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APRESENTAÇÃO

O debate em torno das juventudes e suas formas de pensar, agir, sentir e relacionar-se tem mobilizado atenções no Brasil e no mundo e passa pela consideração de vários processos concomitantes de aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas que têm distanciado em escala planetária os mais ricos dos mais pobres e miseráveis. Dados demográficos apontam que ¼ da população do Brasil e do mundo é composta de jovens de 14 a 35 anos, expostos à internacionalização da economia e à globalização do consumo, que promovem uma aparente uniformização das culturas juvenis por meio da expansão da escolarização e de políticas públicas voltadas a esse segmento.

No Brasil, Naigeborin (2023)NAIGEBORIN, V. Brasil, juventudes e inclusão produtiva. Folha de S.Paulo, Opinião, p. A3, 30 ago. 2023. indica que cerca de 60% desses jovens são negros, concentrados nas faixas de renda mais baixas, vivendo em condições de precariedade, inclusive alimentar. Aponta também que a crise econômica e a pandemia de Covid-19 trouxeram impactos negativos, ainda não completamente mensurados, fazendo com que a taxa de desocupação entre os jovens se defina acima de outras faixas etárias, afetando principalmente mulheres, negros e menos escolarizados, revelando nossa herança histórica excludente.

Dados recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua evidenciam que aproximadamente 20% dos jovens entre 15 e 29 anos seguem afastados do ambiente escolar e do mercado de trabalho (MOREIRA, 2023MOREIRA, R. F. Como transformar os “nem-nem” em “com-com”? Folha de S.Paulo, Opinião, p. A2, 12 ago. 2023.). Além dessa tendência, tem-se como um dos efeitos da pandemia a intensificação do uso das tecnologias da comunicação e da informação, criando-se, entre outros mecanismos, ambientes virtuais, e-learning, plataformas digitais de relacionamento, novas formas de entretenimento e comunidades de games supranacionais.

Historicamente, o fenômeno das juventudes ganha notoriedade com o advento das sociedades modernas, urbanas e industriais e espraia-se para todas as esferas da sociabilidade como uma fase transitória entre a condição infantil e a adulta, sem limites precisos e não demarcada por rituais sociais rígidos. Do ponto de vista das ciências humanas, a preocupação central não se limita à crise de identidade, ao amadurecimento biológico, ao desenvolvimento psicológico ou aos comportamentos oscilantes e contraditórios, mas a investigar como esses sujeitos se constituem histórica e culturalmente por meios particulares e universais (CATANI; GILIOLI, 2008CATANI, A. M.; GILIOLI, R. S. P. Culturas juvenis: múltiplos olhares. São Paulo: Editora Unesp, 2008.).

É preocupante, hoje, a convivência de movimentos concomitantes e desiguais que incidem sobre as juventudes, tanto fortalecendo potenciais que sinalizam resistências, indignações, inventividades, criações artísticas e transformações sociais inclusivas quanto aliciando-as em interpretações bíblico-evangélicas de seitas norte-americanas que investem na “subjetividade consumista de certos projetos de direita como solução de novas aspirações” (SODRÉ, 2022SODRÉ, M. Astúcias para novos golpes. Folha de S.Paulo, p. A2, 5 jun. 2022., p. A2). Assim, a força das religiosidades populares ancestrais tem sido substituída por “uma espécie de reinterpretação neoliberal do cristianismo” perpassada pela lógica financeira da “teologia da prosperidade”, com estímulos oriundos do “marketing empresarial, da literatura de autoajuda e da doutrinação pseudocientífica relativa tanto à aquisição de riquezas como à gerência da vida pessoal, tudo respaldado pelos protocolos do culto” (SODRÉ, 2022SODRÉ, M. Astúcias para novos golpes. Folha de S.Paulo, p. A2, 5 jun. 2022., p. A2), promovendo na sociedade um “totalitarismo soft” (SODRÉ, 2022SODRÉ, M. Astúcias para novos golpes. Folha de S.Paulo, p. A2, 5 jun. 2022., p. A2).

Do ponto de vista educacional, como indica a tradição pedagógica clássica, antiga e atual (desde Sócrates até Paulo Freire, passando por Jean Piaget e John Dewey), a preocupação com a juventude se torna indispensável para se enfrentar adequadamente o desenvolvimento econômico acompanhado de desenvolvimento humano e social. Preocupar-se com a educação ampla e plural da juventude, (in)dependentemente de classe social, raça, religião e gênero, é algo vital para o fortalecimento do exercício da cidadania democrática e, com ela, a formação do sentimento de responsabilidade ético-política pelas questões atuais cruciais da humanidade, como as relacionadas ao aumento da pobreza, da fome, da injustiça social e da destruição ambiental (SPOSITO, 2009SPOSITO, M. P. (coord.). O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. 2 v.).

