Resumo
A historiografia sobre o século XVIII português tem visto os súditos da coroa portuguesa nascidos no Brasil com crescente interesse, dada sua intensa participação em diversos aspectos da administração do Império, particularmente na investigação científica feita através de viagens naturalistas, na participação em espaços de sociabilidade científica, como a Universidade de Coimbra, a Academia das Ciências, o Colégio dos Nobres e outras, e da inclusão de Portugal na República das Letras, através da publicação de textos próprios - em literatura, ciência, filosofia e religião - ou da tradução para o português de parte da abundante produção de cunho iluminista publicada em francês e em outras línguas europeias. Este texto busca explorar as potenciais “visões de si” que este grupo heterogêneo construiu, em textos e paratextos editoriais próprios, em torno da monarquia, nação, ciência e “luzes”.
Palavras-chave
cultura escrita; império português; luso-brasileiros; paratextos
Abstract
The Historiography on 18th Century Portugal has seen the Brazilian born subjects of the Portuguese Crown with growing interest, due to their intense participation in various levels of the administration of the Empire, particularly concerning scientific investigation through naturalist voyages within the Empire, their participation in places of scientific sociability, such as Coimbra University, the Science Academy and the Colégio dos Nobres and their participation in the Portuguese Republic of Letters through the publication of their own texts - in Literature, Science, Philosophy and Religion - or their translation into Portuguese of many books written by authors of the Enlightenment in French and in other European languages. In this text, the aim is to explore the “views on theirselves” these men produced in their heterogeneous group, in their own texts and editorial paratexts, regarding notions like monarchy, nation, science, and the “lights”.
Keywords
written culture; Portuguese Empire; Luso-Brazilian; paratexts
Em fins da década de 1790, Manoel Arruda da Câmara, botânico nascido na Paraíba e educado na Universidade de Coimbra e na de Montpellier, decidiu - possivelmente a pedido de D. Rodrigo de Souza Coutinho ou do Frei José Mariano da Conceição Velloso - enviar para publicação uma Memoria sobre a cultura dos algodoeiros, para a Officina da casa litteraria do Arco do Cego em 1799. Na dedicatória ao príncipe regente, Arruda da Câmara construiu a imagem do letrado a serviço do Império, dizendo: “me recolhi ao meu lar, ardendo nos desejos de poder ser util á minha Nação, pelos conhecimentos, que tinha adquirido em as Sciencias Naturaes”. O ápice do reconhecimento do trabalho desenvolvido foi o convite para editar a obra, construído em redes de clientelismo que emanavam o poder desde Lisboa até o sertão paraibano que o autor buscara observar:
Eu me appliquei então cuidadosamente a fazer todas as observações, de que era capaz, segundo as luzes, ainda que tenues, que eu tinha adquirido, para que meus patricios tivessem alguma cousa, que lhes fosse propria, e não mendigassem de livros estranhos, que são raros, as noções que necessitavão. Quando completava, por terem já decorrido alguns annos, as minhas observações, ouvi a imperiosa voz de V. A. R., que, do alto do Throno, que, com tanta gloria de toda a Nação, rege, fortificou o meu desalento, determinando seguisse o meu primeiro destino, e fixando-o: honra para mim tão grande, que não espero ter outra maior em minha vida, e que só a poderia ter, se eu fosse tão feliz, que satisfizesse cabalmente a tudo de quanto sou encarregado por V. A. R. Eu conhecendo a minha pequenhez, já mais presumi, que o meu Soberano me houvesse de honrar d’ huma tal maneira (CAMARA, 1799CAMARA, Manoel Arruda da. Memoria sobre a cultura dos algodoeiros, e sobre o methodo de o escolher, e ensacar, etc. em que se propoem alguns planos novos, Para o seu melhoramento. Lisboa: Na Officina da casa Litteraria do Arco do Cego, 1799.).
Para além da retórica que busca diminuir o autor face ao destinatário da dedicatória, em cujo favor aquele pretende “entrar”, participando em uma “economia do dom” (KIRSCHNER, 2009KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, itinerários de um ilustrado luso-brasileiro. São Paulo: Alameda / Belo Horizonte: PUC Minas, 2009., p. 37; HESPANHA, 1998HESPANHA, Antonio Manuel e XAVIER, Angela Barreto. As redes clientelares, In: HESPANHA, Antonio Manuel, org. História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1998., p. 340), chamam a atenção as menções repetidas da palavra “nação”, cujos significados podem ser elusivos hoje, face aos desdobramentos dos séculos XIX e XX em torno de processos nacionalistas.
Câmara foi um entre muitos outros súditos da coroa portuguesa nascidos em terras americanas a estudar na Universidade de Coimbra após as reformas educacionais do Marquês de Pombal e a ser incorporado nos serviços da coroa (CRUZ, 2002CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho. As viagens são os viajantes: dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. Curitiba: História: Questões & Debates, v. 36, p. 61-98, 2002.). A historiografia tem lidado de forma crescente com esses indivíduos, abandonando gradativamente os silêncios estabelecidos sobre eles ao longo do século XIX e XX, em um esforço historiográfico que via, em sua atuação, vínculos com o processo de independência do Brasil, partindo de um axioma que identificava “a colônia como um estágio prévio que precede a nação e é esta - o Brasil independente - que lhe confere inteligibilidade” (CRUZ & PEREIRA, 2006PEREIRA, Magnus Roberto. Rede de mercês e carreira: o “desterro d’angola” de um militar luso-brasileiro (1782-1789). História: Questões & Debates, 2006 vol: 45 pp: 97-127.). Os vários grupos de trabalho e centros de estudo, em Portugal e no Brasil, que mais recentemente se debruçaram sobre a produção científica desses homens têm visto o processo de cooptação desses filhos das elites comerciais ou rurais das colônias como parte integrante da política colonial desde as ações pombalinas da década de 1760 até as primeiras décadas do século XIX (CRUZ & PEREIRA, 2009CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho; PEREIRA, Magnus Roberto. Ciência, identidade e quotidiano. Alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial. Revista de História da Sociedade e da Cultura, v. 9, p. 205-228, 2009.). Os estudantes respondiam, portanto, à exortação sintetizada por D. Rodrigo de Souza Coutinho, em sua Memória sobre os melhoramentos dos domínios de sua Magestade na América, de 1797, na qual convocava os portugueses “nascidos nas quatro partes do mundo” a se considerarem todos portugueses (PEREIRA & RIBAS, 2013PEREIRA, Magnus Roberto & RIBAS, André Akamine. Francisco José de Lacerda e Almeida; um astrônomo paulista no sertão africano. Curitiba: Editora UFPR, 2013.). Somavam-se aos estudantes coimbrãos militares letrados de baixa patente que, no mesmo período, participaram do esforço de descrever (e administrar) o Império. “Figuras como Tiradentes ou como Elias Alexandre [da Silva Corrêa] fazem parte desta camada emergente [...]” (PEREIRA, 2006PEREIRA, Magnus Roberto. Rede de mercês e carreira: o “desterro d’angola” de um militar luso-brasileiro (1782-1789). História: Questões & Debates, 2006 vol: 45 pp: 97-127., p. 100). Esses militares haviam sido beneficiados também pelas tentativas de profissionalizar a gestão do império e pela disseminação de obras impressas de divulgação que contribuem para a educação de pessoas fora dos segmentos tradicionalmente letrados.
