva a simplificar tais significações em um processo de enquadramento, o qual incide no risco de ser apropriado por movimentos populistas ou ser atribuído a identidades estereotipadas. Compete à educação patrimonial o desenvolvimento de práticas pedagógicas “multiperspectivadas” a fim de dialogar com semânticas e práticas plurais, tanto na América quanto na Europa.
O quinto artigo, de autoria de Simone Scifone, realiza uma leitura crítica das propostas de educação patrimonial em desenvolvimento no Brasil. Intitulado “Patrimônio e educação no Brasil: o que há de novo?”, a análise discute a relação entre a educação patrimonial e o discurso autorizado sobre o patrimonial no país, ao realizar uma crítica da reprodução e da naturalização das narrativas do Estado e das memórias do poder, as quais esmaecem diferenças entre desiguais e apresentam um passado comum à revelia das contradições sociais e históricas vistas na sociedade brasileira. Recupera a crítica a essas posições, assim como aponta para a necessidade de descolonizar a educação patrimonial.
“Educación patrimonial y sostenibilidad: un estúdio de caso en la enseñanza secundaria obligatoria” é o nome do artigo de Mónica Trabajo-Rite e José María Cuenca López. Versa sobre uma experiência de ensino de Ciências Sociais que almejou reconectar o aluno a seus entornos social, cultural e natural a partir do uso do patrimônio como elemento simbólico de identidade. A partir de uma abordagem qualitativa, com dados coletados em questionários, observações e análises de projetos de alunos, demonstra que as propostas de educação patrimonial favorecem a formação de vínculos identitários capazes de promover uma educação cidadã, reflexiva e comprometida com seu território e comunidade.
Por último, Olaia Fontal Merillas e colaboradores apresentam o artigo “Conceptualización del patrimonio de maestros en formación en entornos digitales mediante referentes identitarios”. O estudo centrou-se no conhecimento sobre como alunos de licenciatura da Universidade de Valladolid conceituam patrimônio e o definem em termos de vínculos e produção de identidades. Os resultados evidenciaram o caráter oposto entre modelos de conceitualização histórica e questões identitárias. Ao mesmo tempo, identificou a presença de sentidos diversos atribuídos ao patrimônio, mas uma presença ainda significativa de sentidos definidos por museus e instituições similares.
Referências
- SILVA, R. M. D. Perspectivas atuais para a pesquisa em educação patrimonial. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 24, p. 251-265, 2019. https://doi.org/10.52780/res.11203
» https://doi.org/10.52780/res.11203
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jun 2022 -
Data do Fascículo
2022