Todavia, no Brasil, a definição da Base Nacional Comum Curricular, que incide sobre o conjunto da educação básica e, particularmente, sobre o ensino médio, por meio da Lei nº 13.415/2017BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Conversão da Medida Provisória nº 746, de 2016. Brasília: Presidência da República, 2017. – em sua política excludente e de reforço das desigualdades –, restringe o acesso dos estudantes da escola pública ao conhecimento, promovendo o aligeiramento do currículo e o acoplamento da formação a uma abordagem individualista, competitiva e instrumental, ancorada na pedagogia das competências, que faz da “adaptabilidade” e da resiliência os fundamentos na contenção dos imensos contingentes de jovens trabalhadores desempregados e em situação de informalidade, visando melhor coisificá-los e aprisioná-los na promessa ilusória de transformá-los em agentes monetarizados.

A Base Nacional Comum Curricular e a reforma do ensino médio, de caráter sistêmico, articulam-se a um conjunto mais amplo de reformulações curriculares impostas pela agenda do Ministério da Educação no mesmo período: a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019BRASIL. Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica. Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Brasília: Ministério da Educação, 2019.), a reformulação dos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático e a alteração dos processos avaliativos, sua adequação à lógica de monitoramento das avaliações padronizadas, em larga escala – do Sistema de Avaliação da Educação Básica e do Exame Nacional do Ensino Médio. Tais ações estão sendo desenvolvidas segundo orientação política e pedagógica de agentes privados, representantes dos interesses de diferentes setores do empresariado no campo educacional, principalmente do capital financeiro, via transferência de responsabilidades do setor público para esses aparelhos privados de hegemonia, os quais se tornam cada vez mais influentes e articulados no plano nacional.

No caos ideológico do credo neoliberal do mercado autorregulável, a pandemia atinge-nos impondo cenários distópicos de desgoverno, de projetos demolidores como Escola Sem Partido, escolas cívico-militares, homescholling, notório saber, ensino a distância, associados ao fim da demarcação das terras indígenas, devastação das florestas amazônicas, liberação do uso de armas e de agrotóxicos e acionamento de imaginários coletivos passadistas, violentos e insensíveis. Como podemos construir humanidades que superem os escombros e as ruínas deixados pelo ethos do conservadorismo, fundamentalismo e empreendedorismo? Quais são os espaços ocupados pelas juventudes nas estruturas de distribuição de bens e oportunidades de acesso à sociedade de classes?

No limite, o que está em questão são os contextos sociais e os processos formativos das juventudes na contemporaneidade. Os textos que seguem abordam diferentes aspectos desses processos, numa perspectiva crítica e multidisciplinar (PINHEIRO et al., 2016PINHEIRO, D.; RIBEIRO, E.; VENTURI, G.; NOVAES, R. Agenda Juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016.). Nossa expectativa é a de que contribuam para o debate e para a produção de novos estudos a respeito do tema.

Para tanto, problematizamos a pedagogia das competências, o encarceramento prisional dos jovens, o ensino religioso nas escolas públicas, as disposições e as aprendizagens das juventudes periféricas, a educação profissional e tecnológica e as resistências construídas nas margens durante o período da pandemia e depois dele.

Referências

  • BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 Conversão da Medida Provisória nº 746, de 2016. Brasília: Presidência da República, 2017.
  • BRASIL. Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Brasília: Ministério da Educação, 2019.
  • CATANI, A. M.; GILIOLI, R. S. P. Culturas juvenis: múltiplos olhares. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
  • MOREIRA, R. F. Como transformar os “nem-nem” em “com-com”? Folha de S.Paulo, Opinião, p. A2, 12 ago. 2023.
  • NAIGEBORIN, V. Brasil, juventudes e inclusão produtiva. Folha de S.Paulo, Opinião, p. A3, 30 ago. 2023.
  • PINHEIRO, D.; RIBEIRO, E.; VENTURI, G.; NOVAES, R. Agenda Juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016.
  • SODRÉ, M. Astúcias para novos golpes Folha de S.Paulo, p. A2, 5 jun. 2022.
  • SPOSITO, M. P. (coord.). O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. 2 v.
Editor de seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2022
  • Aceito
    09 Out 2022
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