A ênfase dada pela historiografia à protonacionalidade desses indivíduos nivela anacronicamente identidades de origem, que se somam à religião católica e ao pertencimento ao Império na construçāo de uma identidade idealizada de súdito. Nesse sentido ser, “brasileiro” equivale à ideia de “pátria-chica”, ou seja, indica os moradores de uma determinada região, cidade ou vila (SILVA & HESPANHA, 1992SILVA, Ana Cristina Nogueira & HESPANHA, António Manuel. A Identidade portuguesa. In: MATTOSO, José. (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1992., p. 19-37). “Pátria” surge, nesta noção, como “sinônimo do local de origem, da terra de onde se é” (CRUZ & PEREIRA, 2009CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho; PEREIRA, Magnus Roberto. Ciência, identidade e quotidiano. Alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial. Revista de História da Sociedade e da Cultura, v. 9, p. 205-228, 2009., p. 217). Apesar desta ênfase, é possível verificar que “uma parcela desses intelectuais esteve perfeitamente afinada com as políticas metropolitanas”, mesmo que dessa geração tenham saído muitos indivíduos que participaram ativamente do movimento de independência do Brasil (CRUZ & PEREIRA, 2006CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho; PEREIRA, Magnus Roberto. A história de uma ausência: os colonos cientistas da América portuguesa na historiografia brasileira. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. EDUFES, Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, 2006., p. 368).
Este estudo tenta ampliar a compreensão da atuação desses naturalistas, juristas, médicos e “cientistas” nascidos em terras brasileiras e complementar a historiografia que tem lidado com os escritos desses indivíduos, com o objetivo de vê-los a partir da ótica dos estudos sobre cultura escrita, buscando nos textos e paratextos editoriais (dedicatórias, prefácios, posfácios, avisos ao leitor, notas do editor, notas do tradutor etc., ver: GENETTE, 2009GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.) dos luso-brasileiros, as representações construídas em torno de termos relacionados a pátria, nação, país, e às formas identitárias eventualmente presentes na língua escrita, bem como a compreensão dos diversos agentes da palavra impressa sobre o papel desempenhado pelas “luzes” na construção dessas representações. Cumpre explicitar que o material utilizado corresponde à produção de diversos desses indivíduos em espaços de sociabilidade científica - academias, Universidade de Coimbra - ou “projetos” de divulgação, como aquele visto na Tipografia do Arco do Cego (CAMPOS; CURTO, & TUDELA, 1999CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; CURTO, Diogo Ramada & TUDELA, Ana Paula. A Casa Literária do Arco do Cego: bicentenário,(1799-1801):" sem livros não há instrução". Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda: Biblioteca Nacional, 1999. ou OLIVEIRA HARDEN, 2009OLIVEIRA HARDEN, Alessandra R., Brasileiro tradutor e/ou traidor: Frei José Mariano da Conceição Veloso. Cadernos de Tradução. UFSC. Vol. 1 no 23, p. 131- 148, 2009.), ou ainda, atuações oficiais a serviço da coroa, como as expedições de mapeamento de fauna e flora feitas por naturalistas luso-brasileiros em todo o Império.
A produção desses autores é vasta e abrange campos distintos do universo da palavra escrita, com um destaque ao universo da ciência. O resultado de muitos dos esforços desses indivíduos foi expresso em forma de “memórias”, ou relatos sobre temas específicos - como o caso do texto de Arruda da Câmara - ou de relatórios remetidos aos oficiais responsáveis por enviá-los como funcionários a diversas partes do império. Inclua-se aqui o vasto esforço tradutório verificado em fins do século XVIII, no qual a presença de luso-brasileiros é marcante, tanto em empreendimentos oficiais, como aquele feito por Frei Veloso no Arco do Cego (CAMPOS; CURTO, & TUDELA, 1999CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; CURTO, Diogo Ramada & TUDELA, Ana Paula. A Casa Literária do Arco do Cego: bicentenário,(1799-1801):" sem livros não há instrução". Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda: Biblioteca Nacional, 1999.; OLIVEIRA HARDEN, 2010OLIVEIRA HARDEN, Alessandra R. Brazilian translators in Portugal. 1795-1808. Thesis. P.H.D. College of Arts & Celtic Studies, Dublin; Dublin University. 2010.), ou ações individuais com apoio tácito oficial, como a publicação de censuras a obras contrárias ao interesse da coroa (TAVARES, 1999TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. Estudos Avançados, v. 13, n. 37, p. 125-154, 1999.), ou as traduções de obras que condenavam, em oposição às ideias jesuítas, a crença em feitiçaria (DENIPOTI & PEREIRA, 2014GALVÃO, Pedro. Utilitarismo. In: ROSAS, João Cardoso, org. Manual de filosofia política. 2a. ed. Coimbra, Almedina. 2013.), ou ainda esforços comerciais, como o do livreiro Francisco Rolland, responsável por uma boa quantidade de traduções - particularmente de obras de popularização do conhecimento médico, além de clássicos greco-romanos.
Como, então, o desenvolvimento do pensamento ilustrado, associado a ideias de império e nação, se manifesta nos escritos dos luso-brasileiros? Tomemos, inicialmente o caso de José da Silva Lisboa, economista baiano que, no século XIX, receberia o título de Visconde de Cairú. Na dedicatória de seu Principios de direito mercantil, de 1801, ele enfatizava, em sintonia com as ideias de Adam Smith, de quem foi o principal divulgador português, que a “opulencia da Nação” deriva diretamente do comércio feito com “pericia, e integridade dos Negociantes” (LISBOA, 1801LISBOA, José da Silva. Principios de direito mercantil e leis de marinha para uso da Mocidade portugueza, destinada ao commercio. Lisboa: Na Typografia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801.). Esse livro, juntamente com os Princípios de economia política, publicado em Lisboa em 1804, “tinha como objetivo esclarecer o corpo mercantil sobre questões relacionadas ao seguro marítimo” (KIRSCHNER, 2009KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, itinerários de um ilustrado luso-brasileiro. São Paulo: Alameda / Belo Horizonte: PUC Minas, 2009., p. 132-3), mas, ao mesmo tempo, avançava novas ideias sobre comércio e economia civil construídos tanto na perspectiva nacional (imperial), quanto “civilizacional” em relação à colônia americana, “que incluía a instrução da população e a transição gradual da escravidão para o trabalho livre, a economia política ocupava um espaço tão especial que, segundo o autor, poderia verdadeiramente ser denominada ‘arte da civilização’ ou ‘arte da paz’ ”(KIRSCHNER, 2009KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, itinerários de um ilustrado luso-brasileiro. São Paulo: Alameda / Belo Horizonte: PUC Minas, 2009., p. 136-7).
De modo semelhante, o paulista José Feliciano Fernandes Pinheiro (1800PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Historia nova, e completa da America, colligida de diversos authores, debaixo dos auspicios de S. Alteza Real o Principe Regente nosso senhor. Lisboa: Na Offic, da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800., s./p.) (mais tarde, Visconde de São Leopoldo) dedicou sua Historia nova, e completa da America ao príncipe regente, percebendo as colônias americanas como palco desse processo civilizatório a partir do comércio e da instrução. Para ele,
O estabelecimento das Colonias Europeas neste continente, suas vantagens, e successos offerecem a tres seculos hum quadro interessante, e bem digno da instrucção dos povos: patenteallo, e promover deste modo as luzes da Nação, he huma prova convincente da benigndade de V. A. R. Feliz eu, se estes meus debeis esforços merecerem ainda o acolhimento de V. A. R. [...]
Temos assim, dois nomes que percorreram a trajetória em foco (nascidos no Brasil que estudaram em Coimbra e estiveram a serviço do Império), que seriam participantes ativos dos processos de construção de uma nacionalidade americana após a independência, em especial no tocante a processos educativos - Cairú, com as aulas de comércio, e São Leopoldo com a criação de universidades, entre as diferentes funções públicas que assumiram. Ambos concordavam com uma visão de que a “nação” era o império.
Em prol da nação-império, e em favor da “pátria chica”, esses e outros luso-brasileiros se empenharam em redigir ou traduzir uma ampla quantidade de textos cujas justificativas de existência giravam em torno de uma ideia (difusa) de “luzes” ou ciência, cujo aproveitamento seria sempre “útil” (KURY, 2015KURY, Lorelai B. O naturalista Veloso. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 243-277, jan.-jul., 2015., p. 248). Essa visão é perpetuada em incontáveis exemplos textuais ou paratextuais, como fez Thome Joaquim Gonzaga Neves (carioca, primo de Thomaz Antonio Gonzaga) no prefácio “ao leitor” de sua tradução de O pastor fiel de Guarini (1789GUARINI. O pastor fiel; tragi-comedia pastoril. Lisboa: Na Regia Officina typografica, 1789. [trad. Thomé Joaquim Gonzaga].). Para Gonzaga Neves, traduzir “os Authores estrangeiros que não podem fallarnos, senão pelos seus escritos” era participar de forma direta naquele “commercio sagrado tão util á Republica das Letras”, concluindo que “[o] traductor se contenta com ser o primeiro da sua Nação, que emprehendeo este trabalho, que póde facilitar, e abrir caminho para outras traducções de maior perfeição”. No mesmo tom, Fernandes Pinheiro dedicou ao príncipe regente sua tradução da Cultura Americana que contem huma relação do terreno, clima, producção e agricultura das colonias britânicas no norte da America e nas Indias Ocidentais (ANÔNIMO, 1799ANÔNIMO, -. Cultura Americana que contem huma relação do terreno, clima, producção e agricultura das colonias britânicas no norte da America e nas Indias Ocidentais. Lisboa: Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo (impressor do eminentissimo Senhor Cardeal Patriarca), 1799 (Livraria d’Alcobaça). [Trad. José Feliciano Fernandes Pinheiro].). Na dedicatória, ele atribuiu a verdadeira riqueza do Estado às “luzes, e os conhecimentos uteis, que […] fórmão a base mais solida do seu Augusto Throno”.
A ideia mesma de “utilidade” merece aqui alguma reflexão, por sua conexão íntima com as ideias de pertencimento a uma “unidade nacional” concebida como império.
Nos estudos sobre o século XVIII em Portugal, é comum a associação do iluminismo lusitano com o “utilitarismo” inglês, como um processo que, em geral “denota um conjunto de perspectivas que, de algum modo, fazem da promoção imparcial do bem-estar o único padrão ético para a avaliação de, por exemplo, actos, códigos morais ou práticas e instituições sociais” (GALVÃO, 2013GALVÃO, Pedro. Utilitarismo. In: ROSAS, João Cardoso, org. Manual de filosofia política. 2a. ed. Coimbra, Almedina. 2013.). A partir dessa ideia inicial - a utilidade como conceito linguisticamente construído, ou ainda, como uma das “estruturas linguísticas que se repetem e cuja repetição é necessária para que o conteúdo seja compreensível, ainda que uma única vez” (GALVÃO, 2013GALVÃO, Pedro. Utilitarismo. In: ROSAS, João Cardoso, org. Manual de filosofia política. 2a. ed. Coimbra, Almedina. 2013., p. 141) -, podemos tentar avançar para uma discussão que busque compreender como os diversos agentes da palavra impressa (autores, censores, tradutores e censores) utilizaram o conceito de utilidade em seus textos e paratextos, levando em conta o contexto, a função e a recepção desses mesmos textos.
Em termos da incorporação de significados em dicionários, a utilidade foi apresentada por Bluteau, no início do século XVIII, como sinônima de “proveito”, ao passo que “útil” era “cousa que serve, que aproveita, que póde servir, ou aproveitar”, e “utilidade pública” era entendida como “bem comum” (BLUTEAU, 1712BLUTEAU, Rafael, C.R. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, […] Coimbra : no Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. - 10 vol. ; 2º (31 cm). Vol 8.-1728. p. 600). No “Supplemento” que Blutteau publicou em 1728, além do proveito, utilidade aparece com significados comerciais, de conveniência, lucro, ganho e interesse (...) (BLUTEAU, 1712BLUTEAU, Rafael, C.R. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, […] Coimbra : no Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. - 10 vol. ; 2º (31 cm). Vol 8.-1728. p. 432). Esses sentidos foram pouco alterados na versão que Antônio de Morais e Silva (1789SILVA, Antônio de Morais; Bluteau, Rafael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa : Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789., vol 2, p 502) - outro brasileiro formado em Coimbra - fez do dicionário de Bluteau em fins do século. Para ele, útil era adjetivo que significava ter “algum uso, serviço, prestimo para algum fim”, e utilidade era “[c]ommodo, proveito, serviço que se póde receber da coisa ou pessoa, préstimo, bem.” Esses mesmos significados foram mantidos em dicionários até as primeiras décadas do século XIX (PINTO, 1832PINTO, Luiz Maria da Silva, Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832. ).
A dicionarização parece não ser suficiente para dar conta das aplicações linguísticas de útil e utilidade ao longo da segunda metade do século XVIII, em especial com relação aos agentes da palavra escrita sob foco aqui. Foi no contexto das produções textuais sobre livros e escritos que se percebeu ser a utilidade um dos elementos comuns a autores, censores, tradutores e leitores que amparavam suas reivindicações e prerrogativas com base em usos comuns do termo, apontando para suas múltiplas funções (e/ou formas de recepção, embora estas sejam mais difíceis de serem apreendidas nas fontes).
Um importante conjunto de agentes da palavra escrita a utilizarem o termo foram os censores, particularmente após 1768, quando o sistema de censura sofreu uma profunda modificação, passando de uma censura preventiva e pastoral contra ideias que pudessem atentar contra a fé ou as leis do reino, para uma ação própria do intelectual como legislador, em que o critério de admissão na “República das Letras” passou a ser a própria utilidade, “ou seja, sua capacidade de converter os ignorantes à verdade” (TAVARES, 2014TAVARES, Rui. Le censeur éclairé (Portugal, 1768-1777). Thèse. Doctorat en Histoire et Civilisations. École des Hautes ètudes em Sciences Sociales. 2014. p. 167.. p. 167).
Esse significado, verificado por Rui Tavares em sua análise da atuação dos censores pombalinos, tornou o termo “utilidade” a moeda padrão de troca das permissões de impressão e circulação de livros e impressos. Podemos ilustrar isso com o exemplo do censor João Batista de São Caetano, para quem
[…] os critérios mais frequentes para aprovar um livro [eram] a utilidade e a necessidade. De acordo com ele e os outros censores, a utilidade era de fato o critério de avaliação de um livro, às vezes de modo exclusivo, às vezes associado a seu duplo ‘útil e necessário’, transformado em fórmula - uma espécie de selo aposto a cada parecer (TAVARES, 2014TAVARES, Rui. Le censeur éclairé (Portugal, 1768-1777). Thèse. Doctorat en Histoire et Civilisations. École des Hautes ètudes em Sciences Sociales. 2014. p. 167.. p. 299).1 1 “[…] l’utilité est même le critère d’évaluation d’un livre, parfois exclusif, d’autres fois associé à son double ; « utile et nécessaire » devient formule, une sorte de sceau apposé à chaque rapport.”.
Além dos censores, outros agentes da palavra escrita e impressa (considerando o “circuito de comunicação” da palavra impressa, que vai do autor ao leitor, passando por editores, censores, livreiros etc. (DARNTON, 2002DARNTON, Robert. What is the history of the books? In: FINKELSTEIN, David & McCLEERY, Alistair. Book history reader. New York: Routledge, 2002, p. 9-26., p. 9-26)), compartilham o uso frequente do conceito de utilidade ao se referirem a livros e escritos. Autores, tradutores e, com menor frequência, editores, usaram recorrentemente noções de útil e utilidade em suas justificativas para o esforço despendido na confecção das obras que apresentam ao público, geralmente expressos nos paratextos editoriais. Os leitores, ainda que sejam a parte mais elusiva deste circuito, podem ter suas vozes acessadas pelos historiadores em pedidos, feitos à censura, para ter e ler livros que esta mesma censura proibira, ou em cartas ao autor ou ao editor, eventualmente publicadas. Para tentar compreender as inserções mencionadas acima, inicialmente vamos tentar perseguir, nessas vozes diversas, restritas ao espectro social bastante heterogêneo daqueles participantes (incluindo também os nascidos no reino) da “República das Letras” em Portugal do fim do século XVIII, os usos e sentidos atribuídos à utilidade.
Um primeiro exemplo foi o censor Frei Francisco de Santa Anna, que corroborou o sentido de conversão à verdade do termo ao escrever sobre o livro As obrigaçoens dos Amos e dos Criados de Claude Fleury, cuja tradução para o português (feita por Joze Caetano de Mesquita, professor de retórica e lógica do Colégio dos Nobres) ele censurou em 1771. Segundo o censor, o livro era utilíssimo “porque comprehendendo o seu assumpto todo o genero de pessoas, todas se podem aproveitar das prudentes e sabias instrucçoens de que está cheia” (ANTT, RMC, Cx 7, 1771, n 38ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO - ANTT - FUNDO: REAL MESA CENSÓRIA - RMC.). Outro censor, o Frei José Mayne, ao censurar, em 1786, a tradução dos Exercicios de Piedade para todos os dias do anno, do Padre Croiset, afirmava que a utilidade da tradução (que ele aprovou) residia na possibilidade de os leitores derivarem exemplos e imitarem “os verdadeiros Heroes da Santidade, ajustando-se por meio da Leitura com suas imitaveis acções” (ANTT, RMC, Cx 13, 1786, n. 20), continuando assim o esforço de “conversão à verdade” expresso por Tavares.
O sentido foi incorporado também pelos produtores dos textos que os censores analisavam. O tradutor anônimo do Compêndio da vida da B. Maria da Encarnação, por exemplo, simplificou esta ideia ao associar, em sua “prefação”, a “utilidade da lição deste Compêndio” com “regras práticas, e seguras da perfeição cristã” para que os leitores tivessem, ainda que parcialmente, comportamentos virtuosos (ROMANO, 1792ROMANO, Bartholomeu Moirani. Compêndio da vida da B. Maria da Encarnação. Lisboa, na Régia Officina Typografica. Ano 1792. [Trad. Anon.];). O livreiro e editor (francês de nascimento, mas estabelecido em Lisboa desde 1765) Francisco Rolland confirmou essa ideia no “prólogo do editor” da tradução das Fábulas de Esopo, que ele publicou em 1791, ao afirmar que, “estando na nossa língua, com a sua moralidade, serve este Livro de utilidade a todos aquelles que não tem maiores conhecimentos”, (ESOPO, 1791ESOPO. Fábulas. Traduzidas da língua grega com applicações moraes a cada Fabula. Lisboa: Na Typographia Rollandiana, 1791, [Trad. Manoel Mendes da Vidigueira].) ou seja, pode levar o conjunto dos leitores (ou ouvintes de leituras públicas) à verdade (ou talvez devêssemos deixar claro - até uma certa verdade).
Porém, os textos que utilizaram os termos útil ou utilidade ao se referir aos livros e escritos, geralmente tomavam a noção de utilidade como previamente dada, aplicando-a como uma adjetivação qualificativa sem a necessidade de uma explicação - apontando para sentidos compartilhados do termo. Esse foi o caso do padre tradutor que “dezeja[va] ser util ao publico com as suas traduções” mas, ignorando as regras da língua portugueza, deixou- as “cheya[s] de defeitos, e impropried.es q se não devem permitir na tradução da Sagrada Escritura”(ANTT, RMC, Cx 7, 1771, n. 10). O mesmo aconteceu com a censura da tradução da Vida de Justiniano, ou Hebrain, composta por Joaquim Jozé de Souza e censurada em 1773 pelo frei Francisco Xavier de Santa Anna, que achava o trabalho do autor útil, apesar de ele somente “traduzir em estillo rasteiro o que acha escripto em alguns livros bons”:
Conheço que não he muito habil para Escriptor, mas devo confessar que empregando-se em traduzir Authores de mericimento, não deixa de ser util o seu trabalho. O nosso idiôma carece de algumas coisas que Elle quer produzirao publico, e como o faz livre de erros substanciaes, merecem alguma condescendencia as imperfeiçoens que se-lhe descobrem. [...](ANTT, RMC, Cx 8, 1773, n.2).
Reafirmando este sentido prévio, o tradutor anônimo da Arte de tratar a si mesmo nas enfermidades venereas (BOURRU,1777BOURRU, Mr. Arte de tratar a si mesmo nas enfermidades venereas. Coimbra, Na Real Officina da Universidade, 1777. [Trad. Anon.]., p. xxxvi-xxxvii) estava certo de que a publicação do “livrinho” tinha utilidade “para o bem público”, no mesmo tom que um dos leitores da Miscellanea curioza e proveitoza (ANÔNIMO,1782ANÔNIMO, -. Miscellanea curioza e proveitoza, ou, Compilação, tirada das melhores obras das naçõens estrangeiras. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1782.), organizada e publicada em cinco volumes por Francisco Rolland a partir de 1779, registrou suas preferências em uma carta ao editor, na qual elogiava o esforço editorial que franqueava “muitas Obras, que nos servem de muita utilidade” para “desabusar, e augmentar, a nossa litteratura, e introduzir neste Reino todas aquellas Maximas, com que os Homens se illuminem, e augmentem os seus pensamentos”.
Simultaneamente, reforçando a ideia de acesso à verdade, a utilidade foi invocada como valor inerente aos livros ou às traduções. Para o censor Antonio Pereira de Figueiredo, “pelo que toca à Traducção Portugueza, que o Pe. Custodio da Silva Barboza quer imprimir: era muito para dezejar, que huã obra deste porte e desta utilidade, cahisse em mãos mais polidas do que parecem ser as deste Traductor” (ANTT, RMC, Cx 8, 1772, n. 26), ao passo que para o frei Francisco Xavier de Santa Anna, “não ha quem ignore, ou quem duvide da utilidade desta Obra” (os Discursos sobre a Historia Ecclesiastica do abade Fleury) (ANTT, RMC, Cx 8, 1772, n.56), e para o Frei José da Rocha, “esta Obra [o Diccionairo Abreviado das Antiguidades, escrito por Pedro Joze da Fonseca] he de grande utilidade, e importancia para a intelligencia da Historia Antiga, tanto sagrada quanto profana, e para a dos autores gregos e latinos” (ANTT, RMC, Cx 11, 1779, n. 16).
Esse sentido também pode ser visto na dedicatória que o mineiro de Sabará José Ferreira da Silva (1860SILVA, Inocêncio Francisco da, et al. Dicionário bibliográfico português, Lisboa. Imprensa Nacional, Tomo 5o, 1860., p. 101) escreveu para sua tradução das Observações sobre a propriedade da quina do Brasil, ao pedir ao Príncipe regente que ignorasse as falhas da tradução e dedicasse sua atenção “para o util da materia, e o zello do bem publico” (COMPARETTI, 1801COMPARETTI, André. Observações sobre a propriedade da quina do Brasil. Lisboa: Na Typografia Chalcographica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801. (Trad. de SILVA, José Ferreira).). O mesmo pode ser visto na já citada dedicatória dos Princípios de direito mercantil, de José da Silva Lisboa (1801LISBOA, José da Silva. Principios de direito mercantil e leis de marinha para uso da Mocidade portugueza, destinada ao commercio. Lisboa: Na Typografia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801.). O autor disse ao príncipe (e aos leitores) que “[a] utilidade, e a falta de hum ensaio de literatura deste genero em linguagem patria, servirá de apologia á temeridade da empreza”.
Francisco Rolland, prefaciando uma de suas edições, estende esse sentido a todo seu esforço editorial, expandindo também a noção de que a própria leitura é uma parte funcional do conceito de utilidade:
Ora pois deixaria eu de publicar hum Livro, de que pendem tantas utilidades, e onde todos pódem achar instrucção? E deixará esta Traducção de não ter o mesmo acolhimento, com que os Francezes acolhêrão o seu Original? Creio que os Portugueses a acceitaráo com bom grado, pois a Nação cada vez mais se vai illuminando, e procurando os bons Livros já nos seus mesmos Originaes, já nas Traducções que delles tão louvavel e utilmente se fazem. Quanto se tem conhecido a utilidade, que brota da contínua, e boa lição dos livros! (ROLLAND, 1780ROLLAND, Francisco. Prefácio, In: RIGORD, Francisco Xavier. Noticia da mythologia; onde se contem em fórma de dialogo a historia do paganismo, para a inteligencia dos antigos poetas. Lisboa: na Typografia Rollandiana, 1780.).
Embora os exemplos se multipliquem em grande quantidade, um último pode dar o contraponto necessário, ao definir um livro como sendo fundamentalmente inútil para o esforço de “iluminação” envolvido nesses processos:
Senhora
Vi e examinei com a exacção possivel a tradução da Pharmacopeia Matritense, feita por Florencio José Loeiro, á que ajuntou diferentes formulas de varios Autores, com muita Confusão e pouco criterio: está cheia de muitos vicios, e erros que pedião hum incansavel trabalho para os corregir se fosse necessaria a impressão de huma tal tradução, que por sua natureza nada tem de util, e por isso me parece não ser só desnecessaria, mas prejudicial que se imprima.
Lisboa, 28 de fevereiro 1791.
Jose Vicente Borzão (ANTT. RMC, Cx 15, 1791, 11A, sem grifos no original).
Além dos sentidos de útil ou de utilidade, podemos levar em conta, também, o que os autores desses paratextos e epitextos entendiam pelo processo de ilustração propriamente dito. Os múltiplos significados dados aos processos de conhecimento que, desde o século XVII, debatiam as formas de apreensão da realidade (OUTRAM, 2006OUTRAM, Dorinda. Panorama of the Enlightenment. Getty Publications, 2006., p. 188), no caso português, apresentaram-se como um processo irredutível a definições únicas ou universalizantes (ARAÚJO, 2003ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das luzes em Portugal: temas e problemas. Livros Horizonte, 2003., p. 15). Cumpre então, buscarmos “as mediações instauradas ao nível da cultura escrita, destacando, sempre que possível, o lugar e a função que os livros e demais produtos culturais ocuparam entre os gestos e objectos da vida social” (ARAUJO, 2003ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das luzes em Portugal: temas e problemas. Livros Horizonte, 2003., p. 10) para tentarmos, minimamente apreender os significados que esses muitos agentes atribuíram a sua própria “ilustração”.
Estudos sobre a aproximação de autores luso-brasileiros, como Manuel Arruda da Câmara e o Frei Veloso, e a “crença na estreita relação entre texto e prática científica” (KURY, 2015KURY, Lorelai B. O naturalista Veloso. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 243-277, jan.-jul., 2015., p. 249), por um lado, e o “uso intensivo da leitura associada ao trabalho científico”, por outro (KURY, 2015KURY, Lorelai B. O naturalista Veloso. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 243-277, jan.-jul., 2015., p. 251), permitem aproximações sobre essas mediações. Os escritores e tradutores em foco associavam, de forma inequívoca, esses processos à atuação real. Um conjunto de exemplos pode ser tirado de traduções publicadas nos anos finais do século XVIII, em especial na Tipografia Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego (CAMPOS, CURTO & TUDELA, 1999CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; CURTO, Diogo Ramada & TUDELA, Ana Paula. A Casa Literária do Arco do Cego: bicentenário,(1799-1801):" sem livros não há instrução". Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda: Biblioteca Nacional, 1999.).
Martim Francisco Ribeiro de Andade Machado, irmão de José Bonifácio, cuja atuação no Brasil independente foi acentuada em projetos de laicização da educação ou de políticas econômicas nacionalistas (SOUSA, 1922SOUSA, Alberto, Os Andradas (3 vols.), Typographia Piratininga, São Paulo, 1922.), em 1799 rendia tributo ao príncipe regente, dedicando-lhe sua tradução do Manual do mineralogico ou esboço do reino mineral disposto segundo a análise chimica (BERGMAN, 1799BERGMAN, Torbern. Manual do mineralogico ou esboço do reino mineral disposto segundo a análise chimica. Lisboa, na Officina de Joaõ Procopio Correia da Silva, 1799. [trad. Martim Francisco Ribeiro de Andrade Machado].). Em sua retórica laudatória, Andrade Machado atribuía a D. João as qualidades de um “príncipe ilustrado” por mandar traduzir (supomos que, através dos esforços de D. Rodrigo de Souza Coutinho e Frei Veloso) (MANSUY, 2003SILVA, Andrée Mansuy Diniz. Portrait d'un homme d'état, D Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares, 1755-1812: Les années de formation, 1755-1796. Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.) obras que introduziam nos súditos portugueses “o gosto para as sciencias, mormente aquellas, que são de tanta utilidade, como as que se empregaõ no conhecimento da natureza”, cuja consequência adicional era “que naturalmente acompanha a grande Obra de tirar do lethargo huma nação espirituosa, e como dar lhe huma nova existencia” (BERGMAN, 1799BERGMAN, Torbern. Manual do mineralogico ou esboço do reino mineral disposto segundo a análise chimica. Lisboa, na Officina de Joaõ Procopio Correia da Silva, 1799. [trad. Martim Francisco Ribeiro de Andrade Machado].). Seu outro irmão, Antonio Carlos Ribeiro de Andrade Machado da Silva, dedicando sua tradução do Tratado do melhoramento da navegação por canaes de Roberto Fulton (1800FULTON, Robert. Tratado do melhoramento da navegação por canaes. Lisboa: Na Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800. [Trad. Antonio Carlos Ribeiro de Andrade Machado da Silva].) também a D. João, seguiu a mesma lógica, atribuindo ao regente o papel principal de “procurar o bem dos povos, cuja guarda lhes foi commettida” através de “melhoramentos, e invenções uteis, de que a incuria dos tempos tinha feito carecer Portugal”, atendendo demandas da razão de que “do bem particular resulta o geral da espécie”. O próprio frei Veloso endossou essa visão de uma ligação íntima entre conhecimento científico, atuação oficial e texto oferecido à leitura. Na dedicatória, de novo, a D. João (mas muito provavelmente devido a uma recomendação de D. Rodrigo de Souza Coutinho. Ver: DENIPOTI & PEREIRA, 2013DENIPOTI, Claudio; PEREIRA, Magnus Roberto. Sobre livros e dedicatórias: D. João e a Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801). História Unisinos, v. 17, n. 3, p. 257, 2013., p. 268), da Memoria sobre a qualidade, e sobre o emprego dos adubos, ou estrumes de Massac (1801MASSAC, M. Memoria sobre a qualidade, e sobre o emprego dos adubos, ou estrumes. Lisboa: Na Typografia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801. [Trad. Fr. José Mariano da Conceiçaõ Velloso]), Veloso relacionava práticas produtivas com textos “luminosos” oferecidos à leitura dos produtores por iniciativa oficial:
Elle [o tradutor] segue o seu mesmo trilho [do autor], e tem para si, que esta operação de restituir a fertilidade ás terras, que se achão exhauridas, fertilisar os campos, que são estereis, não materialmente, como até agora se fazia por falta de livros, que os dirijissem, mas sim por principios luminosos, he hum dever sagrado do Fazendeiro, he hum objecto sublime desta nobre sciencia productiva, que sustenta as Cidades, dá materia ás Artes, e sobras ao Commercio, em huma palavra, faz feliz a Nação, e estavel o Throno.
Na sua “advertência” à tradução de Theorica das Funções Analyticas, que contem os principios do Calculo Diferencial (LA GRANGE, 1798LA GRANGE, M. Theorica das Funções Analyticas, que contem os principios do Calculo Diferencial. - Lisboa: na Offic. de Joaõ Procopio Correa da Silva, 1798. [trad. Manoel Jacinto Nogueira da Gama].), Manoel Jacinto Nogueira da Gama, matemático mineiro formado em Coimbra e marquês de Baependi durante o Império brasileiro, enfatizava o papel da ilustração, neste caso, através das traduções, que tinham a função de suprir a falta de textos matemáticos em português, sempre mantendo como foco que esta ilustração ocorria por obra e graça do regente, “que até providencea a falta dos soccorros litterarios”. Um último exemplo vem do também matemático mineiro, Antonio Pires da Silva Pontes Leme, na dedicatória de sua tradução de Construcção, e analyse de proposições geometricas e experiências práticas que servem de fundamento á arquitetura naval (ATWOOD, 1798ATWOOD, George. Construcçaõ, e analyse de proposições geometricas e experiencias practicas que servem de fundamento á arquitetura naval. Lisboa: Na Officina Patriarcal de Joaõ Procopio Correa da Silva, 1798. [trad. Antonio Pires da Silva Pontes Leme].). Pontes Leme recorreu ao exórdio retórico tradicional de elogios ao regente (DELMAS, 2008DELMAS, Ana Carolina Galante. Do mais fiel e humilde vassalo: uma análise das dedicatórias impressas no Brasil joanino. Rio de Janeiro. UERJ. Mestrado em História, 2008., p. 97) para estabelecer o vínculo entre ciência, escrita e nação, pois “as mais diminutas producções litterarias, que tem por objecto, o adiantamento das Artes, e especialmente, as que tem immediata connexaõ com a Grandeza dos Reinos, e Dominios de Vossa Alteza Real” só chegam ao público devido à bondade augusta de D. João, que acolhe os “mais humildes vassalos” que se dedicam às ciências.
Essa tônica não era novidade no universo das letras portuguesas. Podemos ver isso quase quatro décadas antes, na obra do oratoriano Antonio Pereira de Figueiredo, provavelmente o mais ferrenho defensor do pombalismo, tanto em sua atuação como censor (TAVARES, 2014, 262-277TAVARES, Rui. Le censeur éclairé (Portugal, 1768-1777). Thèse. Doctorat en Histoire et Civilisations. École des Hautes ètudes em Sciences Sociales. 2014. p. 167.) quanto em seu esforço como escritor e tradutor (sua principal obra sendo uma tradução da Bíblia, elaborada ao longo da década de 1770). Na “Prefaçaõ do traductor” à Carta do clero de Liege, que ele traduziu e publicou em 1769 (ANÔNIMO, 1769ANÔNIMO, -. Carta do clero de Liege:escrita nos principios do seculo XII em fórma de Manifesto, por occasião de outra que a Flandes escrevera o Summo Pontifice Pascoal II declarando excommungados, e falsos clerigos os conegos de Liege. Lisboa: na officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1769. [Trad. Antonio Pereira de Figueiredo]), ele relacionou a ação da Coroa (através de Sebastião José de Carvalho) com o avanço das “luzes”: “[…] Ora, o nosso Portugal, que debaixo do illuminado Governo de Sua Magestade que Deos guarde, e debaixo da sabia conducta do seo grande Ministro e Secretario de Estado, o […] Conde de Oeiras, tem em dezoito annos ressarcido com ventagem todo o atrazamento, que padecera em mais de dois seculos”. Outro membro (menor) da estrutura de poder pombalina, José Dias Pereira, professor no colégio dos nobres, fez operação semelhante de aproximação do pensamento ilustrado com diretrizes políticas ao traduzir obras que visavam acabar com a crença na feitiçaria. Ele buscava, assim, “dirigir a atuação da Inquisição para crimes políticos e comportamentais dos sacerdotes”, o que também permite pensar suas traduções como encomendas oficiais (DENIPOTI & PEREIRA, 2014PEREIRA, Magnus Roberto & CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho. Elias Alexandre da Silva Correira; um militar brasileiro em Angola. Curitiba: Editora UFPR , 2014.). Na “prefação” da Traducção da defeza de Cecilia Faragó, o tradutor afirmava pretender “desabusar” os portugueses de crenças “grosseiras e supersticiosas”, pois “[a]s grandes luzes que actualmente illustram a Patria affortunada, não consentem que só os Catholicos da França, e da Italia, leiam na língua materna as verdades do primeiro, e terceiro capitulo desta Obra. Deve chegar a todos esta verdade, fundada nas santas Escrituras” (RAFFAELLI, 1775RAFFAELLI , Giuseppe. Traducção da defeza de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria: obra útil para desabusar as pesoas preoccupadas da arte magica, e os seus pretendidos effeitos. Tradução de, José Dias Pereira.Lisboa: Off. Manuel Coelho Amado, 1775.).
De modo semelhante, o padre João Evangelista de Lemos, ao traduzir os Pensamentos theologicos de Nicolao Jamin (1784JAMIN, Nicolao. Pensamentos theologicos próprios para combater os erros dos filosofos livres do século. Lisboa: Na Oficina de Simão Thaddeo Ferreira. 1784. [trad. João Evangelista de Lemos].), escrevendo a partir do campo dos antifilósofos, opostos, não às luzes em si, mas às conclusões da “filosofia libertina” (McMAHON, 2001McMAHON, Darrin M. Enemies of the Enlightenment. New York: Oxford University Press, 2001.), complementou a obra francesa com seu próprio ataque, no “prólogo do tradutor”, à “mal entendida filosofia” que derramava “o veneno da liberdade, da incredulidade, e de quantos vicios póde escogitar a diabolica presumpção da singularidade, junta com a corrupção do coração” (JAMIN,1784JAMIN, Nicolao. Pensamentos theologicos próprios para combater os erros dos filosofos livres do século. Lisboa: Na Oficina de Simão Thaddeo Ferreira. 1784. [trad. João Evangelista de Lemos]., p. v.). Contra isso, ele buscou valorizar “a sã, e sólida Filosofia” que se esparramou no seu século por toda a Europa, responsável por dissipar “as trévas, e as argucias de huma subtil, escabrosa, e inconcludente, qual era a antiga”. A participação real, neste caso, se manifesta no exemplo de conversão ao catolicismo que o livro provocou no “Príncipe Guilherme, Conde Palatino do Rhin, que andava allucinado, e embebido com os erros de Luthero”. Sem aludir à coroa portuguesa, o tradutor deixou subentendido - enfaticamente, uma vez que inclui a dedicatória original ao príncipe Guilherme em sua tradução - que o papel da coroa era o de defender as luzes católicas (McMAHON, 2001McMAHON, Darrin M. Enemies of the Enlightenment. New York: Oxford University Press, 2001., p.40), conforme ele (e o autor francês) as apresentavam.
Além disso, nas ligações entre “luzes” e texto escrito, um último tema que domina os paratextos é o do esforço do homem de letras - autor ou tradutor - em prol da pátria, da nação, da Coroa ou do bem comum, esforço esse que, por vezes, parece ir além do trabalho meramente intelectual.
O tradutor anônimo da obra de Bourru (1777BOURRU, Mr. Arte de tratar a si mesmo nas enfermidades venereas. Coimbra, Na Real Officina da Universidade, 1777. [Trad. Anon.].) sobre doenças venéreas prefaciou o texto afirmando a correção e qualidade de sua tradução, com a ressalva de que “porém se com tudo lhe faltarem alguns accidentes, minha boa intenção me servirá de desculpa, e a humanidade pública nunca deixará de ser servida”. Similarmente, o abade Joaquim Franco de Araujo Freire Barbosa referiu-se, no paratexto “O traductor Portuguez aos que lerem”, da tradução dos Idyllios e poesias pastoris, de Salomão Gessner (1784GESSNER, Salomão. Idyllios e poesias pastoris. Lisboa: Na Of. de Simão Thaddeo Ferreira, 1784. [trad. Joaquim Franco de Araujo Freire Barbosa.]), ao esforço que o trabalho do tradutor demandava - particularmente na tradução de poesias, ainda que o empenho tivesse sua recompensa no fato de oferecer material novo à leitura, mesmo com uma tradução ruim: “Em fim, o meu Leitor quando não ache outro merecimento na minha Traducção, nunca me póde culpar de lhe não ter dado hum dos mais béllos Poetas, que tem até agora tocado a flauta pastoril. Estimarei agradar-lhe, pois nisso cuidei o que pude”. Noutra esfera do universo editorial, o coronel Miguel Tiberio Pedegache Brandão Ivo dedicou sua tradução de A arte da guerra, de Frederico II (1792FREDERICO II. A arte da guerra. Lisboa, Regia Officina Typografica, 1792. [Trad. Miguel Tiberio Pedegache Brandão Ivo]), a dom João, “sendo justo, que huma Obra, que contem os principios, e maximas da Sciencia dos Heroes, Seja dedicada a hum Principe”, ao mesmo tempo que reitera o esforço necessário para a tradução:
Traduzir huma obra poetica em verso, segundo as leis, e uso da lingua, em que se vérte, manietado servilmente ás palavras do original, he trabalho invencivel, e teria a mesma perspectiva a traducção, que tem huma tapeçaria vista pelas costas: sacudir totalmente este jugo, fora ser traidor, pois seria substituir as próprias idéas aos pensamentos do Author, que se pertende traduzir. Na minha versão, fugi de hum e de outro despenho, ligando-me quanto pude ao original, e unicamente soltando os grilhões, que me opprimião, quando me via impossibilitado a dar na lingua portuguesa ao texto a vida, que o animava; porém nesta mesma liberdade procurei conservar exactamente todo o espirito do Author, os seus pensamentos, as suas mesmas idéas, substituindo ao colorido da lingua original aquelle que o Author lhe daria, se escrevesse em a nossa.
Não se julgue, porém, que na exposição dos obstaculos que encontrei, eu pertendia inculcar pobre, dura, rasteira, ou imperfeita a nossa lingua: longe, longe de mim este pensamento! Conheço, e facilmente provaria com mil, e mil exemplos, se necessario fosse, que a lingua Portugueza tem abundantisssima cópia de termos, que pela feliz mistura dos elementos formão, ou para me explicar melhor, se tornão animados quadros, que se matizão, e ramificão, segundo a natureza das sensações e das idéas, de que elles são, não o instrumento, sim a mais viva imagem […]
Luis Carlos Moniz Barreto, no prefácio intitulado “o Traductor, a quem ler” de sua tradução dos Discursos sobre a história eclesiástica (FLEURY, 1773FLEURY, M. Discursos sobre a história eclesiástica. Lisboa, Livraria Silviana. 1773. [Trad. Luis Carlos Moniz Barreto].), reconhecendo a utilidade “que se póde e deve esperar da Leitura destes Discursos”, admite reconhecer as dificuldades de uma boa tradução. Este tradutor, sobre quem não se sabe ao certo se nasceu no Brasil ou nos Açores, admite também que “muito mais claramente que [...] não tinha todas as precisas qualidades para emprender este difficultozo negocio” e direciona esta utilidade ao amor da verdade, e ao interesse e bem público dos seus compatriotas “principalmente do Clero menos instruido”.
Alguns anos mais tarde, fazendo coro aos tradutores portugueses citados acima, o carioca Antonio de Araujo de Azevedo, mais tarde conde da Barca, na “Advertência” de sua tradução da Elegia de Thomas Gray (1799GRAY, Thomas. Elegia de Gray escrita no adro de uma igreja de aldeia. Hamburgo: [s.n.] 1799. [Trad.Antonio de Araujo de Azevedo].), buscava “servir nossa Nação” pelo trabalho realizado, ressaltando que “Só o traductor, só o homem versado na própria lingoa, e nas estranhas, conhece toda a dificuldade de traduzir, […] Mas as boas traducções dos classicos das outras Naçoens são de grande utilidade para o adiantamento e perfeição das lingoas”.
Para além disso, e como confirmação adicional da relação entre ciência, luzes e texto, há a retórica de sublimação, peculiar às relações clientelistas do Ancién Regime (MAZLISH, 2000MAZLISH, Bruce. Invisible Ties: From Patronage to Networks. Theory, Culture, Society; 17; 2, 2000,1-19.). Foi assim que, por exemplo, o já mencionado Martin Francisco Ribeiro de Andrade Machado se justificou em sua dedicatória do Manual do mineralogico (BERGMAN, 1799BERGMAN, Torbern. Manual do mineralogico ou esboço do reino mineral disposto segundo a análise chimica. Lisboa, na Officina de Joaõ Procopio Correia da Silva, 1799. [trad. Martim Francisco Ribeiro de Andrade Machado].): “Se acontecer não corresponderem minhas fracas luzes, e incapacidade ás vistas de V. ALTEZA REAL, a novidade do assumpto será bastante excusa da má execução, e sofrerei contente a censura, ficando ella compensada com feliz destino de ser esta Obra protegida por V. ALTEZA REAL […]”. Da mesma forma, Manoel Ferreira de Araujo Guimarães (jornalista e militar baiano que, treze anos mais tarde, fundou o jornal O Patriota), na dedicatória ao príncipe regente de sua tradução do Curso elementar e completo de mathematicas-puras (LA CAILLE, 1800LA CAILLE, Marie. Curso elementar e completo de mathematicas-puras. Lisboa: Na Officina Patriarcal de Joaõ Procopio Correa da Silva, 1800. [ trad. Manoel Ferreira de Araujo Guimarães]), afirmou sobre seu texto, que “[...] Elle só dá o mais authentico testemunho de que hum fraco Traductor naõ lhe fez perder sua belleza, e que ainda lhe fica a elegancia, a concisaõ, e a clareza, que a caracterizaõ, e que sempre lhe seguráraõ o voto de toda a França, e da Europa inteira”, mesmo que, para completar a tarefa, tenha sido necessário “furtar algumas horas ao descanço para fazer esta traducção” devido às obrigações de aluno da Real Academia da Marinha, somadas a “pensões não mediocres, e capazes de fazer acurvar os hombros mais robustos” que ocupavam o tempo disponível do tradutor.
Há, finalmente, a ênfase na autonomia e adequação da língua portuguesa para quaisquer “obras de gênio”, sempre presente nos discursos de si que os tradutores luso-brasileiros fazem nos paratextos. O dicionarista carioca Antonio de Moraes e Silva afirmou ter posto todo o cuidado “em que a sua fraze fosse pura, castiça, e livre de antigualhas inintelligiveis, tanto ao menos, como os torpes Gallicismos, que hoje a feyão muitas traducções”, visando atingir os leitores contemporâneos e os futuros “se lá chegar esta versão” da Historia de Portugal composta em inglez por uma sociedade de litteratos que ele traduziu (ANÔNIMO, 1788ANÔNIMO, -. Historia de Portugal composta em inglez por uma sociedade de litteratos, com as addiçoens e notas do tradutor portuguez, A. de Moraes Silva. Lisboa: Na Off. da Academia Real das Sciencias, 1788. [Trad. Antonio de Moraes e Silva].). Nogueira da Gama, na “prefação” da tradução do Ensaio sobre a theoria das torrentes e rios (ANÔNIMO, 1800ANÔNIMO, -. Ensaio sobre a theoria das Torrentes e Rios, etc. Lisboa: Na Offic. Patr. De Joaõ Procopio Correa da Silva, 1800 [Trad. Manoel Jacinto Nogueira da Gama]), por sua vez, lamentava a “pobreza, em que ainda se achava a Lingua Portugueza, relativamente aos termos próprios das differentes obras Hydraulicas, por falta da publicação de Escritos Hydraulicos”, e ofereceu sua própria solução para o problema:
[…] por não achar justo que a Lingua Portugueza não tivesse termos, que lhe fossem próprios, formei o plano de dar á cada obra hum nome, que exprimisse alguns dos seus principaes objectos, ou a sua construcção, ainda que não tivesse alguma analogia com o nome Francez, adoptando porém aquelles já entre nós geralmente conhecidos. […]
Não me lisonjeo de que a minha escolha seja acertada; de boa vontade ter-me-hia subtrahido a esta tarefa, se me fosse licito deixar de obedecer. E como o meu maior desejo seja a utilidade publica, para evitar todos os embaraços, a que possa ter dado causa, e para por o Leitor em melhor estado de decidir e emendar, ajunto huma Tabella dos princiaes nomes, que adoptei, com os seus correspondentes francezes […]
Vimos, nos muitos exemplos da retórica encomiástica e adulatória, o quanto os agentes da palavra escrita compartilharam sentidos comuns dos termos “luzes” (ou ilustração), seja na definição de útil/utilidade, seja nas aplicações de políticas oficiais ou oficiosas emanando a partir de um poder central, seja ainda na manutenção de relações de submissão clientelista. Nesses vários sentidos, vimos os autores/tradutores utilizando as expressões conceituais como definidoras de discursos e práticas em torno do mundo da palavra impressa.
Ser útil era condição quase indispensável para que o esforço de escrita, tradução e, eventualmente, impressão de uma obra acontecesse. Embora restritos ao universo das pessoas envolvidas, de algum modo, com o mundo do livro, esses usos permitem que pensemos em utilidade como um conceito socialmente compartilhado no contexto em foco (BENTIVOGLIO, 2010BENTIVOGLIO, Julio. A história conceitual de Reinhart Koselleck. Dimensões. Vol. 24, 2010, p. 114-134.). A utilidade, aplicada ao conceito de nação/império tornava a execução (ou tradução) da obra em foco um ato relevante, semelhante a atos heroicos no campo de batalha, atribuindo honra ao autor e àqueles a quem ele deve fidelidade e obediência (RAMINELLI, 2008RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008.).
Dessa mesma forma, a inserção na República das Letras portuguesa estava permeada por relações clientelistas, em que autores e tradutores ofereciam os frutos de seus “árduos labores” a figuras de poder, enfatizando sua participação em um grande esforço pelas “luzes” que tinha como objetivo final engrandecer a monarquia - a “nação” imperial - ao mesmo tempo em que se inseria em uma economia de dádiva, com a expectativa de recompensa sempre presente tácita ou explicitamente (RAMINELLI, 2008RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008., p. 21; DENIPOTI & PEREIRA, 2014PEREIRA, Magnus Roberto & CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho. Elias Alexandre da Silva Correira; um militar brasileiro em Angola. Curitiba: Editora UFPR , 2014.).
Assim, os textos e paratextos servem como ponto de partida para pensar a realidade histórica - neste caso, o Antigo Regime português - e a inserção dos súditos luso brasileiros da Coroa nos processos de poder, buscando os pontos em comum ou de desacordo entre os nascidos no reino e nas colônias, revelando assim o papel desempenhado por esses escritos nos debates sobre as “luzes” e sobre a “nação”. A vasta ampliação, verificada pela historiografia especializada, no mercado editorial de língua portuguesa na segunda metade do século XVIII, especialmente naqueles livros que podemos chamar de ciência “utilitária” - ou seja, obras de divulgação de conhecimentos científicos, em diversos campos -, deu oportunidade à inserção dos filhos da elite colonial, através da educação coimbrã e da participação em viagens de exploração no reino e nas colônias e de cargos administrativos e militares em todo o império. A participação desses “brasileiros”, ainda que tenha fornecido uma visão com laivos coloniais à interpretação que eles faziam do império (PEREIRA, 2006PEREIRA, Magnus Roberto. Rede de mercês e carreira: o “desterro d’angola” de um militar luso-brasileiro (1782-1789). História: Questões & Debates, 2006 vol: 45 pp: 97-127.; PEREIRA & CRUZ, 2014PEREIRA, Magnus Roberto & CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho. Elias Alexandre da Silva Correira; um militar brasileiro em Angola. Curitiba: Editora UFPR , 2014.), não parece ter criado nenhuma espécie de construção identitária regional, ou uma identidade “brasileira” - no sentido que o termo assume no século XX - avant la lettre. Pelo contrário, os paratextos dos tradutores parecem reforçar a noção de uma “nação” que é todo o império, com eventuais indicações do sentido de “pátria-chica” permeando seus discursos (SILVA & HESPANHA, 1992SILVA, Ana Cristina Nogueira & HESPANHA, António Manuel. A Identidade portuguesa. In: MATTOSO, José. (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1992., p. 19-37).
Há que se levar em conta, também, o caráter específico do tipo de fontes utilizadas - textos e paratextos publicados com as devidas licenças, feitos por iniciativa de autores e tradutores desejosos de se incluir na república das letras e em redes clientelares ou por ordem expressa de pessoas de poder no centro dessas redes. Não se pode ou deve esperar que tais documentos manifestem oposição à ideia de império, como expressa nas políticas oficiais e em suas justificativas literárias ou retóricas. O trabalho com outra documentação - cartas, diários, ou as escritas de si desses luso-brasileiros reformulando ex post facto seu pertencimento às estruturas sociais do Antigo Regime lusitano, por exemplo - pode alterar as conclusões acima.
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Notas
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1
“[…] l’utilité est même le critère d’évaluation d’un livre, parfois exclusif, d’autres fois associé à son double ; « utile et nécessaire » devient formule, une sorte de sceau apposé à chaque rapport.”.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jan 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
25 Abr 2017 -
Aceito
28 Jun 2018